Condições do letramento funcional em saúde de um grupo de idosos diabéticos
INTRODUÇÃO
Letramento Funcional em Saúde (LFS) significa ter a capacidade de obter,
processar e compreender as informações em saúde e serviços básicos, no intuito
de tomar decisões apropriadas para a gestão do autocuidado ou em saúde(1-2). O
termo "letramento" é um construto relativamente novo no contexto da educação
brasileira e mais recente ainda na área da saúde. O descritor universal em
ciências da saúde refere-se a health literacy como alfabetização em saúde ou
cultura em saúde.
Estudos sobre LFS apontam que ele pode ser um dos caminhos para a promoção da
saúde sob diversos aspectos, associados a atributos como: habilidades;
capacidade; cognição; competências pessoais; tomada de decisões em saúde;
compreensão em saúde; controle da saúde; redução de riscos em saúde; capacidade
de ler, de processar as informações em saúde; promover, manter e melhorar a
saúde no curso da vida e na interação com o sistema de saúde; extrair
significado de qualquer tipo de informação e decisões em saúde que beneficiam a
comunidade, relativas a questões como uso de drogas e álcool, prevenção e
tratamento de doenças, segurança e prevenção de acidentes, primeiros socorros,
emergências; se manter saudável; realizar operações aritméticas que dizem
respeito ao controle de medicamentos, horários e dispositivos utilizados no
tratamento de alguns agravos à saúde(3-7).
Nesse sentido, promover a saúde significa fornecer às populações condições para
que estas sejam capazes de melhorar sua saúde e exercer controle sobre a mesma,
como foi preconizado internacionalmente em Ottawa. Assim, para alguns autores,
a saúde é concebida como a possibilidade de o indivíduo aproveitar a vida de
forma positiva, no sentido do uso de recursos pessoais e sociais, além da
capacidade física(8).
Adicionalmente, se pensarmos que a população brasileira envelhece de forma
acelerada(9), e com maior possibilidade de uma grande parcela desenvolver uma
doença crônica - entre elas, o diabetes mellitus tipo 2 (DM2), exigindo um
controle adequado da saúde e o desenvolvimento de habilidades individuais para
melhor enfrentamento dos riscos e estratégias de autocuidado - a avaliação do
impacto do LFS pode ser um fator que contribua para postergação de
incapacidades.
Desse modo, a lacuna identificada sobre o tema na área da saúde justifica a
relevância para realizar esta pesquisa. Essa assertiva parte das evidências
científicas exploradas em bases de dados nacionais e internacionais sobre LFS,
a partir das quais se observou que no Brasil e, especificamente na produção
científica da enfermagem, estudos que avaliassem esse aspecto, sobretudo com
idosos, ainda pouco se conhecem. No período de 2005 a 2014, encontraram-se
apenas dois estudos realizados por enfermeiros no Brasil com idosos (na Região
Sul), utilizando um protocolo de avaliação a partir de um modelo canadense e
com método de análise qualitativa(10-11).
O LFS é um tema de natureza complexa, multidimensional e de caráter
interdisciplinar. Entre essas dimensões, destaca-se o campo da Educação para a
Saúde, abrangendo dessa forma dois outros grandes campos de conhecimento: a
Educação e a Saúde. No campo da Educação, delimita-se pela convergência dos
saberes oriundos, principalmente, da Linguística e da Pedagogia, que estão mais
diretamente relacionados aos processos de alfabetização e letramento; e da
Saúde, pelos princípios da promoção da saúde, prevenção de doenças e
empoderamento dos sujeitos atendidos(12).
Nesse âmbito, o LFS se torna um conceito que descreve a aplicação prática de
uma vasta gama de competências cognitivas e não cognitivas na vida real, em vez
de uma habilidade única de letramento em um ambiente clínico. LFS saúde, nesta
perspectiva, é o resultado da intervenção e não uma variável independente(13).
A Organização Mundial de Saúde (OMS), por meio da Commission Determinants of
Health, identificou o letramento como um dos determinantes sociais da saúde,
pois poderá contribuir com a melhoria das habilidades do indivíduo em acessar,
compreender, avaliar e comunicar as informações de maneira que possa melhorar a
sua saúde, de seus familiares e da comunidade(14).
Além disso, é importante considerar que o LFS forma uma rede complexa de
interação com o sistema de saúde, com o sistema educacional, com os fatores
sociais e culturais em que o indivíduo está imerso, havendo necessidade de se
elevarem os graus de LFS dos indivíduos, tendo em vista os inquéritos revelarem
que, tanto em países desenvolvidos quanto em desenvolvimento, há um grande
número de pessoas iletradas neste contexto específico(15,16).
Na população norte-americana, por exemplo, nove em cada dez adultos têm a
possibilidade de manifestar a falta de competência necessária para gerir a
própria saúde e prevenir doenças(14). No mesmo sentido, pesquisas têm
demonstrado que - no Reino Unido, nos Estados Unidos, na Austrália e no Canadá
- de 20% a 50% da população têm baixa competência em LFS(15).
No Brasil, um estudo foi realizado com uma amostra de idosos na Região Sul,
para analisar como esses idosos buscam, compreendem e compartilham as
informações de saúde que promovem o autocuidado. Os resultados desse estudo
evidenciaram que os idosos tinham interesses ligados a estratégias de prevenção
de danos e promoção da saúde, além de preocupação com o trabalho e com a
família. A maioria dos participantes referiu não estar suficientemente
esclarecida sobre sua condição de saúde e que a compreensão sobre as
informações recebidas era restrita e dizia respeito ao diagnóstico e
tratamento. Esses resultados conduziram os autores a sugerirem que a
identificação da compreensão das informações em saúde poderia apoiar o
planejamento, a implementação e o aprimoramento de ações de educação em saúde
com idosos nos serviços de atenção básica à saúde(11).
Do ponto de vista teórico, na literatura internacional, encontraram-se alguns
modelos que discutem o LFS e apontam os possíveis benefícios à saúde das
pessoas com letramento adequado. Entre eles, menciona-se o proposto por Nutbeam
(2000)(7). Nesse modelo, o autor considera algumas etapas ligadas entre si para
que o indivíduo alcance a melhoria dos resultados por meio de escolhas
saudáveis e oportunidades, que incluem: o conhecimento e capacidades
individuais prévios (fluência em leitura, habilidades matemáticas); a
capacidade de ter a informação, comunicação e educação em saúde adequadas,
desenvolvimento de conhecimentos e capacidades; habilidades em negociação e
autocontrole; melhoria dos níveis de letramento e mudanças de comportamentos e
práticas em saúde; engajamento em ações sociais para saúde e participação em
mudanças de normas sociais. Essa sequência de eventos nesse modelo, então,
aponta que o LFS é mais que o do indivíduo ser capaz de ler panfletos e fazer
apontamentos, mas engloba também a melhoria do acesso às informações em saúde e
em suas capacidades de utilizá-las é um processo crítico para emponderá-lo.
Assim, partindo-se do princípio de que a educação em saúde e para a saúde é uma
das estratégias utilizadas no cotidiano do processo de trabalho da enfermagem,
tem-se como pressuposto deste estudo que os idosos diabéticos assistidos na
rede de atenção básica à saúde poderiam ter as competências e habilidades para
autogestão em saúde comprometidas pelo baixo LFS, e objetivou-se avaliar o LFS
em saúde de um grupo de idosos diabéticos como condicionante para seu
autocuidado.
MÉTODO
Trata-se de um estudo epidemiológico, seccional e descritivo sobre o LFS de
idosos diabéticos assistidos em uma unidade de saúde municipal do SUS na Região
Norte do Brasil, Belém (PA), realizado no período de maio a agosto de 2014. Foi
avaliada uma amostra de idosos (n = 114). Essa foi obtida da população de
referência (N=202) de idosos matriculados na unidade de saúde no período da
coleta de dados. Para obtenção dos dados, elaborou-se um instrumento de
pesquisa composto por condicionantes sociais e demográficos (sexo, idade,
estado de convivência, escolaridade, procedência, renda mensal, compreensão das
informações em saúde e hábitos de leitura no cotidiano); saúde (tempo de
tratamento, comorbidades, complicações da doença, hábitos nocivos à saúde, como
fumo e consumo de álcool). Para avaliação do LFS, optou-se pela aplicação do
teste S-TOFHLA, entre outros métodos existentes, pois essa versão já foi
aplicada e validada no Brasil. OS-TOFHLA, em português, significa Avaliação da
Alfabetização em Saúde ou do Letramento, e, neste estudo, seguiram-se as
recomendações de estudos realizados no Brasil, nos estados do Ceará e São Paulo
(12,17).
Para inclusão na pesquisa, era necessário que os idosos estivessem em
tratamento para diabetes tipo II, possuíssem pelo menos 1 ano de escolaridade,
que conseguissem ler o Cartão de Jaeger em nível 20/40, considerado normal para
uma visão periférica com ou sem lentes corretoras ou óculos. E também que
ouvissem o sussurro (Teste de Whisper) dos lados direito e esquerdo do canal
auricular pelo teste do sussurro e conseguissem pontuação adequada no Mini-Cog
(18), que avalia a memória imediata associada ao Teste do Desenho do Relógio
(TDR), este último que avalia as funções executiva, visuoespacial e motora
fina. Os testes foram utilizados para avaliação multidimensional rápida,
conforme recomenda o Ministério da Saúde(19). Foram aplicados com o objetivo de
minimizar os possíveis confundimentos, como recomenda o teste original, que
podem surgir por alterações nas funções visual, auditiva, cognitiva ou motora e
interferir no resultado final. Nesse caso, como avaliaram-se somente pessoas
idosas, as mesmas poderiam apresentar as alterações funcionais próprias do
envelhecimento.
Sobre o teste específico do LFS (S-TOFHLA)(17), este é composto por dois
subtestes: um avalia a compreensão textual; e o outro, a matemática ou
numeramento. O subteste para compreensão textual é constituído de frases sobre
o preparo de um exame do trato gastrointestinal rotineiro de saúde (raio X de
estômago), direitos e responsabilidades em relação ao sistema de saúde e tomada
de decisões sobre a própria saúde. Essas frases contêm 36 lacunas, em que o
participante deverá escolher entre quatro palavras alternativas que darão
sentido à frase, existindo somente uma possibilidade de resposta. Esse subteste
de compreensão textual deverá ser executado em 7 minutos; ao passo que a parte
de compreensão matemática, em 10 minutos, como recomenda o teste após validação
no Brasil. Porém, o examinador não avisa sobre esse tempo ao examinado e,
quando atinge-se o período determinado, o teste é recolhido. Além disso, nesse
estudo, o tamanho da fonte do texto que compõeS-TOFHLA foi impressa em tamanho
14, para facilitar a acessibilidade visual e melhorar a leitura pelos idosos.
As questões relacionadas à matemática (numeramento) dizem respeito a situações
vivenciadas em saúde, que envolvem marcação de uma consulta, atenção e cálculo,
como horário de tomada de medicações, o resultado de um teste laboratorial para
glicemia, bem como dosagem de medicação. O examinador entrega um cartão ao
examinado e faz a pergunta sobre o que consta no cartão, simulando o cartão de
consulta, rótulos de medicamentos e receituários, comumente usados pelos
usuários da atenção básica em saúde. Para pontuação geral do teste, cada
resposta certa na compreensão textual equivale a 2 pontos e, para o subteste de
numeramento, a 7 pontos, obtendo-se um total de 100 pontos. O escore do teste é
classificado como "Inadequado", "Marginal ou Limítrofe" e "Adequado", conforme
a pontuação obtida, ou seja, de 0-55, 56-66 e 67-100, respectivamente.
A análise dos dados foi realizada pelo software SPSS (versão 20.0),
considerando-se o nível α = 5% e p valor ≤ 0,05. Foram feitas análises
univariadas, bivariadas e descritas as proporções, média, desvio-padrão e
aplicado o Teste do Qui-quadrado de Pearson para verificar a independência
entre as variáveis. A pesquisa obedeceu a todos os princípios éticos em
pesquisa com seres humanos conforme a Resolução MS/466/2012 e foi aprovada pelo
Comitê de Ética em Pesquisa da UEPA.
RESULTADOS
De acordo com as variáveis analisadas sobre os condicionantes sociais e
demográficos estratificadas pelo resultado do teste de LFS, observou-se que a
maioria dos idosos participantes do estudo era do sexo feminino, correspondendo
a 64,0% da amostra. Estavam na faixa etária mais nova, ou, seja, entre 60 e 69
anos, cuja média de idade foi de 67,4 anos; eram casados em sua maioria; tinham
um meio de provento mensal e residiam majoritariamente na capital; e 62,4%
declararam ter entre 1 e 4 anos de escolaridade. Quanto à compreensão das
informações em saúde, 50,0% revelaram compreendê-las, assim como terem o hábito
de leitura, porém, quando comparadas pelo resultado do teste de LFS, as
variáveis que mostraram interdependência foram a "escolaridade" e os "hábitos
de leitura" com p valor (≤ 0,05), conforme os resultados descritos na Tabela_1.
Tabela 1 Características dos idosos que participaram do estudo, estratificados
pelos níveis de letramento funcional em saúde, Belém, Pará, Brasil, 2014 (N =
114)
Letramento Funcional em Saúde*
Total Inadequado Marginal Adequado Valor de
Características (N = (n = 84 ) (n = 12) (n = 18) p*
114)
n (%) n (%) n (%) n (%)
Idade - média (DP) 67,4 (±
5,28)
Faixa etária (em anos)
60-69 49 (58,3) 9 (75,0) 17
(94,4) 0,53
70-79 32 (38,1) 3 (25,0) 1 (5,6)
80-89 3 (3,6) 0 (0,0) (0,0)
Sexo
Feminino 73 51 (60,7) 6 (50,0) 16
(64,0) (88,9) 0,44
Masculino 41 33 (39,3) 6 (50,0) 2 (11,1)
(36,0)
Estado de Convivência
Casado 63 47 (56,0) 6 (50,0) 10
(55,3) (55,6)
Solteiro/Viúvo/Divorciado 51 37 (44,0) 6 (50,0) 8 (44,4) 0,92
(44,7)
Procedência
Belém 68 45 (53,6) 9 (75,0) 14
(59,6) (77,8) 0,23
Fora de Belém 46 39 (46,5) 3 (25,0) 4 (22,2)
(40,4)
Renda Mensal
Sim 102 77 (91,7) 10 15
(89,5) (83,3) (83,3) 0,44
Não 12 7(8,3) 2 (16,7) 3 (16,7)
(10,5)
Escolaridade (em anos)
1 a 4 71 59 (70,2) 6 (50,0) 6 (50,0)
(62,3)
5 a 8 30 22 (26,2) 5 (41,7) 3 (16,7) 0,00
(26,3)
+ de 9 13 3 (3,6) 1 (8,3) 9 (50,0)
(11,4)
Compreensão das orientações em
saúde
Sim 80 57 (67,9) 8 (66,7) 15
(70,2) (83,3)
Às vezes 32 27 (32,1) 3 (25,0) 2 (11,1) 0,06
(28,1)
Não 2 (1,7) 0 (0,0) 1 (8,3) 1 (5,6)
Hábito de leitura
Sim 58 35 (41,7) 9 (75,0) 14
(50,9) (77,8)
Às vezes 42 35 (41,7) 3 (25,0) 4 (22,2) 0,01
(36,8)
Não 14 14 (16,7) 0 (0,0) 0 (0,0)
(12,3)
No que se refere aos condicionantes da saúde dos idosos do estudo, além do
diabetes, a maioria deles informou ter outras doenças associadas, sobretudo a
hipertensão arterial, declarada por cerca de 64,0%. Além disso, eram doentes de
longa data, e mais de 60% relataram não ter sofrido nenhuma complicação advinda
do processo de evolução da doença até o momento. Outros fatores também
considerados importantes no estudo e que podem implicar nas condições de saúde
foram os hábitos nocivos de vida, como fumo e ingestão de álcool, como
descritos na Tabela_2.
Tabela 2 Distribuição dos condicionantes da saúde dos idosos que participaram
do estudo, estratificados pelo letramento funcional em saúde, Belém, Pará,
Brasil, 2014 (N= 114)
Letramento Funcional em Saúde*
Condicionantes da saúde Total Inadequado Marginal Adequado Valor de p*
(N = 114) (n = 84 ) (n = 12) (n = 18)
n n (%) n (%) n (%)
Comorbidades associadas
Nenhuma 17 16 (19,0) 1 (8,3) 0 (0,0)
Hipertensão 73 51 (60,7) 8 (66,7) 14 (77,8)
Dores articulares 10 6 (7,1) 2 (16,7) 2 (11,0) 0,65
Osteoporose 9 7 (8,3) 1 (8,3) 1 (5,6)
Doenças cardíacas 2 2 (2,4) 0 (0,0) 0 (0,0)
Outras 3 2 (2,4) 0 (0,0) 1 (5,6)
Complicações pelo diabetes
Nenhuma 75 52 (61,9) 6 (50,0) 17 (94,4)
Visual 19 16 (19,0) 2 (16,7) 1 (5,6)
Renal 12 11 (13,1) 1 (8,3) 0 (0,0)
Sensibilidade plantar 4 3 (3,6) 1 (8,3) 0 (0,0) 0,01
Amputação de membros 2 2 (2,4) 0 (0,0) 0 (0,0)
Úlcera plantar 1 0 (0,0) 1 (8,3) 0 (0,0)
Complicações associadas 1 0 (0,0) 1 (8,3) 0 (0,0)
Hábito de fumar ou Ex-
Fumante
Não 59 43 (51,2) 5 (41,7) 11 (61,1) 0,56
Sim 55 41 (48,8) 7 (58,3) 7 (38,9)
Consumo de Álcool
Não 94 72 (85,7) 9(75,0) 13 (72,2) 0,30
Sim 20 12 (14,3) 3 (25,0) 5 (27,8)
Notas: DM (diabetes mellitus);
*Teste aplicado χ2; valor de p ≤ 0,05
De acordo com o teste realizado neste estudo (Tabela_3), as condições de LFS em
cerca de 73,7% mostraram-se inadequadas e a média geral alcançada foi de 44,4
pontos. Porém, quando analisada a compreensão numérica contida na segunda parte
do teste, cerca de 52,6% dos idosos conseguiram compreender e responder as
perguntas, como mostrado na Tabela_4.
Tabela 3 Distribuição do Letramento Funcional em Saúde dos idosos que
participaram do estudo, Belém, Pará, Brasil, 2014 (N = 114)
Letramento Funcional em Saúde f %
Inadequado 84 73,7
Marginal 12 10,5
Adequado 18 15,8
Total 114 100,0
Nota: média de pontos no teste global (compreensão textual e numérica) = 44,4
(DP± 19,34).
Tabela 4 Proporções das respostas sobre a compreensão numérica entre os idosos
que participaram do estudo, Belém, Pará, Brasil, 2014 (N = 114)
Letramento Numérico f %
Acertou as quatro perguntas 60 52,6
Acertou entre 2 a 3 perguntas 53 46,5
Não acertou qualquer questão 1 0,9
Total 114 100,00
Nota: Perguntas: 1. data da próxima consulta; 2. taxa glicêmica normal; 3.
horário da medicação considerando o horário do almoço; 4. cálculo do horário de
uma medicação a cada 6 horas.
DISCUSSÃO
Os condicionantes sociais e demográficos são considerados como uma das
dimensões para se compreender o LFS(5). Neste estudo, as mulheres idosas
compuseram a maior proporção da amostra avaliada, e esse perfil está em
consonância com a projeção brasileira da população de mulheres idosas, que, em
2013, correspondia a 55,5%(9).
Sobre o desempenho do LFS segundo o sexo, neste estudo não apresentou
diferença, mas se contrapõe com estudo realizado no Ceará, em 506 usuários do
Sistema Único de Saúde na Atenção Básica, em que os participantes foram
selecionados por estrato de idade(12). Em outro estudo, realizado nos EUA,
utilizando o mesmo teste, também não houve diferença nos níveis de LFS quando
comparado o desempenho entre homens e mulheres idosas(20). Contudo, há de se
destacar que no estudo brasileiro(12) nem todos os participantes eram idosos.
Entre os condicionantes avaliados nesta pesquisa, ressalta-se ainda o baixo
nível de escolaridade, ou seja, mais de 60% tinham até 4 anos de estudo, o que
se mostrou influenciando o desempenho do LFS alcançado pelos idosos (p = 0,00).
Essa realidade parece impactar no envelhecimento e na saúde, como demonstrado
numa pesquisa brasileira que alerta para os seguintes dados: 49% da população
idosa é considerada analfabeta funcional, e, desse total, 23% dos pesquisados
declaram não saber ler e escrever, 22% dos idosos consideram a leitura e a
escrita atividades penosas, seja por deficiência no aprendizado, problemas de
saúde, ou ambos os motivos(21).
Os idosos deste estudo apresentavam dificuldade quando precisavam ler toda a
frase, compreendê-la dentro de seu contexto e identificar qual palavra
completava seu sentido, bem como, ao mesmo tempo, ter o entendimento de qual a
relação com a sequência do texto. Sobre essa questão, vale salientar, segundo o
inquérito brasileiro(22)(INAF, 2012) e também levantamentos internacionais, que
as pessoas que não completaram até o quinto ano do ensino fundamental são
consideradas analfabetas funcionais. E, de acordo com esse mesmo inquérito,
esperava-se que os grupos que concluíssem o ensino fundamental tivessem domínio
das habilidades básicas de alfabetismo. Outro trabalho evidenciou que nem
sempre o grau de escolaridade garante o nível de habilidade de alfabetismo
esperado(22).
No Brasil, quanto ao Indicador de Analfabetismo Funcional (INAF)(22), este
classificou a população brasileira em duas categorias: Analfabetos Funcionais e
os Alfabetizados Funcionalmente. Como Analfabetos Funcionais foram agrupados os
analfabetos absolutos e rudimentares; e aqueles com nível básico e pleno de
alfabetização, como Alfabetizados Funcionalmente. Isso significa dizer que a
classificação no nível básico dá ao sujeito a capacidade de ler e compreender
textos de média extensão; localizar informações, mesmo que seja necessário
realizar pequenas inferências; ler números na casa dos milhões; resolver
problemas envolvendo uma sequência simples de operações e ter noção de
proporcionalidade. Porém, essas pessoas apresentam limitações quando têm de
resolver operações envolvendo maior número de elementos, etapas ou relações.
No que concerne aos que possuem nível pleno de alfabetização, segundo o INAF
(22), são aqueles com habilidades para compreensão/interpretação de situações
usuais, porque conseguem ler textos mais longos; analisar/relacionar as partes
dos textos; comparar e avaliar as informações; distinguir fatos de opiniões;
realizar inferências/sínteses; resolver problemas de matemática que exigem
maior planejamento/controle; compreender percentuais/proporções/cálculo de
área; interpretar tabelas de dupla entrada, mapas e gráficos(22).
Na presente investigação, os idosos que poderiam ser classificados na categoria
de Alfabetizados Funcionalmente foram aqueles que apresentaram letramento
adequado e que referiram ter hábito de leitura, mas esses representaram uma
proporção menor em relação àqueles classificados com letramento inadequado (p =
0,01).
Sobre as condições de saúde autorreferidas pelos idosos, todos os selecionados
deveriam estar em controle para o DM2. Esse agravo, segundo a literatura, é de
natureza crônica multissistêmica e traz como uma das principais implicações
várias alterações micro e macrovasculares, responsáveis pelas altas taxas de
morbidade e mortalidade(23). Nesse aspecto, tanto as complicações micro como as
macrovasculares associadas com DM2 são reduzidas significativamente através do
controle glicêmico vigilante, lipídios e controle da Hipertensão Arterial (HA)
(24). Sobre a habilidade para realizar esse controle, destaca-se que o baixo
LFS pode dificultar esse nível de compreensão e ser um dos fatores
complicadores que pode interferir no controle da glicemia e maximizar as
repercussões da progressão da doença.
Além disso, além do diabetes, os participantes do estudo também referiram
outras morbidades, o que os deixa ainda mais vulneráveis a outras complicações
orgânicas. Tendo-se em conta essa variável, observou-se que mais de 64% deles
apresentaram, juntamente com DM2, a hipertensão arterial (HA). Este agravo, tal
qual o DM2, é uma doença altamente prevalente entre idosos e determinante de
morbimortalidade elevada nessa população(25); no Brasil, a prevalência estimada
é de cerca de 65%, podendo chegar aos 80% entre as mulheres idosas. Assim,
rastrear também a HA entre os indivíduos de uma população, segundo alguns
pesquisadores, tem entre outros objetivos o de estratificar o risco da doença
cardiovascular global, além das lesões em outros órgãos-alvo, acometendo, por
exemplo, a função renal, que pode também estar comprometida quando associada
com a evolução da doença diabética(26).
O baixo LFS também mostrou-se associado com algumas complicações clínicas já
presentes pela doença diabética em uma parcela dos idosos. Sobre esse aspecto,
observou-se em cerca de 38,1% dos participantes (p = 0,01), e, entre essas
complicações, a mais prevalente foi aquela relacionada com a função visual.
Sobre esse âmbito, em estudo com idosos norte-americanos, relacionando as
variáveis "Inadequado, LFS" e "diabetes", houve uma associação estatística com
a retinopatia diabética. Além disso, foi avaliado também com o controle da
glicemia, estando intimamente implicado com as alterações microvasculares(27).
Muito embora, no estudo aqui apresentado, não se tenha especificado qual o
problema visual, essa correspondência poderá servir de alerta aos serviços de
saúde como saúde pública, pois essa complicação é muito usual na evolução da
doença e poderá impactar sobremaneira na capacidade do idoso de ler
corretamente o nome dos medicamentos, horários e outras recomendações sobre o
controle de sua saúde, sobretudo o controle da glicemia.
A literatura ainda chama a atenção para queixas de borramento visual, o que na
população idosa é subvalorizado, ou seja, é considerado como uma condição
natural entre as alterações visuais comuns no envelhecimento. Mas esse sintoma
clínico, associado com as alterações do DM2, contribui para o declínio
funcional, aumentando o risco de quedas(23).
Outro fator complicador da doença encontrado neste estudo foi a presença da
doença renal em 21,4% dos participantes, estando associado com o baixo LFS (p =
0,01). Esse resultado também chama a atenção, pois, quando o idoso tem
dificuldade para leitura e compreensão para o seu autocuidado em relação ao
controle da glicemia, existe a possibilidade de ocorrerem manifestações
clínicas importantes, porque, ao aumentarem muito os níveis plasmáticos de
glicose, poderá haver desidratação, poliúria, polidipsia e perda de peso(23).
Nesse contexto ainda, vale a pena salientar as demais complicações que foram
relatadas no estudo pelos participantes. Muito embora tenham sido encontradas
em menor proporção, merecem ser mencionadas devido ao grande impacto que podem
causar nas atividades cotidianas do idoso: a sensibilidade plantar; amputações
de membros que se apresentaram isoladas ou associadas, mas que estão
intimamente relacionadas com as alterações vasculares no curso da doença e
podem evoluir para o aneurisma aórtico, isquemia aguda dos membros ou gangrena
(23). Além disso, os participantes que informaram já apresentar essas
complicações tiveram baixo desempenho no teste de LFS.
Globalmente, o desempenho no teste de LFS aplicado neste estudo foi
"Inadequado" ou "Marginal" e, se considerarmos a adição entre esses dois
escores, tem-se que 84,0% da amostra que participou do estudo teve dificuldade
em compreender uma situação em saúde escrita. Esse fato pode predizer um
impacto considerável no autogoverno não somente da saúde, mas em outras
situações da vida dessas pessoas. Em estudo que avaliou 312 pessoas na cidade
de São Paulo, sobre LFS, os autores observaram que, entre os idosos, estes
atingiram uma taxa de baixo LFS que chegou a 51,6%(28).
Por outro lado, neste estudo, nas questões que envolveram conhecimento e
habilidades matemáticas, como cálculo de horário de medicações, taxa de
glicemia, cerca de 52,6% dos idosos conseguiram acertar todas as quatro
perguntas. Esse resultado talvez seja explicado pelo fato de que o
entrevistador faz a pergunta ao idoso sobre o que consta no cartão, e isso
talvez ajude a melhorar seu nível de compreensão. Ainda sobre essas habilidades
e controle da doença diabética, estudo com (n = 383) diabéticos (DM2)
demonstrou que um pior controle da glicemia estava relacionado com os baixos
níveis da matemática ou numeramento entre os participantes(29). Mas, mesmo
assim, fica visível pelos resultados deste estudo que a compreensão textual se
mostrou mais comprometida segundo o teste que foi aplicado, sugerindo que a
forma como as informações escritas são entregues aos usuários no serviço de
Saúde podem não ser bem compreendidas por eles, ou estarem escritas de uma
maneira que exige escolaridade mais alta, ou também podem conter vocábulos que
dificultem o entendimento.
Nesse âmbito, alguns estudos relatam que os profissionais de saúde devem ficar
alertas em identificar o LFS em usuários que apresentem comportamentos
inadequados no cotidiano da assistência quando: não preencherem os formulários
corretamente; faltarem às consultas com frequência; não forem aderentes ao
tratamento; não realizarem os exames quando solicitados ou quando se pede para
levar as informações escritas para serem lidas em casa; apresentarem confusão
com nome e horários de medicamentos, podendo estar essas situações associadas à
dificuldade de compreensão das informações pelo baixo LFS e essa condição não
se identificar somente pela autodeclaração. Além disso, na população que
apresenta maiores chances de ter baixo LFS, destacam-se os idosos, aqueles que
recebem baixos salários, desempregados, pessoas com baixa escolaridade, déficit
cognitivo, auditivo e visual, grupos étnicos minoritários e imigrantes(29-30).
Em estudo brasileiro(10,12)sobre o LFS, os pesquisadores recomendam sua
avaliação na atenção básica de saúde e a possibilidade de sua inclusão na
agenda das políticas públicas, para fortalecer as ações de promoção da saúde,
similarmente ao que ocorre em países desenvolvidos como Estados Unidos, Canadá,
Reino Unido, Austrália, entre outros.
Ainda que tenham sido tomados todos os cuidados no desenvolvimento metodológico
do estudo, ainda encontraram-se limitações quanto a generalização dos
resultados por tratar-se de um estudo transversal. Além disso, os possíveis
vieses de confundimentos - como a acuidade visual, auditiva, motora e
cognitiva, algumas limitações - ainda precisam ser consideradas nessa avaliação
e podem ter concorrido para o alcance deste resultado, entre eles o próprio
teste aplicado no estudo não ser específico para a população idosa.
CONCLUSÃO
O baixo LFS entre os idosos avaliados neste estudo foi inadequado e se manteve
associado estatisticamente com o nível de escolaridade. Segundo os indicadores
nacionais de alfabetização, esta amostra foi considerada analfabeta funcional,
e este pode ter sido um dos principais fatores condicionantes da habilidade de
ler e compreender as informações em saúde, tanto textuais como numéricas.
Infere-se, também, que atitudes preventivas por parte dos integrantes deste
estudo, como revisão anual de sua função visual, poderiam contribuir para
melhorar sua condição de leitura, entendimento das informações em saúde
escritas, e, dessa forma, oportunizar aos idosos mais independência nas
atividades da vida diária. Por outro lado, sobre esse aspecto, é importante
ressaltar que nem sempre existe a garantia de acesso a esses especialistas na
rede da atenção básica, e isso pode servir como uma barreira para que esses
idosos consigam melhorar sua funcionalidade visual e, consequentemente,
aprimorem a tomada de decisões sobre sua saúde.
Sobre os modos de avaliação do LFS em idosos, os estudos encontrados na
literatura brasileira não apresentam um consenso, talvez devido à insuficiência
de produção científica na área. Entretanto, o desafio que se apresenta a partir
deste estudo diz respeito às estratégias voltadas ao aumento do LFS dessa
população, por causa da tendência demográfica no Brasil e do impacto que o
baixo LFS pode causar negativamente sobre o autocuidado e a autogestão da
saúde.
Como citar este artigo:
Santos MIPO, Portella MR. Conditions of functional health literacy of an
elderly diabetics group. Rev Bras Enferm [Internet]. 2016;69(1):144-52.