Marcas em si: vivenciando a dor do (auto) preconceito
INTRODUÇÃO
A hanseníase é uma doença endêmica nacional e um grave problema de saúde
pública. O Brasil, em 2009, obteve o 2º lugar do mundo em número absoluto, com
37.610 casos novos(1), perdendo somente para a Índia. O Pará, que acompanha a
tendência da doença, nesse mesmo ano, foi o quinto estado brasileiro com o
maior coeficiente de detecção: 55,70/100.000 habitantes(1), ficando atrás de
Mato Grosso, Tocantins, Rondônia e Maranhão, respectivamente.
Este coeficiente mede a força de morbidade, magnitude e tendência da endemia;
avalia a carga de morbidade e de magnitude da hanseníase numa determinada
população em intervalo de tempo determinado, bem como a população exposta ao
risco de adquirir a doença. Assim, taxas elevadas são associadas a baixos
níveis de desenvolvimento socioeconômico e a condições insatisfatórias do
sistema de saúde, no que concerne ao diagnóstico precoce, o tratamento
padronizado e ao acompanhamento dos casos.
Sendo uma das principais causas de incapacidades físicas no Brasil, atinge os
indivíduos em seus estágios de vida mais produtivos, impondo à sociedade
brasileira um elevado ônus social e econômico. Apesar de ser uma doença bíblica
muito conhecida, ainda é pouco compreendida, pois a simples menção de seu nome
ou a possibilidade de estar acometida por ela ainda causa terror por remeter à
memória social da lepra e ao estigma milenar que acompanha essa doença,
lembrando o isolamento, a mutilação e a exclusão sofrida no passado.
A hanseníase está inserida entre as prioridades do Pacto pela Vida(2). A
assistência integral à pessoa com hanseníase requer a organização de equipes
multidisciplinares da rede pública de serviços do Sistema Único de Saúde (SUS),
da Atenção Básica à média e alta complexidade, de acordo com a necessidade de
cada caso e com os princípios de equidade e integralidade.
Dentre as ações de controle da hanseníase, a vigilância de contatos(3) é
fundamental para a interrupção da cadeia de transmissão da doença, pois permite
o diagnóstico precoce dos casos. Contudo, no Pará, no ano de 2009, somente
52,5% dos contatos registrados foram avaliados(1), acarretando a detecção
tardia de casos, muitas vezes diagnosticados com incapacidades já instaladas,
levando ao surgimento de alterações corporais visíveis que podem se traduzir em
representações negativas sobre si e discriminação social.
A hanseníase desencadeia vários problemas que aparecem antes mesmo de seu
diagnóstico definitivo, os quais decorrem dos comprometimentos dermatológicos e
das manifestações neurológicas que comprometem a capacidade laboral. Quando é
revelado o nome da hanseníase, ocorre um impacto no convívio familiar e a
intensidade deste impacto está intimamente ligada aos conhecimentos prévios
sobre a doença(4).
Nessa perspectiva, ser portador de hanseníase configura-se numa vivência
desencadeante de grande vulnerabilidade psicológica não só por se tratar de uma
doença potencialmente incapacitante, mas, também, porque sua trajetória
terapêutica induz, muitas vezes, a alterações estigmatizantes na imagem
corporal (reações hansênicas) que repercutem na autoestima e na identidade das
pessoas por ela acometidas e que têm o corpo alterado pela hanseníase.
Considera-se que a marca mais profunda causada pelo diagnóstico de estar com a
hanseníase ou ter alterações corporais causadas por esta, seja o medo da
rejeição dos outros. Esta situação foi mais bem observada a partir do contato
direto com mulheres com o corpo alterado pela hanseníase, o que instigou a
autora a buscar informações advindas de sua linguagem verbal, mas também não
verbal, pela observação de seus corpos, pois as marcas na pele podem ser
facilmente detectáveis se o profissional estiver capacitado para tal. Além da
atenção ao que está visivelmente objetivado no corpo e ao tratamento
medicamentoso, há que se atentar para os problemas psicossociais, ou seja, suas
subjetividades, suas angústias, seus anseios, o modo como percebem as
alterações em seus corpos e o impacto do diagnóstico e tratamento da hanseníase
em suas vidas.
Faz-se, então, necessária a implementação de ações que abranjam a
especificidade do Programa de Controle da Hanseníase segundo os princípios
fundamentais de universalidade, equidade e integralidade requeridos pelo SUS.
Com base nisso, cabe ao enfermeiro executar ações educativas abrangentes,
atentando para as reais necessidades das mulheres e de seus conviventes no que
tange à hanseníase, relevando suas subjetividades para que possam ser traçadas
estratégias de ações capazes de promover a saúde e prevenir as incapacidades
físicas, por meio de orientações individuais efetivas sobre o modo de
transmissibilidade, cura e possibilidade de surgirem reações hansênicas durante
o tratamento, com ênfase à prática de autocuidado com o corpo alterado, de modo
a prevenir o agravamento de tais alterações, bem como as incapacidades físicas.
Nesta pesquisa, objetivou-se compreender as representações sociais de mulheres
com hanseníase sobre o corpo com alterações provocadas pela doença, para que os
cuidados de enfermagem possam atender de forma mais abrangente às suas
necessidades.
MÉTODO
Pesquisa qualitativa, usando a Teoria das Representações Sociais (TRS), em sua
vertente processual(5), como teoria e método. As representações têm por função
uma produção de comportamentos e de relações com o meio ambiente, de uma ação
que modifica aqueles e estas, e não de uma reprodução desses comportamentos ou
dessas relações(5). O campo de estudo foi uma Unidade de Referência
Especializada (URE) em Dermatologia Sanitária situada no município de Marituba/
Pará-Brasil, lócus de uma ex-colônia de hansenianos (Colônia de Marituba).
Participaram da pesquisa 43 mulheres com alterações corporais causadas pela
hanseníase, estando em tratamento ou de alta por cura. Os critérios de inclusão
foram: 1) idade adulta legal, faixa etária de 18 a 59 anos; 2) residir no
município de Marituba-PA ou em Ananindeua-PA; 3) ser matriculada na URE; 4)
fazer qualquer tipo de tratamento na URE mesmo que estivesse de alta curada; 5)
aceitar participar do estudo. Foram considerados critérios de exclusão:
qualquer alteração corporal que não fosse causada pela hanseníase, estar
gestante e/ou puérpera e ser ex-moradora da Colônia de Marituba.
A pesquisa de campo deu-se no período de julho a dezembro de 2009. Para a
produção das informações foram utilizados dois instrumentos: um de
caracterização do perfil sociodemográfico e clínico-terapêutico das mulheres e
um roteiro de entrevista semiestruturado.
O Comitê de Ética da Escola de Enfermagem Anna Nery e Hospital Escola São
Francisco de Assis, da Universidade Federal do Rio de Janeiro aprovou a
pesquisa, sob protocolo nº 31/2009.As mulheres assinaram o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido, sendo-lhes garantidos os direitos que cabem
aos seres humanos que participam de pesquisas. Solicitou-lhes permissão para
registrar seus discursos por meio de aparelho eletrônico (Gravador de voz). As
expressões corporais foram captadas e anotadas em um caderno durante as
entrevistas.
Ao final de cada entrevista, agradecia-se a participação e, se houvesse
necessidade, procedia-se ao que se chamou "cuidado de enfermagem pós-
entrevista". Destaca-se a aproximação desse cuidado com alguns pressupostos da
convergência da pesquisa com a assistência, uma vez que durante a produção dos
dados da pesquisa, se identificou que as mulheres precisavam ampliar
informações sobre a cura, o contágio, a alimentação, a associação da hanseníase
com a lepra, dentre outras.
Diante do exposto, houve necessidade de ampliar a interação entre a
pesquisadora e as mulheres por meio de um trabalho educativo individual com
vistas ao diálogo sobre a doença, seu tratamento e cuidados relacionados ao
corpo, à terapêutica medicamentosa entre outros. O objetivo foi o de elucidar
suas dúvidas, introduzindo novos conhecimentos, desconstruir dogmas e mitos
existentes sobre a hanseníase. Este foi um momento de convergência entre a
pesquisa e a assistência, configurando-se em cuidado de enfermagem, com
compartilhamento de saberes visando provocar mudanças no cenário da pesquisa
(6).
Posteriormente, todo o conteúdo das entrevistas foi submetido à análise lexical
de conteúdo utilizando-se o Programa ALCESTE - Analyse Lexicale par Contexte d'
um Ensemble de Segments de Texte. O pressuposto deste software é que pontos
diferentes de referência produzem diferentes maneiras de falar, ou seja, o uso
de um vocabulário específico é entendido como uma fonte para captar modos
distintos de pensar sobre um mesmo tópico de interesse(7).
O ALCESTE gerou um corpus formado por quarenta e três (43) u.c.i. (unidade de
contexto inicial). A partir de então, o software repartiu o corpus em 858
u.c.e. (unidade de contexto elementar), formadas por 3.453 palavras ou formas
de vocábulos distintos. Posteriormente, o programa reduziu os vocábulos às suas
raízes, originando 619 palavras analisáveis. Dessa forma, de um total de 858
u.c.e., o programa selecionou 710 delas, perfazendo 83% do corpus.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O perfil sociodemográfico e clínico-terapêutico das mulheres do estudo
A faixa etária majoritária (37,21%) das mulheres deste estudo foi de 29 a 38
anos; mais da metade (53,81%) residia em Marituba; 53,50% eram católicas;
34,89% não completaram o ensino fundamental; 58,14% tinham renda mensal que
variava de 1 a 2 salários mínimos, e 58,14% se ocupavam exclusivamente com os
afazeres domésticos.
O perfil clínico terapêutico das mulheres apontou um grupo de mulheres
majoritariamente multibacilar (79,07%); com grau zero de incapacidade física
(53,49%); com episódios reacionais (62,79%); e de alta curada (69,77%), porém
permaneciam vinculadas à URE para outros tratamentos.
Análise e interpretação dos resultados após processamento do corpus pelo
ALCESTE
O ALCESTE definiu os grandes eixos de organização dos temas em quatro classes e
seus léxicos com base em sua ocorrência e co-ocorrência. Porém, o sentido para
tais classes e a identificação das representações sociais só pôde ser feita
através da interpretação empreendida pela pesquisadora amparada na TRS.
Assim, à luz das classes formadas pelo Programa Alceste, com base no conteúdo
discursivo e nos léxicos mais frequentes e mais característicos extraídos das
u.c.e. de cada classe, procedeu-se as interpretações que geraram as nominações
descritas no Quadro_1.
![](/img/revistas/reben/v66n6/13q01.jpg)
As classes 1 e 2 centraram-se nos sentidos do cuidado de si; e as classes 3 e 4
centraram-se no preconceito com relação ao tratamento e ao contágio.
Cabe esclarecer que, para fins desse artigo, serão explorados e discutidos os
conteúdos presentes na classe 3 - Marcas em si: vivenciando a dor do
(auto)preconceito. Trata-se de uma classe formada por 343 u.c.e. e 113 palavras
analisáveis; sendo, portanto, a classe de maior significância estatística em
termos de agregação de u.c.e., perfazendo 49,0% do total.
Para melhor ilustrar a discussão, apresenta-se um quadro com as palavras mais
representativas da classe e respectivos qui-quadrados (χ2), os quais sinalizam
a importância semântica de cada palavra dentro desta a partir dos léxicos
comχ2≥7, conforme o Quadro_2.
[/img/revistas/reben/v66n6/13q02.jpg]
Os vocábulos ilustrativos desta classe, associados às ideias centrais de suas
u.c.e., apontam o preconceito ancorado na autopercepção negativa da doença, que
tomam toma vulto a partir do diagnóstico e tratamento. As representações da
doença objetivadas no preconceito foram evidenciadas através das seguintes
palavras: triste, perguntam, esconder, isolei, vergonha. Tais palavras ganham
mais sentido quando articuladas nos segmentos dos textos (u.c.e), as quais
objetivam sentimentos diversos, tais como: não aceitação, omissão da doença,
auto-isolamento, histórias de mutilações, dentre outros. Esta classe revela a
ambivalência hanseníase/lepra, lepra/mutilação, mutilação/estigma, estigma/
preconceito, preconceito/exclusão social. O segmento de texto do discurso da
mulher contido na u.c.e. a seguir, exemplifica esta interpretação:
Aí foi quando o chão se abriu, eu me vi toda mutilada. (u.c.i. 5 /
u.c.e. 118χ2=9).
Esta descrição é compreensível ao pensar-se no estigma milenar que acompanha a
doença, lembrando o isolamento e a exclusão sofrida no passado. Então, adoecer
de hanseníase pode trazer à memória ideias antigas e preconceituosas, crenças
que povoam o imaginário do senso comum(8) e que, como tal, relacionam-se a
questões sociais, culturais, biológicas e emocionais.
Vivenciar uma doença é relacionar-se de modo conflitante com o social, pois o
doente passará a se sentir doente, quando deixar de realizar ações que lhe
possibilitam pertencer ao contexto em que vive(9). Dessa forma, o momento da
descoberta da hanseníase pode desencadear sentimentos diversos, de tristeza,
revolta e não aceitação, pois o significado da doença depende do sentido que
lhe é atribuído, e isso se vincula a fatores imbricados nos grupos, tais como
as experiências passadas, os preconceitos culturais e as informações obtidas
pelos meios de comunicação.
Nos grupos é que se partilham os diferentes aspectos do cotidiano e edifica-se
uma realidade comum através das representações sociais, que por isso são
sociais e tão necessárias em nossa vida, uma vez que servem para guiar, nomear
e definir os diferentes aspectos da realidade, no modo de interpretá-los, tomar
decisões e, posicionar-se frente a eles de forma defensiva(10).
No início, eu ficava triste, chorava e não aceitava. (u.c.i. 37 /
u.c.e. 791χ2=14).
As representações sociais da hanseníase ainda atrelam-se às mutilações e ao
estigma(11). Se tais representações sociais não estivessem atreladas ao
preconceito, as mulheres deste estudo não o teriam. Mesmo vivenciando o
processo da doença e o discurso das ciências nas unidades de saúde, ainda assim
elas compartilham do preconceito que a sociedade carrega, sendo influenciadas e
influenciando o meio e os grupos de seus pertencimentos sociais.
Assim sendo, acabam incorporando e dando um novo sentido a essa crença, que
passa a fazer parte de seus cotidianos e dos seus discursos, ou seja, passam a
reproduzir um saber compartilhado, mas com elementos que diferem de outros
membros da sociedade, acrescentados, justamente, pela vivência da doença. Nas
suas práticas cotidianas, elas vivenciam o preconceito que se materializa nas
reações das pessoas com as quais convivem nos espaços sociofamiliares, o que
vem a gerar comportamentos significantes, tanto dos outros com elas como delas
com os outros.
A mamãe conversou com eles, mas, mesmo assim, eles ainda ficaram
esquisitos comigo. (u.c.i. 30 / u.c.e. 640χ2=18).
Os comportamentos significantes que denotam exclusão potencializam os
sentimentos negativos como a tristeza e a não aceitação da doença, deixando
evidente o sofrimento das mulheres acometidas pela hanseníase.
É triste, não é bom para ninguém. [...] Foi a maior luta para eu me
aceitar. (u.c.i. 4 / u.c.e. 92χ2=7).
Por outro lado, existem mulheres que frente a esses comportamentos
significantes da sociedade, demonstram força na vivência da doença. A superação
é demonstrada pelas mulheres como um processo intelectual e afetivo para tornar
possível a mudança de conduta sobre o tratamento da hanseníase.
Tem que superar. Tem que ter força de vontade para superar. (u.c.i.
30 / u.c.e. 640χ2=18).
Outras mulheres pensam na cura, dando indícios que, de certa forma, se
libertaram da representação socialmente construída de que a hanseníase não tem
cura e faz cair partes do corpo. A possibilidade de ficar curada implica em
mudanças de comportamento motivadas por querer-fazer e poder-fazer, que
significa ficar melhor, diminuir as alterações, o estigma e o preconceito.
Assim, pode-se dizer que, para essa mulher, o discurso técnico-científico se
sobrepôs ao senso-comum.
Hanseniana eu não sou, eu não tenho mais a doença, eu já estou
curada. Daqui para frente só quero ficar melhor. (u.c.i. 40/
u.c.e.819χ2=10).
Para outra mulher, o cuidado prescrito por profissionais (autocuidado) foi uma
forma de superar a doença, evidenciando assim a importância do enfermeiro e da
equipe de saúde.
Eu me cuidei muito, tudo que as enfermeiras, o fisioterapeuta me
diziam, eu fazia. Então eu tive forças para lutar. u.c.i. 21: 49-59a
/ Marituba / gi=1 / rh=sim. (u.c.e. nº 450χ2=10).
Com a vivência da doença e a experiência adquirida com o tratamento, estas
mulheres configuram-se como elementos-chave para a dinâmica das representações
sociais, na medida em que, com acesso às informações do universo reificado,
advindos de sua inserção no Programa Controle da Hanseníase, elas têm a
oportunidade de acrescentar outros elementos aos saberes sociais construídos
sobre esta enfermidade, contribuindo para a desconstrução de representações
sociais cujos conteúdos fazem circular elementos que geram preconceitos sobre a
hanseníase, reconstruindo-as.
Ao verbalizarem o processo de enfrentamento da doença e o percurso do
tratamento, algumas explicações se amparam na crença na cura, na fé e na
religião. As pessoas acreditam serem alimentadas por uma força superior que
lhes ajuda a viver principalmente em momentos conflitantes, como na vivência de
doenças graves. Nesse caso, a religião funciona como válvula de escape para
onde poderão ser redirecionadas todas as suas angústias(12).
Eu pedi muita força a Deus, só Ele mesmo para dar força para a gente.
(u.c.i. 27 / u.c.e. 585χ2=7).
O fato é que a cura, a ausência de contágio e a ausência de sequelas orientam a
prevenção e, assim, a busca imediata pelo tratamento emerge das representações
como veiculo capaz de restabelecer a saúde, eliminar a doença, diminuindo as
possibilidades de sequelas e, assim, tornar pública a doença, expondo-as ao
preconceito dos outros. Nesse caso, o preconceito veiculado pelas
representações sociais do corpo por mulheres com alterações provocadas pela
hanseníase mostra um aspecto positivo ao servir de estimulo para o que não se
quer - ser sua vítima - levando as mulheres a se prevenirem e buscarem o
tratamento precoce, antes que a doença se objetive em marcas no corpo.
A demora em chegar ao diagnóstico representa uma falha nos serviços de saúde,
que pode decorrer da falta de capacitação dos profissionais em diagnosticar e
tratar precocemente a hanseníase(13-14). Assim, o atraso no diagnóstico e
tratamento subsidia a evolução da doença e o agravamento das alterações
corporais.
Era diferente, mas era hanseníase. Quer dizer, eu perdi muito tempo
para iniciar o tratamento, se tivesse começado logo que procurei
talvez eu não estivesse assim. (u.c.i. 26/ u.c.e. 577χ2=18).
O contexto discursivo da u.c.i. supracitada evidencia a frustração da mulher
com o sistema de saúde local, pois houve demora no seu diagnóstico (Era
diferente, mas era hanseníase) e, consequentemente, retardo no processo de
tratamento. Essa decepção fica mais evidente ao associar-se a fala à linguagem
corporal captada pela observação da pesquisadora durante a entrevista: o
discurso desta mulher foi entremeado por pausas, titubeios, lágrimas que
chegaram ao pranto, e gestos, capazes de expressar tristeza, nervosismo e
insatisfação, como: a mão cerrada batendo na outra espalmada, como se estivesse
socando algo, e a mordida no lábio inferior cada vez que se referiria ao
assunto.
A clofazimina, droga usada nos esquemas de tratamentos multibacilares da
hanseníase, causa escurecimento na pele, dando-lhe uma tonalidade que varia do
vermelho ao marrom escuro. Tais alterações, mesmo que reversíveis, podem
perdurar por meses ou até mesmo, por anos para desaparecerem após o término do
tratamento, se tornando um problema para as mulheres, pois, assim como as
reações hansênicas, este medicamento provoca mais alterações na pele do que as
já existentes. Dessa forma, o tratamento, que também visa matar o bacilo e
evitar o contágio, além de minimizar as alterações presentes, acaba por agravar
ainda mais a aparência.
Tu ficas pensando que a tua pele está escura e todo mundo vai saber e
se afastar de ti. Esse tipo de preconceito que não sei se vou saber
lidar, tipo aquele olhar que é capaz de te excluir sem precisar dizer
nenhuma palavra. (u.c.i. 10 / u.c.e. 216χ2=7).
Na verdade, é necessário considerar as alterações da imagem corporal com que se
confrontam estas mulheres, na medida em que são alterações visíveis e marcantes
em seus corpos. Desta forma, mesmo considerando os benefícios do tratamento, os
custos estéticos causados pela iatrogenia dessa terapêutica são muito difíceis
de suportar, pois a alteração da coloração da pele objetiva a doença e a torna
pública, desencadeando o medo da rejeição, levando-se em consideração o estigma
e preconceito associados à doença. Assim, nos fragmentos de texto contidos na
u.c.e nº 216, essa mulher, ao saber que está com hanseníase, antecipa, em
pensamentos, a estigmatização e o preconceito que a aguardam, tendo em vista já
ter pertencido ao grupo dos potenciais estigmatizadores, ou seja, daqueles que
não eram portadores de hanseníase e estigmatizavam os que tinham alterações
corporais visíveis(15).
A análise do corpus de dados em busca das representações das mulheres sobre o
seu corpo alterado pela hanseníase possibilitou identificar expressões que
denotavam objetivações e ancoragens(16) nos esforços impetrados pelas mulheres
em ressignificar seus corpos. Chama atenção o fato de tais expressões
aparecerem quase sempre ligadas ao preconceito, reforçando a ideia de ser este
o eixo central da classe.
Porque é uma doença que mutila e deforma as pessoas que não fazem o
tratamento correto. Aí vira um bicho de sete cabeças, um bicho
horrível. [...] Quando é na gente, vê que o bicho é feio mesmo.
(u.c.i. 21 / u.c.e. 442χ2=9).
Então é uma cobra, eu tenho horror de cobra. Eu peço muita força para
Deus. Tenho que aceitar meu corpo assim mesmo, porque a gente não
quer, mas acontece. (u.c.i. 21 / Marituba / u.c.e. 445χ2=8).
As imagens acionadas para dar sentido à invasão da hanseníase no corpo é a de
bichos, mais precisamente de um bicho de sete cabeças, que é uma metáfora que
traduz muito bem a dimensão dessa invasão, ou seja, a dimensão da dificuldade
de lutar contra e vencer a batalha. Um bicho de sete cabeças é uma expressão
popular para falar de algo muito grande, uma enorme ameaça ou dificuldade que
requer muita coragem para ser superada. Trata-se de uma expressão oriunda da
mitologia grega, mas precisamente na lenda da Hidra de Lerna, uma monstruosa
serpente com sete cabeças que, quando cortadas, regeneravam-se. Então, matar
esse animal era uma tarefa muito difícil, o que explica as representações das
mulheres veicularem reiterativamente a necessidade de ter muita força na luta
contra a hanseníase.
Observa-se que no conteúdo semântico da u.c.e. 442, a ênfase é dada à
necessidade da adesão ao tratamento, o que significa dizer que mesmo na
vigência das reações hansênicas e do escurecimento da pele causado pela
clofazimina, o tratamento seria a arma para se matar o bacilo e impedir que ele
continue causando alterações no corpo. Do contrário, a doença ("o bicho")
invade e transforma o corpo sem que nada possa ser feito.
A cobra denota de forma mais palpável o temor à doença, pois se trata de um
animal peçonhento que também causa medo e repulsa, traduzindo objetivamente o
sentimento que as mulheres desenvolvem de si, na autopercepção que têm de seu
corpo em relação à observação da reação dos outros para consigo.
Na valoração das mulheres sobre a sua gravidade, a hanseníase foi aproximada ao
câncer ou a Aids, na tentativa de entender o que, para elas, se apresentava
como novidade. A novidade aqui se refere a como tais mulheres vivenciam as
alterações que vão transformando seus corpos e que sentidos atribuem a esse
processo. É esse processo de transformação corporal que elas ancoram no câncer
e na Aids, as quais são doenças que também transformam o corpo e comprometem a
aparência pessoal, tais como: as alterações na cor da pele, a lipodistrofia,
dentre outras.
Eu acho que é uma das piores doenças. Eu acho que ela só não é pior
do que o câncer e a Aids, mas ela acaba com a vida da pessoa do mesmo
jeito.(u.c.i. 16/ u.c.e.354χ2=10).
O recorte textual do discurso da u.c.i. 16, ao apontar a expressão "ela acaba
com a vida da pessoa do mesmo jeito", remete à morte social, ou seja, a
hanseníase não mata concretamente, mas discrimina, isola e leva a um processo
simbólico de morte, no qual o corpo não perde sua materialidade. O exposto
remete à idade média, aos rituais da igreja quando se isolavam os leprosos(17).
Outro exemplo:
Tem gente que quando sabe que está com hanseníase, se entrega, fica
largado e morre.(u.c.i. 21 / u.c.e. 450χ2=12).
Esta maneira própria de sentir a doença, de perceber-se doente e de reorganizar
a vida a partir da doença limita as possibilidades de viver e tratar a
hanseníase, levando ao auto-isolamento e restringindo a participação social.
A relação de amizade dos portadores de hanseníase é permeada por um sentimento
de receio recíproco e, por isso, utilizam-se de estratégias na tentativa de
esconder a doença(13,18).
Quando eu contei, ele me rejeitou [...] Ele não queria viver comigo,
acho que tinha medo de pegar. Eu me sentia rejeitada por ele.(u.c.i.
/ Marituba (u.c.e. 141χ2=8).
Digo que é tratamento de nervo, porque se eu falar que é hanseníase,
vai ficar todo mundo com medo de mim, como aconteceu com outra
funcionária, que foi demitida devido a isso. (u.c.i. 36 / u.c.e.
768χ2=10).
Em síntese, as representações sociais do tratamento da hanseníase apontam o
preconceito compartilhado socialmente sobre o estigma da hanseníase, que gera
(auto)preconceito nas mulheres pela associação da hanseníase com a lepra,
desencadeando sentimentos diversos por ocasião do diagnóstico e tratamento da
hanseníase, apesar de ser este representativo de prevenção e cura, pois
interrompe a transmissão da doença e preserva a integridade do corpo pela
prevenção das incapacidades físicas, salvaguardando a identidade.
Quando tornado público, o diagnóstico e o tratamento da hanseníase geram
comportamentos que, à luz da TRS, são denominados de significantes.
Comportamentos esses dos outros para com as mulheres, tais como: demissão de
emprego, rejeição do companheiro e de amigos, e de discriminação. O termo
comportamento significante foi cunhado por Jodelet quando a autora identificou
comportamentos sociais gerados em razão de representações sociais da loucura
que vinham de encontro aos discursos que as mascaravam; ou seja, os
comportamentos significantes revelam socialmente as representações de um grupo
que nos discursos não são objetivamente manifestadas(19).
As mulheres, por sua vez, aprendem a lidar socialmente com a doença e, também,
passam a adotar comportamentos significantes para com os outros, tentando se
proteger do preconceito. Assim, omitem ou mentem sobre o diagnóstico da
hanseníase para não serem excluídas. Portanto, estas experiências as orientam a
lidar com a doença na sociedade - orientando-as nas suas práticas e
relacionamentos sociais. Esta síntese aponta elementos que, em articulação,
conduz a organização de um esquema explicativo das representações sociais do
tratamento da hanseníase, representado na Figura_1.
[/img/revistas/reben/v66n6/13f01.jpg]
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados oriundos desta pesquisa mostram que as representações sociais das
mulheres sobre o seu corpo alterado pela hanseníase sofrem influência da
memória social da lepra, ainda presente nas moradoras de Marituba e Ananindeua,
atrelada à antiga Colônia de Marituba, cujas portas se fecharam em atendimento
à política de saúde vigente.
Tais memórias ficam evidentes quando as mulheres falam sobre seus corpos que se
transformaram, passando da beleza à feiura, sofreu morte social, isolamento e
mutilações. O corpo alterado pela hanseníase objetiva-se em imagens metafóricas
de animais repulsivos ou amedrontadores e ancora-se na história da lepra, do
curso do câncer e da recente Aids, desencadeando nas pessoas atitudes
preconceituosas de exclusão e humilhação que se repercutem nas mulheres em suas
formas de se portarem socialmente e a lidarem com seus corpos e com as pessoas
com as quais convivem, o que se evidencia em comportamentos de autoproteção no
intuito de salvaguardarem suas identidades.
As representações sociais das mulheres sobre seus corpos se formam,
basicamente, nos meios sociais onde vivem e convivem. Trata-se, portanto, de
uma construção simbólica alicerçada por crenças, medo, terror, originando um
grande tabu social que tem como pano de fundo a lepra.
A busca de estratégias para melhorar as ações de saúde dirigidas às mulheres e
a seus conviventes apontam a importância da equipe de saúde e, mais
precisamente, dos enfermeiros, para que, ao assisti-las, seja levada em
consideração a subjetividade escondida por trás da objetividade demonstrada em
seus corpos alterados, pois o modo como representam essas marcas pode suscitar
um referencial de medidas educativas coerentes e voltadas as suas reais
necessidades de saúde, ajudando o processo de reconstrução das representações
sociais da hanseníase das mulheres e de seus conviventes, cujas ações
estigmatizantes refletem o saber de seus pertencimentos sociais sobre o
contágio.
Esta pesquisa desvelou que a atenção básica a ser prestada às pessoas
acometidas por hanseníase deve transceder a relação profissional-usuário no
âmbito do serviço, e ir além, abrangendo seus conviventes e a própria
sociedade, em especial quando se tratar de uma enfermidade que marca o corpo e
a história de vida de quem com ela convive, como é o caso da hanseníase.
Este estudo poderá contribuir para o campo teórico e prático no que tange ao
cuidado de enfermagem às mulheres, uma vez que possibilitou emergirem
experiências subjetivas de quem vive o processo da doença em seu corpo,
revelando que a portadora de hanseníase não é acometida somente pelo bacilo,
mas por uma avalanche de variáveis psicológicas como: medo, ansiedade, solidão
e depressão, que repercutem negativamente na sua qualidade de vida, na evolução
da doença, na instalação de incapacidades físicas, no cuidado de si e, também,
no próprio sistema imunológico que parece ter uma leitura inteligível de tais
problemas, manifestando-se na forma de reações hansênicas.
Nesse processo, a equipe de saúde, em especial o enfermeiro, pode ajudar na
maneira de lidar com o impacto emocional da experiência, acompanhando e
entendendo a subjetividade da mulher e seus conviventes, considerando-se os
aspectos psicológicos e sociais que podem influenciar no processo da doença,
seu tratamento e cuidado de si.
Com base nos resultados desta pesquisa, recomenda-se que os cursos de
capacitação profissional devam não somente instrumentalizar os enfermeiros para
o atendimento dos usuários acometidos com esta enfermidade focando nas
repercussões anátomo-fisiopatológicas por ela causadas, mas especialmente
atentar para os problemas advindos da subjetividade humana e das repercussões
psicossociais que a vivência da hanseníase lhes traz, para que os cuidados de
enfermagem sejam planejados de modo a atender de forma mais abrangente às suas
necessidades.
Comportamentos significantes dos outros para consigo.