Relação no cuidado entre o cuidador familiar e o idoso com Alzheimer
INTRODUÇÃO
As doenças crônicas degenerativas são as afecções que mais acometem a população
idosa e podem trazer modificações na qualidade de vida e na capacidade
funcional dos indivíduos. Dentre estas doenças, incluem-se as síndromes
demenciais, sendo a mais comum a doença de Alzheimer (DA).
As projeções desta enfermidade por meio dos dados populacionais do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística indicam que haverá cerca de 1,2 milhões
de pacientes e incidência de 100 mil novos casos(1). No Estado do Paraná, entre
os anos de 2008 a 2011, foram registrados 32.190,40 casos de DA sendo 8.198,29
apenas na cidade de Curitiba(2).
O quadro clínico da DA é variável, tem início lento e insidioso e à medida que
a doença progride, aumenta a demanda de cuidados e supervisão constante, papel
desempenhado, na maioria das vezes, pela família inserida no domicílio. A
Política Nacional do Idoso e o Estatuto do Idoso, em conjunto com a sociedade e
Estado, considera a família responsável pelos cuidados e atendimento às
necessidades dos idosos no domicílio(3-4). No momento em que o familiar assume
o papel de cuidador do idoso com DA este passa a vivenciar uma cascata de
mudanças em sua rotina social, financeira, emocional e familiar.
Deste modo, evidencia-se que a relação entre o cuidador familiar e o idoso com
DA é tão íntima e próxima que o próprio cuidador modifica o seu modo de viver
em prol do cuidado ao idoso. Vale ressaltar que esta mudança nem sempre é
realizada pela vontade do cuidador, mas por conjuntura. E quando ocorre em
razão da última, as chances de ocorrerem sobrecargas físicas, emocionais,
sociais e financeiras são mais elevadas. Entretanto, independentemente da razão
que motivou o cuidador a assumir a responsabilidade pelo cuidado ao idoso com
DA, a convivência de ambos não deixa de ser uma relação, que pode ser imbuída
de participação ou não. Quando a relação envolve a participação, o cuidador
permanece presente na vida do idoso com DA por amor e fidelidade, doando-se
para o outro, estando presente. Entretanto, quando o cuidador assume este papel
por conjuntura, a relação pode se desenvolver sem participação, na qual não há
envolvimento sensível entre ambos.
Neste estudo, a interpretação desta relação complexa existente entre cuidador
familiar e idoso com DA, foi fundamentada nos princípios filosóficos de Gabriel
Honoré Marcel. Optou-se por este filósofo pelo significado que ele concebe à
existência humana, ao sentido da participação na vida dos outros, de ser com
outros e ser consigo mesmo(5).
A filosofia de Marcel é existencial e concreta, em que o transcendente aparece
no centro das experiências humanas. O ser humano, em sua existência,
estabelece-se no espaço intermediário e de tensão entre o ser e o ter, entre a
objetividade e a subjetividade, entre o problema e o mistério. Trata-se de um
espaço de reciprocidade, no qual o indivíduo pode optar pela ordem do ser ou do
ter.
O ser humano ao permanecer na ordem do ser tem possibilidade de vivenciar o
mistério. O mistério é incontrolável, na medida em que se revela e ao mesmo
tempo, também se esconde; não é objetivável, requerendo por isso, sensibilidade
(5). É no mistério que se desenvolve a presença, o amor, a fidelidade e a
esperança.
A presença constitui-se no ser com, atua como fonte de vida e manifesta-se na
intersubjetividade do amor. É a partir do outro que o homem compreende a si
mesmo; sente seu valor na medida em que se sente amado. O amor cria uma
permeabilidade mútua, de abertura para a influência, abertura que possibilita o
crescimento do ser(5).
É por meio do amor que o ser humano promete fidelidade. A fidelidade é um
compromisso, é ser fiel, e ser fiel é doar-se a si mesmo. Pode-se dizer que a
fidelidade está relacionada com uma ignorância fundamental do futuro. Uma
maneira de transcender o tempo, no qual não se sabe o que acontecerá no futuro
e este fato é que fornece valor e peso para a promessa(5). A fidelidade é
mantida, principalmente, no indivíduo que é munido de esperança. A esperança
pode ser simbolicamente representada por uma luz; e os momentos difíceis da
vida, como a doença ou morte, como uma prova, escuridão, na qual se pode
permanecer por tempo indeterminado. Se os sujeitos estiverem munidos de
esperança terão uma luz na escuridão, caso contrário, permanecerão no escuro, o
que pode levá-los ao desespero e angústia(5).
Deste modo, Marcel propõe substituir o ter pelo ser, o problema pelo mistério,
a ausência pela presença, a traição pela fidelidade, a negação pela fé, o
desespero pela esperança. Isso porque as experiências da fidelidade, do amor e
da esperança nos levam a transcender(5).
Acredita-se que o presente estudo tenha relevância para a formação e atuação
dos profissionais da geriatria e gerontologia, por revelar a complexidade da
relação entre os cuidadores familiares e os idosos com Alzheimer. Este
conhecimento pode facilitar a compreensão das dificuldades, limitações e
percepções dos cuidadores, de modo que o planejamento das ações de enfermagem
seja direcionado para as reais necessidades dos idosos com Alzheimer e seus
familiares.
Frente ao apresentado a questão norteadora do estudo foi Como é a relação no
cuidado entre o cuidador familiar e o idoso com Alzheimer? E o objetivo foi o
de interpretar a relação no cuidado entre cuidadores familiares e idosos com
DA, alicerçada na dialética concreta da participação segundo os quatro
preceitos de Gabriel Marcel.
MÉTODO
Trata-se de estudo quantitativo de corte transversal e qualitativo -
descritivo. Optou-se trabalhar com a abordagem técnica de Bricenõ-León(6), que
sugere a execução paralela da investigação quantitativa e qualitativa. O estudo
foi realizado em um Centro de Referência em Atendimento em Doença de Alzheimer
- Unidade de Atenção ao Idoso, sediado no Município de Curitiba-PR, e nos
respectivos domicílios dos cuidadores familiares dos idosos com diagnóstico de
DA.
Na etapa quantitativa, a amostra de conveniência foi composta de 208 cuidadores
familiares, selecionada no período de dezembro de 2009 a fevereiro de 2010. Os
critérios de inclusão foram: ser o cuidador familiar de idoso com diagnóstico
de DA e que faz uso de medicação específica; possuir idade igual ou superior a
18 anos; ter prestado cuidado há pelo menos seis meses; voluntariamente
expressar o desejo de participar do estudo e aceitar preencher e assinar o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Foram critérios de exclusão:
cuidador com dificuldades de comunicação que impossibilitassem a entrevista e
que voluntariamente expressaram o desejo de interromper sua participação no
estudo. A coleta de dados foi realizada por meio de entrevista com aplicação de
roteiro semiestruturado contendo questões referentes à condição
sociodemográfica e clínica, para detalhar o perfil dos participantes, e da
escala do Inventário de Sobrecarga de Zarit(7), para avaliar o nível de
sobrecarga dos cuidadores familiares. Essa escala é composta por 22 itens, com
as respostas a cada item variando entre "nunca ocorre", na escala considerada
pontuação zero, e "sempre ocorre", pontuação quatro, numa variação de cinco
pontos. O escore total é obtido somando todos os itens e varia de zero a 88
pontos; quanto maior o escore, maior a sobrecarga do cuidador.
Os dados foram compilados e analisados com o auxílio do programa Excel 2007.
Foram elaboradas frequência para as variáveis categóricas e para as variáveis
contínuas (idade, escala do Inventário de Sobrecarga de Zarit(7)) e utilizada
estatística descritiva, com medidas de posição (média, mínima e máxima) e
dispersão (desvio padrão).
A coleta dos dados, na etapa qualitativa, por meio de entrevista gravada, com
roteiro semiestruturado, foi realizada até o momento em que as informações se
tornaram redundantes(8). Nesta etapa participaram 36 cuidadores. Foram
abordadas as seguintes questões: conte-me como é o seu dia a dia; O que o
senhor (a) tem realizado para o cuidado consigo? O que é preciso ter para ser
cuidador familiar de idoso com Alzheimer? Fale sobre seus sentimentos enquanto
cuidador. O que espera do futuro? As entrevistas foram transcritas na íntegra e
analisadas conforme o Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), uma proposta de
organização e tabulação de dados qualitativos de natureza verbal obtidos de
depoimentos, que consta das seguintes figuras metodológicas: Ideia central (IC)
- uma afirmação que traduz o essencial do conteúdo discursivo verbalizada pelos
sujeitos em seus depoimentos; Expressões chave (EC) - trechos das falas
literais dos sujeitos extraídas do conjunto de dados; Discurso do Sujeito
Coletivo (DSC) - descrição de um discurso que representa a compilação das
partes essenciais dos discursos de cada participante do estudo, ou seja,
consiste de uma síntese de todas as falas dos sujeitos(8). De cada questão
emergiu um tema, que foi alicerçado nos preceitos de Gabriel Marcel e, ao final
das discussões, foi composto o tema síntese.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética conforme parecer no dia 27 de agosto
de 2009, com registro CEP/SD: 781.116.09.08 e CAAE: 0025.0.085.091-09. Em
seguida o projeto foi encaminhado ao Comitê de Ética da Secretaria Municipal de
Saúde de Curitiba-PR, o qual foi aprovado no dia 06 de outubro de 2009 sob
protocolo 86/2009. Foram respeitados os preceitos éticos de participação
voluntária e consentida segundo Resolução 196/96(9), por meio do preenchimento
do TCLE, que foi obtido de todos os cuidadores familiares informantes, antes do
início de sua participação no estudo.
RESULTADOS
Os resultados serão apresentados a partir das características sociodemográficas
e clínicas dos sujeitos (Tabela_1) e a seguir, os resultados que emergiram do
Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), com seus respectivos Temas e Ideias
Centrais.
Tabela 1 - Características sociodemográficas e clínicas dos cuidadores
familiares, Curitiba-PR, Brasil, 2010
CARACTERÍSTICAS n %
TOTAL 208 100
20-30 1 0,9
31-40 19 9,1
Idade 41-50 56 27
51-60 77 37
61-70 32 15
>70 23 11
Sexo Feminino 178 86
Masculino 30 14
Escolaridade < 8 anos 61 29
> 8 anos 147 71
União estável 127 61
Estado Civil Solteiro 34 16
Outro 47 23
Crença Religiosa Sim 204 98
Não 4 2
Filha 132 64
Irmã 6 2,9
Vínculo Familiar Esposa/Companheira 29 14
Esposo/Companheiro 8 3,1
Outro 33 16
Ocupação Profissional Sim 87 42
Não 121 58
1 salário mínimo 30 15
2 salários mínimos 42 20
Renda Familiar 3 salários mínimos 48 23
4 salários mínimos 24 12
5 salários mínimos 11 5
mais de 6 salários mínimo 53 25
Reside com o idoso Sim 169 81
Não 39 19
Partilha o cuidado com outros familiares Sim 135 65
Não 73 35
até 1 ano 28 13
Tempo (anos) que cuida do idoso de 1 a 3 anos 54 26
mais de 3 anos 126 61
Realiza outras tarefas além de cuidar Sim 191 92
Não 17 8
Participa de grupos de suporte social Sim 33 16
Não 175 84
Realiza acompanhamento médico Sim 162 78
Não 46 22
Excelente 19 9
Auto percepção da saúde Boa 97 47
Razoável 92 44
Tem alguma doença Sim 130 62
Não 78 38
Hipertensão 45 21,6
Doenças prevalentes Depressão 22 10,6
Inflamatórias 20 9,7
Digestivas 15 7,4
Salário Mínimo de R$ 510,00 no ano de 2009, período vigente do estudo(10).
Quanto à avaliação do grau de sobrecarga, observou-se que, 47 (22,6%)
cuidadores apresentaram pequena sobrecarga; 96 (46,2%) grau moderado, 54 (26%)
grau moderado a severo e 11 (5,3%) sobrecarga severa. A média foi de 33,29 ±
15,33, com o mínimo de quatro e máximo de 85 pontos. O fato da maioria dos
cuidadores apresentarem sobrecarga moderada (n=96; 46,2%) procedido pelo grau
moderado a severo (n=54; 26,0%), indica forte possibilidade dos 96 cuidadores
evoluírem para grau mais severo.
Resultados do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC)
Tema 1 - A rotina "cegante" do cuidador familiar de idoso com DA
Ideia Central: É uma rotina desgastante e uma preocupação constante
Cuidar de um doente com Alzheimer é muito difícil, é uma preocupação
constante. Ele nunca fica sozinho, ele não pode ficar. Por que se ele
pega um refrigerante na geladeira e acha que está muito gelado ele
enfia no fogo a lata. Fique trinta dias aqui trancado. Só nesta luta
de cuidar de uma pessoa idosa, você não vê o colorido da vida. Você
só vê o preto e branco. E o pior é que no dia seguinte é tudo de
novo. (DSC)
O DSC revela que o dia a dia do cuidador familiar é desgastante em virtude dos
cuidados intensos exigidos pelo idoso com DA e que, por se tratar de rotina, o
cuidador sente-se exausto com esta responsabilidade. A rotina foi caracterizada
como "cegante" pela impossibilidade de visualizar mudanças nos dias
subsequentes, pelo sentimento de prisão perante o cuidado e pela tristeza por
viver a vida na sombra do preto e branco.
Tema 2 - O cuidado do cuidador familiar de idoso com DA consigo mesmo
Ideia Central 01: O cuidado comigo é restrito em razão do cuidado que
presto ao meu familiar com Alzheimer
Fico assistindo televisão, eu adoro computador, escutar música, faço
tricô, crochê, que é para ficar cuidando dele. Sair eu não saio,
porque tem que ficar sempre com ele. Até a manicure vem aqui em casa
porque eu não posso ir na casa dela. Então é um momento de lazer meu.
(DSC)
O DSC revela que os cuidadores realizam atividades de lazer restritas ao
domicílio e que são desenvolvidas por permitirem associar o cuidado ao idoso
com DA. Utilizam de artifícios eletrônicos para manterem vida social como:
televisão, rádios e computadores. Deste modo encontram meios de continuar
realizando suas atividades sociais e de lazer sem que precisem optar entre
realizá-las e cuidar do idoso no domicílio. Entende-se que os cuidadores
optaram pela doação e comprometimento em virtude da fidelidade e do amor ao
idoso.
Ideia Central 02: Cuido-me por meio da fé
Sou uma pessoa muito apegada com Deus. E recomendo a todos os
cuidadores que tratem de procurar Deus neste momento, porque eu acho
que é o único que pode ajudar. Tenho fé, me traz muita paz, certeza,
energia, me sinto mais cuidada, mais amada e isto você estende para
todas as pessoas que estão em volta de você. (DSC)
Para os cuidadores familiares, a fé emerge como fonte de energia, esperança e
cuidado consigo. Por meio da oração e dos rituais os cuidadores sentem que
possuem cobertura espiritual e que isto os fortalece. O cuidador vive o
sagrado, pratica a religiosidade, acredita profundamente no poder e na força
positiva que esta proporciona a sua existência, no enfrentamento da vida,
principalmente quando estão inseridos no contexto da doença. Buscam na religião
ajuda e conforto.
Tema 3 - O ter e o ser cuidador familiar de idoso com DA
Ideia Central 01: É preciso ter amor e ser paciente
Tem que gostar da pessoa, ter amor, atenção, carinho. Eu tenho um
amor incondicional e é preciso ter para você poder fazer certas
concessões. Para se colocar a disposição. É aquela doação, você tem
que dar amor sem querer nada em troca. Tem que ter muita paciência e
isto nem o dinheiro compra. (DSC)
O amor do cuidador familiar pelo idoso é incondicional, e por ser assim
possibilita a escolha pela doação, dedicação e abdicação. O sacrifício do
cuidador é bastante perceptível, visto que ele escolhe por vivenciar o cuidado
junto ao idoso com Alzheimer e tem ciência de que não há possibilidade de
reconhecimento e retorno afetivo por parte do portador, é uma compaixão
desinteressada. Acreditam que o sentimento supremo é o amor, mas que é
fundamental desenvolver a habilidade de ser paciente com o outro.
Ideia Central 02: É preciso ter tempo e ter posses
Precisa ter infraestrutura, ter posses. Sem recursos você é obrigado
a abandonar o idoso em casa para ele ir buscar o dinheiro lá fora.
Porque tem gastos, começando agora com as fraldas para manter a
higiene dele, cama hospitalar, tem que ter posse para ter. (DSC)
O DSC revela que ter recursos financeiros facilita a aquisição de tecnologias
assistivas e melhora a condição de saúde e de vida tanto dos cuidadores quanto
do idoso com DA. Deste modo para ser cuidador de idoso com DA, faz-se
necessário ter, além de amor e dedicação, recursos financeiros para adequar o
ambiente e adquirir as tecnologias necessárias para o auxílio dos cuidadores.
Tema 4 - Sentimentos múltiplos dos cuidadores familiares de idosos com DA
Ideia Central 01: Sinto medo e desespero
Tenho medo que aconteça alguma coisa, de algumas situações, tipo esta
(idosa saiu de casa enquanto estávamos realizando a entrevista), que
me pegou de surpresa. Medo que ela possa agredir, quando ela fica
agitada, nervosa. Quando ele fica doente eu tenho medo de perdê-lo.
(DSC)
Os cuidadores referem sentir medo e desespero, em virtude das alterações de
comportamento e personalidade do idoso com DA. Estas alterações podem causar
riscos contra o bem estar tanto do cuidador quanto do idoso e, imbuído neste
contexto, está presente o medo da morte. A morte é considerada pelos cuidadores
como a finitude do ser, no qual não existe mais nada além dela.
Ideia Central 02: Sinto uma mistura de sentimentos
É meio complicado porque você sente como se fosse uma revolução
dentro de você. Porque ao mesmo tempo que você oferece amor, carinho,
compaixão, dedicação para a pessoa tem horas que você fica revoltada.
Já senti vontade de matar ele (risos), não era nem raiva, era vontade
de matar. Daí você fica com raiva e depois vem uma culpa enorme
dentro de você. (DSC)
Os cuidadores familiares apresentam múltiplos sentimentos e relatam que quando
estes são ruins, logo são seguidos do sentimento de culpa. Nesta situação fica
perceptível que o cuidador situa-se entre a ordem do ser e do ter, visto que ao
mesmo tempo em que sente amor, dedicação e carinho pelo idoso, em alguns
momentos, desenvolvem sentimentos negativos.
Tema 5 - Os desejos e as esperanças dos cuidadores familiares de idosos com DA
Ideia Central 01: Espero ter cuidado comigo mesmo para poder cuidar
do outro
Eu espero que eu não falte para ele, que eu dure mais para cuidar
dele. Espero ter saúde para cuidar dele até o fim. Acredito que
alguma coisa eu tenho que fazer por mim também. Porque o cuidador
geralmente tem que ter mais saúde porque se não, não consegue cuidar
do outro. (DSC)
O DSC revela que uma das maiores preocupações dos cuidadores é que eles adoeçam
e deixem o idoso desassistido de cuidados. Na concepção deles é preciso o
cuidador ter cuidado consigo mesmo para ter mais saúde e condições de cuidar do
outro. Este cuidado consigo do cuidador é relacional, ou seja, existe na
participação e na relação com outro.
Ideia Central 02: Eu desejo uma vida melhor
Espero do futuro que dê longa vida para ele, peço a Deus para que ele
não pare em uma cama, peço para curá-lo. Eu acredito que pela fé ele
pode obter a cura. Espero uma vida melhor. (DSC)
Os cuidadores desejam o que não possuem como: melhorar a condição de vida e até
o que é impossível de acontecer no momento como: obtenção da cura para a DA ou
evitar a progressão da doença. O desejo do cuidador é a tentativa de suprir as
necessidades apresentadas no momento, mas como esperam mudanças boas que até o
momento são impossíveis, podem sentir - se frustrados e até mesmo perderem a
esperança de que alguma coisa poderá mudar no futuro.
Ideia Central 03: Espero mudanças
A gente vive um dia por vez, não tem uma regra e nem uma receita.
Você encontra caminhos e tenta fazer o melhor. E eu só tenho que
aceitar e agradecer. Tudo de bom e de ruim. O de ruim pode
desencadear coisas para eu viver melhor. Então eu tenho esperança de
que alguma coisa pode mudar e há de mudar. Amanhã Deus sabe o que vai
ser da gente. (DSC)
O DSC revela que os cuidadores familiares têm esperança de um futuro diferente
e que, independente do que ocorra, eles estão dispostos a aceitar e buscar
novos caminhos para viver melhor. A esperança conduz os cuidadores à
transcendência, a aceitação e ao enfrentamento dos obstáculos da vida.
Tema síntese - A ordem do mistério entremeado pela esperança e sustentada pela
fé
A fé para os cuidadores é uma maneira de cuidado consigo e que os ajuda muito a
ter esperanças e forças para continuar o percurso da vida com o idoso com DA.
Por meio da fé em Deus, conseguem munir-se de esperança.
A esperança é sempre marcada por uma prova. Esta prova pode ser uma doença
incurável ou situação na qual os indivíduos se sintam em cativeiro, ou seja,
privados de liberdade, na escuridão, por tempo indeterminado. A DA pode ser
caracterizada como uma prova para os cuidadores familiares e idosos portadores,
a qual não tem perspectivas de cura e a incerteza permanece por tempo
indeterminado. Nas situações de provas, a esperança emerge como uma luz na
escuridão. A esperança é como uma virtude, pois toda virtude é uma
especificação certa de luz interior, e viver em esperança é manter-se fiel nas
horas de escuridão. Assim diria Marcel: "espero livrar-me da prova com uma
presença, e chegar assim a certa plenitude daquilo que me foi privado até o
presente"(11).
Nas situações de prova, é preciso ter, antes de tudo, fé no Tu Absoluto, para
que a esperança seja revelada e que a luz irradie na escuridão, pois, caso
contrário, os sujeitos podem desesperar-se perante a escuridão da incerteza e
da descrença. A crença no Tu Absoluto permite que os cuidadores familiares
tenham sentimentos de confiança, segurança, certeza, paz e esperança. Por meio
da fé e da oração, abre-se o interior do sujeito ao fluxo da esperança e faz
com que ele se torne capaz de modificar a situação em que se encontra. Deste
modo, os cuidadores ao estarem munidos de esperança têm a possibilidade de
modificar seus pensamentos, concepções e hábitos de vida por meio da
flexibilidade e criatividade. É um modo de não aceitar a situação como ela
está. A esperança seria o meio para encontrar a saída desta prova em que os
cuidadores se encontram.
Nesta perspectiva, os sujeitos podem escolher ser ator ou espectador de suas
próprias vidas. O ator vive inserido, participa atingindo a realidade no
concreto, numa experiência irredutível, não restrita a fatos. O espectador, ao
invés, assiste, postura de quem olha de fora, analisa a realidade, como sujeito
que se posiciona diante do objeto, fora de sua participação, portanto, alienado
(12).
Os cuidadores familiares, para serem atores de suas próprias vidas, necessitam
assumir seus papéis como atores, e, por meio da fé em Deus, da esperança e da
criatividade, criar novos meios e novas perspectivas para viver o processo de
cuidado com o idoso com DA. É essencial que os cuidadores não permaneçam como
espectadores, admirando a fotografia de suas vidas, mas que possam ser os
artistas, que moldam e esculpem todos os momentos vividos junto com o idoso com
DA, que possam transcender.
DISCUSSÃO
Os cuidadores referem que conviver junto ao idoso é uma rotina desgastante.
Para Marcel(13) esta rotina pertence à ordem do ter, em que o homem
instrumentalizado, a serviço da técnica, vive incapaz de se recolher para a
contemplação, ou seja, o automatismo do cotidiano não lhe permite um pensamento
pensante, permanece no tempo fechado. Trata-se do descrente, do desesperado que
vive no pessimismo e na escuridão, acredita que nada poderá mudar e torna sua
existência uma rotina, sem criatividade.
Os cuidadores familiares apresentam-se sobrecarregados (n=96; 46,2%) e
exaustos, em virtude da intensidade de cuidados exigidos pelo idoso com DA.
Considera-se a idade mais avançada, ou seja, dos cuidadores de 60 anos ou mais,
(n=55; 26%) um fator decisivo para maiores desgastes destes cuidadores, assim
como o desenvolvimento de outras atividades associadas ao cuidar (n=191; 92%).
Residir com o idoso (n=169; 81%) e cuidar por tempo prolongado (n=126; 61%)
também pode determinar o aumento da sobrecarga.
Um dos grandes problemas enfrentados pelos cuidadores familiares de idosos com
DA é a privação da vida social. Verificou-se que a maioria dos cuidadores não
participa de grupos de suporte social (n=175; 84%). Ainda que se tenha avançado
em recursos tecnológicos de comunicação como telefone, internet, televisão,
rádios, entre outros, isso não supre totalmente as necessidades
biopsicossociais dos indivíduos. Isto porque estas ações tecnológicas de
comunicação ocorrem dentro do domicílio, ambiente ao qual se presta cuidado ao
idoso.
As estruturas de suporte social no Brasil para os cuidadores familiares de
idosos com Alzheimer ainda se mostram frágeis e de difícil acesso(14), isto
porque a ajuda advinda das instituições consiste em fornecer informações a
respeito da doença, orientar os familiares quanto aos cuidados com o idoso e
promover grupos de apoio. A fragilidade consiste na falta de suporte familiar e
formal para o revezamento do cuidado ao idoso, a fim de que o cuidador possa
ter acesso às redes de apoio ofertadas e manter relação social com o outro.
O indivíduo tem sua formação pessoal na relação de reciprocidade e da
comunicação dialógica, com vistas à humanização como crescimento coletivo.
Educa-se a consciência de si pela exposição ao outro. Para Marcel(15) ao expor
a minha ideia, eu mesmo me transformo em outro, sou uma espécie de outro. Deste
modo, é fundamental que os cuidadores desenvolvam atividades de cunho social,
para que tenham possibilidades de manter relações recíprocas.
Outro autocuidado citado pelos cuidadores, foi a fé. Na etapa quantitativa
verifica-se que 204 (98%) dos cuidadores alegaram possuir uma crença religiosa.
A oração e a presença na missa são rituais que servem de ponte entre o imanente
e o transcendente, o profano e o sagrado.
Os indivíduos tendem a viver no profano (imanente) e buscam o sagrado
(transcendente), principalmente, nos momentos de sofrimento e doença. O advento
de doença incurável intensifica a fé e a esperança dos indivíduos, aprende-se a
rezar. Possibilita "continuar a usufruir e a desfrutar da convivência harmônica
com Deus, com a família e consigo mesmo"(16).
Além da fé, os cuidadores relatam que o amor e a paciência são fundamentais
para que possam cuidar do idoso com Alzheimer. A doação e dedicação estão
relacionadas com o sacrifício. O sacrifício acontece quando o sujeito abdica-se
em prol do amor ao próximo sem esperar recompensa por isto(5).
O cuidador familiar opta por permanecer no sentido de presença na vida do idoso
com DA. Trata-se de ser, de estar com, independente de tudo que aconteça ou
venha acontecer. Para Marcel(13), o ser equivale a ser-com, uma comunhão. A
comunhão se constitui na relação do humano pela participação intersubjetiva;
diferente de uma sociedade, que se constitui por indivíduos ou membros, como
elementos em ficha ou peças em número. Esta convivência do cuidador familiar e
do idoso com DA se faz por meio da comunidade, no qual existe a paciência,
dedicação, compreensão e abdicação(17).
Os cuidadores relatam que os sentimentos são fundamentais para a prestação do
cuidado, mas que, também é preciso ter recursos financeiros para melhorar a
qualidade de vida tanto do cuidador quanto do idoso. Nos dados quantitativos a
maioria dos cuidadores (n=53, 25%) alegaram receber mais de seis salários
mínimos, quantia que pode ser insuficiente para a demanda de cuidado exigida
pelo idoso com DA. No estudo realizado com 30 mulheres cuidadoras familiares de
idosos com DA foi identificado que um dos fatores indicados como estressores
foi à falta de recurso financeiro para adequar as demandas de cuidados. As
cuidadoras relataram dificuldades para adequar o ambiente domiciliar ao idoso
com DA (piso antiderrapante, barras de proteção, quarto individualizado),
adquirir tecnologias assistivas (cadeira de rodas, andador, cadeiras de banho,
camas adaptadas para o cuidado) e recursos materiais de consumo (fraldas e
medicamentos)(18).
Este fato demonstra que não basta apenas sentir amor e afeição pelo idoso com
DA, para prestar cuidado adequado e com qualidade é preciso ter condições e
recursos financeiros, a fim de adequar o contexto domiciliar e adquirir as
tecnologias necessárias para o auxílio dos cuidadores e idosos. Deste modo
tanto o ser quanto o ter se fazem necessários na prestação do cuidado ao idoso.
Na filosofia de Marcel(5), é preciso ter cautela quando se refere à ordem do
ter. Para o autor, o ter encontra-se na ordem do problema, da objetividade, no
sentido de que os indivíduos atribuem às condições financeiras a solução para
seus problemas. Entretanto a preocupação pela posse, de ter mais, garantir o
futuro, acumular, gastar, absorvida no ter, esvazia o eu. De maneira que o eu,
sujeito existencial degrada-se no ter.
Entretanto, o próprio Marcel(15) revela que na ordem da dialética entre o ter e
o ser, há uma tensão constante e uma dependência recíproca. "Todo o ter
efetivamente supõe um ser, em qualquer grau que seja, algo que é imediatamente
para si, que se sente como afetado, modificado". A existência estabelece-se na
região intermediária entre o ter e o ser, da mesma forma como se mantém no
intermediário entre o eu e o mundo, o eu e a vida, o eu e o corpo. Esse
intermediário é o espaço da tensão e reciprocidade, possibilitando ao eu a
prevalência da criatividade na opção pelo ser. Nos relatos dos cuidadores
referente aos seus sentimentos, percebe-se que estes se encontram no espaço
intermediário entre o ter e o ser, ou seja, apresentam sentimentos antagônicos
e múltiplos.
A paciência, humildade, virtudes e amor são palavras que, atualmente, são
esquecidas e a verdadeira natureza é mais escurecida para os nossos olhos a
cada passo que avançamos para o mundo técnico. O homem técnico é impessoal,
preocupa-se com a lógica(5). O homem ao permanecer na concepção técnica do
mundo tende a perder-se em seus próprios desejos e medos. Para o cuidador
familiar do idoso com DA este fato é agravado pelas situações bizarras e
espontâneas advindas do portador, que podem gerar sentimentos de angústia,
aflições e perturbações(19). Este conjunto de situações pode desencadear
violência contra o idoso ou contra si próprio, sendo que estes atos violentos
são provenientes de momentos de desespero e são prosseguidos do sentimento de
culpa.
Esta ambiguidade de sentimentos pode agravar a situação de sobrecarga física,
psicológica e emocional do cuidador, como constatado na fase quantitativa deste
estudo, no qual dos 208 cuidadores, 150 (72,2%) apresentaram sobrecarga
moderada a severa. Esta sobrecarga pode culminar em doenças, principalmente as
cardiovasculares e as mentais, como observado em 49 (21,6%) cuidadores que
alegaram Hipertensão Arterial e 24 (10,6%) depressão. Deste modo, o cuidador
pode se apresentar tão doente quanto o idoso com DA.
Nesta perspectiva, os cuidadores demonstraram preocupação com a própria saúde,
pois acreditam que precisam ter cuidado consigo para poder prestar cuidado ao
outro. O cuidado consigo envolve a preocupação, conhecimento, dedicação ao
próximo e consigo mesmo. Isto porque o cuidado consigo só é possível enquanto
relação entre seres humanos, implicando, portanto, a presença do outro.
As expectativas futuras dos cuidadores oscilam entre a ordem do ter (desejar) e
do ser (esperar). Os cuidadores desejam o que não possuem como: melhorar a
condição de vida e até o que é impossível de acontecer no momento como:
obtenção da cura para a DA ou evitar a progressão da doença. O desejo deles é
que o futuro seja bom.
A maioria dos cuidadores apresentou tempo de escolaridade superior a oito anos
(n=147, 71%), o que indica ser suficiente para compreender as orientações de
cuidado e a impossibilidade de tratamento. Entretanto, o desejo dos cuidadores
frente à doença incurável, muitas vezes, pode ser um modo de enfrentamento para
a situação, uma maneira de não aceitar e não se render ao que é posto.
Os cuidadores relatam também que desejam ter fé para que possam assistir a cura
da DA. Deste modo, a fé é considerada como hipótese, é inautêntica. Este desejo
é como se houvesse um contrato com Deus. A fé é tanto mais autêntica quanto
mais incondicional for(5). Em contrapartida a esperança está relacionada a
ordem do ser e a busca de novas maneiras de viver junto. A relação entre o
cuidador familiar e o idoso com DA é baseada no cooperativismo, isto é, à
medida que a doença evolui é preciso readequar a vida cotidiana por meio da
busca de melhores condições e com apoio e cooperativismo dos familiares
envolvidos.
Os cuidadores relatam também que a felicidade é feita de momentos e que, mesmo
os ruins podem desencadear os bons. Não esperam que o futuro seja melhor, mas
que seja diferente daquilo em que se encontram. Percebe-se que eles confiam em
um ser superior e acreditam que tudo que acontece tem o seu propósito. Trata-se
da esperança.
Para ser autêntica, a esperança precisa ser sentida com tranquilidade e não com
cobiça e sentimentos de posse, como é o caso do desejo. A esperança, quando
formada no ser individual não permite o desespero e o medo. A esperança não
consiste em aceitar simplesmente uma situação que se impõe e nem se trata de um
estado de ânimo ou emoção subjetiva. Ela atua na vida como uma força secreta,
no meio da noite, envolvendo o homem, e o capacita para resistir ao desespero.
Tem a capacidade de transformar a realidade em processo criador(5).
CONCLUSÕES
O objetivo de interpretar a relação no cuidado entre cuidadores familiares e
idosos com DA, alicerçada na dialética concreta da participação segundo os
quatro preceitos de Gabriel Marcel, foi atingido, revelando-se que a relação é
misteriosa e envolve o amor, a fidelidade e a presença. Por meio do amor, o
cuidador promete fidelidade e permanece em relação presente no cuidado ao idoso
com DA.
Esta promessa de fidelidade está imbuída de imprevisibilidade, em outras
palavras, transcende as possibilidades momentâneas e do futuro. O cuidador faz
a promessa independentemente do amanhã, isso porque este está junto com o
portador no sentido de presença.
A presença constitui o ser com, atua como fonte de vida e manifesta-se na
intersubjetividade do amor. Trata-se do amor ao próximo e da disponibilidade
absoluta. Este amor cria uma permeabilidade mútua. O cuidador familiar
permanece presente no cuidado ao idoso com DA, mas com a evolução da doença,
não tem possibilidade de manter a relação de reciprocidade e comunicação
dialógica com o portador. Deste modo, a Enfermagem tem papel fundamental no
estímulo à participação dos demais familiares no processo de cuidar, de modo
que o cuidador possa desenvolver relação de intersubjetividade e permeabilidade
mútua com eles.
Os preceitos de Marcel(5,13,15)fornecem oportunidades para reorganizar as
maneiras de cuidar na Enfermagem, como, por exemplo, o trabalho em grupos de
convivência, com o intuito de promover a relação/participação do cuidador.
Neste contexto, os cuidadores têm possibilidades de trocar experiências,
adquirir novos conhecimentos e retomar a vida em sociedade. A participação
social é fundamental para que os indivíduos possam desenvolver-se em nível
pessoal e coletivo e vivenciar a esfera da relação com os homens.
O estudo contribui para a enfermagem gerontológica no sentido de ampliar as
possibilidades de explorar a dimensão existencial do cuidador, promover e
estimular o constante diálogo e abertura para o outro, com vistas a permanecer
em perpétuo estado de criatividade.
As pesquisas em Enfermagem Gerontológica que envolvem a investigação científica
associada à investigação filosófica existencialista têm possibilidades de
integrar a ordem do problema e do mistério, com enfoque na intersubjetividade e
na relação do ser consigo e com outro. Identificar os aspectos subjetivos que
envolvem o processo de cuidar entre o cuidador familiar e o idoso com DA pode
favorecer o planejamento de intervenções com vistas à melhoria na qualidade de
vida de ambos.
A limitação do estudo é que os resultados permitem avaliação local dos
cuidadores familiares de idosos com DA, no âmbito da atenção primária. Deste
modo, são necessárias novas pesquisas, com o mesmo enfoque, em outros locais no
âmbito da atenção secundária e terciária, com o intuito de viabilizar a
comparação entre as informações e ampliar as possibilidades de cuidado para o
cuidador familiar e o idoso com DA.