Home   |   Structure   |   Research   |   Resources   |   Members   |   Training   |   Activities   |   Contact

EN | PT

BrBRCVHe0034-71672012000600004

BrBRCVHe0034-71672012000600004

variedadeBr
ano2012
fonteScielo

O script do Java parece estar desligado, ou então houve um erro de comunicação. Ligue o script do Java para mais opções de representação.

Almanaque da Dengue: leituras e narrativas de Agentes Comunitários de Saúde

INTRODUÇÃO Do ponto de vista do diálogo que vem sendo desenvolvido entre as áreas da informação e comunicação e da educação popular e saúde, as mídias de comunicação e as informações disseminadas pelos serviços de saúde constituem-se em um pólo discursivo fundamental para dar conta de certa visão de saúde, de doença, de direitos, dentre outras questões. Nesse sentido, este pólo pode ser entendido como um campo social composto por atores, discursos, veículos, instituições que estão o tempo todo disputando sentidos sociais, ideologias e hegemonia, principalmente nos momentos de epidemias, como a dengue.

Num outro pólo encontra-se a população moradora de áreas atingidas pela dengue, cujas demandas emergenciais em saúde são capazes de pressionar o Estado para respostas rápidas, como no caso da desorganização social provocada pelas epidemias(1). Esta população tende a ser considerada pouco ou insuficientemente informada pelos profissionais e gestores dos serviços de saúde, o que pode explicar a insistência em aumentar a veiculação de informações nos períodos de crise, como forma de atender a uma suposta carência informacional(2).

O que está em jogo, quando se analisa a informação em saúde com base nesta perspectiva, é a circulação de concepções mais amplas, de saúde e vida. O reconhecimento das necessidades de informação das pessoas que vivem nas áreas atingidas pela dengue vai além da identificação de supostas "carências informacionais". É tarefa que demanda o desafio de compreender o mundo cotidiano das relações e processos sociais objetivos e subjetivos, o que inclui a apropriação, barganha e uso político das informações veiculadas. Reconhece-se que é preciso ampliar o conhecimento sobre a dengue, abrangendo níveis de análise que não apenas o epidemiológico, incluindo-se uma maior compreensão sobre a dinâmica social na qual a doença se produz(3-4).

A perspectiva teórica e metodológica que trata da construção, disseminação e apropriação da informação em saúde como indissociável do processo de produção de conhecimentos, tem implicado na redefinição de objetos e metodologias de pesquisas que objetivam compreender as formas como se constrói a informação local em saúde, por entender que estas apontam para outras lógicas de construção de saberes em saúde, e por sua capacidade de induzir a ação social.

É com este objetivo que a pesquisa que origem ao presente artigo, de caráter interdisciplinar e interinstitucional, e cujo objeto é o trabalho do agente comunitário de saúde (ACS) na cidade do Rio de Janeiro, incluiu como um de seus eixos de análise o processo de estruturação das redes formais e informais de saberes sobre saúde, o "onde e como" circula a informação entre os agentes, as equipes de saúde e a comunidade.

A dengue, reinstalada no Brasil desde a década de 1980, tem se mantido endêmica no Estado e na cidade do Rio de Janeiro, com períodos epidêmicos de características variadas. Surtos epidêmicos de média intensidade aconteceram nos anos de 1991, 1995, 1998 e 2001, e em 2002 o número de casos chegou a 138.027. No ano de 2008 a cidade viveu nova epidemia severa, com 125.468 casos notificados e casos de morte, o que mobilizou de modo dramático a opinião pública e os meios de comunicação(5). A cada epidemia a dengue é pautada na mídia, no discurso acadêmico e principalmente das autoridades e profissionais de saúde, alertando de forma alarmante a população sobre os cuidados a serem tomados para evitar a grande proliferação do mosquito.

O ACS é um dos profissionais mais mobilizados para as ações de prevenção e de controle, nos momentos de epidemia. Profissão cuja identidade é referida ao seu caráter mediador entre serviços e comunidade, o trabalho dos ACS se num campo de disputas políticas, cognitivas e simbólicas entre diferentes formas de conhecimentos, de usos e de apropriação de informações. Seus cabedais culturais e cognitivos são compostos pelas experiências cotidianas nas comunidades, suas habilidades na vivência prática dos problemas de saúde, e na apropriação do conhecimento profissional dos técnicos e gestores(6-7). Leva-se em conta, ainda, o conhecimento histórico recolhido da memória pessoal ou de relatos biográficos, que expressam a memória social das comunidades na lida com as doenças e com o seu mundo vivido.

Considerou-se o trabalho do ACS, a partir das suas narrativas, como um espaço privilegiado para avançar na compreensão sobre os usos e potencialidades da informação produzida no nível local, como memória social e conhecimento relevante para o enfrentamento e controle do dengue. Tomando como referência as perspectivas teóricas e metodológicas da informação e da educação popular e saúde, são apresentados e discutidos os resultados de um estudo de leitura de um dispositivo de informação e comunicação - o Almanaque da Dengue, conduzido durante o ano de 2008, com um grupo de agentes da cidade do Rio de Janeiro. A interdisciplinaridade no processo de pesquisa foi buscada a partir do diálogo entre duas áreas de produção científica, a da enfermagem de saúde pública e a da ciência da informação.

METODOLOGIA A pesquisa interdisciplinar que deu origem a este estudo de leitura e apropriação de informações foi desenvolvida com base na concepção dialógica da pesquisa-ação(8), organizada em eixos de análise, a saber: trabalho e formação; gênero e trabalho; mudança de modelo assistencial; políticas nacionais e internacionais e suas inflexões sobre o trabalho do ACS e usos e redes de informação em saúde no trabalho dos ACS. Dentro deste último eixo, foi efetuado um estudo de recepção, leitura e apropriação do Almanaque da Dengue pelos agentes, com foco em duas estratégias metodológicas: a) o uso de um dispositivo de informação (Almanaque da Dengue), construído de forma compartilhada como modo de aproximação e debate sobre o universo informacional e dos saberes dos agentes; b) a apreensão de suas formas de leitura e apropriação de informações sobre a dengue e as questões de saúde.

O grupo de sujeitos do estudo de leitura integrou noventa ACS de duas Áreas Programáticas (AP) do Município do Rio de Janeiro - a AP 2.2, que inclui os bairros de Maracanã, Tijuca, Vila Isabel, Praça da Bandeira e entornos; a AP 5.2, com recorte nas localidades de Sepetiba, Ilha de Guaratiba e Pedra de Guaratiba. Foram realizadas três oficinas, sendo uma na AP 2.2 e duas na AP 5.2, cada uma com 30 sujeitos, durante o ano de 2008, iniciando-se ainda na vigência da epidemia de dengue.

A proposta do estudo de leitura com foco na informação local sobre a dengue é orientada pela pergunta a respeito das possibilidades de produção de um "conhecimento social", construído de forma compartilhada pela junção e estranhamento dialógico entre uma diversidade de conhecimentos e discursos da ciência, do Estado, das mídias, dos agentes comunitários e das comunidades que sofrem os agravos de saúde e as más condições de vida. Santos(9) denomina esses enclaves de comunidades interpretativas, propostas pelo campo acadêmico na sua relação de compromisso com a sociedade e os seus problemas, referenciadas pela necessidade de uma nova ruptura epistemológica, que (re)aproxime o conhecimento científico do conhecimento de senso comum. Fundamentam a proposta de estudar, de forma interativa e compartilhada entre pesquisadores e sujeitos, formas alternativas de produção, mediação e apropriação de informações para impulsionar outras dimensões do conhecimento para a política, os direitos humanos e a cidadania, como contraponto a um modelo de conhecimento que tem sido valorizado no atual contexto mundial de organização econômica, aquele que privilegia a circulação de informações para atender às demandas da economia globalizada e seus modelos de trabalho.

Um debate foi conduzido ao final de cada oficina, após a leitura do Almanaque, solicitando-se que cada grupo de ACS escolhesse um relator para apresentação e debate a partir da leitura ocorrida nos grupos menores. Todas as falas, tanto nos pequenos grupos de leitura como nas plenárias de debate ao final, foram gravadas e posteriormente transcritas.

Este método permitiu aos pesquisadores uma aproximação exploratória do universo representacional dos grupos de agentes sobre suas condições de trabalho, o reconhecimento dos principais temas e questões presentes no cotidiano e a percepção do universo informacional dos agentes sobre a saúde e seus condicionantes, com foco no tema da dengue.

Os resultados foram organizados e discutidos, selecionando-se os aspectos mais relevantes sobre as formas de produção, circulação e apropriação da informação em saúde no nível local, gerando categorias analíticas, a saber: a) memória social e epidemias de dengue; b) culpabilização da vítima e informação; e c) o ACS: informante não autorizado.

O projeto de pesquisa foi previamente submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, tendo sido aprovado por meio do Parecer numero 33A/2008, atendendo-se aos requisitos usuais de aceite voluntário de participação por parte dos sujeitos.

O Almanaque da Dengue como disparador de narrativas Para as ciências da informação e da saúde, uma mudança paradigmática em relação às práticas e políticas de atendimento se expressa na afirmação da necessidade de um agir eminentemente interdisciplinar e na produção de saberes afinados com a evolução tecnológica em termos de velocidade e acesso a novos e múltiplos conhecimentos. Assim, também a produção, sistematização e difusão de saberes em saúde devem buscar romper com a unidirecionalidade que marcou historicamente estes processos, devolvendo aos sujeitos, produtores de saberes, um papel protagônico, reafirmando que o conhecimento é produto e condição do trabalho e da cidadania(10).

Com base nesses pressupostos interdisciplinares, durante os anos de 2001 a 2003, o Grupo de Pesquisa Antropologia da Informação, então ligado ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação do IBICT/MCT-ECO/UFRJ, em parceria com o Núcleo de Estudos Locais em Saúde ' ELOS/ ENSP/FIOCRUZ, estudou, de modo interativo e participante, o movimento da informação e do conhecimento nas redes sociais que se organizavam em torno das questões de educação popular e saúde, na região dos subúrbios da Leopoldina, na cidade do Rio de Janeiro.

Seguindo o foco principal do Grupo de Pesquisa, procurou-se interpretar, organizar e sistematizar as informações produzidas nas ações e representações das pessoas envolvidas nas redes sociais, recuperando e conservando seus elementos narrativos, contextuais, políticos e históricos.

O foco empírico da pesquisa foi direcionado para a epidemia da dengue do verão do ano de 2002, seus antecedentes e resultantes na ótica da população, da mídia, do poder público e da academia. Essa conversa em torno da dengue foi sistematizada com a construção coletiva e compartilhada do Almanaque da Dengue (AD), experimento de informação que, como produto da pesquisa, procurou materializar seus intentos teórico-prático-metodológicos. Desde esse tempo até agora, o Almanaque da Dengue, em formato impresso, serviu para a realização de oficinas de leitura e apropriação, para ser reconstruído por outros leitores, multiplicando-se suas leituras e usos. Os conteúdos do AD são orientados pelas seguintes questões: a. Quais são as instituições autorizadas de produção de informações sobre a dengue? b. b) Como organizam e legitimam seus discursos e quem são seus porta-vozes? c. De que forma a população se apropria e produz informações sobre a dengue e seus condicionantes? d. Durante uma epidemia, como se organizam as redes de contato entre os agentes e a população? e. Quais são as formas de registro das informações na memória institucional e na memória social? Quais são os seus usos? Do ponto de vista metodológico, a conformação de um almanaque, como proposta que permite avançar numa compreensão sobre as formas de produzir conhecimento das classes populares, se apóia na centralidade da narrativa como subsídio para a pesquisa em saúde. Mencionando o filósofo Walter Benjamin, Marteleto, Guimarães e Nóbrega(11) argumentam em favor da narrativa como expressão coletiva de uma cultura e visão de mundo, ressaltando o aspecto da permanência da palavra trazida pelo narrador, comparando-o ao informante: "a palavra do primeiro permanece, enquanto a do segundo se esvai".

As narrativas que conformam o texto do AD não estão organizadas de forma linear, sequer obedecem a uma seqüência lógica: o almanaque em geral é lido a partir daquilo que mais chama a atenção do leitor naquele momento, sem nenhuma obrigatoriedade de organização do tipo "inicio-meio-fim", ou de completude. O texto produzido rompe com o formato literário de história com narrativa encerrada, e se aproxima da concepção de hipertexto.

Por apresentar características que incentivam o diálogo de diferentes formas de saberes e experiências, (narrativas, universo popular e lúdico, dinamismo, interação com o leitor, construção hipertextual) a leitura desse experimento pelos ACS serviu como fio condutor para a expressão e delimitação dos seus universos informativos e representacionais sobre a dengue e a saúde, e para realizar a transição temática relativa ao universo do trabalho desses agentes.

O almanaque, produto e produtor, proposta na qual se colocam em diálogo as reflexões da informação, da educação crítica e da educação popular e saúde, traz para o coletivo, no ato de leitura e apropriação, as representações, os saberes e a memória social. A idéia de construção compartilhada de conhecimento (12) converge com a de terceiro conhecimento(13), na perspectiva da instauração de processos emancipatórios e participativos. Este formato, pela multiplicidade de sentidos apropriados na leitura, permite expressar as tensões entre lógicas distintas de construção de saberes ' no presente caso, conhecimentos sobre saúde a partir do tema dengue, tomando como ponto de partida o trabalho do ACS.

Do ponto de vista pedagógico, apresenta-se como proposta que permite romper com a unidirecionalidade dos processos da criticada educação bancária, convergindo e integrando-se à perspectiva da educação popular e saúde como campo de reflexões e práticas desenvolvidas em processos dialógicos e críticos.

O Agente Comunitário de Saúde O ACS é um trabalhador de saúde cujo processo de profissionalização é recente e permeado por dificuldades, avanços e retrocessos. É justamente no seu papel de mediador social e trânsito entre serviços de saúde e o território que reside o caráter inovador deste trabalho dentro do sistema público de saúde. O fato de ser um trabalhador comunitário, morando onde trabalha, coloca o ACS em uma situação especial, permeada por diversas ambigüidades. Seu papel de mediador entre os serviços e o território onde trabalha, embora consensual como pressuposto e justificativa para a existência desta profissão, não é claro no que tange ao escopo desta mediação, e à sua intencionalidade: mediar o que, para quem? As relações que se produzem no cotidiano do seu trabalho, assim como no dos demais profissionais de saúde, são atravessadas pelas tensões e disputas relativas aos projetos terapêuticos e dividendos políticos que perpassam a implementação das políticas públicas no nível local. Suas atribuições e atividades tendem a sofrer mudanças e adaptações rápidas, em função das demandas da organização do trabalho das equipes, transformando este trabalhador numa espécie de "auxiliar de serviços gerais de saúde. Quando tem oportunidade de falar sobre seu trabalho, e sentimento de desvalorização está misturado à satisfação em colaborar para a melhoria da saúde das pessoas e famílias dos locais onde residem(7). Sua proximidade histórica com o enfermeiro inserido na Atenção Básica tem sido explicitada nos diversos estudos desenvolvidos pela enfermagem sobre este profissional(6,14).

Numa perspectiva de valorização da formação integral do trabalhador, para além da mera capacitação técnica, críticas à concepção que classifica o trabalho do ACS como trabalho simples, em função de seu perfil social, concepção esta que tende a destacar a existência de certos atributos subjetivos, especialmente o pendor à solidariedade. Esta concepção estaria encobrindo uma percepção ideologizada e desqualificadora a respeito do trabalhador ACS, e vem servindo de argumento para o não investimento em uma formação adequada ao perfil de atuação dos ACS por parte de gestores e formuladores de políticas de gestão do trabalho e educação na saúde, pelas implicações em termos de reconhecimento, ascensão salarial e legitimação política deste trabalhador(15).

A partir de um olhar crítico acerca das limitações que vem sendo impostas às políticas públicas de bem estar social, no marco das mudanças macroestruturais do mundo do trabalho, entende-se que este é um trabalho que se faz nas fronteiras históricas e sociais da cidade(16): nos limites entre favelas e bairros, periferia e centro urbano, precarização e profissionalização, resposta e descaso por parte do estado. Fronteira também entre os saberes instituídos e aqueles que se produzem no cotidiano das relações e processos de superação das desigualdades, mediando contradições, o que contribui para a indefinição do perfil de atribuições do ACS, um profissional em permanente constituição, que está sempre sendo(17).

RESULTADOS E DISCUSSÃO Os ciclos de informação e a dengue Quando se pensa no papel da informação e das ações educativas em saúde com vistas ao controle da dengue em uma situação de epidemia, um evidente pragmatismo imposto pela urgência em combater da forma mais rápida o grande vilão: o mosquito da dengue. O modelo informacional e educativo desenvolvido pelos serviços públicos de saúde no Rio de Janeiro mantém-se o mesmo: publicação de cartazes, folhetos e cartilhas, propaganda no rádio, televisão e internet, visitas casa a casa de agentes sanitários, para a inspeção e controle de focos de mosquitos, instauração de dias especiais para mutirões de inspeção e ações de controle de focos.

Na leitura do Almanaque da Dengue, os ACS em geral tiveram sua atenção capturada pelo título de uma das seções: Quando não tem epidemia, não tem informação? No texto em questão, organizado em formato de diálogo, duas pessoas conversam sobre o fato de que a dengue não se resume ao controle domiciliar de foco de mosquitos, ponto em relação ao qual existe muita informação disponível, destacando que a doença está relacionada a determinantes sociais e políticos, como acesso a saneamento básico, entre outros. A leitura e apropriação pelos ACS levou primeiramente a um debate sobre o volume de produção e difusão de informações, de acordo com o contexto temporal da epidemia: Então uma informação massante. Chega o inverno, não essa informação, então esse ciclo que teria que estar fechado em todas as épocas do ano, se perde. Então, nesse período, geralmente não informação. (ACS 22); [O Almanaque] é um histórico de que essa epidemia poderia não voltar, mas ela vai e volta, porque ela vai e volta. Por quê? Porque a informação não é constante. É no momento da epidemia. Acabou, acabou. (ACS76) A informação sobre a dengue parece não gerar memória nas instituições, nos serviços de saúde, nas mídias ou na população. Assim como a própria sazonalidade da doença, gera ciclos de ocorrência discursiva e noticiosa no tempo de duração de casos e de epidemias, em oposição a períodos de silêncio, ou não informação.

Esta mobilização discursiva sobre a dengue no período epidêmico ' contexto que estava sendo vivenciado pelos ACS que compuseram as duas primeiras oficinas de leitura ' pode ser analisada com referencia ao conceito de drama social, discutido, numa análise da primeira epidemia de dengue no Rio de Janeiro, por Cunha(18), com base na antropologia social inglesa. Sobre o drama social, a autora afirma que: Ao adotar essa perspectiva com relação à apreensão da vida social somos, necessariamente, levados a considerar como unidades de análise, não somente a ação social mas, sobretudo, determinados momentos da vida em sociedade, nos quais podemos identificar uma clara oposição de interesses entre grupos e indivíduos.

O aumento no volume das informações em época de epidemia é acompanhado pelo aprimoramento dos cuidados, porque a dengue atingiu a população dos bairros de classe média alta da Zona Sul da cidade, uma avaliação crítica e contextualizada dos agentes relacionada ao acesso aos serviços de saúde, de educação e à invisibilidade de certos grupos sociais: Percebemos que a dengue atinge o pessoal da Zona Sul, de poder aquisitivo melhor. Quando atinge cantores, artistas... o pobre fica em segundo plano.O pobre, se não tiver dinheiro, plano de saúde, vai ficar esperando, o rico vai para a clínica particular. O pobre tem que esperar, e se não tem vaga na escola fica sem estudar, e o rico vai para a escola particular. Assim, quando a dengue atinge a zona sul passa a ser preocupação, o município ou o estado tem que se responsabilizar. Quando atinge pessoas importantes, o pobre fica de lado, sem importância. O pobre fica sem valor. A dengue não é coisa nova, mas nunca houve tanta mobilização como agora. Porque atingiu os de poder aquisitivo melhor. O pobre não tem valor, deixa de lado...

(ACS 66) O momento da epidemia, ao mesmo tempo em que pode obscurecer a visualização dos elementos que compõem uma conjuntura que penaliza uns mais que outros, parece lançar luz sobre a forma como os agentes, como mediadores e moradores dos territórios atingidos pela dengue, avaliam os limites no uso da informação pelo Estado, incluindo a que eles mesmos disseminam.

De quem é a culpa? No decorrer das oficinas, outras questões surgiram, a partir da problematização dos conteúdos do Almanaque da Dengue. A ideia de "culpabilização da vítima" baseia-se num conceito bastante difundido nos debates sobre educação e saúde (18), e foi expressa nas narrativas dos agentes de forma aparentemente contraditória sobre a aderência das informações externas ao mundo vivido da população. De um lado estão as representações sobre a precedência do saber técnico-científico em relação aos saberes populares, atribuindo o não uso da informação à ignorância das pessoas. Ao mesmo tempo, expressam representações que se contrapõem à perspectiva individualizante, tecendo avaliações críticas sobre a informação que se limita à prescrição normativa sobre cuidados preventivos nos domicílios, e que desconsidera a falta de saneamento, de acesso aos serviços de saúde e de condições dignas de vida: Saber o que tem que fazer eles até sabem...mas a população fica deixando para depois, 'amanhã eu faço'. Eles têm informação, sabem o que tem que fazer, porém eles não fazem."(ACS 58) Porque não adianta a gente ir e dar várias informações porque eles não entendem porque o mosquito prolifera na caixa d'água se a caixa d'água está no alto. E as bromélias não vão guardar água para o mosquito. Não adianta o governo fazer vigilância se a população não absorve a informação. (ACS 32) Então falamos da questão da educação mesmo e é porque assim...

falamos do compromisso dos governantes também, que é muito fácil colocar a culpa na população e falar que a população é culpada por essa epidemia e que existem vários prédios públicos abandonados, cheios de focos da dengue, e que é muito mais fácil dizer que é a tampinha do refrigerante que está dando dengue.(ACS 18).

O ACS como informante não autorizado Ao discutir a relação entre as questões trazidas pelo Almanaque e seu trabalho, os ACS trazem a sua autopercepção como trabalhador não reconhecido no âmbito das equipes de saúde. Os agentes expressaram sentimentos de sobrecarga de trabalho, uma vez que precisam conciliar as demandas de seus supervisores, que lhes designam atividades de visita, busca de faltosos a consultas, fazer o acolhimento na porta da unidade de saúde, com as demandas da comunidade, que lhes cobra a facilitação do acesso, pela marcação de consultas. Além disso, sentem-se responsáveis e buscam desenvolver ações voltadas para as pessoas de sua micro-área, em especial os idosos que vivem sozinhos, as famílias mais pobres, os enfermos que não conseguem atendimento na rede pública. Neste universo de trabalho marcado por demandas díspares e volumosas, os ACS avaliam que seu trabalho não possui a visibilidade merecida, e que os serviços tendem a valorizar mais as ações que geram indicadores de produtividade.

A sobrecarga de trabalho e o não reconhecimento são em outros estudos, com resultados indicando que esta sobrecarga se deve à indefinição e diversidade de tarefas, aumento da intensidade e interrupção constante no trabalho (14,19-20).

Os sujeitos deste estudo consideram que as informações que produzem e/ou veiculam não são valorizadas ou reconhecidas: Os agentes na verdade tiveram percebendo muito antes dela ser decretada epidemia, mas quando aparece a questão da epidemia é muita coisa. Muda tudo. É, outra coisa que falaram também, eles falaram que tem uma crítica em relação à forma como o Agente é visto. Que eles acham assim: fala que o Agente Comunitário é os olhos, a ponte, mas o reconhecimento mesmo ainda tem que caminhar... (ACS 3) A ampliação do conhecimento sobre saúde, após o ingresso no trabalho como ACS, lhes confere segurança crescente no diálogo educativo junto às famílias. No dizer de uma das agentes, ao conhecer mais sobre a dinâmica de reprodução do mosquito, ela pôde explicar com mais clareza às famílias sobre a importância de que os cuidados em evitar a água parada sejam periódicos e sistemáticos. Por outro lado, percebe a complexidade envolvida no ato de levar informações sobre saúde, como algo que ultrapassa o repasse de conhecimentos técnicos e implica no encontro intersubjetivo, no contexto das diversas formas e modos de viver: É complicado falar para o morador limpar a casa dele. (ACS 18).

Uma estratégia de mediação que tecem para legitimar seu papel como informante e evitar tensões com os moradores (tensões estas que poderiam ser desencadeadas por uma postura prescritiva sobre a limpeza da casa e do quintal, por exemplo) é a busca do apoio de outros profissionais da equipe para a disseminação de informações nas casas: "O ACS é visto como porta-voz da comunidade e precisa chamar alguém da equipe para falar. Isto é contraditório, mas às vezes eles querem ver alguém de fora para ouvir. No que eu levo nossa supervisora reforça." (ACS 47), o que parece legitimar um processo de legitimação informacional de segunda ordem no qual a informação autorizada ' geralmente, aquela que é disseminada por um profissional de nível superior ou pelo gestor - se apresenta como passaporte que confere credibilidade à informação produzida e veiculada pelo ACS.

Os agentes valorizam sua experiência concreta no cotidiano de trabalho, durante a qual identificam questões e situações que podem não ser consideradas como prioridade pelo serviço de saúde, que tem definidas suas demandas. A constatação de casos isolados, alguns deles graves, logo no início da epidemia, alertou-os para o que viria.

A gente sabia que a epidemia estava acontecendo, antes da televisão falar (ACS 77).

Outra narrativa desvela a inseparabilidade entre as esferas da vida e do trabalho do ACS: Eu penso assim, eu quero acabar com a dengue não porque é meu trabalho somente e sim porque se eu não acabar com ela na minha comunidade, eu estou do lado, minha família está do lado... (ACS 7) Em que pese o sentimento de não reconhecimento dentro da equipe e as tensões na comunidade, os ACS também falaram sobre o prazer de colaborar para o controle da dengue no seu território. Percebem-se com produtores de informação, como facilitadores de processo de geração e construção de conhecimentos em saúde, embora também reconheçam o limite imposto pelo tempo que se leva para estabelecer reais vínculos na sua relação com as famílias sob sua responsabilidade: O ACS morar [referindo-se ao seu trabalho] facilita, mas é uma conquista, com o tempo... (ACS 77).

CONSIDERAÇÕES FINAIS A observação das leituras realizadas pelos ACS, nas oficinas de leitura e apropriação do Almanaque da Dengue, leva a concluir que, ao longo dos anos de convivência com a dengue, a manutenção de índices endêmicos e a ocorrência de surtos epidêmicos graves ocasionam alguns questionamentos, dentre outros, sobre o uso social da informação em saúde. Considera-se que as campanhas e atividades educativas não são, isoladamente, suficientes para a obtenção de resultados capazes de modificar o quadro, embora isto não se reflita em mudanças de estratégias. Compreender como se o processo de construção, sistematização, seleção e difusão da informação em saúde sobre o dengue é uma das demandas de apropriação de um conhecimento mais amplo sobre o fenômeno.

Como mediador entre o serviço e a população, e tendo em vista a capilaridade e a facilitação do acesso que caracterizam seu trabalho, se , ao mesmo tempo, como informante autorizado e não autorizado. Conclui-se que a legitimação de sua atuação como informante ultrapassa os limites de uma formação ou preparo técnico, embora não prescinda destes. Reconhecer que um saber importante em saúde se constrói no processo de mediação social que se tece no cotidiano de sua prática implica em recontextualizar a inserção deste ator profissional, reconhecendo também seu direito à formação profissional e seu papel como educador popular.

O Almanaque da Dengue foi considerado um material de leitura crítica que incentiva diálogos de conhecimentos entre diferentes agentes do Estado e a população, além de possibilitar uma visão situada e relacional sobre as informações veiculadas pelas diferentes mídias de comunicação, o que corresponde, segundo os agentes comunitários de saúde, à própria dinâmica interpretativa que, criativamente, eles constroem no trabalho cotidiano com as comunidades.


transferir texto