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BrBRCVHe0034-71672013000700016

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variedadeBr
ano2013
fonteScielo

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Ciência, Saúde Coletiva e Enfermagem: destacando as categorias gênero e geração na episteme da práxis

As categorias e leis são graus de desenvolvimento do conhecimento e da prática sociais, conclusões tiradas da história do desenvolvimento da ciência e da atividade prática.

Familiarizar os homens com as categorias e as leis da dialética, fazê-los assimilar sua essência, nada mais é do que os iniciar na cultura humana e alargar seus horizontes(1).

INTRODUÇÃO A Teoria de Intervenção Práxica da Enfermagem em Saúde Coletiva - Tipesc(2) - foi concebida para possibilitar operar transformações ou superar contradições presentes na prática assistencial de saúde e Enfermagem. Como uma teoria inscrita no marco do materialismo histórico e dialético, a práxis - movimento da teoria orientando uma prática que ao se transformar interroga a prática e propõe uma nova teoria - adquire estatuto central para o desenvolvimento quer da teoria, quer da prática em Enfermagem em Saúde Coletiva. No dizer de Vazquez (3), "a relação entre a teoria e a práxis é para Marx teórica e prática: prática na medida em que a teoria, como guia da ação, molda a atividade do homem, particularmente a atividade revolucionária; teórica, na medida em que essa relação é consciente." Ademais, continua Vazquez(3) Marx concebe a práxis como uma atividade humana real, efetiva e transformadora que, em sua forma radical, é justamente a revolução.

essa práxis em indissolúvel relação com a teoria, esta entendida como uma filosofia ou expressão teórica de uma necessidade radical do que como conhecimento de uma realidade, e também o papel da força social que com sua consciência e sua ação estabelece a unidade entre a teoria e a práxis(3).

A Saúde Coletiva, por sua vez, também é um campo de teorias e práticas que, em oposição à Saúde Pública, busca na realidade objetiva os meios e os instrumentos de intervenção nos perfis epidemiológicos da população de um dado território, entendendo sua constituição por meio de totalidades que se interpenetram: as dimensões estrutural, particular e singular.

Como uma dada maneira de realizar práticas em saúde, embasada por certa ciência, a Saúde Coletiva distingue-se de outras concepções de saúde-doença basicamente pela visão de mundo que porta. Por visão de mundo entende-se "o conjunto de princípios, pontos de vista e convicções que determinam a atitude do ser humano em relação à realidade e a si próprio, a orientação da atividade de cada pessoa concreta, grupo social, classe ou sociedade em geral"(4). A tarefa explicativa do mundo, ou seja, a própria elaboração da visão de mundo é tarefa da filosofia que, não sendo atemporal, apreende em pensamentos sua época. Isto significa dizer que o processo de produção do conhecimento também é determinado pela forma como os seres humanos organizam-se em sociedade(5).

A Tipesc, comprometida com a visão de mundo materialista histórica e dialética, é constituída pelos pilares de sustentação teórico-filosófica historicidade e dinamicidade dos processos de desenvolvimento da realidade objetiva. Tanto na perspectiva epistemológica quanto na metodológica, essas categorias são fundamentais para operar o conhecimento e a transformação da realidade. Desde sua proposição, a Tipesc chamava a atenção para as categorias conceituais e as dimensionais. Do ponto de vista de método, as categorias explicativas (interpretativas), alinhadas mais proximamente ao fenômeno considerado, fazem a ponte entre o geral e o particular.

É na dimensão particular que se verificam as totalidades-parte das grandes categorias que se relacionam de forma contraditória e polarizada na vida cotidiana. É na dimensão particular que se verificam as contradições entre diferentes classes e suas formas de vida e trabalho, que usualmente é empobrecido na captação ao encerrar as formas de produção e reprodução social das classes com atributos interessantes, mas insuficientes para a qualificação dos elementos de classe, tais como renda, escolaridade, acessibilidade, entre outros.

Falar de categorias sociológicas na ótica da Tipesc é falar da dimensão particular dos fenômenos a serem iluminados nos processos de intervenção.

Diferentemente da análise sociológica, a Tipesc é uma teoria que visa organizar os modos de intervenção para superação das questões de saúde-doença prioritariamente, a categoria sociológica não é genericamente exposta tal qual um estudo de populações, chegando mais perto do objeto de estudo ou do fenômeno considerado. Portanto, é preciso falar do fenômeno para dizer da importância de conhecer as categorias sociológicas.

O objetivo deste ensaio é mostrar a relevância das categorias gênero e geração para a explicação e a construção do projeto de intervenção que permita enfretamento competente da Enfermagem em Saúde Coletiva.

MÉTODO Adotou-se o método dialético de exposição no qual as contradições são expostas para projetar os caminhos de superação. A hermenêutica-crítica dos intertextos será realizada a partir de duas leis secundárias da dialética: essência e fenômeno e realidade e possibilidade. As categorias gênero e geração serão revisitadas a partir desta perspectiva dialética, interpretativa da realidade objetiva e que tem o poder de ser interventiva da realidade que se quer modificar. Entende-se que a essência se define como um conjunto das ligações e dos aspectos internos [o fundamento da coisa, as ligações e os aspectos necessários não fundamentais, não principais] e o fenômeno como a manifestação exterior, o aspecto exterior, cambiante do objeto e que exprime sua essência, é um conjunto dos aspectos exteriores, das propriedades e é uma forma de manifestação da essência. Compreender os fenômenos na sua aparência e articulá-los à essência, ou a gênese, ou a conexão fundante abre o caminho da superação(1).

Possibilidade e realidade, na concepção da dialética materialista, opõem-se, tendo por ideia que "a realidade é o que existe realmente e a possibilidade é o que pode produzir-se quando as condições são propícias". [...] A possibilidade tem [...] uma existência real, mas somente como propriedade, capacidade da matéria de transformar-se em condições correspondentes, de uma coisa ou de um estado qualitativo em um outro. [...] A possibilidade realizando-se, transforma-se em realidade, e é por isso que podemos definir a realidade como uma possibilidade realizada e a possibilidade como realidade potencial"(1).

Conhecer as possibilidades de uma dada realidade é assinalar seu potencial de transformação. Portanto, ambas as leis secundárias podem servir para o planejamento da intervenção na realidade objetiva, em suas dimensões estrutural, particular e singular.

A CATEGORIA GÊNERO Grande legado do feminismo da segunda metade do século 20, a categoria gênero foi proposta para elucidar as relações sociais estabelecidas entre os sexos, com a finalidade de romper com a dualidade até então prevalente nas concepções essencialistas sobre homens e mulheres, até então naturalizadas, com franca prevalência do poder deles sobre elas. Das Ciências Sociais, migrou para outros campos do saber, entre eles, o da Saúde e da Enfermagem. De para , a produção dos estudos de gênero ampliou-se, porém persistem equívocos teórico- metodológicos a serem superados.

No embate entre as diferentes visões de mundo que coexistem, advindas das correntes de pensamento da modernidade e da pós-modernidade, as filosofias ditas pós-modernas, nas suas versões mais extremadas, têm postulado várias "mortes", dentre elas: a "morte do homem", no sentido de desconstruir as noções essencialistas da natureza humana, propondo, ao invés, que o "homem" não é um ser transcendental e sim um artefato social, histórico e linguístico (estando nisso implícita a desconstrução da razão como algo fora da história); a "morte da história", desconstruindo, assim, a noção de que a História tenha qualquer ordem ou lógica intrínseca: trata-se apenas de uma "metanarrativa" construída pelo homem para definir e justificar seu lugar no tempo; e a "morte da metafísica", com o intuito de desconstruir o "real" como algo externo ou independente do sujeito do conhecimento: assim como "homem", também o "real" é socialmente e historicamente construído(6).

A contribuição do feminismo pós-moderno para a construção do conhecimento pode ser constatada na seguinte citação: A perspectiva de gênero tem possibilitado a construção de uma epistemologia crítica feminista - um discurso feminista sobre a ciência e uma teoria crítica do conhecimento - que, se por um lado fundamenta as bases de um saber feminista, por outro, vem abrindo espaço para questionamentos e reavaliações até mesmo dos próprios fundamentos desse saber. De fato, nos últimos anos, sacudidos por ventos pós-modernos, os debates feministas vêm-se deslocando do plano teórico-metodológico para questões de ordem epistemológica, com desdobramentos contraditórios que, necessariamente, implicam o repensar do projeto feminista enquanto produção de conhecimentos e para além. Mais precisamente, ao mesmo tempo que se avança no sentido da crítica feminista à ciência e à tecnologia e, assim, fundamentam- se as bases para a construção de uma ciência feminista, coloca-se hoje em jogo a autoridade epistêmica do sujeito do feminismo mas, não mais apenas em termos dos fundamentos da Ciência Moderna. Agora, tal questionamento se formula também no próprio interior do pensamento feminista, o que, sem dúvida, traz implicações tanto científico- acadêmicas quanto políticas(7).

Historicamente, a construção do pensamento feminista em torno da categoria gênero utilizou abordagens ancoradas em, principalmente, três posições teóricas: a primeira, baseada na Teoria do Patriarcado, adotando noções fixas de feminilidade e masculinidade; a segunda, de orientação marxista, propondo uma abordagem histórica tentando encontrar uma explicação material para o gênero uma solução baseada nos sistemas duais, compostos pelos domínios do patriarcado e do capitalismo, e a terceira, mais recente, dividida entre o pós- estruturalismo francês e as teorias anglo-americanas das relações de objeto, inspirando-se nas várias escolas da psicanálise para explicar a produção e a reprodução da identidade de gênero dos sujeitos sociais. Opondo-se aos sistemas binários, propõe-se a historicizar e desconstruir os termos da diferenciação sexual, tentando encontrar meios de submeter as categorias à crítica, entendendo que desconstruir significa criticar analisando, em cada contexto específico, a maneira como opera qualquer oposição binária, revertendo e deslocando sua construção hierárquica em lugar de aceitá-la como óbvia ou como parte da natureza das coisas.

Assim, a história do pensamento feminista é uma "história da recusa da construção hierárquica da relação entre homem e mulher nos seus contextos específicos e uma tentativa de reverter e deslocar seus funcionamentos"(8).

Ainda, no que tange à construção do conhecimento, o encontro entre o feminismo e as filosofias pós-modernas tem propiciado o forjar de uma crítica feminista sobre a ciência que a fere no seu cerne, sobretudo ao revelar as categorias de gênero implícitas na construção das noções de sujeito, racionalidade, objetividade e de outros semelhantes "princípios" e estratégias epistemológicas associados ao pensamento iluminista. Podemos dizer que, de um modo geral, a crítica feminista historiciza a ciência, voltando-se para a análise de como as categorias de gênero tem historicamente influenciado os conceitos de conhecimento, sujeito cognoscente, justificativas e práticas de investigação ditas científicas. [...] essa crítica vem revelando que o androcentrismo tem ido muito além da mera exclusão das mulheres do mundo da ciência, tendo um papel determinante não na construção da cultura da ciência, mas também no próprio conteúdo dos conhecimentos produzidos [...]. Mas, a crítica epistemológica feminista não pode restringir-se apenas a ser "crítica". Deve indagar e visualizar como seria uma outra ciência (...). Melhor dizendo, uma epistemologia feminista deve constituir-se, necessariamente, através de um processo de mão dupla, ou seja, de um processo tanto de desconstrução como de construção [...] Cabe-lhe, pois, propor princípios, conceitos e práticas que possam superar as limitações de outras estratégias epistemológicas, no sentido de atender aos interesses sociais, políticos e cognitivos das mulheres e de outros grupos historicamente subordinados(9).

Dentre as definições de gênero que subjazem à abordagem pós-estruturalista, a que melhor reflete estas rupturas foi proposta pela feminista americana Joan Scott, nos anos de 1980, e implica dois níveis: gênero como elemento constitutivo das relações sociais, baseado nas diferenças perceptíveis entre os dois sexos, e gênero como forma básica de representar relações de poder em que as representações dominantes são apresentadas como naturais e inquestionáveis.

Trata-se de um primeiro modo de dar significado às relações de poder(8).

A primeira parte do conceito desdobra-se em quatro elementos, facilmente identificáveis no social: os símbolos culturalmente disponíveis; os conceitos normativos expressos nas doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas e/ou jurídicas; a organização social e as suas instituições; a construção das identidades subjetivas(8).

Isto significa dizer que, qualquer que seja o fenômeno analisado, ele subjaz a uma dada construção simbólica social e historicamente construída, um dado conjunto de normas e conceitos normativos expressos nas mais diferentes áreas da reprodução da consciência social, uma dada ou variadas formas de organização social e das instituições que lhe correspondem, como família, escola, entre outras, e as várias possibilidades de construção das identidades dos sujeitos e de suas subjetividades1.

Com relação à segunda parte da definição, o conceito pode ser decodificado a partir da noção de poder de Foucault: "a multiplicidade de correlações de forças imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de uma organização" (11). Nessa definição estão as ideias de multiplicidade, imanência, exercício e constituição de um dado domínio que desconstroem a concepção de poder uno, centralizado, coerente, externo e repressor frequentemente associado às classes dominantes e ao homem, nas análises feministas. As ideias expressas, na verdade, promovem uma inversão nesse poder, apontando o poder hegemônico como "efeito do confronto contínuo e permanente de poderes inerentes às relações sociais mais diversas (econômicas, sexuais, científicas, políticas, étnicas...) que se processam entre todos os indivíduos e/ou grupos nos diferentes contextos históricos, culturais e sociais"(12).

Na definição de Scott, a leitura e a compreensão desse poder a partir de Foucault remete à compreensão em relação à construção dos sujeitos, saberes e regimes de verdade, trazendo como fundamental a diferença entre relações de poder, relações de dominação e inevitabilidade das resistências. O poder seria a capacidade de agir sobre a ação do outro, reconhecido como sujeito da ação, enquanto a dominação é caracterizada como conjunto de relações de poder fixas, assimétricas, em que a possibilidade de resistências (enquanto estratégia concreta da reação) deixa de existir. O mais importante disso tudo é que o sujeito, ao surgir como agente social, dependente de várias posições de sujeito, resultado de múltiplas determinações, contraditórias e conflitivas, presentes na mesma subjetividade, passa a conter a possibilidade de transformação possível. Essa transformação surge no espaço da multiplicidade tensa, conflitiva e dinâmica da subjetividade e não supõe necessariamente ruptura, mas introduz e valoriza o movimento, a fluidez e as pequenas mudanças nas ações cotidianas(12).

Como primeiro modo de dar significado às relações de poder, significa dizer que é primeiro porque a relação hierarquizada com base na diferença sexual antecede e atravessa todas as relações sociais; primeiro porque a diferença sexual estabelece limites e indica possibilidades desde o nascimento (hoje até mesmo antes do nascimento); primeiro porque é bem provável que em algumas sociedades reconheçamo-nos antes como meninas e meninos do que como brancas(os) ou negras(os), de elite ou de classe trabalhadora. Certo, porém é que todas essas e outras categorias sociais estão imbricadas na construção de nossas subjetividades"(12).

Vários estudos propõem que, ao invés da primazia do gênero, proceda-se à alquimização de categorias sociais, articulando-o com outras categorias e aumentando assim sua potência para examinar os fenômenos, conforme comentaremos mais adiante.

Ao assumir gênero como uma construção sociológica, política e cultural, significa que o sexo não deve ser visto como uma variável demográfica, biológica ou natural, mas que deve integrar toda uma carga cultural e ideológica. Levando em conta a acepção de Simone de Beauvoir, "Ninguém nasce mulher, mas se faz mulher", admite-se a necessidade de referências concretas sobre as identidades masculina e a feminina. Além disso, deve ser levada em conta a impossibilidade de compreensão do que é específico da identidade feminina, da posição da mulher na sociedade, da valorização ou desvalorização de seu trabalho, das divisões sexuais do trabalho/poder/exercício do erótico sem a compreensão do específico da identidade masculina e do que de comum ao humano, que o homem e a mulher são construções de gênero no humano(13).

Por último, o gênero deve ser tomado como realização cultural por meio de ideologias2 que tomam formas específicas em cada momento histórico. Tais formas estão associadas a apropriações político-econômicas do cultural que se dão como totalidades, em lugares e períodos determinados. Este enfoque rompe com a visão de que as discriminações contra as mulheres são produzidas pela perversidade natural dos homens, recolocando-as em um sistema de relações que se "perpetua porque serve a interesses, ainda que não tenham sido diretamente engendrados para este fim"(15).

Em suma, pode-se dizer que gênero pressupõe a compreensão das relações que se estabelecem entre os sexos na sociedade, diferenciando o sexo biológico do sexo social. Enquanto o primeiro refere-se às diferenças anátomo-fisiológicas, portanto, biológicas, existentes entre os homens e as mulheres, o segundo diz respeito à expressão que essas diferenças assumem nas distintas sociedades, no transcorrer da história. No entanto, se cairmos da armadilha de polarizar o biológico e o social, podemos enveredar por caminhos que dificultam a compreensão dos processos sociais.

A partir da leitura e reflexão sobre vários textos que procedem à conceituação do termo gênero, Romeu Gomes ressalta os seguintes aspectos que qualificam tal discussão: 1. Gênero refere-se a atributos culturais associados a cada um dos sexos, contrastando-se com a dimensão anatomofisiológica dos seres humanos. Feminino e masculino assumiriam feições de acordo com as múltiplas culturas, sendo entendidos como construções culturais e não com base a um ativismo biológico. Assim, a qualidade de ser homem e ser mulher, ocorre em termos da cultura produzida/reproduzida/ modelada em dada sociedade; 2. Os modelos de Gênero se constroem em uma perspectiva relacional, significando que o que é visto culturalmente como masculino faz sentido a partir do feminino e vice-versa. Essa simbolização das relações entre os Gêneros atravessa vários pares relacionais como homem-homem, mulher-mulher e homem-mulher, expressando padrões de masculinidade e feminilidade a serem seguidos. As identidades de homem e mulher se afirmam na medida em que ocorrem aproximações e afastamentos em relação ao padrão que concentra maior poder na cultura.

3. No âmbito das relações de Gênero, podem ocorrer negociações ou flexibilizações acerca das características dos modelos masculinos e femininos. Seja no nível do indivíduo, seja na esfera da sociedade, a cristalização das características tidas como exclusivas de um Gênero pode tanto levar a uma não-legitimação da identidade de Gênero como suscitar transgressões de um Gênero em busca de outro; 4. Gênero como categoria analítica possibilita refletir, de forma conjunta, sobre a diferença e a igualdade não entre homens e mulheres, mas entre homens e entre mulheres; 5. Gênero, classe social e raça/etnia [e também geração] exercem papel estruturante na reprodução e produção da identidade social e subjetiva, das relações e das instituições sociais. Esses eixos estruturantes, ainda que possam ser focalizados em separado para fins analíticos em estudos e pesquisas, podem ser vistos de forma global, pois a produção e a reprodução dos sujeitos se ancoram em sua articulação(16).

Neste último ponto, que se considerar que a interpretação dos fenômenos sociais à luz do marxismo clássico recorre à estratificação por classes sociais para determinar a posição dos indivíduos na sociedade, especialmente nas sociedades de classe. No entanto, a corrente materialista dialética do feminismo contemporâneo, ao transformar esse campo de saber, pressupõe a ampliação dessa visão, reconhecendo outros atributos que igualmente podem propiciar a compreensão dos sujeitos ou grupos sociais, dentre os quais o gênero. Tais atributos, muitas vezes relativos às especificidades da própria biologia, expressam condições de desigualdade no espaço social e, assim, também determinam a identidade e o lugar de cada sujeito na sociedade. Além desses, ainda outros recortes analíticos importantes tais como raça/etnia e geração, dos quais se pode lançar mão para compreender os fenômenos sociais e, dentre eles, o próprio processo saúde-doença.

No entanto, todos esses atributos, por mais importantes que sejam, não devem ser tomados isoladamente. Ao contrário, devem ser visualizados em conjunto, pois é em sua conjunção que reside a capacidade explicativa por excelência das condições de vida e saúde da coletividade.

As categorias raça, gênero e geração têm em comum serem atributos naturais com significados políticos, culturais e econômicos, organizados por hierarquias, privilégios e desigualdades, amparados por símbolos particulares e naturalizados [...] A combinação de categorias é de fácil comprovação, o seu produto leva a outros resultados e o seu conhecimento exige saber que se inicia por ruptura com os esquemas duais(17).

Assim, a determinação dos fenômenos sociais subjaz à articulação entre diferentes categorias sociais, com a predominância ora de uma, ora de outra, de acordo com a subjetividade social construída.

A alquimia das categorias sociais está presente na construção de subjetividades que somente para fins analíticos, seriam referidas como específicas, ou seja, segundo a classe, gênero, geração ou etnicidade. Contudo, se se trata de uma ação coletiva, no plano da subjetividade3 coletiva são elaboradas seleções quanto a referências (17).

Em tal raciocínio ancora-se a expressão alquimia das relações sociais (raça, gênero e geração).

Esta alquimia não ocorreria em um vácuo, resultando em um tipo de perfil próprio. Seus significados e re-elaborações, por sujeitos políticos numa trajetória de se assumirem como tal, são pautados por práticas sociais e projetos específicos. Tal alquimia é levada a extremos em uma sociedade de classe, que ideologicamente a reinterpreta para difusão de responsabilidades. Não se naturalizam questões de gênero, raça e geração, como estas são filtradas por questões de classe, diluindo-se identidades e, portanto, percepções e ações críticas a suas lógicas. Dilui-se também a propriedade compreensiva dos quadros conceituais próprios a cada sistema de relações(18).

Assim, o reconhecimento da articulação de diversas categorias (classe, etnia, gênero, geração, orientação sexual, religião) nos conduz também a perceber e a conceitualizar de outro modo as relações de poder. Assim, as análises que apontam para a mulher dominada versus o homem dominante parecem sofrer, agora, de uma grande simplificação.

Para sermos capazes de incorporar as complexas articulações que constituem os sujeitos [...] precisamos pensar o poder também como uma rede complexa [...] Precisamos pensá-lo muito mais como uma ação que é exercida constantemente entre os sujeitos e que supõe, intrinsecamente, formas de resistência e contestação, do que como algo que é possuído apenas por um polo e que está ausente no outro (19).

É nesse quadro conceitual que a Saúde Coletiva e a Enfermagem vão se basear para compreender sua prática social e os fenômenos sociais que cercam a vivência das mulheres e das crianças que se articulam com o seu processo saúde- doença.

A CATEGORIA GERAÇÃO: ENFATIZANDO A INFÂNCIA COMO CATEGORIA GERACIONAL A categoria social classe se encontra consagrada em estudos na perspectiva histórica e dialética. Impulsionado pelo feminismo, gênero, como se viu, vem se constituindo vigorosamente a partir da segunda metade do século passado, principalmente nas Ciências Sociais. a infância como categoria geracional é de uso relativamente recente. Um dos que iniciou esta discussão foi Jens Qvortrup, sociólogo(20-21).

Antes de abordá-la é preciso que se clareie a categoria geração. De acordo com Feixa e Leccardi(22), o conceito de geração passou por diferentes interpretações desde Comte (concepção mecânica e exteriorizada do tempo), Dilthey (recusa radical da visão matemática e quantitativa do tempo de Comte pela abordagem histórico-romântica), Manheim (inflexão na história sociológica do conceito) e Abrams (ampliou o conceito de Manheim, relacionando a noção histórico-social de geração com a identidade), para destacar os mais importantes.

Os autores(22) ainda referem que a Espanha foi o país que mais contribuiu para adensar a noção de geração, como os estudos de Ortega e Gasset, de 1928, que foram seguidos e aprofundados por discípulos como Aranguren.

Desde meados dos anos 1960, a teoria das gerações foi posta de lado no pensamento sociológico por ser considerada conservadora e antiquada, sendo substituída pelas teorias neomarxistas que consideraram os jovens como uma 'nova classe' [...] No entanto, desde 1985, o conceito de gerações tem sido 'redescoberto' pelas novas gerações de pesquisadores espanhóis, que o estão retomando para reler e repensar as concepções clássicas a partir de Aranguren até Ortega y Gasset(22).

Concluem Feixa e Leccardi que hoje, no século 21, existe uma geração global e constelações geracionais cruzadas, como 1. a geração migratória (marcada pelos processos de migração transnacional); 2. a geração aprendiz (marcada pelo trabalho precário); e 3. a geração colcha de retalhos (marcada por processos de hibridização cultural). Nestas três áreas (demográfica, econômica e cultural), a geração mais jovem (ou qualquer de suas frações) atua como um barômetro das novas tendências(22).

Do nosso ponto de vista, Qvotrup(20-21), ao descrever a infância como categoria geracional, não realiza um movimento dialético escrutinando essa categoria sociológica específica, como aporta fundamentos para reconceptualizações das diferentes categorias geracionais, como adulto e idoso. Portanto, mesmo falando da especificidade da infância, entendemos que a noção de categoria foi revisitada e que traz à tona importantes polaridades que a noção espanhola não imediata possibilidade.

A categoria geração é aquela que define o lugar ocupado pela infância na sociedade, portanto, o elemento que fundamenta o campo da sociologia da infância. Dessa forma, admite as outras categorias clássicas de análise no campo das Ciências Sociais (classe social, gênero, etnia) como categorias complementares à geração(23).

As principais ideias sobre o novo paradigma dos estudos sociais na infância encontram-se nas "Nove teses sobre a infância como fenômeno social", publicado por Qvortup em 1993(21). Partiu da constatação do "fato, muitas vezes negligenciado, de que as crianças são indiscutivelmente parte da sociedade e do mundo e é possível e necessário conectar a infância às forças estruturais maiores, mesmo nas análises sobre economia global"(23).

Todos os eventos da sociedade têm impacto sobre as crianças que dela fazem parte, por isso elas terão reivindicações a serem consideradas, partícipes que são da sociedade. Mas parece, ao menos nas sociedades ocidentais, que as políticas públicas, de desenvolvimento e economia não consideram a perspectiva de seu impacto sobre as crianças. Ao contrário, sua exclusão do mundo adulto era constante entre pesquisadores. Para compreender estas e outras questões, mais que o conceito de criança, postula-se o conceito de infância. Nascimento (23) afirma que não é suficiente analisar a infância como questão interna da família, nem a analisar a partir de parâmetros tradicionais e de estratificação: ficam faltando as questões das relações entre gerações.

Para compreender a categoria geracional, é preciso entender o significado das Nove Teses(21), tal como interpretadas por Nascimento(23).

Tese 1: a infância é uma forma particular e distinta em qualquer estrutura social de sociedade Esta tese postula que a infância constitui uma forma estrutural particular, que não é definida pelas características individuais da criança, nem por sua idade - mesmo que a idade possa aparecer como uma referência descritiva, por razões práticas. Como forma estrutural, é conceitualmente comparável com o conceito de classe, no sentido da definição das características pelas quais os membros, por assim dizer, da infância estão organizados e pela posição da infância assinalada por outros grupos sociais, mais dominantes. Pessoalmente, poderia, como exemplo, mencionar duas características definidoras da infância na sociedade moderna como extremamente importantes: primeiramente uma, relacionada à prática, principalmente à escolarização das crianças ou, em termos mais gerais, à institucionalização das crianças; o que pode significar uma situação de confinamento até o final da infância, que coincidiria, então, com o final da escolarização compulsória. Em segundo lugar, em termos legais, o lugar da criança como menor - um lugar que é dado pelo grupo dominante correspondente, os adultos. Em nenhum desses casos nós precisamos ter idades fixadas em termos biológicos, mas definições determinadas socialmente. Isso ainda deixa muito a desejar, e, mesmo que variados fatores possam ser propostos, o ponto crucial é, a meu ver, olhar para o que são características comuns para as crianças e, então, evitar confundir suas condições de vida com as características de vida de seus pais, por exemplo. [...] O uso de características abstratas, como as que foram mencionadas aqui, tem, por exemplo, a vantagem de proporcionar o acompanhamento do desenvolvimento histórico da infância, verificando o lugar em que as crianças têm sido colocadas e podem ser localizadas na arquitetura social pelos adultos. Também proporciona a comparação de crianças de diferentes sociedades e culturas. E, finalmente, torna possível, em princípio, comparar crianças com outros grupos na sociedade(23).

Tese 2: A infância não é uma fase de transição, mas uma categoria social permanente do ponto de vista sociológico Subjacente a esta tese, enquanto distinção entre transição e permanência, está um diálogo, mas não um argumento contrário à descrição psicológica e à socialização, que postulam que a criança se desenvolve por meio de certo número de fases, até que atinja a maturidade. Esta ideia é obviamente correta, num certo sentido, mas não contribui para o entendimento sociológico da infância. Do meu ponto de vista, a infância persiste: ela continua a existir - como uma classe social, por exemplo - como forma estrutural, independentemente de quantas crianças entram e quantas saem dela.

Como característica da infância, a única questão importante é como ela se modifica, quantitativa e qualitativamente. Essas modificações não podem ser explicadas em termos de disposições individuais - mesmo que também o possam ser -, mas devem, primeiramente, ser explicadas por mudanças no número de parâmetros sociais. Por essa razão, a meu ver, a concepção de socialização, no sentido de desenvolvimento, é pouco fecunda no argumento sociológico, a menos que pensada meta- teoricamente, isto é, a partir da questão: como são as expressões da educação e da socialização dos adultos nas atitudes da sociedade adulta, e qual sua influência e seu poder em relação à infância?(23) Tese 3: A ideia de criança em si mesmo é problemática, enquanto a infância é uma categoria histórica e intercultural Esta tese é uma especificação do que foi parcialmente dito, mas é importante o suficiente para ser sublinhada, visto que a ideia de criança tem dominado a pesquisa sobre as crianças até hoje. Essa abordagem tem sido frequentemente criticada, porque advoga que a criança é supra-histórica e, portanto, um indivíduo a-histórico; porque distancia nossa atenção da ação construtiva das crianças em seus próprios direitos; porque nos impede de tratar a infância em sua variabilidade histórica; e, finalmente, porque separa a criança da sociedade na qual ela vive. Isso quer dizer, então, que não somente uma concepção de infância, mas muitas, construídas ao longo do tempo, e, novamente - como um metanível -, são exatamente as mudanças de concepção que são objeto de interesse sociológico, porque presumivelmente refletem mudanças de atitude em relação às crianças.

Agora, ao invés de sugerir que as crianças são especiais, que talvez mesmo ontologicamente tenham tipos diferentes e sejam expostas a tratamento diferenciado, eu proponho minha quarta tese, que é:(23).

Teses 4: Infância é uma parte integrante da sociedade e de sua divisão de trabalho Esta tese, novamente, contradiz o conhecimento psicológico sobre as crianças, que se fixa sobre como elas crescem e como serão finalmente incluídas na sociedade. Penso que se possa discutir, de modo convincente, que crianças são participantes ativas na sociedade não somente porque realmente influenciam e são influenciadas por pais, professores e por qualquer pessoa com quem estabeleçam contato, mas também por duas outras razões: primeiro, porque elas ocupam espaço na divisão de trabalho, principalmente em termos de trabalho escolar, o qual não pode ser separado do trabalho na sociedade em geral; na realidade, essas atividades são totalmente convergentes no mercado de trabalho. Em segundo lugar, porque a presença da infância influencia fortemente os planos e os projetos não dos pais, mas também do mundo social e econômico. A infância interage, então, estruturalmente, com os outros setores da sociedade. Isso pode ser demonstrado de diferentes maneiras, mas talvez seja mais claramente visto no balanço da mudança demográfica: mesmo que a razão de dependência não tenha mudado radicalmente em si mesma, a constância relativa é ilusória, visto que uma dramática diferença, quando o numerador da fração é composto por uma larga porção de crianças e uma pequena porção de idosos, como no começo do século; ou vice-versa, como está se tornando agora. Se for plausível propor que as crianças façam parte da regra da divisão social do trabalho, é também possível sugerir que certos interesses estejam conectados a essa regra e que as crianças, baseadas em seu consumo, reivindiquem recursos sociais, além daqueles que são autorizadas a receber como membros de uma família particular. É também uma questão moral, se se pode defender que o direito à provisão é bastante variável, a depender do background familiar. Nas sociedades orientadas para o consumo, isso é contraditório, e pode somente acontecer porque crianças (a) são consideradas fora das sociedades utilitárias como não consumidoras e (b) são consideradas como propriedade dos pais e, portanto, dependentes do consumo destes(23).

Tese 5: As crianças são co-construtoras da infância e da sociedade [...] uma concepção amplamente divulgada, tanto na ciência quanto entre os adultos, que afirma que as crianças são inúteis e meras receptoras. apontei como construtivas as atividades escolares das crianças, mas elas não são as únicas, e penso que a tese pode ser generalizada para sugerir que, todas as vezes que as crianças interagem e se comunicam com a natureza, com a sociedade e com outras pessoas, tanto adultos quanto pares, elas estão contribuindo para a formação quer da infância quer da sociedade. Isso é tão simples e evidente que não acredito que alguém possa discordar. No entanto, a partir das metáforas que usamos sobre as crianças ou a partir das regras de não participação que nós costumeiramente endossamos - ou acreditamos endossar -, não parece errado propor que as crianças são percebidas e vêm a perceber-se como "máquinas triviais", [...] Crianças não são, porém, máquinas triviais - como nenhum sistema orgânico ou psíquico pode ser - [...] as crianças são criadoras, inventivas, porque se envolvem em ações propositivas. Não acredito que essa afirmação seja difícil de substanciar; o problema talvez seja seu conhecimento para e pela sociedade, porque a tese das crianças como participantes na construção do mundo é radical o suficiente para tornar-se uma ameaça à ordem social, a qual talvez deva esforçar-se para tratar as crianças como máquinas triviais, a despeito da falsidade desse conceito(23).

Tese 6: A infância é, em princípio, exposta (econômica e institucionalmente) às mesmas forças que os adultos, embora de modo particular [...] parece ser essencial para um ponto de vista sociológico, porque nos informa sobre a sociedade como um terreno comum para todos os grupos etários e coloca-se contra a ideia de que as crianças vivem em um mundo especial, ideia baseada nas supostas, e talvez realmente diferentes, disposições das crianças em relação aos adultos. A questão, entretanto, não é indicar que crianças não possam interpretar o mundo diferentemente, mas sugerir que ninguém, inclusive as crianças, pode evitar a influência de eventos mais amplos, que ocorrem além do microcosmo próximo. Como, por exemplo, as forças econômicas, os eventos ligados ao meio ambiente, o planejamento físico, as decisões políticas, etc. Dificilmente poder- se-ia pensar em qualquer questão, em áreas dessa ordem, que não causasse impacto na vida das crianças(23).

[...] a infância é influenciada de um modo particular pelas forças sociais, é que, frequentemente, as crianças são atingidas por elas indiretamente ou de forma mediada, o que torna mais difícil a constatação dessa influência; e, com muita frequência, a legislação é elaborada sem levar as crianças em consideração, embora haja poucas dúvidas de que os eventos sociais causem efeitos constantes. As crianças, no entanto, não são consideradas - e, na melhor das hipóteses, famílias com crianças o são(23).

[...] desemprego é uma questão dada pela legislação atual que atinge os adultos. Em país algum estatísticas públicas com o número de crianças atingidas pelos efeitos do desemprego. Felizmente, as consequências psicológicas para as crianças têm sido estudadas, embora seja possível - como exemplos de nosso projeto têm mostrado - produzir estatísticas correntes sobre "crianças com pais desempregados", assim como fazer os políticos lembrarem-se das implicações para as crianças também. Em termos mais gerais, a retração e a expansão do mercado de trabalho têm também um tremendo impacto sobre a vida das crianças. Creio que a maioria de nós concordará em compreender como positiva a progressão em direção ao pleno emprego de homens e mulheres. No entanto, essa progressão tem contribuído para o crescimento da institucionalização das crianças.

Se isso é bom ou ruim para elas, esta é uma questão em aberto, mas ninguém pode negar que a vida das crianças mudou [...](23).

Tese 7: A dependência convencionada das crianças tem consequências para sua visibilidade em descrições históricas e sociais, assim como para sua autorização às provisões de bem-estar Procuramos - em vão - em estatísticas comuns, nas informações governamentais, em documentos de pesquisa, etc. por algum material que trouxesse as crianças como unidade de observação ou que fizesse esforço para analisar a infância do ponto de vista das crianças.

[...] surgiram questões interessantes sobre as razões que determinavam essa situação. Duas respostas principais foram obtidas: uma, sob o título de "capitalização da infância", sugeria que o Estado demandava somente dados que eram absolutamente necessários para seu planejamento e esforços de elaboração de políticas. Uma outra, que não contradizia a primeira, via a invisibilidade como uma consequência das definições arraigadas das crianças como imaturas, não adultas ainda, que, de qual- quer modo, têm que confiar nos pais.

Então, aparentemente, parece não existir necessidade de contar as crianças por elas mesmas. Vários exemplos colhidos durante nosso projeto provam que essa explicação está errada. Nós obtivemos importantes insights novos quando focalizamos diretamente as crianças. Por exemplo, a insistência em utilizar a família como unidade de observação quando buscamos saber sobre condições materiais impede-nos de perceber a situação agregada das crianças, comparada com outros grupos na sociedade. Desse modo, o peso preponderante atribuído ao status das crianças como dependentes contradiz qualquer ideia de "melhor interesse da criança". Na verdade, poder-se-ia discutir que essa ideia em si mesma tornou-se a vítima dos interesses estruturais da sociedade industrial(23).

Tese 8: Não os pais, mas a ideologia da família constitui uma barreira contra os interesses e o bem-estar das crianças A despeito da carência de informação, conseguimos coletar evidências suficientes para substanciar a suspeita de que as crianças, como grupo, mais frequentemente que outros grupos, pertencem aos mais baixos escalões em termos de renda per capita disponível. Somente os mais idosos, em alguns países, são capazes de competir com esse record, embora a última década tenha demonstrado uma relativa deterioração das condições das crianças em comparação com as condições dos mais idosos. De fato, várias razões para a relativa desvantagem de algumas crianças em particular, mas, se pensarmos em termos da posição das crianças em geral, qual é a razão? De modo geral, posso sugerir que a culpa não é dos pais. Eles estão realmente fazendo muitas coisas e são, na maioria dos casos, forçados a experienciar a mesma privação que suas crianças. [...] herdamos uma ideologia da família que pode ser considerada um anacronismo. O principal problema que constitui nossa ideologia da família - e que vários membros do grupo do projeto referiram como "familialização" - é que as crianças expressis verbis são mais ou menos propriedades de seus pais; ou, em termos menos dramáticos, são, ao menos, responsabilidade parental e, em princípio, exclusivamente responsabilidade de seus pais. Desde que a sociedade se interessa em interferir em casos excepcionais, quando as crianças estão em situação perigosa, segue-se que não é aceito nem cogitado aceitar a responsabilidade geral pela infância. Isso não necessariamente significa que a sociedade não se ocupe das crianças, mas significa que ela não é constitucionalmente obrigada a intervir, mesmo em casos em que as crianças estejam próximas da pobreza de maneira recorrente, para mencionar um exemplo. Por que a sociedade deveria assumir qualquer responsabilidade sobre as crianças? Penso que existem pelo menos três argumentos. Primeiramente, um argumento moral: para garantir que crianças sejam providas de acordo com um padrão básico ou com um padrão para famílias com crianças que, em princípio, estejam em igualdade de condições com outros casais sem crianças. Em segundo lugar, um argumento de direito, que deveria admitir que, se as crianças estão contribuindo, elas também podem reivindicar recursos para distribuição; e pode-se adicionar que deveria haver garantias para compensar os pais de suas contribuições. Terceiro, um argumento que diz respeito ao "interesse" nas crianças, com responsabilidade sobre elas, e não é difícil demonstrar que a sociedade também tem significativo interesse nas crianças, se não como crianças, mas como membros do que é ilusoriamente denominado próxima geração(23).

Tese 9: A infância é uma categoria minoritária clássica, objeto de tendências tanto marginalizadoras quanto paternalizadoras [...] concordo com a abordagem que categoriza a criança como grupo minoritário, definido em relação ao grupo dominante, que possui status social mais alto e maiores privilégios, isto é, nesse caso, os adultos; e, indo além, como um grupo que, por suas características físicas ou culturais, é singularizado à parte da sociedade, com um tratamento diferencial e desigual. [...] Penso que essa definição (de minoria) pode ser seguramente aplicada à infância, mas é necessário algum detalhamento para distinguir a infância de outras minorias. Na verdade, creio que se justifica sugerir que a infância seja mesmo o protótipo de uma categoria minoritária, pois as metáforas "criança" ou "infantil" são frequentemente utilizadas para caracterizar vários outros grupos minoritários. Quando é esse o caso, trata-se, quase sempre, de um sinal de atitude paternalista, e, exatamente, o paternalismo é uma atitude característica, no sentido de uma estranha combinação de amor, sentimentalismo, senso de superioridade em relação à compreensão equivocada das capacidades infantis e à marginalização(23).

Ao concluir as Nove Teses, o Qvurtrop advoga que é preciso incluir a infância analiticamente na sociedade por meio de uma abordagem interdisciplinar.

Complementa referindo que, enquanto as crianças estão aguardando a cidadania real, que tenham ao menos um tipo de cidadania científica. Ou, como refere Sarmento, a sociologia da infância propõe-se a constituir a infância como objecto sociológico, resgatando-a das perspectivas biologistas, que a reduzem a um estado intermédio de maturação e desenvolvimento humano, e psicologizantes, que tendem a interpretar as crianças como indivíduos que se desenvolvem independentemente da construção social de suas condições de existência e das representações e imagens historicamente construídas sobre e para eles. [...] a sociologia da infância propõe-se a interrogar a sociedade a partir de um ponto de vista que toma as crianças como objecto de investigação sociológica por direito próprio, fazendo acrescer o conhecimento, não apenas sobre infância, mas sobre o conjunto da sociedade globalmente considerada. A infância é concebida como uma categoria social do tipo geracional por meio da qual se revelam as possibilidades e os constrangimentos da estrutura social(24).

O estatuto social da infância é construído historicamente em cada sociedade, com base em ideologias, normas e referências sobre o lugar social que deve ocupar. Eivado de contradições, esse processo de construção não está finalizado, pois é constantemente atualizado nas relações intergeracionais, nas práticas sociais, nos dispositivos culturais e nas políticas públicas.

Em suma, o conceito de geração não nos permite distinguir o que separa e o que une, nos planos estrutural e simbólico, as crianças e os adultos, como as variações dinâmicas que nas relações entre crianças e entre crianças e adultos, e vai sendo historicamente produzido e elaborado. Por outras palavras, a "geração" é um constructo sociológico que procura dar conta das interacções dinâmicas entre, no plano sincrónico, a geração-grupo de idade, isto é, as relações estruturais e simbólicas dos actores sociais de uma classe etária definida e, no plano diacrónico, a geração-grupo de um tempo histórico definido, isto é o modo como são continuamente reinvestida de estatutos e papeis sociais e desenvolvem práticas sociais diferenciadas os actores de uma determinada classe etária, em cada período histórico concreto. São as mútuas implicações da infância como grupo de idade nas sucessivas infâncias historicamente datadas e suas relações com os adultos (eles próprios definíveis pelo estatuto histórico contemporâneo e pelas formas históricas de adultez que se foram fazendo, refazendo e consolidando) o que, em síntese se inscreve no projecto científico da sociologia da infância(24).

O processo de construção da infância e sua separação e distinção do mundo adulto é consentâneo da criação das creches e da escola pública, que foram "as primeiras instituições modernas orientadas para um grupo geracional". A escola difundiu-se e disseminou-se e nela a infância institucionalizou-se.

A separação das crianças relativamente às outras gerações não ocorreu, porém, apenas nem primordialmente por meio da criação de instituições para as crianças. A par disso, com fortes vinculações nesse processo de institucionalização, desenvolveu-se um trabalho de construção simbólica da infância, também ele enraizado em condições históricas complexas (Becchi & Julia, 1998), que promoveu, progressivamente, um conjunto de exclusões das crianças do espaço- tempo da vida em sociedade(24).

Em que pese a universalização dos direitos das crianças, a infância carrega em si uma negatividade, decorrente de sua distinção e separação do mundo social dos adultos. Criança é a pessoa em processo de criação, ainda não finalizada, é o aluno (o que ainda não tem luz), alguém que é juridicamente incompetente e inimputável; considerada dependente, sofre interdições sociais: não pode trabalhar, dirigir, constituir família, votar ou ser votada.

[...] o efeito simbólico de conceptualização e representação sócio- jurídica da infância pela determinação dos factores de exclusão e não, prioritariamente, pelas características distintivas ou por efectivos direitos participativos: em última análise, a negatividade constitutiva da infância exprime-se na ideia da menoridade[grifo nosso]: criança é o que não pode nem sabe defender-se, o que não pensa adequadamente (e, por isso, necessita de encontrar quem o submeta a processos de instrução), o que não tem valores morais (e, por isso, carece de ser disciplinado e conduzido moralmente)(24).

Se, por um lado, os diretos e as formas de proteção à infância expandiram-se, por outro, "memorização" das crianças as expôs a um paternalismo que reforçou a "assimetria de poderes nas relações intergeracionais e constituem fortes constrangimentos de exercício de uma vida social plena pelas crianças"(24).

[...] medidas de protecção não apenas não foram capazes de se declararem perfeitas, universais e competentes na efectiva salvaguarda dos direitos das crianças, como a relação de dependência tem gerado situações abusivas que reforçam a vulnerabilidade estrutural das crianças [...]"(24).

Por essas razões, Sarmento considera que A sociologia da infância tem vindo a assinalar a presença destas variações intrageracionais e recusa uma concepção uniformizadora da infância. Não obstante, considera, para além das diferenças e desigualdades sociais que atravessam a infância, que esta deve ser considerada, no plano analítico, também nos factores de homogeneidade, como uma categoria social do tipo geracional própria.

Isso significa que se considera a infância nos factores sociais à posição de classe, ao género, à etnia, à raça, ao espaço geográfico de residência. [...] uma distinção semântica e conceptual entre infância, para significar a categoria social do tipo geracional, e criança, referente ao sujeito concreto que integra essa categoria geracional e que, na sua existência, para além da pertença a um grupo etário próprio, é sempre um actor social que pertence a uma classe social, a um género etc(24).

Em tradução livre de Qvotrup, a infância é um conceito relacional e encontra-se disposta dentro de uma ordem geracional. Uma objeção típica a essa noção é que não se tem garantias de poder generalizar, tal como meramente uma infância.

Esta objeção é importante, pois certamente é verdadeiro que crianças e infâncias (no plural) diferem de acordo com as circunstâncias específicas da vida, que dependem do background de classes, etnias ou gênero. Mais ainda, nenhuma infância é idêntica a outra. A objeção é portanto trivial. Mas, apesar de todas as diferenças entre as crianças, todas elas tem algo em comum e é precisamente esta trivialidade (algo que é comum a todas as crianças) é que as separa dos adultos(21).

A infância é relacionada a outras categorias geracionais como a juventude, a maioridade e a velhice. É sabido que a maioridade (adultice) é a mais importante delas, dado que é sem dúvida a geração ou grupo etário dominante.

Situados nas extremidades desse continuum, crianças e velhos compartilhariam interesses comuns? Um economista norueguês disse que a dispendiosa escola norueguesa é uma das razões para a crise do cuidado dos idosos. Se sua conclusão é correta ou não, não importa neste momento. O que interessa é a maneira como esse economista está argumentando. Ele está de fato simulando que as provisões públicas para crianças e idosos devem ser correlacionadas negativamente. Se as provisões para as crianças aumentam, devem diminuir para os idosos - e vice-versa. Sendo assim, somos obrigados a concluir que os dois grupos etários têm diferentes interesses. Eles ou seus protagonistas devem lutar politicamente contra o outro para obter maior parcela dos recursos disponíveis. infelizmente alguma verdade nesta forma de apresentar o problema [...] Politicamente, é uma conclusão trágica, entretanto, que dois grupos fracos aparecem para ser jogados um contra o outro. [...] Mas alguém pode perguntar quem tem interesse em jogar um contra o outro? A resposta a esta questão pode ser - o interesse do adulto, a geração trabalhadora, para retratar a velhice e a infância como passivos que representam um dreno dos recursos públicos que finalmente são coletados dos bolsos dos pagadores de impostos(21).

Qvortrup(20) considera que classes sociais e gênero têm permanência, assim como as categorias geracionais. Acrescenta que a principal particularidade a respeito das categorias estruturais, em termos de gerações - se comparada àquelas em termos de classe e gênero - é a relativamente rápida rotação de seus constituintes: no que diz respeito à infância, podemos dizer que ela experiencia 100% de mobilidade em direção à idade adulta - ou se preferir, uma substituição total de geração [...] a cada 18 anos(20).

Qvotrup questiona se as crianças têm usufruído dos frutos da modernidade.

Entretanto, nós temos o direito de perguntar se os benefícios da modernidade são mais incidentais do que previstos e sistemáticos. Os elementos principais da modernidade - individualismo, racionalidade e progresso - necessitam ser analisados tendo em vista a criança(21).

A VIOLÊNCIA DE GÊNERO E GERAÇÃO COMO CONSTRUTOS SOCIAIS Violentia, no latim, remete ao que é da dimensão do violento ou bravio, força; que viola, que profana e trata com violência. Tais termos devem ser referidos a vis, que implica analisar algo da ordem da força, do vigor, da potência, da violência e do emprego de força física, porém, também de quantidade ou caráter essencial de algo. O prefixo vis pode ter o significado de força em ação enquanto um recurso de um corpo para exercer sua força vital. No grego, o vis mantém a perspectiva do latim, que pressupõe uma força que coage e faz violência. Deste modo, este núcleo se torna central, a violência como expressão de uma força que se torna problemática quando perturba a ordem ou excede em medida(25).

Referem estes autores(25) que o limiar das classificações sobre a violência encontra-se nas normas e nos valores de uma sociedade, em seu tempo histórico (acréscimo nosso), e por isso existiriam tantas maneiras diferentes de violência quanto sociedades distintas em termos de valores ou normas. Rocha, Lemo e Lírio(25) afirmam que: Arendt (2010) e Michaud (1989) concordam que a violência está submetida à razão e ao cálculo e que seus praticantes a realizam em uma gestão cínica do terror generalizado. Deste modo, discordam daqueles que pensam a violência apenas no domínio da irracionalidade e da natureza de uma força que irrompe simplesmente de modo passional. uma produção anterior de párias por diferentes mecanismos e a violência seria um instrumento, um meio para se atingir determinada finalidade. Arendt critica o monopólio estatal da violência, ressaltando que nenhuma forma de violência é legítima, podendo até ser justificada, mas nunca exaltada e glorificada. Deste modo, para Arendt (2010), o fracasso da política está na base da violência, quando poder e autoridade perdem força, a violência se instala. Ela diferencia poder de violência, pois, para ela, o poder é instalado pela comunidade política que delega aos seus representantes reconhecimento e autoridade e, quando estas lideranças se distanciam de um diálogo contínuo com os grupos sociais e se burocratizam, a impotência se instala, afirmando-se cada vez mais pela ameaça e pelo uso da violência. Critica o uso do conceito de violência como sinônimo do poder. A violência, para Arendt (2010), seria um sinal da perda de poder. Violência e poder poderiam andar juntos, todavia, seriam diferentes(25).

Para Vázquez, [...] a violência se manifesta onde o natural ou o humano - como matéria ou objeto de sua ação - resiste ao homem [...] Nesse sentido a violência é exclusivamente do homem, na medida em que ele é o único ser que para manter-se em sua legalidade propriamente humana necessita violar ou violentar constantemente uma legalidade exterior (a da natureza). Se o homem vivesse em plena harmonia com a natureza ou passivamente sujeito a ela, não recorreria à violência, que está é, por princípio a expressão de um desajuste racial(3).

Vázquez ainda refere que [...] em Marx a violência revolucionária aparece como uma necessidade histórica que necessariamente desaparecerá, com o concurso dela mesma, ao desaparecerem as condições histórico-sociais que a engendram. Não tem um conteúdo único, universal e abstrato; é violência e contra-violência; serve a uns e outros interesses; é elemento de uma práxis e de uma antipraxis. Não é, por conseguinte, pura positividade, nem mera negatividade. [...] Nas condições de uma sociedade dividida em classes, é positiva na medida em que serve a uma práxis social revolucionária. Mas num mundo verdadeiramente humano, onde os homens se usam livre e consequentemente, a violência tem que ser excluída. [...] a violência e a coação exterior darão lugar a uma elevada consciência moral e social que tornarão desnecessária a violência. [...] A práxis social não terá que recorrer à violência. [...] ao deixar de ser violenta a práxis social terá uma dimensão autenticamente humana"(3).

Trabalhar com as perspectivas de gênero e geração para explicar e compreender a violência contra a mulher e a criança é trabalhar com o reconhecimento de que, na hierarquia de poderes presente na sociedade, a mulher e a criança sempre ocuparam posições sociais inferiores, sofrendo injustiça social, em virtude das desigualdades construídas e naturalizadas historicamente.

A OMS define violência como o uso da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha qualquer possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação" (26).

A filósofa Marilena Chauí define violência como o resultado de uma relação de desigualdade, justificada pela diferença, que permite a expressão da força de dominação, opressão e exploração, assim como uma ação que reifica o ser humano, uma vez que o impede de ser sujeito na relação com o mundo: Entendemos por violência uma relação determinada das relações de força tanto em termos de classes sociais quanto em termos interpessoais. Em lugar de tomarmos a violência como violação e transgressão de normas, regras e leis, preferimos considerá-la sob dois outros ângulos. Em primeiro lugar, como conversão de uma diferença e de uma assimetria numa relação hierárquica de desigualdade com fins de dominação, de exploração e de opressão. Isto é, a conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade em relação entre superior e inferior. Em segundo lugar, com a ação que trata o ser humano não como sujeito, mas como uma coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio, de modo que quando a atividade e a fala de outrem são impedidas, violência"(27).

Neste sentido, violência significa: 1) Tudo o que age usando a força para ir contra a natureza de algum ser (é desnaturar); 2) Todo ato de força contra a espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém (é coagir, constranger, torturar, brutalizar); 3) Todo ato de violação da natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade (é violar); 4) Todo ato de transgressão contra aquelas coisas e ações que alguém ou uma sociedade definem como justas e como um direito; 5) Consequentemente, a violência é um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, pelo medo e pelo terror(27).

A violência constitui a forma perversa de uma relação de poder que, se fundamentada no gênero e na geração, traduz-se numa relação de dominação em que mulheres ou crianças são quase sempre desfavorecidas.

O poder não é algo que possa ser dividido entre aqueles que o detêm exclusivamente e aqueles que não o possuem e lhe são submetidos. O poder deve ser analisado como algo que circula, que funciona em cadeia, que se exerce em rede. Os indivíduos nunca são alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outras palavras, o poder não se aplica aos indivíduos, e sim passa por eles, sendo o indivíduo um dos primeiros efeitos do poder(28).

À GUISA DE SÍNTESE Na presente reflexão teórica buscou-se explicar a importância das categorias sociológicas gênero e geração que, a par de classes sociais e etnia, têm a potência de elucidar os fenômenos da realidade objetiva, na dialética da aparência e essência e da realidade e possibilidade, rumo à intervenção em Enfermagem em Saúde Coletiva.

Seguindo os ditames da Tipesc, a compreensão mais acurada dessas categorias é fundamental tanto para explicitar as contradições, auxiliando na busca de seus polos, quanto no entendimento da gênese do fenômeno que, por conter traços da qualidade anterior (lei da negação da negação: a realidade é nova, mas contém as características essenciais da anterior que permaneceram na nova realidade) coadjuva na elucidação da dinâmica das transformações, ao distinguir a quantidade importante para o salto qualitativo.

Para prosseguir esta discussão com elementos mais próximos da prática sugere-se a leitura de alguns estudos que, mesmo que não tão densamente apoiados nas categorias gênero e geração tal como aqui descritas, mostram faces (aparência) da realidade fenomênica apontando para as possibilidades interventivas. Um primeiro que chama a atenção é o estudo "Compreendendo a violência doméstica a partir das categorias gênero e geração"(29) no qual as autoras fazem uma revisão de literatura, cujo objetivo foi o de "compreender como as categorias gênero e geração influenciam na construção da violência doméstica contra a mulher"(29), pesquisando um universo de 20 textos - artigos, livros, dissertações e teses - no período entre 1996 e 2007. As bases de dados do estudo foram Scielo, Lilacs e Banco de Teses da Capes. Esse estudo é relevante pois tenta olhar a violência doméstica a partir das duas categorias-chave, para além das classes sociais. Apesar disso que sublinhar que é uma publicação de mais de cinco anos e realizada em base de dados bastante restrita. As autoras constataram que os estudos consideram que o núcleo familiar configura-se como espaço de construção da violência de gênero e intergeracional [...] a violência doméstica contra a mulher constrói-se a partir das relações de desigualdade entre homens e mulheres, sendo naturalizada no processo de socialização dos sujeitos e reproduzida de geração em geração(29).

Atualizando estas afirmações e aprofundando o entendimento das categorias gênero e geração para estudo dos fenômenos, existem diversos outros estudos.

Na perspectiva de gênero, o estudo Gender-based violence: conceptions of the Family Professional Health Strategy's Teams(30) traz contribuições, tais como a afirmação de que a co-existência de diferentes modos de entender mulheres e homens é consequência das mudanças que estão ocorrendo nos relacionamentos, baseados no aumento da participação das mulheres na esfera pública que as habilitou para desenvolver a independência (das mulheres). Afirmam ainda que a violência contra as mulheres, longe de ser um problema individual é um problema social, originada na iniquidade das relações sociais(30). Na mesma linha seguem os artigos: Práticas profissionais das equipes de saúde da família voltadas para as mulheres em situação de violência sexual(31); Limites e possibilidades avaliativas da Estratégia de Saúde da Família para a violência de gênero(32); Autonomia como categoria estruturante para o enfrentamento da violência de gênero(33); Domestic violence against women from the perspective of community health agente(34); Violência contra a mulher e suas implicações na saúde materno-infantil(35).

Quando se trata de conjugar gênero e geração, sob o prisma da episteme adotada nesta reflexão, os estudos que iluminam aspectos importantes da dupla categoria são, entre outros: La centralidade da família como un recurso en el cuidado domiciliário: perspectiva de género y generación(36). Este estudo é particularmente interessante pois aborda o fenômeno sob o paradigma crítico- social pós-feminista, cuja base empírica foi o conjunto de cuidadores domiciliares de Mallorca, Espanha. Destacam-se entre as considerações finais que o discurso sobre as famílias (sob cuidados domiciliares) encontra-se modulado pelas (categorias) gênero e geração, mas que [em nossa tradução livre] os sistemas sócio-sanitários baseiam suas intervenções no apoio a família que enfrenta a responsabilidade de cuidar de um de seus membros dependentes, sem contemplar a questão de gênero ou de geração, implícita em um modelo tradicional de família, silenciando e não permitindo que se revelem as necessidades e demandas do grupo majoritário de cuidadores que são as mulheres (36).

Da mesma forma, existem estudos brasileiros que buscam olhar atentivamente a interface gênero e geração, no fenômeno da violência, dentre os quais destacamos: Reincidência da violência contra crianças no município de Curitiba: um olhar de gênero(37); Characteristic of violence against children in a Brazilian Capital(38) e A possibilidade de enfrentamento da violência infantil na consulta de enfermagem sistematizada(39).

Os estudos não se esgotam nos mencionados, ao contrário, como muito bem apontado no artigo Teorias e políticas de gênero: fragmentos históricos e desafios atuais(40), da autoria de Meyer e publicado na Revista Brasileira de Enfermagem, em 2004, o conceito de gênero como ferramenta metodológica, se aplicado numa revisão sistemática poderia contabilizar também e muito, na área de saúde, a trajetória de reconhecimento, incorporação e legitimação da categoria ao longo dos últimos anos. É provável que o mesmo não suceda com a categoria geracional no recorte adotado aqui, demandando portanto estudo ulteriores mais vigorosos. Esta lacuna foi muito bem apontada por Pretto e Lago (41) no estudo Reflexões sobre a infância e gênero a partir de publicações em revistas feministas brasileiras, publicado em 2013.

Por fim, é preciso dizer algo sobre a dialética da liberdade e da necessidade, pois tanto a escolha dos caminhos para a superação, como os marcos teórico- filosóficos que embasam a prática da Enfermagem em Saúde Coletiva, estão ancorados numa dada ética que, por ser histórica e dialética, não surge de pronto como regras perenes e dadas para as ações interventivas e interpretativas. Nesse aspecto, concorda-se com Vázquez que "não se pode falar da liberdade do homem abstrato, isto é fora da história e da sociedade"(42).

O homem real é um ser propriamente humano, teórico e prático, objetivo e subjetivo; [...] um ser de práxis, ou seja, um ser produtor, transformador, criador, [...] transforma a natureza e nela se plasma, [...] um ser social, produz determinadas relações sociais, sobre as quais se elevam as demais relações humanas, [...] a superestrutura ideológica, no qual a moral faz parte"(42).

A práxis que se projeta nas intervenções conscientes sobre a realidade objetiva (e suas contradições) é reflexiva, leva em conta os valores mais afeitos à transformação das sociedades e dos fenômenos, tais como a violência de gênero e geração, ressaltando ou revelando os valores que conduzem ao desenvolvimento da consciência crítica, para compreender a inserção histórica em sociedades de classes nos quais gênero e geração conformam categorias sociológicas que possibilitam mostrar a realidade objetiva em sua essência e nas possibilidades reais de ser uma nova realidade.


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