A família nas práticas das equipes de Saúde da Família
INTRODUÇÃO
Um dos atributos da Atenção Primária à Saúde (APS) é a centralidade da família
como foco da atenção, sendo necessário conhecê-la em sua dinâmica e assisti-la
em suas necessidades individuais e de grupo em interação(1). O contexto
familiar é o espaço primeiro de identificação e explicação do adoecimento de
seus membros e onde os fenômenos da saúde e da doença adquirem maior
relevância. O impacto da doença recai sobre todos os membros da família, assim
como a interação familiar exerce influência sobre a sua cura(2). Tais
características tornam a família uma unidade de cuidados que deve ser
compreendida pelos profissionais de saúde em suas inter-relações, ao mesmo
tempo em que é uma unidade prestadora de cuidados, podendo tornar-se parceira
dos serviços de saúde no cuidado de seus membros(3).
A Estratégia Saúde da Família (ESF) tem como proposta estabelecer uma parceria
com a família, tornando-a mais autônoma e independente, contribuindo assim para
a construção de sua cidadania(4). Implantada inicialmente como um programa
destinado a populações desassistidas, a Saúde da Família foi posteriormente
alçada à condição de estratégia para reorganização da APS no Brasil, sendo
ponto de partida para a reestruturação do sistema de saúde. Na ESF, a unidade
familiar é central. Entretanto, cabe distinguir se a apregoada centralidade na
família de fato é parte de um novo modelo de atenção ou se a atenção individual
está sendo reproduzida no espaço familiar.
Este artigo tem como objetivo analisar se a ESF constitui um novo modelo de
atenção à saúde com foco na família. Para tanto, propõe-se a analisar as
práticas de saúde direcionadas às famílias em Unidades de Saúde da Família
(USF) e domicílios na cidade de Manaus-AM.
REVISÃO DA LITERATURA
A atenção em saúde centrada na família como política de Estado não é fato
recente(5). Todavia, no Brasil, a eleição da família como alvo de atenção à
saúde teve início com o Programa Saúde da Família (PSF). O PSF foi adaptado de
experiências estrangeiras que tinham a família como foco do modelo de
assistência, sendo fortemente impulsionado pelo Programa de Agentes
Comunitários de Saúde (PACS), que à época mostrou-se inovador(6). No contexto
internacional, na década de 1990, havia um redirecionamento das políticas
sociais para as famílias(7).
A centralidade da família é um atributo da APS(1). Para prover atenção
integral, a família deve ser o objeto da atenção dos profissionais, que deverão
conhecê-la em seus múltiplos aspectos: sociais, sanitários, culturais,
econômicos, funcionais e organizacionais. Reconhece-se o contexto familiar como
o espaço primeiro de identificação e explicação do adoecimento de seus membros,
onde os fenômenos da saúde e da doença adquirem maior relevância. Tais
características tornam a família uma unidade de cuidados que deve ser
compreendida pelos profissionais de saúde em suas inter-relações. Ao mesmo
tempo, é uma unidade prestadora de cuidados, podendo tornar-se parceira dos
serviços de saúde no cuidado de seus membros.
A ESF tem como proposta estabelecer uma parceria com a família, tornando-a mais
autônoma e independente, contribuindo assim para a construção da cidadania.
Neste intento, propõe-se a trabalhar com duas perspectivas: superar o modelo de
atenção que privilegia uma visão fragmentada de indivíduo, descontextualizado
de seu ambiente familiar e comunitário, para entendê-lo de forma integral e em
seu contexto social com vistas à construção de sua autonomia, e ter a família
como parceira no cuidado da saúde de seus membros(4).
Entretanto, parte dos conflitos advindos da implantação da ESF foram gerados
pelo convívio entre as mudanças pretendidas e o modo convencional como está
organizada a assistência, o que demanda modificações nas práticas de saúde dos
profissionais(8).
MÉTODO
Esse artigo apresenta parte dos resultados de pesquisa aprovada pelo CEP da
ENSP/FIOCRUZ sob o número 0129.0.031.00007/FR n° 151.888. Tendo o município de
Manaus como cenário de implantação da ESF, a investigação explorou a
"centralidade na família" como categoria de análise derivada da concepção
original da ESF e o significado que ocupa na operacionalização no nível local,
na perspectiva de trabalhadores e famílias dessa localidade.
Em Manaus, em 2008, a ESF contava com 165 USF, distribuídas em quatro Distritos
Sanitários (DS), denominados Norte, Sul, Leste, e Oeste. A observação ocorreu
em quatro Unidades, uma em cada DS, por indicação da coordenação do DS que
utilizou os seguintes critérios: estar em funcionamento há no mínimo dois anos;
representar a média em termos de desempenho em relação às demais USF; estar com
a equipe de saúde completa, com seus integrantes há no mínimo um ano na
Estratégia.
Como estratégias de coleta de dados foram utilizadas entrevistas
semiestruturadas, grupos focais e observação participante. Cada USF foi
observada durante uma semana por meio do acompanhamento das ações desenvolvidas
pela equipe de saúde tanto nos domicílios como na própria Unidade.
Foram realizadas 56 entrevistas semiestruturadas com membros das famílias
inscritas nas USF e indicadas pelos profissionais da equipe de saúde a partir
dos seguintes critérios: estar inscrita na USF há no mínimo um ano e ter
recebido assistência de algum profissional de saúde da ESF há no mínimo 15
dias. O encerramento das entrevistas deu-se por recorrência das respostas,
segundo critérios de saturação.
Foram realizados ainda oito grupos focais, dois em cada DS, um grupo com
enfermeiros e médicos, e outro com ACS e auxiliares/técnicos de enfermagem. Os
critérios de inclusão foram: estar na ESF há no mínimo dois anos e na mesma USF
há no mínimo um ano. A seleção foi feita por meio de sorteio realizado durante
as reuniões mensais dos profissionais das USF nos DS. O número de participantes
por grupo focal foi de quatro a doze integrantes(9).
O material derivado das entrevistas e dos grupos focais foi gravado e
transcrito, gerando um acervo de dados primários que foi submetido à técnica de
análise de conteúdo na vertente temática(10). Os fragmentos dos discursos foram
identificados segundo o sujeito da pesquisa (família, ACS, enfermeiros e
médicos) e DS de vinculação.
Os dados foram organizados em torno de sete eixos temáticos, sendo aqui
analisado apenas o eixo "práticas de saúde na USF e no domicílio, direcionadas
às famílias". Esta análise foi realizada em duas dimensões: a) Implantando um
novo modelo assistencial centrado na família, que considerou como categorias
operacionais cadastramento da família, organização do prontuário da família e
registro no prontuário da família; e b) Incorporando a família como o centro do
cuidado no novo modelo assistencial, que examinou as categorias: assistência
domiciliar, atividades educativas em saúde e abordagem familiar no atendimento
na Unidade de Saúde da Família. Buscou identificar se as práticas de saúde das
equipes da ESF caracterizavam uma atenção direcionada às famílias. A pesquisa
de campo foi realizada entre dezembro de 2008 e maio de 2009.
RESULTADOS
A. Implantando um novo modelo assistencial centrado na família
Cadastramento das famílias
O ponto de partida para a implantação da Estratégia Saúde da Família é o
cadastramento das famílias, seguido do diagnóstico de saúde da comunidade e da
identificação das famílias de risco no território(11).
A observação participante mostrou que todas as USF procederam ao cadastramento
das famílias de seu território. No entanto, o diagnóstico de saúde da
comunidade e a identificação das famílias de risco não foram realizados, o que
inviabiliza uma programação com base no conhecimento das famílias e na
identificação dos problemas do território.
Não [fizemos diagnóstico], nós fizemos o cadastramento para delimitar
a área de abrangência e começamos a atender na unidade e nos
domicílios. (M-DS)
Agregam-se a esse quadro as mudanças impostas ao processo de cadastramento, por
ocasião da implantação do Gerenciamento de Informações Locais (GIL), que
acentuaram o distanciamento da família como foco da atenção.
Quando teve a reunião para ser implantado o GIL, eu falei: isto
quebra o núcleo familiar da Estratégia de Saúde da Família, porque
agora o indivíduo não vai ser visto como pertencente a uma família.
Ele é visto individualmente, ele é um número; tanto que o cadastro do
GIL não pede nada da família(M-DO).
Organização do prontuário das famílias
Relatos dos grupos focais e observação participante na USF indicaram ser regra
a fragmentação dos prontuários. A depender do grupo com maior demanda à USF, as
fichas de Assistência Médico Sanitária (AMS) são separadas, criando-se, por
exemplo, um arquivo de fichas de AMS de crianças, outro de pré-natal, e assim
sucessivamente. A explicação dada para justificar essa separação foi de
agilizar o arquivamento e o desarquivamento dessas fichas. Outra fragmentação
do prontuário ocorre com a separação da ficha A (ficha de cadastramento das
famílias) das fichas de AMS, produzindo uma desagregação do trabalho entre os
membros da equipe em relação às famílias, pois a ficha A permanece sob a guarda
do ACS.
Registro no prontuário das famílias
Dados dos grupos focais indicam que os profissionais reconhecem que as
informações sobre as condições socioeconômicas e culturais das famílias
deveriam ficar-lhes acessíveis, pois isto os ajudaria para a incorporação do
enfoque familiar. Porém, os objetivos são mais burocráticos e administrativos
do que para ter a família como foco da atenção.
[...] Sabe por que eu passei a fazer isto [juntar fichas A e AMS],
deixa eu lhe dizer, porque as fichas A nunca eram atualizadas, então
você nunca tinha como acompanhar na época das minhas 1.600 famílias
entendeu [...] eu não tinha condições de atualizar todas as 1.600 em
visita domiciliar. (E-DO)
A observação participante e a análise de prontuários permitiram constatar as
limitações da ficha A no que se refere às interações familiares. Não existe
normatização ou padronização em nível nacional e local quanto ao uso do
genograma e do ecomapa, instrumentos utilizados para o conhecimento da
estrutura e dinâmica de funcionamento das famílias. Os relatos na USF
informaram que os profissionais não utilizavam e às vezes nem conheciam tais
instrumentos, embora eles façam parte do Caderno de Atenção Básica
Envelhecimento e Saúde da Pessoa Idosa(12), material instrucional para a
prática dos profissionais na Atenção Básica (AB). Apesar da ficha A solicitar
informações sobre a participação da família em grupos comunitários, poucos
dados são registrados.
Dados advindos dos grupos focais e da observação participante mostraram ainda
que não ficam registradas na ficha A as mudanças pelas quais passam as
famílias, uma vez que a cada atualização pelo ACS, os registros anteriores são
apagados.
Nas fichas de AMS os registros sobre os antecedentes familiares que subsidiem o
estabelecimento do diagnóstico são bastante escassos. Essas fichas são
manipuladas por todos os membros das Equipes da ESF, à exceção do ACS que,
segundo relatos, não se-ria autorizado a fazer o registro de suas atividades
nessa ficha.
B. Incorporando a família como o centro do cuidado no novo modelo assistencial
A atuação dos profissionais no novo modelo está balizada, dentre outros
aspectos, pela assunção da família como foco da atenção. Desta forma busca-se
analisar como a família é considerada nas seguintes práticas de saúde
realizadas pelos profissionais das equipes da ESF: assistência domiciliar,
atividades educativas em saúde e atendimento na USF.
Assistência domiciliar
A assistência domiciliar(4) agrega a visita, a consulta e a internação
domiciliares, ainda que comumente não se faça distinção entre os termos,
generalizando-se o termo visita domiciliar para toda e qualquer ida ao
domicílio. A consulta domiciliar é atividade atribuída a enfermeiros e médicos
que também acompanham a internação domiciliar, enquanto a visita domiciliar é
atividade dos ACS.
A observação participante no domicílio e o grupo focal mostraram que a visita
domiciliar é atividade compulsória para os ACS. Fez parte das atribuições de
todos os membros das equipes da ESF por ocasião da implantação da Estratégia.
Os profissionais das equipes da ESF consideraram-na um bom recurso para o
conhecimento das famílias e ressentiram-se pelos rumos que a Estratégia tomou
no quesito assistência domiciliar. Com as mudanças instituídas no Programa,
estes profissionais foram se afastando da abordagem familiar e aproximando-se
da abordagem individual.
Em algumas situações, as visitas domiciliares foram confundidas pelos ACS com
as ações de controle da dengue e da malária, que têm como foco o espaço
domiciliar e seu entorno. Em compensação, a repetição das visitas torna o
contato rotineiro que cria vínculos, facilitando confidências e revelando a
existência de situações familiares que podem levar ao adoecimento.
Nós fazemos em média 7 a 8 visitas por dia, nós temos que fazer uma
visita mensal a cada casa, mas tem situações que nós fazemos mais de
uma visita na mesma casa, quando tem um doente, pra ver como está a
situação dele [do doente], se melhorou ou não. (ACS-DL)
Relatos dos grupos focais de médicos e enfermeiros também mostraram que a
priorização da produção estatística tem repercussões sobre a assistência
domiciliar.
Em alguns casos a gente assiste a família, agora como existe a
cobrança da produção a gente deixa de assistir a família porque a
família não dá número, repito família não dá número, não dá índice,
número pro gestor. O tempo que você gasta com a família, vamos dizer
assim entre aspas você, porque você ficou a manhã inteira no caso com
uma família você poderia ter atendido 18 pessoas no consultório.
Então é assim, em alguns casos sim, você consegue atender a família,
na maioria deles não. (E-DL)
Observou-se ainda pouco estímulo dos membros das equipes da ESF na orientação
sobre divisão de tarefas no cuidado a pacientes dependentes, assumidos por
apenas um integrante da família, mesmo em famílias numerosas. A observação
participante possibilitou ver a recorrência de oportunidades perdidas no
cuidado familiar durante a consulta domiciliar, situações em que haveria de
estender o cuidado para além do motivo da visita a um paciente, de forma a
amenizar o sofrimento e mal-estar da família, e a manter a aliança/parceria da
família no cuidado de seus membros.
Embora os profissionais das equipes da ESF tenham contato com os outros membros
da família por ocasião da visita domiciliar, as famílias referiram que a
consulta restringe-se ao doente, não sendo perguntado sobre a saúde dos outros
membros da família.
Não, não perguntam. Só perguntam pela gente [que está fazendo a
consulta]. Só pergunta do paciente que está consultando, nunca
pergunta sobre quem está em casa, quem não está doente. (F-DN)
A família não apareceu como foco da visita domiciliar de auxiliares e técnicos
de enfermagem. A fala seguinte aponta para uma abordagem sobre os indivíduos
inscritos nos programas e por ciclo de vida, e indica também atividades de
verificação de parâmetros individuais e procedimentos de enfermagem.
Bem, nós temos muitos hipertensos, diabéticos e acamados, aí tem
aqueles rebeldes, aí eu tiro uma semana pra gente visitar criança,
orientar pra pesar, ver se está magrinha, amarelinha, pra pesar e pra
marcar a consulta. As grávidas que estão com pressão alta, as
puérperas, os curativos, fazer medicação de acamados. (Aux. Enf-DN)
Atividades educativas em saúde
Ainda que os documentos oficiais(4) recomendem a realização de práticas
educativas voltadas para grupos por ciclo de vida e em situações de
vulnerabilidade, o contexto familiar é um espaço privilegiado para essas
práticas.
As práticas educativas em saúde referidas às famílias foram consideradas
difíceis de ser realizadas, tanto por médicos e enfermeiros quanto por ACS e
auxiliares ou técnicos de enfermagem, devido à falta de infraestrutura
institucional.
[...] seria ótimo, mas a gente não tem auditório, depende da gente
conseguir uma parceria com os outros bairros que tem uma escola, uma
igreja que abre espaço, [...] tem unidade de saúde que eu sei que não
tem esse espaço. Vai fazer na recepção da unidade de saúde? não tem
condições, não tem. [...] Outra coisa o próprio material de educação
em saúde é escasso, muito poucas vezes tem um folheto, um banner, um
pôster, alguma coisa assim, você não tem essa estrutura. (M-DN)
A observação de campo não identificou nenhuma prática educativa coletiva em
saúde que estabelecesse articulação com as famílias. A realização das mesmas na
USF esteve voltada para a demanda espontânea que compareceu para consulta e as
atividades educativas em saúde extramuros destinaram-se a grupos por ciclo de
vida e agravos prevalentes. Foram realizadas pelos ACS e auxiliares ou técnicos
de enfermagem na sala de espera e, como mencionado, sofreram interferência da
movimentação da clientela a ser atendida.
Abordagem familiar no atendimento na Unidade de Saúde da Família
A abordagem familiar no atendimento na USF também esteve pouco presente no
atendimento individual, tanto de enfermeiros quanto de médicos. A abordagem foi
centrada no indivíduo, com ênfase na queixa da doença atual. Nos grupos focais
com enfermeiros e médicos, foi lhes perguntado se conheciam as famílias sob
seus cuidados, e os profissionais responderam:
As famílias, todo mundo dentro da casa? Não [...] médicos e
enfermeiros não tem tantas condições de conhecerem todos os locais
porque [a área] é muito grande. Uma ACS minha tem 200 famílias, a
outra tem 147 a outra 180 a outra tem 170, mas elas têm um acesso
maior, aquela afinidade na família, elas conhecem o irmão, o pai,
beltrano, o sicrano. Se a gente fizer esse levantamento saúde da
família em equipe, dá pra gente chegar até a família através deles
que são uma ponte entre nós, uma ponte extremamente eficaz. (E-DN)
Esta fala indica a dificuldade em articular uma abordagem familiar no
atendimento individual, justificada como a necessidade de conhecer todos os
integrantes da família por núcleo familiar. Esta dificuldade parece imobilizar
os profissionais, o que foi confirmado, por exemplo, no caso de assistência a
um portador de hipertensão arterial.
Faço a consulta de enfermagem e dou orientação sobre dieta,
medicamentos, exercícios. (E-DS)
A referência de que a consulta era centrada no indivíduo prevaleceu sobre a
abordagem familiar. Houve situações em que causou bastante estranheza a
possibilidade de acolher na consulta individual outros membros da família. Foi
perguntado às famílias se, durante a consulta, eram mencionados outros membros
da família, e a pergunta causou admiração.
Não, na consulta, a gente só fala da gente. (F-DO)
Tanta surpresa denuncia que não houve incorporação da centralidade na família
pelos profissionais, o que impede que a família se veja como o centro da
atenção.
DISCUSSÃO
A. Implantando um novo modelo assistencial centrado na família
Cadastramento das famílias
O cadastramento das famílias, primeiro contato da Equipes da ESF com as
famílias dá-se por meio da visita domiciliar para o preenchimento da Ficha A.
Consiste no levantamento de informações sobre a família quanto à: situação
domiciliar, o que inclui condições de moradia, de saneamento, as condições
ambientais e os possíveis fatores de risco à saúde. Deve informar ainda sobre
composição familiar, renda, ocupação de seus membros, condições de acesso aos
sistemas de saúde e educacional, morbimortalidade referidas, riscos presentes
ou potenciais para integrantes da família ou para a dinâmica de seu
funcionamento(4).
Como não foi realizado o diagnóstico de saúde da comunidade e tampouco a
identificação das famílias de risco, a apropriação das informações sobre as
famílias de risco ocorreu no cotidiano do serviço a partir da interpretação do
papel de cada membro da família, sua relação com a rede comunitária, os fatores
de vulnerabilidade e o tempo de convivência com esta; o que não é suficiente
para gerar uma atenção qualificada, que requer reflexão, além da experiência
empírica.
Pesquisas realizadas em 2002 e 2006 corroboram esse achado indicando haver um
desconhecimento por parte das Equipes da ESF sobre o perfil epidemiológico da
população e os problemas prioritários(13). Desse modo, a delimitação da área de
abrangência e o atendimento à população prevaleceram sobre a identificação das
famílias de risco e o conhecimento sobre o território.
Organização do prontuário da famílias
A organização dos prontuários das famílias deve ser tomada como um indicador de
centralidade na família. O prontuário familiar deve reunir os registros sobre a
família e a assistência que lhe é prestada. Deve ser composto pela ficha A e
pela ficha de AMS de cada um dos integrantes da família. A proposta de
organizar os prontuários por família, reunindo todos os membros da família é
imprescindível ao princípio de integralidade.
A fragmentação dos prontuários do grupo familiar cria condições desfavoráveis
para ter uma visão abrangente da família com vistas a incorporar uma nova
prática: a família como o centro da atenção. A lógica do procedimento
individual prevaleceu sobre a da unidade familiar.
Registro no prontuário das famílias
A atualização dos dados na ficha A, sem manter os registros anteriores,
juntamente com a insuficiência de registros sobre a trajetória da família
indicam pouca valorização da ficha A pelos profissionais. Isso leva à perda da
possibilidade de reconstruir a trajetória da família numa perspectiva
longitudinal(1).
A ausência de genograma e ecomapa inviabiliza o conhecimento das dinâmicas
internas e externas da família. Os registros no prontuário devem estabelecer
relação entre os membros da família que permita identificar/estabelecer a
presença ou não de fatores familiares no adoecimento e na recuperação da saúde.
As redes sociais são recursos comunitários importantes tanto para preservação
da saúde quanto para apoio nas adversidades(14), sendo uma atribuição das
equipes da ESF aproximar as famílias desses recursos, quando constatada a
inexistência desses vínculos.
A análise das fichas de AMS mostrou que não existe cruzamento entre os
registros dos membros da família, nem mesmo nas situações em que um mesmo
agravo atinge mais de um membro da família. Nessas fichas não se tem os
registros dos ACS, que são feitos em cadernetas que só servem para a
administração. Entretanto, o ACS é quem mais mantém contato com o núcleo
familiar, conforme observado em campo.
B. Incorporando a família como o centro do cuidado no novo modelo assistencial
Assistência domiciliar
Na ESF, a assistência domiciliar é um instrumento tanto de coleta de
informações sobre o contexto familiar, como de repasse de informações das
equipes para as famílias. O objetivo da visita domiciliar no PSF é possibilitar
aos membros das equipes conhecer as condições de vida e saúde das famílias, de
forma a facilitar o planejamento das ações, pois permite avaliar as
potencialidades da família(15). (explicação do autor para correção no texto:
Pode haver uma confusão entre ESF (Estratégia Saúde da Família) e ESF (Equipes
de Saúde da Família). O primeiro ESF representa a Estratégia. Os outros, as
Equipes)
As mudanças processadas na ESF geraram ênfase do serviço sobre a produção, que
se mostrou um entrave para a abordagem familiar integral. A despeito de suas
potencialidades, ainda se tira pouco proveito da ida ao domicílio, o que pode
ser atribuído às limitações estruturais que a USF apresenta e à consciência que
o profissional tem da complexidade dos problemas no território perante o qual
se vê impotente em lidar de maneira densa, aprofundada. Assim, opta por ações
pontuais e individuais na solução de questões conjunturais. Tal situação
evidencia a necessidade de ampliação das equipes da ESF com a inclusão de
outros profissionais, com formação diferente, tema recorrente na fala dos
integrantes das equipes.
A análise dos dados sobre a visita domiciliar mostrou, nas práticas dos
profissionais, ausência da concepção "família/família" e, em seu lugar, a
concepção de "família indivíduo/domicílio"(16); a pouca atenção dos
profissionais frente aos conflitos familiares gerados pela sobrecarga de uns
poucos membros no cuidado com os familiares doentes, o que justificaria uma
reunião com a família para estimular o diálogo com vistas a amenizar conflitos
(17); e a falta de ampliação do olhar sobre os demais membros da família,
exigindo ver a família não apenas como uma unidade prestadora de cuidados, mas
também, como uma unidade a ser cuidada. "É preciso cuidar de quem cuida"(3).
Segundo Ribeiro(16), a "visita à família" tem como premissa assisti-la com base
no conhecimento de sua funcionalidade, "de seu ser e viver". É preciso tomá-la
como uma unidade, em sua totalidade, em oposição à soma de seus integrantes
antes, durante e após situações de crise, independentemente de situações de
risco ou vulnerabilidade social.
Atividades educativas em saúde
A finalidade das ações educativas é produzir mudanças de comportamento que
favoreçam a aquisição e a manutenção da saúde, na perspectiva da promoção da
saúde; e quando a família é o alvo das ações educativas em saúde, as mudanças
pretendidas são mais facilmente incorporadas.
A análise dos dados da observação participante indica que as atividades
educativas em saúde seguiram um enfoque tradicional, unidirecional, voltado
para as patologias e suas complicações. Mostrou que, de todas essas
oportunidades, a que mais possibilita uma ação para a família é a atividade
realizada no domicilio e, secundariamente, no consultório por razões bastante
práticas, pela oportunidade de contar com um maior número de integrantes da
família, a privacidade, a flexibilidade de tempo e a imersão na realidade
cotidiana e contextual da família.
Abordagem familiar no atendimento na Unidade de Saúde da Família
A análise do atendimento na USF mostrou que mesmo nas patologias em que há
predisposição familiar, a abordagem permaneceu centrada no indivíduo, o que
corrobora a observação participante realizada nas consultas de enfermagem e
médica, nas quais se notou que as orientações higiênico-dietéticas tinham
recorrentemente como foco o indivíduo doente, excluindo-se a família do
contexto da prevenção.
A investigação dos antecedentes familiares mostrou ser um instrumento valioso
para estabelecer os nexos causais, mas não necessariamente um instrumento de
intervenção, tanto no campo da prevenção como do tratamento. O enfoque familiar
foi pouco incorporado na abordagem individual, além do diagnóstico. A análise
dos prontuários também indicou poucos registros dessa natureza.
Apesar de algumas consultas terem sido desencadeadas por patologias que
envolviam aspectos como predisposição familiar, estilo de vida e
hereditariedade, a participação e a interação familiar não foram consideradas.
Agrega-se a isso o fato da abordagem ser focada no indivíduo e a família
concebida apenas como parceira dos serviços de saúde no cuidado de seus
membros.
Ao analisar o trabalho com famílias no PSF, Oliveira e Marcon(18) também
concluem que práticas de saúde como a visita domiciliar, a educação em saúde e
a coleta de dados privilegiam o indivíduo em detrimento da família e não
estimulam a família para a construção de sua autonomia.
A ESF mostrou-se uma prática tradicional, centrada no indivíduo, em detrimento
da família, cujo eixo de atuação tem sido os programas de assistência à saúde
preconizados pelo Ministério da Saúde, focados no ciclo de vida e nos agravos
mais prevalentes na população brasileira.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A perspectiva de análise assumida nesse artigo foi examinar se a ESF se
configura como um novo modelo de atenção à saúde em Manaus com foco na família.
O exame da dimensão Implantando um novo modelo assistencial centrado na família
e suas categorias operacionais, cadastramento das famílias, organização do
prontuário das famílias e registro nos prontuários sobre as famílias, indica
que a implantação de um novo modelo de atenção com base nas práticas de saúde
que privilegie a família ainda não ocorreu. Evidência disso é o fato de que o
cadastramento das famílias teve como finalidade apenas a delimitação da área de
abrangência, sem a intenção de conhecer as famílias em sua singularidade e sem
identificar aquelas em situação de risco. Tampouco buscou realizar o
diagnóstico de saúde da comunidade que implica não apenas a coleta, mas também,
a interpretação dos dados levantados. Os registros sobre a família mostraram-se
fragmentados e insuficientes para descrever o universo familiar, valorizando
pouco as redes sociais da família.
Na segunda dimensão de análise, Incorporando o novo modelo assistencial, a
família como foco do cuidado e suas respectivas categorias operacionais,
assistência domiciliar, práticas educativas em saúde e abordagem familiar no
atendimento na USF e no domicilio, conclui-se que a proposta do novo modelo
assistencial não foi incorporada às práticas dos profissionais das equipes da
ESF. A assistência domiciliar manteve-se com foco no indivíduo. As práticas
educativas em saúde privilegiaram os indivíduos por ciclo de vida e enfocaram
agravos prevalentes tanto no interior da USF quanto em outros espaços. Nos
atendimentos realizados na USF e no domicílio, a abordagem mostrou-se centrada
nos indivíduos, causando surpresa às famílias quanto à possibilidade de serem
protagonistas na perspectiva de uma abordagem familiar.
Sem uma clara definição de como as novas ações irão se inserir na dinâmica
assistencial, mantêm-se hegemônicos o enfoque individual e a tônica em
procedimentos e prescrições. Além disso, as informações socioeconômicas
produzidas no território - comunidade, família e pessoas - não são agregadas ao
processo de trabalho para a tomada de decisão clínico-assistencial, como mostra
o estudo. O excesso de demanda também influencia negativamente a adesão a novas
práticas de saúde(8).
Uma prática de saúde voltada para a família ocorre quando o profissional
reconhece e respeita sua singularidade, procura fortalecê-la para o cuidado com
seus membros, pondera com a família suas condições concretas de sobrevivência,
põe em diálogo o cuidado familiar e o cuidado profissional, compartilhando
saberes, subsidia e encoraja os recursos internos e externos da família. O
profissional atua no cuidado à família quando luta pelos direitos da família
nos serviços de saúde, estimula as famílias à participação comunitária,
estimula a flexibilidade das relações interpessoais entre as famílias e os
serviços de saúde e toma parte na formulação e operacionalização de políticas e
programas que contribuam para a saúde e o bem estar das famílias(19).
Vale observar que as questões levantadas nesse artigo não caracterizam somente
a situação de Manaus. Em âmbito nacional, o que se observa é que a mudança no
desenho da atenção não garantiu novas práticas de saúde com foco na família
(20). Emblemático nesse caso é o processo de cadastramento familiar que
"equaciona uma casa a uma família" e o impresso do Sistema de Informação da
Atenção Básica (SIAB) que não contempla as relações de parentesco daqueles que
residem no mesmo domicílio, ficando para os profissionais das equipes da ESF a
tarefa dessa identificação com base no convívio diário.
Conclui-se que as práticas dos profissionais dirigidas às famílias ainda estão
distantes de uma prática avançada de assistir a família. Os depoimentos mostram
que as ações são realizadas sem pensar na família, isto é, a incorporação da
família na prática dos profissionais ainda é incipiente.
Por outro lado, há que se considerar que, em sua gênese, a ESF em Manaus não
teve a intenção de transformar o modelo assistencial, tendo como um de seus
qualificadores o foco na família, mas sim de estender a cobertura de atenção à
saúde(12). Portanto, as práticas de saúde dos profissionais reproduziram esse
propósito, ainda que possa ter havido um desejo por parte das equipes da ESF de
enfocar a família.