Relacionamento interorganizacional na integração ensino-serviço de enfermagem
na atenção primária à saúde
INTRODUÇÃO
A integração ensino-serviço é um dos eixos norteadores do Programa Nacional de
Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde) do Ministério da
Saúde(1). Pressupõe a construção de práticas pedagógicas em saúde, considerando
os estudantes como sujeitos de sua própria formação, e objetiva a transformação
das práticas profissionais e da própria organização do trabalho.
O Curso de Graduação em Enfermagem (CGE) da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC) foi contemplado com o Projeto Pró-Saúde I, em parceria com a
Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis (SMSF). O principal objetivo do
Pró-Saúde I consiste em promover a articulação entre as instituições de ensino
superior e as de prestação de serviço público, para potencializar respostas às
necessidades de formação de recursos humanos, produção do conhecimento e
prestação de serviços no Sistema Único de Saúde (SUS)(1).
Para a execução do Pró-Saúde foi necessária intensa cooperação entre a SMSF e o
CGE/UFSC, em três âmbitos de interação: no nível estratégico - entre
coordenadores e dirigentes da UFSC e da SMSF; em um nível de articulação -
entre professores e profissionais de saúde envolvidos com a gestão de recursos
e coordenação dos centros de saúde; e, por fim, em um nível operacional - por
meio da interação entre os enfermeiros que atuam efetivamente no dia a dia da
assistência e os docentes integrantes das disciplinas que realizam as
atividades práticas e estágios.
Na última década, a literatura sobre Estudos Organizacionais tem discutido o
fenômeno das relações interorganizacionais(2). No contexto nacional, foram
estudadas relações de cooperação e confiança entre instituições de uma rede
privada de serviços(3); os processos de comunicação entre organizações(4) e de
cooperação entre instituições de pesquisa do setor público(5-6).
As relações de cooperação interorganizacional também são abordadas na
literatura relacionada à pesquisa em saúde. Estudo bibliográfico(7) identificou
110 artigos cuja temática eram as parcerias entre serviços de saúde e
instituições de ensino e pesquisa em enfermagem. No entanto, tais estudos ainda
apresentam caráter pouco aprofundado e diversos deles mencionam os resultados
alcançados com as parcerias, sem explicitar os critérios formais adotados para
tais avaliações(7).
No contexto da saúde pública, discute-se a relevância das parcerias
multisetoriais para o desenvolvimento da saúde das populações para promoção da
saúde(8). Na Enfermagem, a cooperação interorganizacional vem sendo estudada
principalmente no âmbito da formação no ensino superior(9-11).
O presente artigo retrata o terceiro momento de uma pesquisa sobre a integração
ensino-serviço e aborda as fases de relacionamento interorganizacional no
âmbito da atenção primária à saúde. Está inserido em um contexto processual de
aprendizagem da profissão, em cooperação com os serviços públicos de saúde, e
alinha-se aos estudos que enfocam as parcerias que sustentam tais atividades.
A perspectiva de análise empregada vincula-se ao referencial teórico das
relações interorganizacionais(12), no qual as relações de cooperação são
compreendidas a partir do processo de construção de sentidos e na dinâmica das
fases dos relacionamentos: negociação, comprometimento e execução de
atividades. A relevância das relações de cooperação decorre não apenas de
aspectos estruturais, mas também processuais (ações e atividades técnicas e
administrativas), que determinam as condições do relacionamento entre as
organizações parceiras. Ademais, o processo de desenvolvimento da cooperação
interorganizacional é compreendido de forma cíclica, simultânea em alguns
casos, e com etapas reincidentes. O caráter cíclico não se deve à estabilidade
alcançada no relacionamento, mas à manutenção de equilíbrio entre processos
formais e informais de interação.
A dimensão conceitual da fase de negociação(12) é caracterizada pela existência
de processos formais (registrados de forma documental) e informais
(comunicações verbais) de interação que constroem a compreensão que cada
parceiro passa a ter para sua contraparte. Nessa fase, os participantes da
relação vivenciam incertezas e apresentam expectativas associadas à parceria, a
natureza do papel de cada um, à confiabilidade no parceiro, aos direitos e os
deveres a serem considerados na transação e à possível eficiência e equidade da
transação. O processo de barganha e a construção do sentido da interação
ocorrem por meio da comunicação. A superação das incertezas, a confiabilidade,
os direitos e os deveres, bem como a eficiência e a equidade decorrem da
percepção dos negociadores.
Na fase de comprometimento(12) ocorre o ajustamento das vontades das partes,
com acordos sobre as obrigações e as regras das ações futuras no
relacionamento. Os termos e a estrutura de governança são estabelecidos, seja
por meio de processos formais, na modalidade de contratos relacionais, ou
informais, caracterizados por acordos psicológicos. Por acordos psicológicos
entende-se a definição das expectativas das partes a respeito do que cada um
irá dar e receber no relacionamento.
A execução(12) é a etapa em que os comprometimentos e as regras são levados a
efeito. Inicialmente, os comportamentos baseados em designações formais reduzem
a incerteza. Quando comprometimentos são executados, a previsibilidade do
relacionamento aumenta, o que caracteriza a adoção de processos formais. A
partir de uma série de interações, as pessoas envolvidas tornam-se mais
conhecidas umas das outras e podem se basear de forma crescente em processos
informais, por meio de relacionamentos interpessoais, em vez de relacionamentos
baseados em papéis formais. Na prática, a execução será identificada por meio
de atividades decorrentes das designações formais dos acordos definidos entre
as partes da aliança (contratos, atas de reuniões, cronogramas), bem como de
entrevistas para identificar as interações dos indivíduos, as atividades
realizadas e a existência de conflitos do cotidiano.
Diante do exposto, a presente investigação foi orientada pela seguinte pergunta
de pesquisa: Considerando as diretrizes do Projeto Pró-Saúde - Enfermagem e o
referencial das relações interorganizacionais, como se caracteriza o
relacionamento das instituições envolvidas na integração ensino-serviço na
atenção primária à saúde? Seu objetivo é caracterizar as fases de
relacionamento interorganizacional da integração ensino-serviço no âmbito
operacional da atenção primária à saúde em um município catarinense.
MÉTODO
Trata-se de um estudo de caso único, de abordagem qualitativa, em que a
cooperação entre duas organizações foi estudada em profundidade. A pesquisa foi
realizada no município de Florianópolis, Santa Catarina, junto a docentes do
Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina
(CGE/UFSC), envolvidos em atividades teórico-práticas, e enfermeiros da
Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis (SMSF), lotados em Centros de
Saúde (CS) onde se desenvolve o projeto Pró-Saúde.
A seleção das organizações foi do tipo intencional, em busca da compreensão de
um fenômeno particular, não corriqueiro - a relação de cooperação entre duas
instituições. Participaram da pesquisa profissionais enfermeiros, docentes e
assistenciais, que atuam de forma direta no ensino e na assistência das duas
instituições.
No CGE/UFSC, os critérios de inclusão foram: docentes efetivos e substitutos
que atuavam ou haviam atuado desde o início da execução do projeto em março de
2007 nos CS em atividades de docência com alunos de graduação de enfermagem.
Foram excluídos os professores admitidos há menos de seis meses do período da
entrevista. Na SMSF, os critérios de inclusão foram: enfermeiros e
coordenadores dos CS que realizavam atividades de ensino com estudantes de
enfermagem desde a implantação do projeto. Foram excluídos os enfermeiros sem
envolvimento direto com os estudantes de enfermagem e aqueles contratados há
menos de seis meses do período da entrevista.
A coleta de dados foi efetuada pelos autores do projeto e por bolsistas
devidamente capacitados, sendo entrevistados em cada CS um docente e um
enfermeiro, após autorização e consentimento. Os CS foram escolhidos entre
aqueles que iniciaram atividades docentes desde 2007. Os oito selecionados
correspondem a 50% das unidades onde atuavam ou já haviam atuado acadêmicos de
enfermagem, distribuídos pelos cinco distritos do município de Florianópolis:
Norte, Leste, Sul, Centro e Continente. O instrumento para coleta de dados foi
um formulário com perguntas aplicadas por meio de entrevista semiestruturada
agendada com antecedência e duração média de 30 minutos.
Os dados foram submetidos análise de conteúdo. Foram adotados indicadores
qualitativos na análise de conteúdo, com a técnica de categorização(13). O
software NVivo 8.0® foi usado para dar suporte à organização e à análise dos
dados. Os dados foram interpretados sob a perspectiva das fases de
relacionamento na interação interorganizacional, conforme o referencial adotado
(12).
Este estudo está vinculado ao macroprojeto "Caracterização das fases do
relacionamento e formas de controle da cooperação entre o CGE/UFSC e SMSF no
projeto Pró-Saúde I - Enfermagem", financiado pelo Pró-Saúde I - carta acordo
UFSC/MS/OPAS. Foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC
n. 2186/11. Os entrevistados concordaram em participar da pesquisa após a
leitura e a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
RESULTADOS
No referencial adotado(12), a divisão do histórico de um relacionamento
interorganizacional, em fases distintas é um modo de facilitar a compreensão
dos processos envolvidos no fenômeno. Esse passa por uma desconstrução
analítica para facilitar sua compreensão em termos de etapas, conteúdo,
conflitos, comportamentos e percepções dos atores envolvidos.
Negociação, comprometimento e execução de atividades de ensino em cenário de
prática
A análise do relacionamento entre as duas organizações permitiu identificar
elementos das fases da interação e a variabilidade de seu conteúdo ao longo do
tempo. Na sequência são identificadas situações associadas às características
das fases de relacionamento interorganizacional(12). Acrescenta-se ao processo
analógico a identificação de um esquema gráfico (Quadro_1) de como os relatos
possibilitam a identificação do histórico sequencial das etapas do
relacionamento.
Quadro 1 Fases do relacionamento interorganizacional entre o Curso de Graduação
em Enfermagem e o Departamento de Ensino da Secretaria de Saúde, Pró-Saúde
Enfermagem. Florianópolis-SC, 2007-2012
Antes do início das atividades semestrais Início e decorrer das atividades de estágio e atividades práticas no semestre
Relacionamento interorganizacional Fase de Conteúdo Fase de relacionamento Conteúdo
relacionamento
Avaliação de resultados;
* Nível de Articulação (NA) (Comit?Negociação (N0) Definição de novos locais de estágio;
Gestor) (inicial) Planejamento do semestre;
Designação de enfermeiro para supervisão
Apresentação do Centro de Saúde aos alunos;
Realização de oficinas com alunos:
Contato formal do docente da disciplina com os 1ª fase**: colher informações sobre o território;
coordenadores locais dos Centros de Saúde; 2ª fase: atividades básicas em saúde;
5ª fase: atividades em saúde da mulher e da criança;
Negociação1 (N1) Execução1 (E1) 6ª fase: atendimento integral na atenção primária
Contatos prévios e realização de reuniões; 7ª fase: gestão/gerenciamento e estágio supervisionado
Nível Operacional (NO) (Centros de Apresentação das atividades a serem 8ª fase: estágio supervisionado e Trabalho de Conclusão de Curso
Saúde) desenvolvidas;
Participação dos alunos em reuniões de equipe e de grupos terapêuticos;
Apresentação dos professores. Inversão de papéis entre docentes e
enfermeiros.
Comprometimento1 Reuniões com apresentação e confirmação de Negociação2 (N2) Renegociação de atividades; Renegociação de cronogramas (por demanda do
(C1) cronogramas. Centro de Saúde ou do Curso).
Confirmação informal de novas atividades e novos cronogramas, com a
Comprometimento 2 (C2) finalização das atividades do semestre nos CS (apresentação de resultados;
relatórios; confraternizações; feedback).
*Apesar de não constituir o foco deste estudo, o Nível de Articulação (NA)
integra o objeto mais amplo da pesquisa e foi citado pelos entrevistados.
**O CGE/UFSC denomina "fases" os semestres letivos nos quais o aluno está
inserido.
A negociação no nível de articulação (Comitê Gestor): NA-N0
Alguns docentes mencionaram reuniões do Comitê Gestor de Atenção Básica,
formado pelos dirigentes do CGE e do Departamento de Ensino da SMSF, que se
reúne mensalmente e tem poder de decisão sobre a escolha de CS e de
orientadores, discussão de eventuais problemas e conflitos na relação (fase
identificável no Quadro_1: NA-N0). Também fizeram referência à realização
semestral de um fórum ampliado de integração ensino-serviço, com participação
de enfermeiras e docentes. Portanto, antes da interação no nível operacional,
há outras esferas de interação e articulação do processo de negociação.
Ocorrem normalmente atividades como a reunião dos docentes envolvidos
com atividades teóricas e práticas nas unidades de saúde com as
enfermeiras dessas unidades de saúde municipais. Ela acontece no
período entre um e outro semestre ou logo na primeira semana do
semestre e tem como objetivo retomar a avaliação do que nós vivemos
no semestre anterior e o planejamento inicial do próximo. (D6)
A negociação no nível operacional (Centros de Saúde): NO-N1
No nível operacional, objeto desta análise, o contato primeiramente é
formalizado pelo coordenador da disciplina para os coordenadores dos CS,
informando o início das atividades práticas e dos estágios, os professores
responsáveis e o número de alunos. Após essa comunicação, os docentes que irão
atuar diretamente na unidade buscam acordos com os enfermeiros para iniciar as
atividades. Este contato é feito por meio de comunicados eletrônicos, ligações
telefônicas ou reuniões presenciais.
Os docentes relatam que normalmente é realizada uma reunião presencial no CS,
em que há uma conversa inicial entre os parceiros e exposição do que será
desenvolvido no semestre, buscando conciliar as atividades de ensino com as de
assistência, tais como consultas de enfermagem e atividades educativas. Mas
também reconhecem que nem sempre isto ocorre.
Uma entrevistada relatou que em um determinado semestre não foram realizados
esses contatos iniciais e as tratativas sobre o assunto ocorreram apenas por
meio de comunicação eletrônica, o que teria acarretado um transtorno no
decorrer do semestre:
[...] a gente viu que estava tendo muito contratempo, porque faltou
realmente sentar e negociar. Então no semestre seguinte antes de
iniciar, foi feito uma reunião com o enfermeiro coordenador da
unidade e foram discutidas como seriam as atividades. (D1)
Outra mencionou o comprometimento das disciplinas em encaminhar os novos
professores substitutos para o CS antes do início das atividades dos alunos.
Se há algum professor facilitador novo, a gente faz o possível para
que ele vá antes, pelo menos umas duas a três semanas, sem os alunos,
para conhecer o campo, se familiarizar com a rotina, para que possa
se integrar e não chegar tão verde quanto chegam os alunos naquela
unidade. (D3)
Relatos semelhantes foram observados entre os enfermeiros dos CS, que também
informaram que os contatos prévios ocorrem por e-mail ou telefone e uma reunião
é agendada no CS.
O compromisso no nível operacional (Centros de Saúde): NO-C1
Segundo os enfermeiros e docentes, nas reuniões preliminares que ocorrem nos
CS, discutem-se quais atividades irão ocorrer, segundo o cronograma geralmente
preestabelecido, de acordo com cada disciplina.
A execução no nível operacional e seus desdobramentos em novas negociações e
novos compromissos no relacionamento ensino-serviço: NO E1
No início da execução das atividades, há esforços tanto dos docentes quanto dos
enfermeiros para que a equipe local conheça os alunos.
Quando se entra com os alunos, a primeira semana é para eles
reconhecerem a unidade, conversarem com os profissionais, conversarem
com os usuários. Se naquela semana tem alguma reunião de equipe, a
gente já se apresenta. E fazíamos sempre uma reunião, uma oficina com
os agentes comunitários de saúde, não só para apresentar os alunos,
como também colher informações sobre o território. (D3)
As apresentações formais aumentam as possibilidades de integração dos alunos,
abrindo caminho para relações interpessoais informais e possibilitando a
execução de atividades junto aos usuários(2,12).
Sobre as atividades realizadas pelos acadêmicos, os docentes mencionaram que
são desenvolvidas de acordo com as disciplinas que estão cursando. Na
disciplina do primeiro semestre, o aluno vai ao CS para conhecer a comunidade e
realizar o processo de territorialização; no segundo, são desenvolvidos
projetos de educação em saúde. No quinto semestre, os acadêmicos realizam
atividades voltadas para a saúde da mulher e da criança. Ao longo do sexto
semestre, atuam em saúde mental voltada para a comunidade e desenvolvem as
atribuições que competem ao enfermeiro da atenção primária, com exceção da
atividade de gestão, que é abordada apenas no sétimo semestre. Também é comum
no oitavo semestre os estudantes realizarem o trabalho de conclusão de curso no
CS.
As respostas de grande parte dos docentes estavam de acordo com as disciplinas
em que atuavam. Já os enfermeiros, como recebem alunos das diferentes
disciplinas, responderam de forma mais abrangente:
Acho que tudo! Vamos dizer assim, na 1ª fase, 2ª fase, vão usar mais
os agentes comunitários para conhecer como é o território. [...] Na
6ª fase, [fazem] praticamente tudo que o enfermeiro faz, desde
consulta de puericultura, consulta à gestante, consultas de urgência
no acolhimento. (E6)
Nos relatos tanto de docentes como de enfermeiros constatou-se que é frequente
a participação dos alunos nas reuniões do Conselho Local de Saúde, nas reuniões
de equipe da ESF e nas reuniões gerais do CS. Participam também de reuniões
educativas com usuários. Um enfermeiro mencionou a contribuição dos alunos
quando se inserem nos grupos de educação em saúde:
A gente tem o grupo de diabetes que já existe há vários anos e chega
uma hora que a gente pensa: "O que eu vou falar nesse grupo?". Quando
vêm os alunos, eles são criativos, trazem coisas diferentes. É bom
para os pacientes, é uma experiência para eles e uma renovação para a
gente. (E3)
Sobre a forma de trabalhar em conjunto, os enfermeiros relataram que nas
atividades práticas das disciplinas os docentes assumem com os alunos as
atividades dos enfermeiros. Em outras ocasiões, os alunos acompanham o trabalho
dos enfermeiros, por exemplo, nas consultas de enfermagem. Nos estágios
supervisionados, que ocorrem nos semestres finais do curso, os enfermeiros, na
condição de supervisores diretos, organizam-se para proporcionar maior
experiência aos alunos.
A gente procura fazer um rodízio entre os enfermeiros para que eles
[os alunos da 8ª fase] vejam várias condutas diferentes trabalhando
em conjunto, porque isso é muito importante. Ninguém pensa igual,
cada um tem o seu jeitinho ou alguma coisinha diferente que coloca em
seu trabalho. (E4)
As renegociações durante a execução das atividades: E1 N2
Na fase de execução das atividades práticas e dos estágios, o cronograma pré-
estabelecido exige novas negociações e novos compromissos nas decisões que são
tomadas para o desenvolvimento da parceria de docentes, alunos e equipe local.
Estas renegociações ocorrem com mais intensidade nas disciplinas em que os
alunos têm maior tempo de permanência dentro do CS.
A 6ª fase, que é uma fase em que se está aqui o semestre inteiro, a
gente fica negociando e renegociando o tempo todo, conforme as
possibilidades dos alunos, do campo, as coisas novas que surgem.
Quando são atividades mais pontuais, como na 1ª e a 2ª, não muda
muito, você negocia no momento inicial e aquilo que foi negociado
permanece! (E1)
As razões para essas negociações constantes, segundo os docentes, são
necessidades manifestadas pela equipe local, como, por exemplo, a necessidade
de suprir a ausência de um profissional ou realizar busca ativa para um
aprendizado específico. Os enfermeiros corroboram tal afirmação, alegando que,
pelas características da atenção primária, a demanda de usuários é
imprevisível.
Dada a forma como são realizadas as novas negociações, tanto docentes como
enfermeiros concordam que tais processos ocorrem continuamente ao longo do
semestre, em contatos informais e, em alguns casos, com maior formalidade, por
meio de reuniões.
Os novos compromissos durante a execução das atividades: E1 C2
A finalização das atividades do semestre é bastante diversificada, depende das
disciplinas e do tempo compartilhado pelas equipes nos CS. Quando o
envolvimento é grande, é usual haver uma reunião em que os alunos mostram as
atividades realizadas ao longo de semestre, seguida de uma confraternização.
Geralmente é uma reunião seguida de uma confraternização. Primeiro
eles mostram o que foi alcançado e depois encerram com uma
confraternização. (D1)
Além disso, também há uma preocupação para a manutenção das relações,
procurando-se manter relações cordiais, conforme relata uma docente:
Eu e a professora substituta sempre deixamos uma mensagem de Natal e
final de ano [...] eu passo lá pra desejar um Feliz Natal. (D5)
Houve discrepância sobre a afirmação de alguns docentes acerca da entrega de
relatório escrito para o CS e a afirmação dos enfermeiros de que conhecem
apenas o relato oral dos alunos. Percebe-se que a finalização, mesmo bastante
diversa, com reuniões ou confraternizações, coincide com a preocupação e as
tratativas sobre o retorno no semestre seguinte, servindo como processo de
avaliação do semestre que se encerra e o planejamento e discussão das
atividades do semestre subsequente, renovando-se o ciclo da relação
interorganizacional.
Constatou-se interferência do nível de articulação existente entre o Comitê
Gestor de Atenção Básica, constituído pelo Departamento de Ensino da SMSF e a
Coordenação CGE, que se reúne com a presença de coordenadores das disciplinas
que atuam nos CS, em uma fase prévia à interação com os enfermeiros envolvidos
no nível operacional. As interferências estão no âmbito dos cenários da
prática, como, por exemplo, na escolha de supervisoras locais, campos de
estágio e número de estudantes por local.
DISCUSSÃO
No primeiro momento de interação, em que o docente vai até a unidade conversar
e negociar com o coordenador e os enfermeiros do CS, ocorrem discussões prévias
do relacionamento, conhece-se o parceiro e determina-se a importância de um
para o outro. Nesse momento há a construção da percepção sobre a confiabilidade
e a eficiência do parceiro. Existe um contato inicial antes da chegada dos
acadêmicos na unidade de saúde, com discussão prévia do relacionamento,
negociação de atividades e acordos, como o estabelecimento e a submissão ao CS
do cronograma definido pelos docentes.
Na fase de negociação da relação interorganizacional(12), há definição dos
papéis de cada parte e entram em jogo as diferentes expectativas: no caso de
docentes e alunos, quanto ao processo de ensino e aprendizagem e, da parte dos
enfermeiros, quanto ao processo de cuidar e à organização dos serviços, ou
seja, como as atividades de estágio irão impactar suas tarefas cotidianas. As
falhas ou a inexistência dessa etapa preliminar repercutem tanto no processo de
ensinar e aprender quanto no desenvolvimento das atividades no CS e, por
consequência, no aproveitamento da parceria.
A fase de negociação resulta em comprometimento entre as partes, expresso
objetivamente por meio do resultado do cronograma. Os relatos, no entanto,
indicam que o cronograma geralmente é apenas informado aos enfermeiros
assistenciais, tendo sido negociado em reuniões ocorridas no outros níveis de
interação, ou seja, dentro das disciplinas na universidade, com comunicação ao
Departamento de Ensino da SMSF. Ainda que seja repassado pelos docentes, o
cronograma instituído, mesmo sem a negociação com os profissionais do CS,
constitui um acordo e resulta na criação de expectativas de ambas as partes de
que as atividades seguirão tais definições.
Um estudo sobre a relação entre uma instituição de ensino e a rede pública de
saúde na formação em Medicina revelou que há maior interferência da
universidade sobre instituição de saúde do que o contrário. Além disso,
gestores e trabalhadores dos serviços não participam da discussão do currículo
ou dos conteúdos das disciplinas e pouco da construção das metodologias(14).
Um dos fenômenos identificados foi a troca de papéis entre docentes e
profissionais de saúde, uma oportunidade de entendimento da cultura e do
contexto entre as partes na relação interorganizacional, proporcionando um
sentido comum na parceria(2).
O estágio supervisionado é destacado como uma experiência importante na
articulação ensino-serviço, pois permite a criação de vínculos com a população
e o desenvolvimento mais contínuo das atividades, fortalecendo a autonomia dos
estudantes(9). O processo de supervisão dos estudantes por enfermeiras dos
serviços abre um caminho mais profícuo na integração ensino-serviço, criando
oportunidades para que tenham papel ativo e colaborando diretamente para a
formação. Está de acordo com o que a literatura sugere em outras áreas da
saúde, no sentido de estabelecer uma articulação mais estreita de modo a tornar
o usuário e a saúde da população os verdadeiros focos da atenção de docentes,
alunos e equipe, não somente o ensino(15-16).
Nas disciplinas que mantêm os alunos mais tempo dentro dos CS, os processos
formais de apresentação e execução do cronograma de ensino vão sendo
substituídos por processos informais e dinâmicos, à medida que docentes e
alunos vão se tornando mais conhecidos da equipe e dos usuários e os papéis de
quem faz o ensino e o cuidado vão se mesclando. As incertezas presentes no
início da parceria tendem a diminuir quando os mesmos docentes retornam a cada
semestre e encontram a mesma equipe na unidade de saúde.
Estudo que investigou a interação entre organizações portuguesas de serviços de
saúde e as de ensino superior na área da Enfermagem(10) concluiu que a
cooperação assenta-se não somente em relações formais e informais, mas também
em valores simbólicos e ideológicos ligados à profissão, além de relações de
confiança e amizade que condicionam seu funcionamento.
Nos relacionamentos interorganizacionais, a plena conexão entre os parceiros
faz-se de forma progressiva, ocorrendo apenas após determinado tempo de
relacionamento entre os interessados(3). Com a consolidação das relações,
amplia-se também o nível de compreensão e confiança, assim como a comunicação
informal, tornando mais simples lidar com as incertezas que aparecem ao longo
da aliança(2-3,7). Ao contrário, a substituição de docentes ou membros das
equipes dos CS constitui um fator restritivo ao processo de interação e forte
potencial para o aumento de incertezas, quebra de confiança e ocorrência de
conflitos.
Em síntese, no nível operacional é possível constatar que a ocorrência de
reuniões preliminares ao início das atividades demonstra o processo de
negociação e comprometimento, resultando usualmente em cronogramas de trabalho.
Na prática, as fases podem ocorrer simultaneamente e sua ausência pode estar
associada à necessidade de novas negociações ou ao surgimento de eventuais
conflitos. Assim, durante o período em que ocorrem as atividades com os alunos,
há recorrência de novos processos de negociação de atividades e cronogramas,
bem como de novas repactuações de compromissos.
Corroborando os resultados do estudo que tratou da caracterização da formação
dos profissionais de saúde na atenção primária(17), identificam-se
potencialidades e desafios na parceria entre a universidade e a secretaria de
saúde, especialmente com relação a uma formação voltada para a implementação
dos princípios do SUS e a troca de experiências de caráter multiprofissional e
interdisciplinar. Além disso, outro estudo(9) enfatiza que há reconhecimento
pelos profissionais de serviço da possibilidade de renovação de conhecimentos
e, em consequência, das práticas, quando há inserção do estudante no cenário
real da atenção primária.
Os relatos indicam ainda que, segundo a matriz curricular do CGE, cada
disciplina corresponde a um nível específico de aprendizado, realiza diferentes
atividades e, portanto, diferentes processos de interação com os profissionais
de saúde e usuários. Tal evidência implica diferentes tipos de negociação, com
maior ou menor necessidade de formalização.
A associação feita com base nas atividades de conclusão de semestre constitui
fator-chave para compreender a renovação dos ciclos de interação. Os relatos
evidenciam divergências entre as diferentes disciplinas, nos diferentes CS,
quanto à realização de reuniões, apresentação de relatórios e eventuais
confraternizações. Nos semestres subsequentes, a continuidade das mesmas
equipes de docentes e profissionais que já se conhecem também é apontada como
um aspecto positivo que facilita a negociação, a realização de atividades e a
assunção de novos compromissos.
Quanto à interferência do nível central, estudo(11) sobre o tema demonstrou que
níveis decisórios de efetivação do relacionamento interorganizacional
desenvolvem de forma cíclica relações de compromisso, negociação e execução,
desde a formalização da proposta pelo nível estratégico, até sua implantação
pelo Comitê Gestor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O foco deste estudo é a interação, no nível operacional, dos agentes envolvidos
em um projeto de cooperação voltado para as atividades acadêmicas de estudantes
de enfermagem nos CS. A desconstrução em etapas do processo interativo de
relacionamento entre agentes das duas instituições possibilitou compreender as
dinâmicas ao longo dos ciclos de relacionamento que usualmente abrangem o
semestre letivo. Produziu-se assim uma reflexão analítica das atividades
cooperadas, relacionando seu conteúdos e os eventuais conflitos com a forma
como são estruturadas as dinâmicas dos relacionamentos. Essa é possivelmente a
maior contribuição que esse processo pode proporcionar.
O estudo possibilitou ainda refletir sobre outro fenômeno trazido à tona pelos
entrevistados: a cessão deliberada de espaços físicos e de ação dos
profissionais das unidades de saúde para docentes e alunos. O relato de que
docentes desenvolvem as atividades das enfermeiras com o intuito de promover o
aprendizado dos alunos e a atuação das enfermeiras como instrutores,
supervisores e avaliadores constitui evidência do grau de compromisso e
envolvimento que esses agentes assumem.
Novos processos investigativos, de abordagem qualitativa ou quantitativa, nesta
e noutras realidades de cooperação entre a Universidade e os Serviços
Municipais de Saúde, podem buscar identificar qual a relação entre o nível de
detalhamento das interações nas fases de negociação prévia entre professores e
profissionais de saúde e as possibilidades de conflito nas fases posteriores da
interação.