Avaliação da assistência à criança na Estratégia de Saúde da Família
INTRODUÇÃO
A Estratégia de Saúde da Família (ESF) foi instituída nos anos 1990 como uma
das formas de operacionalizar a Atenção Primária à Saúde (APS) e os princípios
doutrinários e organizativos do Sistema Único de Saúde (SUS). Dentre seus
objetivos, destaca-se a ampliação de acesso aos serviços de saúde, a superação
do modelo curativo e hospitalocêntrico, a reorientação do modelo de atenção
para a vigilância à saúde, o desenvolvimento de ações de promoção da saúde, a
implantação de novas práticas assistenciais e a atuação multiprofissional,
interdisciplinar e intersetorial.
Segundo Harzheim et al.(1), é possível caracterizar a ESF como uma estratégia
de implantação de equipes de APS, mas a definição do marco legal de uma
política pública em saúde não garante necessariamente sua real aplicação.
Em Minas Gerais, a reestruturação da APS se iniciou em 1994 com o incentivo do
governo federal para a implantação da Estratégia de Saúde da Família nas
regiões Norte e Jequitinhonha. Foi uma implantação gradual, com uma perspectiva
de colaborar na equidade de acesso aos serviços de saúde. Atualmente, a
cobertura pela ESF no estado é de 72,05% da população, com 4.552 equipes em 846
dos 853 municípios mineiros. O aumento progressivo de cobertura populacional
por esse serviço foi acompanhado de melhorias na estrutura física dos serviços
e da qualificação dos profissionais e dos gestores desse nível assistencial(2).
Diante da magnitude e heterogeneidade que caracteriza a implantação da ESF nos
municípios mineiros, fazer a avaliação do grau de orientação à APS de cada
serviço de saúde ou equipe permite a produção de conhecimento sobre sua
efetividade. Sendo assim, o objetivo desta pesquisa foi avaliar se os atributos
essenciais e derivados da APS estão incorporados às práticas assistenciais para
crianças menores de dois anos de idade, em municípios da região de saúde de
Alfenas, estado de Minas Gerais, Brasil.
A concepção do presente estudo é o da avaliação no desfecho prático da
assistência ao usuário no primeiro nível de atenção, abarcando as dimensões da
conquista do direito à saúde integral, da APS como ponto central da organização
de um modelo de saúde e da APS como uma tecnologia assistencial. A avaliação
aqui proposta está fundamentada na dimensão tecnológica, proposta por Starfield
(4), que elencou as qualidades próprias da APS, os chamados atributos
essenciais de acesso de primeiro contato, integralidade, coordenação da atenção
e longitudinalidade e os atributos chamados derivados do qual faz parte a
orientação familiar, a orientação comunitária e a competência cultural.
No rol de atributos essenciais da APS, tem-se o acesso de primeiro contato do
indivíduo com o sistema de saúde: acessibilidade e utilização do serviço de
saúde como fonte de cuidado a cada novo problema ou novo episódio de um mesmo
problema de saúde, com exceção das verdadeiras emergências e urgências médicas.
A longitudinalidade é a existência de uma fonte continuada de atenção, assim
como sua utilização ao longo do tempo. A relação entre a população e sua fonte
de atenção deve se refletir em uma relação interpessoal intensa que expresse a
confiança mútua entre os usuários e os profissionais de saúde.
O leque de serviços disponíveis e prestados pelo serviço de atenção primária
constitui o atributo da integralidade. É o arranjo organizacional das ações que
o serviço de saúde deve oferecer para que os usuários recebam atenção integral,
tanto do ponto de vista do caráter biopsicossocial do processo saúde-doença
como ações de promoção, de prevenção, de cura e de reabilitação adequadas ao
contexto da APS, mesmo que algumas ações não possam ser oferecidas dentro das
unidades de APS. Incluem os encaminhamentos para especialidades médicas,
hospitais, entre outros.
A coordenação da atenção pressupõe alguma forma de continuidade, seja por parte
do atendimento pelo mesmo profissional, seja por meio de prontuários médicos,
ou ambos. O reconhecimento de problemas abordados em outros serviços e a
integração deste cuidado no cuidado global do paciente também deve ser focado
neste atributo. O provedor de atenção primária deve ser capaz de integrar todo
cuidado que o paciente recebe por meio da coordenação entre os serviços.
Outras três características, chamadas atributos derivados, também qualificam as
ações dos serviços de APS. A orientação familiar, pela qual se deve considerar
o contexto familiar e seu potencial de cuidado e também de ameaça à saúde,
incluindo o uso de ferramentas de abordagem familiar na avaliação das
necessidades individuais para a atenção integral.
O reconhecimento por parte do serviço de saúde das necessidades em saúde da
comunidade, por meio de dados epidemiológicos e do contato direto com a
comunidade, sua relação com ela, assim como o planejamento e a avaliação
conjunta dos serviços são características da orientação comunitária. Por fim, a
competência cultural tem como proposta a adaptação do provedor (equipe e
profissionais de saúde) às características culturais especiais da população
para facilitar a relação e a comunicação com a mesma. A partir dessas
definições, estabeleceu-se uma forma de avaliação da APS, verificando a
presença e o alcance dos mesmos.
MÉTODO
Trata-se de uma pesquisa avaliativa, de abordagem quantitativa, com
delineamento transversal(5), tendo como local de estudo onze municípios da
microrregião de Alfenas, Minas Gerais, Brasil. A amostragem dos participantes
foi realizada pelo método de cotas, com estimativa da média com desvio padrão
de 1,2, erro de 0,1 e intervalo de confiança de 95%. O número total de
participantes foi dividido proporcionalmente entre as cidades e o tamanho da
população coberta pela ESF.
Os participantes foram pessoas maiores de 18 anos, responsáveis pelo cuidado de
crianças de 0 a 2 anos de idade, residentes e cadastradas há mais de um ano em
área de abrangência de unidades da ESF de zona urbana, que funcionassem
ininterruptamente há pelo menos cinco anos, em municípios, com cobertura
populacional pela ESF superior a 50%, na região de saúde de Alfenas, Minas
Gerais, Brasil. Antes de se iniciar a entrevista, os objetivos da mesma foram
apresentados aos usuários da ESF selecionados, que, se concordaram em
participar, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, em
conformidade com a legislação vigente. Este projeto foi aprovado pelo Comitê de
Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo.
A coleta de dados aconteceu nos meses de junho e julho de 2012, por meio de
entrevistas feitas no domicílio, com duração média de vinte e cinco minutos.
Utilizou-se como roteiro de entrevista o Primary Care Assessment Tool - Versão
Criança (PCA-Tool), que é um instrumento de avaliação em saúde com base nos
pressupostos de estrutura, de processo e de resultado de Donabedian(6). Esse
instrumento foi desenvolvido nos EUA pelo grupo liderado por Starfield e vem
sendo traduzido e validado em diferentes países, inclusive no Brasil(3).
O PCATool, na versão de avaliação da assistência à criança, possui 56 questões.
As três perguntas iniciais visam identificar qual unidade de saúde o usuário
tem como referência de atendimento e o grau de afiliação por meio de um
algoritmo pontuado de 1 a 4. Na sequência, há 53 perguntas distribuídas entre
os atributos essenciais da APS: Acesso de Primeiro Contato - Utilização; Acesso
de Primeiro Contato - Acessibilidade; Longitudinalidade; Coordenação -
Integração de Cuidados; Coordenação - Sistema de Informações; Integralidade -
Serviços Disponíveis; Integralidade - Serviços Prestados; e entre os atributos
derivados de Orientação Familiar e Orientação Comunitária. As respostas
possíveis para cada item são: "com certeza sim" (valor = 4); "provavelmente
sim" (valor = 3); "provavelmente não" (valor = 2); "com certeza não" (valor=1)
e "não sei/ não lembro" (valor = 9). Os escores para cada um dos atributos ou
seus componentes são calculados pela média aritmética simples dos valores das
respostas dos itens que os compõem.
Como resultado geral da avaliação pelo PCATool, tem-se duas medidas: o Escore
Essencial que é a média dos escores dos componentes que pertencem aos atributos
essenciais e o Escore Geral que é a média dos escores dos componentes dos
atributos essenciais acrescida dos escores dos atributos derivados. Esses
resultados caracterizam o grau de orientação do serviço ou do sistema de saúde
aos atributos da atenção primária à saúde.
As respostas foram organizadas em um banco de dados criado no software
Microsoft Excel for Windows e a análise estatística foi realizada no software
Statistical Package for the Social Sciences - SPSS 14.0, com intervalo de
confiança de 95%. Para a aferição de cada atributo, foi feito um escore,
utilizando-se a média aritmética das respostas que é comparado ao valor de
referência 6,66, limite entre alto e baixo escore. Para a comparação dos
escores médios dos atributos da APS por grupos, utilizou-se o modelo ANOVA com
post hoc pelo método Tukey. Cada atributo também foi analisado, considerando-se
cada item, tendo como referência o percentual de 66,6% adotado no PCATool. Essa
análise teve a consistência interna e a confiabilidade avaliadas pelo método
Alfa de Cronbach.
RESULTADOS
As entrevistas ocorreram em áreas de abrangência de 33 unidades da ESF,
localizadas em 11 dos 17 municípios que compõem a região de saúde de Alfenas.
Participaram 586 adultos responsáveis/cuidadores de crianças de 0 a 2 anos,
que, a despeito dos critérios de inclusão descritos anteriormente, não
apontaram unanimemente a ESF como fonte regular para o cuidado de saúde da
criança, sendo este serviço indicado por 330 usuários (56,31%), seguido de
ambulatório especializado (25,26%), de unidade básica tradicional (9,39%) e de
Pronto-Socorro (9,04%).
Para atender aos objetivos propostos, optou-se por analisar os dados coletados
junto aos 330 participantes que responderam sobre as equipes da ESF, que tinham
como características serem do sexo feminino (98,46%); de cor branca (53,44%);
mães (86,50%); na faixa etária de 20 a 39 anos (59,73%); casadas/amasiadas
(75,65%) e que têm entre 1 e 2 filhos (65,22%).
Para este grupo, o grau de afiliação foi de 3,55, em uma escala de 1 a 4. Os
escores médios dos atributos da APS, conferidos pelos participantes, estão
expostos na Tabela_1.
Tabela 1 Valores médios e respectivos desvios padrão dos atributos da atenção
primária à saúde, escore essencial e escore geral, conferidos pelos
responsáveis por menores de dois anos, na avaliação da Estratégia de Saúde da
Família, região de saúde de Alfenas, Minas Gerais, Brasil, 2012
Atributo da APS n MínimoMáximoMédia DP
Acesso de Primeiro Contato - Utilização 329 0,00 10,00 7,99 2,45
Acesso de Primeiro Contato - Acessibilidade 329 0,00 10,00 4,87 2,45
Longitunalidade 329 0,71 10,00 6,66 1,97
Coordenação - Integração de Cuidados 47 0,00 10,00 6,88 3,24
Coordenação - Sistemas de Informação 317 0,00 10,00 6,98 1,95
Integralidade - Serviços Disponíveis 288 0,00 10,00 5,18 1,88
Integralidade - Serviços Prestados 322 0,00 10,00 6,50 3,42
Orientação Familiar 324 0,00 10,00 5,10 2,97
Orientação Comunitária 295 0,00 10,00 5,69 2,24
Escore Essencial 330 2,75 8,67 6,44 1,18
Escore Geral 330 2,65 8,96 6,21 1,20
Das Tabelas_2 a 5 serão apresentados os atributos que atingiram os menores
escores médios, a saber: acesso de primeiro contato - acessibilidade,
integralidade - serviços disponíveis, orientação familiar e orientação
comunitária, na tentativa de compreender como se configuram as maiores
dificuldades de se alcançar uma assistência de qualidade à criança no nível da
atenção primária à saúde. A análise dos atributos será feita observando os
valores médios de cada um de seus componentes, que também tiveram a
consistência interna e confiabilidade avaliadas pelo método Alfa de Cronbach.
Tabela 2 Distribuição percentual das respostas dos responsáveis por crianças
menores de dois anos atendidas na Estratégia de Saúde da Família aos itens que
compõem o atributo Acesso de Primeiro Contato - Acessibilidade, região de saúde
de Alfenas, Minas Gerais, Brasil, 2012 (Alfa de Cronbach = 0,696, N = 329)
Avaliação C1 C2 C3 C4 C5 C6
% % % % % %
Com certeza, sim 32,62 33,74 42,38 10,06 31,31 29,79
Provavelmente, sim 22,56 20,25 20,12 13,41 23,40 10,94
Provavelmente, não/não sei não lemb19,21 19,02 15,55 20,12 14,29 28,27
Com certeza, não 25,61 26,99 21,95 56,40 31,00 31,00
Total 100 100 100 100 100 100
Notas: C1 - Quando o (a) "nome do serviço de saúde / ou nome médico/enfermeiro"
está aberto e sua criança fica doente, alguém deste serviço de saúde a atende
no mesmo dia? C2 - Você tem que esperar muito tempo ou falar com muitas pessoas
para marcar hora no(a) "nome do serviço de saúde / ou nome médico/enfermeiro"?
C3 - É fácil marcar hora para uma consulta de revisão da criança ("consulta de
rotina") no(a) "nome do serviço de saúde / ou nome médico/enfermeiro"? C4 -
Quando você chega no "nome do serviço de saúde / ou nome médico/enfermeiro",
você tem que esperar mais de 30 minutos para que sua criança consulte com o
médico/enfermeiro (sem contar triagem ou acolhimento)? C5 - É difícil para você
conseguir atendimento médico para sua criança no "nome do serviço de saúde /ou
nome médico/enfermeiro" quando você pensa que é necessário? C6 - Quando o "nome
do serviço de saúde / ou nome médico/enfermeiro" está aberto, você consegue
aconselhamento rápido pelo telefone se precisar?
Tabela 3 Distribuição percentual das respostas dos responsáveis por crianças
menores de dois anos atendidas na Estratégia de Saúde da Família aos itens que
compõem o atributo Integralidade - Serviços Disponíveis, região de saúde de
Alfenas, Minas Gerais, Brasil, 2012 (Alfa de Cronbach = 0,650, N = 288)
Avaliação G1 G2 G3 G4 G5 G6 G7 G8 G9
% % % % % % % % %
Com certeza, sim 60,90 37,50 65,97 32,64 23,61 24,39 6,97 40,07 12,15
Provavelmente, sim 6,23 21,18 13,89 17,71 15,28 17,77 5,92 19,51 17,01
Provavelmente, não/não sei não 8,65 22,92 11,11 22,57 37,50 39,37 23,00 20,21 31,94
lembro
Com certeza, não 24,22 18,40 9,03 27,08 23,61 18,47 64,11 20,21 38,89
Total 100 100 100 100 100 100 100 100 100
Notas: A seguir, apresentamos uma lista de serviços/orientações que você e sua
família ou as pessoas que utilizam esse serviço podem necessitar em algum
momento. Indique, por favor, se no "nome do serviço de saúde/ou nome médico/
enfermeiro" esses serviços ou orientações estão disponíveis: G1 - Vacinas
(imunizações). G2 - Verificar se sua família pode participar de algum programa
de assistência social ou benefícios sociais. G3 - Planejamento familiar ou
métodos anticoncepcionais. G4 - Programa de suplementação nutricional (ex.:
leite e alimentos). G5 - Aconselhamento ou tratamento para o uso prejudicial de
drogas (lícitas ou ilícitas, ex.: álcool, cocaína, remédios para dormir). G6 -
Aconselhamento para problemas de saúde mental. G7 - Sutura de um corte que
necessite de pontos. G8 - Aconselhamento e solicitação de teste anti-HIV. G9 -
Identificação (Algum tipo de avaliação) de problemas visuais (para enxergar).
Tabela 4 Distribuição percentual das respostas dos responsáveis por crianças
menores de dois anos atendidas na Estratégia de Saúde da Família aos itens que
compõem o atributo Orientação Familiar, região de saúde de Alfenas, Minas
Gerais, Brasil, 2012 (Alfa de Cronbach = 0,600, N = 324)
Avaliação I1 I2 I3
% % %
Com certeza, sim 23,46 51,54 25,31
Provavelmente, sim 11,11 13,58 25,93
Provavelmente, não/não sei não lemb18,52 8,95 29,63
Com certeza, não 46,91 25,93 19,14
Total 100 100 100
Notas: I1 — O seu/ sua "médico/enfermeiro" lhe pergunta sobre suas ideias e
opiniões sobre o tratamento e cuidado de sua criança? I2 — O seu "médico/
enfermeiro" já lhe perguntou sobre doenças ou problemas que existam na família
de sua criança (câncer, alcoolismo, depressão)? I3 — O seu "médico/
enfermeiro"se reuniria com outros membros da família da criança se você achasse
necessário?
Tabela 5 Distribuição percentual das respostas dos responsáveis por crianças
menores de dois anos atendidas na Estratégia de Saúde da Família aos itens que
compõem o atributo Orientação Comunitária, região de saúde de Alfenas, Minas
Gerais, Brasil, 2012 (Alfa de Cronbach = 0,588, N= 295)
Avaliação J1 J2 J3 J4
% % % %
Com certeza, sim 84,07 46,44 20,68 17,29
Provavelmente, sim 7,46 31,19 16,61 4,41
Provavelmente, não/não sei não lemb4,41 16,61 24,75 11,86
Com certeza, não 4,07 5,76 37,97 66,44
Total 100 100 100 100
Notas: J1 - Alguém do "nome do serviço de saúde /ou nome médico/enfermeiro" faz
visitas domiciliares? J2 - O "nome do serviço de saúde /ou nome médico/
enfermeiro" conhece os problemas de saúde importantes de sua vizinhança? A
seguir, são listadas formas de avaliar a qualidade de serviços de saúde. O
"nome do serviço de saúde / ou nome médico/enfermeiro" realiza alguma destas?
J3 - Faz pesquisas na comunidade para identificar problemas de saúde que ele
deveria conhecer? J4 - Convida membros da família a participar do Conselho
Local de Saúde (Conselho Gestor/ Conselho de Usuários)?
Para os responsáveis/cuidadores das crianças de 0 a 2 anos, esse atributo teve
uma avaliação de baixo escore médio. Os itens que compõem esse componente da
integralidade são relacionados a toda a experiência do entrevistado com o
serviço de saúde e não se referem exclusivamente à criança em questão. Não
necessariamente, a criança deve ter recebido esses serviços, mas o entrevistado
deve, sim, saber ou não sobre sua disponibilidade(3).
DISCUSSÃO
O alto grau de afiliação e a média de avaliações positivas para o atributo
acesso de primeiro contato - utilização evidenciaram que os usuários da região
de saúde de Alfenas depositam a confiança e a responsabilidade pelo cuidado de
saúde da criança na ESF referida. Outros estudos também obtiveram resultados
positivos para o grau de afiliação(9-10).
Em contraste ao resultado do grau de afiliação, o atributo acesso de primeiro
contato - acessibilidade recebeu uma avaliação de baixo escore. Na
interpretação dos itens que o compõe, destacados na Tabela_2, as principais
barreiras evidenciadas foram a dificuldade de se marcar um atendimento para o
mesmo dia, ou para quando pensa que é necessário, e a dificuldade de se
conseguir um aconselhamento rápido por telefone com um profissional. Existe
mais facilidade em agendar uma consulta de rotina, e para a realização da qual
não é preciso aguardar mais que trinta minutos.
A dificuldade com a acessibilidade ao atendimento na APS é comum, como mostram
outros trabalhos(8-10), o que denota um enfraquecimento logo no início do
processo de cuidado. Para Leão, Caldeira e Oliveira (2011)(8), é possível que
as dificuldades de alcance desse atributo estejam vinculadas às
particularidades da criança e às demandas curativas apresentadas aos serviços
de saúde pelo maior volume de afecções agudas que apresenta nessa faixa etária.
No mesmo entendimento, infere-se que essa maior demanda torna ainda mais
legítima essa avaliação negativa. O apanhado desses resultados mostra que esse
atributo da APS não se desenvolveu, atendendo parcialmente aos usuários que
consideram a ESF como a porta de entrada do a sistema de saúde.
A Longitudinalidade é o acompanhamento ao longo do tempo, no qual está
implícita uma relação terapêutica caracterizada por responsabilidade por parte
do profissional de saúde e por confiança por parte do paciente(11) e é
considerado o atributo central da APS(4). Seu desenvolvimento tem como
resultado diagnósticos e tratamentos mais precisos, redução dos encaminhamentos
desnecessários para especialistas e para a realização de procedimentos de maior
complexidade(12). Esse atributo alcançou alto escore na avaliação dos
participantes da região de saúde de Alfenas. Resultado semelhante também foi
alcançado em outros trabalhos(8-10,13).
Para a avaliação do atributo coordenação - integração de cuidados, foi
necessário inicialmente responder se a criança foi encaminhada a um
especialista enquanto está em acompanhamento na ESF. Do total de participantes,
47 (14,24%) responderam afirmativamente a essa questão e avaliaram com alto
escore essa qualidade da APS. Esse baixo percentual de encaminhamentos
referidos pelos entrevistados e a avaliação positiva desse atributo guardam
relação com a avaliação da longitudinalidade, podendo-se inferir como um
resultado desta e como resultado positivo da organização regional dos serviços
de saúde implementada no locus do estudo. O trabalho de Oliveira(9) atingiu
resultado semelhante, e o estudo de Braz(10), divergente.
Sobre a coordenação - sistema de informação, a avaliação dos participantes da
região de saúde de Alfenas foi classificada como alto escore, evidenciando que
existem condições favoráveis no tocante à existência de registro e de
disponibilidade das informações para o desenvolvimento da coordenação e para a
Longitudinalidade do cuidado. A avaliação da assistência à criança executada
por Braz(10) obteve resultados positivos para a coordenação - sistema de
informação. Já na avaliação de Oliveira(9), essa qualidade não atingiu o valor
classificatório. Nos estudos em que esse atributo não foi dividido, os
resultados foram de baixo escore(8,13).
O atributo Integralidade está dividido em dois elementos, integralidade -
serviços disponíveis e integralidade - serviços prestados. Para o elemento
integralidade - serviços disponíveis, há questões que se referem a toda a
experiência com o serviço de saúde e abordam serviços disponíveis a toda a
família. A avaliação dos usuários da região de saúde de Alfenas foi baixa, da
mesma forma como ocorreu em outros trabalhos(8-10-13).
No estudo dos itens deste atributo, destaca-se que, dentre os serviços
disponíveis, os itens referentes às imunizações, sobre planejamento familiar e
sobre métodos anticoncepcionais, receberam avaliações positivas acima do limite
classificatório para um bom resultado. Contudo, a maioria dos itens recebeu o
maior percentual de avaliações negativas, o que contribuiu para o baixo escore
do atributo. Destacam-se os resultados mais baixos nos itens sobre
disponibilidade de sutura; sobre avaliação visual; sobre tratamento/
aconselhamento; sobre abuso de drogas lícitas/ilícitas e sobre tratamento/
aconselhamento de saúde mental. O desfecho da avaliação desse atributo em
outros estudos é coincidente nos itens sobre drogas, saúde mental(9-10,13),
avaliação visual(9-10) e aconselhamento e detecção do HIV(9-10,13).
É contundente a necessidade de as unidades da ESF ampliarem o escopo de atuação
dos serviços da ESF(13) e de melhor qualificação dos profissionais no manejo
das condições mais comuns e de grande impacto na saúde das famílias e da
comunidade, como o alcoolismo, o uso de drogas e os problemas de saúde mental
(8). As unidades de APS não podem ser orientadas por programas verticais, mas,
sim, pelas necessidades de saúde da sua população(13).
Na avaliação da integralidade - serviços prestados, o escore foi classificado
como baixo, porém muito próximo ao valor limite de classificação. Nas demais
avaliações utilizadas como referência, os serviços disponíveis foram positivos
(8-10-13). Os itens desse elemento foram sobre serviços disponíveis
exclusivamente para a criança, e o resultado permite a consideração de que está
aquém das necessidades. Para Starfield(4), o segundo atributo de maior valor
para os usuários é a integralidade, atrás apenas da longitudinalidade. Os
pacientes reconhecem a importância da integralidade e expressam sua
insatisfação com sua ausência. Quando os serviços são muito limitados em
alcance ou profundidade, as doenças preveníveis podem não ser evitadas,
enfermidades podem evoluir por mais tempo do que o justificável, a qualidade de
vida pode ser colocada em risco e as pessoas podem morrer mais cedo do que
deveriam.
A avaliação para os atributos Orientação Familiar e Orientação Comunitária
também foi de baixo escore, assim como em outros estudos(8-10-13).
A Orientação Familiar é um atributo derivado que implica considerar a família
como o sujeito da atenção(8) e, conforme a Tabela_4, todos os itens tiveram
avaliações abaixo do valor classificatório, o que reforça os resultados
encontrados no atributo Longitudinalidade, destacando que o processo de
trabalho nas ESFs é percebido pelos cuidadores de crianças de 0 a 2 anos como
centrado na questão biológica do processo saúde-doen-ça, com pouca valorização
da opinião do cuidador da criança e das características do grupo familiar da
mesma.
Para Harzheim(13), a presença de um novo membro na organização familiar abre
importantes oportunidades para o profissional de saúde atuar junto aos demais
membros envolvidos. Busca-se conhecer o contexto biopsicossocial do processo
saúde-doença, abordar crenças e comportamentos da família relacionados à saúde,
prevenir problemas de transição do ciclo familiar e reforçar a utilização da
família como recurso valioso e responsável pela saúde da criança e dos demais
membros. Perder essa oportunidade de cuidado impede que as ações realizadas em
escala individual - a consulta da criança - se tornem uma dimensão coletiva,
reduzindo o impacto potencial da relação profissional - criança - cuidador.
Costa et al.(14) afirmam que os profissionais de saúde, sobretudo os de nível
superior, ainda permanecem praticando apenas a orientação individual em
consultório, ainda que no contexto do ESF.
Na interpretação dos dados da Tabela_5, que aborda os componentes do atributo
orientação comunitária, verifica-se o alto percentual negativo recebido sobre a
busca dos profissionais do serviço em conhecer os problemas da comunidade da
qual faz parte, bem como a participação comunitária e o controle social nas
ações e nos serviços de saúde da ESF na região de Alfenas - MG.
Braz(10), Oliveira(9) e Leão, Caldeira e Oliveira(8) encontraram resultados
semelhantes a esses em sua avaliação. Contrastando com esse resultados,
Harzheim(13) encontrou em sua avaliação da ESF altos valores para os itens
desse atributo.
De acordo com Starfield(4) todas as necessidades relacionadas à saúde dos
pacientes ocorrem em um contexto social; o reconhecimento dessas necessidades
frequentemente requer o conhecimento deste contexto. O atributo orientação
comunitária resulta de um alto grau de integralidade da atenção geral.
O reconhecimento do atributo orientação comunitária pelos usuários se deve,
principalmente, ao trabalho realizado extramuros de monitoramento, de
vigilância à saúde e de acompanhamento das famílias e da comunidade. Esse
trabalho é efetuado principalmente pelos ACS e em intensidade variada pelos
demais profissionais de saúde(8,13).
O Escore Essencial obteve avaliação classificada como alto escore. Ele é
formado pela média dos escores dos componentes que pertencem aos atributos
essenciais: acesso de primeiro contato - utilização; acesso de primeiro contato
- acessibilidade; longitudinalidade; coordenação - integração de cuidados;
coordenação - sistema de informação; integralidade - serviços disponíveis;
integralidade - serviços prestados; dividido pelo número de componentes. Os
demais trabalhos consultados obtiveram resultados semelhantes(8) ou divergentes
(10,13). Esse resultado de alto escore, ainda que discretamente acima do valor
limite de classificação, fala a favor da forma como a ESF organiza as ações e
serviços na saúde da criança, mas indica a necessidade de questões a serem
fortalecidas e que serão discutidas pontualmente mais adiante.
Já o Escore Geral, que é composto pela média dos escores de todos os atributos
mais o Grau de Afiliação, foi avaliado como baixo, influenciado pelos baixos
escores dos atributos de Orientação Familiar e de Orientação Comunitária, assim
como ocorreu em outros estudos(8,10,13).
Nos escores médios dos atributos da ESF, não foi encontrada diferença
estatística, comparando-se os grupos de participantes classificados de acordo
com o sexo, a idade e a presença de filhos. Comparando-se os grupos segundo a
cor referida, os participantes que se autodeclaram pardos atribuíram valores
inferiores que os demais grupos para o atributo Longitudinalidade. Cotejando-se
os grupos segundo seu estado civil, os viúvos e solteiros atribuíram valores
superiores aos demais grupos, para o atributo Coordenação - Sistemas de
Informação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A avaliação da ESF na região de Alfenas, Minas Gerais, desvela que até o
momento a assistência à saúde da criança não está imbuída de grande parte dos
atributos da APS. Ainda que o modelo de saúde instituído nas diretrizes da ESF
seja voltado para a assistência integral, com ênfase na promoção e prevenção da
saúde, viu-se que existem questões a serem desenvolvidas.
As barreiras organizacionais ao acesso; a ausência de contrarreferência; a
predominância de práticas curativas e preventivas consagradas e individuais; a
incipiência nas ações de promoção de saúde; a verticalização na organização das
ações; a falta de comunicação adequada entre profissionais e usuários; e o
pouco espaço para a participação e inclusão de novas demandas de saúde da
população. O arranjo de alguns municípios, que mantêm uma APS mista com
unidades básicas de saúde tradicionais e unidades da ESF, tornando-as
paralelas, contribui na fragmentação da assistência à criança e à família.
Como citar este artigo:
Silva SA, Fracolli LI. Evaluating child care in the Family Health Strategy. Rev
Bras Enferm [Internet]. 2016;69(1):47-53.