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BrBRCVHe0034-71672013000100011

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variedadeBr
ano2013
fonteScielo

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Responsabilização do outro: discursos de enfermeiros da Estratégia Saúde da Família sobre ocorrência de dengue

INTRODUÇÃO Dentre as doenças reemergentes da região tropical, o dengue é o agravo de maior importância na atualidade, atingindo, cerca de 100 milhões de pessoas, segundo a Organização Mundial de Saúde(1).

Dentre as prioridades de pesquisa do Programa Nacional de Controle da Dengue (PNCD), destaca-se a avaliação de conhecimentos, percepção de risco e práticas da população em relação ao dengue, com vistas a aportar subsídios para o aprimoramento do componente de comunicação e mobilização social(1).

Tem-se observado que todos os programas implantados no Brasil nas ultimas décadas tenham dedicado um capítulo específico para a implementação de ações educativas, principalmente nas áreas de informação, educação e comunicação social. No caso específico da dengue, mesmo alcançando alto grau de conhecimento da população sobre biologia do vetor, forma de transmissão, sinais e sintomas e tratamento, não tiveram apoio suficiente para causar impacto(2-3).

A eficácia de estratégias utilizadas para o combate à dengue com foco no controle do vetor está comprovada por diversos estudos, mas é imprescindível reconhecer que as estratégias voltadas à mudança de condutas são fundamentais e que sem elas o controle da dengue será sempre um problema de saúde pública.

Uma estratégia específica, parcialmente aplicada no Brasil para a prevenção da dengue, é a comunicação para impacto comportamental (Communication and Marketing Integrated for Behaviour Impact - COMBI), um modelo de planejamento para mobilização e comunicação social que visa promover a mudança de comportamento(3).

Assim, o objetivo desta pesquisa é conhecer os aspectos comportamentais da população que contribuem para a ocorrência da dengue, por meio do discurso dos enfermeiros de unidades de saúde da família, de forma a contribuir para a implantação de estratégias voltadas para a efetiva mudança do comportamento em relação à dengue.

METODOLOGIA Discutindo as diferenças entre os desenhos de pesquisa qualitativo e quantitativo, diversos autores afirmam a importância de não se colocar essas diferenças de forma dicotômica, mas entender que o desenho de uma pesquisa está intrinsicamente ligado ao seu objeto de interesse e aos recursos disponíveis para a sua realização(4-6). Neste sentido, o objeto desta pesquisa requer um enfoque qualitativo. A pesquisa qualitativa não procura explicar o tema selecionado através de variáveis e sim compreender o tema para produzir o conhecimento. A flexibilidade e a adaptabilidade são as principais características da pesquisa qualitativa, que pressupõe um cuidado especial na construção do referencial teórico e uma estrutura metodológica consistente.

A coleta de dados foi realizada em todas as Unidades de Saúde da Família (USF) de Dourados-MS e de cinco municípios da microrregião. Dourados-MS é o segundo maior município do estado de Mato Grosso do Sul, com 191.575.774 habitantes(7) e é referência na área de saúde. Os cinco municípios da microrregião de Dourados, selecionados para pesquisa, são de pequeno porte (menos de 50.000 habitantes), com quatro e oito ESF, totalizando 66 equipes de saúde da família (ESF).

Os sujeitos da pesquisa foram enfermeiros inseridos na ESF, totalizando 66 sujeitos elegíveis. A seleção da amostra foi feita pela saturação(8) das respostas, atingida após a realização de 16 entrevistas.

As entrevistas foram agendadas por telefone ou pessoalmente, de acordo com a disponibilidade dos sujeitos. Foi solicitada autorização para gravação, explicado o objetivo da pesquisa e apresentado o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE).

Para a análise do material empírico resultante da gravação e da transcrição das entrevistas foi utilizada a técnica do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), tendo sido usado o software QualiQuantisoft®, desenvolvido para facilitar a tabulação de dados de pesquisas baseadas na técnica(9).

Com o uso do QualiQuantiSoft®, a técnica do DSC produz informações quantitativas sobre os dados colhidos, relativas à quantidade de informantes que fizeram referência a uma determinada ideia central, e, portanto, integraram a composição final do DSC. As frequências, sejam elas absolutas ou relativas, referem-se às respostas contidas nos discursos individuais e que se encontram agrupadas no DSC e não ao número de ideias centrais identificadas na pesquisa.

Em relação aos resultados qualitativos representados pelo DSC, seu uso apresenta infinitas possibilidades, uma vez que, além de ser enriquecido pelo meta-discurso, propicia ainda outras interpretações à luz dos diversos olhares, que dependem da bagagem de conhecimentos e vivências do leitor.

Tradicionalmente, meta-discurso é o tratamento teórico dos dados de uma pesquisa e a comparação dos achados com a literatura estabelecida nas publicações científicas. É a interpretação do saber científico sobre o saber do senso comum. Quando se usa o DSC, o meta-discurso faz um diálogo entre o discurso empírico e o científico em um mesmo nível de relevância, de tal forma que todo o conjunto apresente-se harmônico. O meta-discurso é a produção de sentido do pesquisador sobre o discurso produzido, que forma ao texto final da pesquisa.

O presente estudo seguiu as diretrizes e normas da pesquisa envolvendo seres humanos e foi aprovado pelo Comitê de Ética de Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

RESULTADOS E DISCUSSÃO Foram entrevistados 16 enfermeiros com idade média de 33,2 anos, sendo 12 (75%) do sexo feminino. O total de entrevistados perfez 24,2% da população elegível para a pesquisa. O primeiro DSC (DSC 1) é composto pelas falas dos 16 enfermeiros, que apontaram o descaso como fator que contribui para a ocorrência do dengue, sendo um comportamento muito criticado pelos entrevistados.

DSC 1 - Descaso da população na limpeza do ambiente Eu acho que a população não se conscientizou ainda com as questões que os ovos permanecem . Elas não cuidam nem dentro da casa, muito menos do lado de fora. Normalmente você vai , mostra que tem, mas é a aquela coisa: a pessoa não se sente responsável por aquilo. Porque, assim, quando a gente está na campanha, está todo mundo empenhado em estar coletando. passa aquele período, o pessoal esquece, não valor, não dão importância. Porque o dengue tem esses ciclos. Então, assim, quando acontece uma diminuição a população acaba se esquecendo, acaba deixando de lado um pouco. A criança come o iogurte e do jeito que come joga ali e fica ali mesmo. Mora na terra, vai viver na terra e não faz nada pra melhorar a situação. É basicamente o descuido com a higiene do ambiente mesmo, relaxo, preguiça, comodismo. A displicência dos moradores, da população.

Observa-se uma correlação direta entre o fato de que a população não acredita nas informações técnicas sobre a dengue e o comportamento desleixado em relação ao cuidado com o meio ambiente. O descuido com o micro-espaço é atribuído ao desconhecimento ou à baixa conscientização do papel individual na construção do coletivo. Este descaso generalizado é descrito por Boff(10) como um dos sintomas da crise civilizacional e que enfatiza a necessidade do cuidado com a terra nos pequenos detalhes do cotidiano, em suas palavras, "o próprio nicho ecológico".

A referência à falta de conscientização da população perpassa todo o discurso, mas é importante frisar que essa conscientização, tão necessária na ótica dos enfermeiros, não é um processo simples, que a experiência da doença é fator preponderante para formar o que Bosi e Affonso(11) chamam de "consciência preventiva". Esta não ocorre porque existe um saber que é passado dos enfermeiros para a população, mas da experiência com a saúde e a doença. Assim, a orientação e, muitas vezes, a limpeza dos quintais realizada pela equipe de saúde não leva a uma postura permanente de conservação do meio e consequente formação de hábitos higiênicos. Marzocki(12) enfatiza que é um grande desafio manter a população motivada, principalmente em casos em que a doença tem ocorrência endêmica e esporádica.

Vale ressaltar que o processo de criação de uma consciência preventiva é influenciado diretamente pela polifasia congnitiva(13) que, em geral, os enfermeiros não dão a devida importância, focando sua atenção apenas no repasse de informações técnicas.

O DSC 2 mostra o processo de culpabilização do outro como um comportamento recorrente, sendo citado por 10 (62,5%) entrevistados.

DSC 2 - Culpabilização do outro As pessoas não acreditam a ter a doença. Ele se prolifera para as outras casas. Muita gente acha que acontece na casa do vizinho, ? É sempre assim, achar que vai acontecer com o vizinho, nunca é o quintal delas nunca é o terreno do lado da casa delas que está sujo. É, acho que informação eles têm, mas eles não acreditam. Igual quando você fala que tem que eliminar os focos, as pessoas falam na minha casa não. Mas o que a população é sempre individualista e joga um pro outro. Ninguém nunca fala que minha casa está precisando de uma faxina. Mas eles não pensam em coletividade e se você pensar como individualista não vai resolver.

Quando o DSC menciona a transferência de responsabilidade para o outro, colocando sempre a culpa no vizinho, deve-se entender a importância do conceito de alteridade e sua inclusão no comportamento dos profissionais e da população (14). A pessoa vive em mundo em constante movimento, constituído de relações enquanto fenômeno intersubjetivo. Nesse mundo relacional, alteridade é tomar o outro como referência para os valores éticos e morais, de forma a pensar e transformar as práticas assistenciais dos profissionais no campo da saúde. O conceito de alteridade, quando aplicado a relações entre vizinhos, deveria propiciar a transformação ética do cuidado com o ambiente(14).

A necessidade de entender a importância da convivência com um outro diferente produz revoluções no olhar para um sujeito que tem direitos iguais, implica deixar de olhar o outro como ser de categoria inferior frente ao conhecimento científico e seu poder no sistema de saúde(15). Alteridade pressupõe ainda autoconhecimento para entender os próprios limites e assim compreender melhor os processos envolvidos na formação de atitudes e práticas da população referentes ao cuidado com o lixo e o ambiente em que vive. Assim, "o outro é imprescindível na constituição do indivíduo"(16). O deslocamento da responsabilidade para o outro ocorre sem a percepção de que o entrevistado também é outro na visão de seu vizinho e do profissional de saúde(17).

Uma ideia que perpassa, não este, mas vários outros DSC, é a individualidade das atitudes. A cidadania é outro conceito que precisa ser trabalhado nas atividades educativas para que se possa pensar em coletividade. O DSC propõe ainda o trabalho em sociedade, em grupo para entender que a luta contra dengue é coletiva, de todo mundo. Para tanto é importante que todos entendam que a ocorrência da doença é universal e as ações de prevenção e controle são de responsabilidade compartilhada entre a população e as instituições, sejam elas públicas ou privadas.

A terceira ideia central identificada nos discursos originaram o DSC 3, que mostra que a população tem acesso a informações de qualidade, adequadas e em quantidade suficiente, apresentando conhecimento sobre prevenção, sinais, sintomas e tratamento do dengue, mas isso não se reflete no comportamento relativo a estes aspectos. Isso está fortemente presente no discurso de 14 (87,5%) entrevistados.

DSC 3 - Conhecimento adequado com conduta inadequada Todo mundo sabe do dengue. Eles têm conhecimento e estão preocupados com os sintomas da doença, mas na hora que fala de como prevenir, não faz. Até contrair os sintomas, sabe que tem que tomar remédio, tomar água. Mas chega aqui no posto morrendo. Prova é que, quando se faz os arrastões, as limpezas, eles trazem um monte de coisas. Pegam ali das casas, dos quintais, do vizinho. É sinal que não está limpo. Tem pessoas que são super preocupadas e o vizinho do lado, que recebeu a mesma informação, recebeu as mesmas orientações, tem um monte de coisa que está acumulando água. Mas assim, generalizando, todos sabem como que deveria ser. Mas quando a gente vai fazer visita, faz palestra, praticamente eles não têm mais dúvida em relação ao dengue, sabem o que pode acontecer. Se fizer uma provinha, tiram dez. Eles acreditam na informação, que não tomam uma atitude.

Importante distinguir entre conhecimento, atitude e prática(18), para que se entenda porque o alto nível de conhecimento sobre a dengue não se reflete em prática preventiva adequada e eficaz para a redução da ocorrência da doença. O conhecimento é a capacidade de reproduzir de forma correta um determinado conteúdo, a atitude está relacionada à dimensão emocional e diz respeito à opinião que o indivíduo tem a respeito daquele conteúdo. Assim, conhecer as medidas preventivas pode não estar acompanhado de uma opinião positiva sobre o assunto. Exemplificando, a maioria dos discursos faz referência ao acúmulo de lixo nos quintais e terrenos baldios e que todos sabem que este acúmulo pode ter macro e micro criadouros do vetor da dengue; entretanto, a opinião da população pode ser que isto seja apenas um depósito de materiais que ainda tenha utilidade e que poderá ser sua fonte de renda. Neste sentido, a tomada de decisão será uma prática relacionada à dimensão social.

Enquanto a atitude refere-se à orientação do comportamento, a prática refere-se à ação executada. Como a ação dos agentes é sempre centrada no vetor, observa- se alta taxa de conhecimento sobre esse conteúdo e, portanto, apropriação do conteúdo transmitido, mas conhecimento insuficiente quanto à gravidade da doença pela pouca ênfase das campanhas neste aspecto. Estudo concluiu que o conhecimento não leva necessariamente a práticas preventivas, mesmo nos casos em que o indivíduo vivenciou as mazelas causadas pela doença(19).

A ultima ideia central identificada refere-se à transferência de responsabilidade pela manutenção da limpeza do ambiente privado para o poder público, citada por 6 (37,5%) enfermeiros.

DSC 4 - Transferência de responsabilidades para o setor público Então ele vai sempre esperar alguma coisa do poder público. A pessoa ainda acha assim que quem tem que cuidar do dengue é o governo, é a prefeitura, é o pessoal da saúde. Teve situações em que o agente comunitário de saúde foi com saco de lixo, que sair nas casas para juntar os lixos dos quintais. Tudo bem, ele pode entrar, olhar e orientar, que ele não tem tempo de ir e catar o lixo. Então ficou uma coisa muito assim, de passar a mão na cabeça mesmo. A população acaba deixando para o município ser responsável pelo próprio quintal dela. Aqui, por exemplo, tem situações no ano que o município tem que mandar fazer o mutirão da limpeza. E eles ficam ansiosos esperando que entrem nos quintais e façam a limpeza. A maioria, pelo menos, não se mexe para limpar e evitar o foco que se forma. Eu acho que as pessoas são muito dependentes, depende da prefeitura, do assistente social, para tudo ela depende. a prefeitura vai corta a grama. Eu acho que ela não vai atrás, não quer fazer alguma coisa porque o SUS fornece remédio, tem médico de graça. Na minha concepção, eles querem depender do município, querem que vão na casa deles 24 horas. É ninguém toma iniciativa. Eles querem sugar mesmo o município, muita dependência porque sabe que o SUS fornece.

O discurso deixa evidente que a população transfere a responsabilidade da limpeza da cidade toda, incluindo os seus quintais, para o poder público. Em um contexto similar pesquisado, também se encontrou essa situação associada ao comodismo e às ações assistencialistas planejadas para prevenção da dengue, como os mutirões de limpeza(20).

Assim, na lógica dos enfermeiros, os quintais estão sempre sujos porque a população acredita que a manutenção da limpeza do ambiente deve ser realizada pelos agentes públicos e não é entendida como responsabilidade individual. A manutenção constante da higiene ambiental é fator preponderante para a prevenção de epidemias e diminuição dos riscos de transmissão da dengue.

Observa-se que a transferência de responsabilidade, aqui evidenciada no caso do dengue, é uma realidade para a saúde em geral.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Os discursos dos enfermeiros de saúde da família sobre comportamentos da população relativos à prevenção do dengue apontam para a responsabilização do outro, seja um ente público ou privado, individual ou coletivo. Generalizam os comportamentos, apontando para aqueles negativos, que contribuem para a ocorrência da doença, mesmo que estejam presentes em pequena parcela da população. Ou seja, comportamentos inadequados são mais visíveis, mesmo quando não são quantitativamente relevantes.

Conhecer o discurso dos enfermeiros sobre o comportamento da população pode ajudar na implementação de mudanças, não apenas na população, mas também nas ações de educação e comunicação, bem como efetivar alterações de comportamento no trabalho do próprio enfermeiro.


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