Farmacovigilância: elementos para a discussão e perspectivas
Introdução
As atividades governamentais destinadas a garantir a qualidade dos medicamentos
e a assegurar o seu uso seguro e eficaz são conhecidas internacionalmente como
Drug Regulation e no Brasil como Vigilância Sanitária de Medicamentos.
O termo vigilância (surveillance) é empregado em saúde pública há cerca de um
século para o acompanhamento dos contatos de casos de doenças transmissíveis
sem o isolamento dos pacientes, e ao diagnóstico precoce. A partir da década de
50 adquiriu um sentido mais abrangente, significando o acompanhamento
sistemático de doenças ou de eventos adversos na comunidade (Waldman, 1991).
Embora o registro e a fiscalização de medicamentos em nosso país existam desde
a época do Brasil Colônia, o campo estruturou-se na década de 70. Criou-se, no
âmbito do Ministério da Saúde (MS) o que passou a ser conhecido como Vigilância
Sanitária, talvez pela tendência neste período de empregar vigilância como
acompanhamento de malformações congênitas, envenenamentos na infância,
leucemia, abortos, acidentes, doenças profissionais, problemas ambientais e
resultantes da utilização de tecnologias médicas, entre elas os medicamentos
(Waldman, 1991).
Várias leis e decretos sacramentaram a criação da 'velha-nova' área, entre eles
as Leis no 6.229 de 1975, no 6.360 de 1976 e no 5.991 de 1973, e os Decretos no
79.094 de 1977 e no 79.056 de 1976 (MS, 1978). As atividades dispersas foram
sistematizadas e estabeleceu-se um corpo normativo e institucional responsável
por: elaborar normas, executar inspeções, conceder registros e certificados,
divulgar as decisões regulatórias, identificar fraudadores e aplicar
penalidades. A legislação vigora até hoje e atinge os processos de prescrição,
produção, transporte, distribuição, importação e exportação de medicamentos.
Tais ações são privativas da autoridade sanitária dotada de poder de polícia e
incidem sobre o agente potencialmente causador do dano, vale dizer, cada um dos
elementos da cadeia de produção.
Mas a legislação prevê também a atuação da vigilância sobre os usuários dos
produtos. Diz o artigo 79 da Lei 6.360 de 1976 que "todos os informes
sobre acidentes ou reações nocivas causadas por medicamentos serão transmitidos
à autoridade sanitária competente". Portanto, subentende-se que a
notificação de reações adversas para um Sistema Nacional de Farmacovigilância é
obrigatória. Farmacovigilância é o conjunto de métodos e técnicas que têm por
objetivo a identificação e a avaliação dos efeitos do uso, agudo ou crônico, do
tratamento farmacológico no conjunto da população ou em subgrupos de pacientes
expostos a tratamentos específicos (Tognoni & Laporte, 1989).
Diferentemente do registro e da fiscalização atos privativos das autoridades
sanitárias com poder de polícia o monitoramento de reações adversas pode ser
executado nas universidades, nos institutos de pesquisa ou na rede de
assistência à saúde. Não obstante o enorme leque de possibilidades
institucionais, a notificação ainda é incipiente no País e inexiste o sistema
nacional.
Há indícios, entretanto, de que o panorama está se transformando. A Secretaria
Nacional de Vigilância Sanitária, através da Portaria SVS no 40 de 09/05/95,
criou uma comissão para propor a implantação de um Sistema Nacional de
Farmacovigilância (Arrais, 1995). Em razão disso, é oportuno revisar os
aspectos básicos ligados ao elemento central da farmacovigilância, a saber, as
reações adversas. Ao final, será oferecida uma visão das condições atuais do
campo em nosso meio.
Definições e conceitos
O estudo dos efeitos adversos causados pelas substâncias químicas nos
organismos vivos é a Toxicologia. A Farmacologia Clínica é a disciplina que
trata dos benefícios e dos danos potenciais dos fármacos nos seres humanos
(Goodman & Gilman's, 1996). Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS)
fármaco é qualquer substância ou produto usado ou que se pretende usar para
modificar ou explorar sistemas fisiológicos ou estados patológicos em benefício
de quem o recebe (WHO, 1972).
O tratamento adequado ao tema requer a apresentação da terminologia oficial no
Brasil (MS,1978). Segundo a Lei no 5.991/73, droga é uma substância ou matéria-
prima com finalidade medicamentosa ou sanitária; medicamento é um produto
farmacêutico, tecnicamente obtido ou elaborado, com finalidade profilática,
curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico; insumo farmacêutico é uma
droga ou matéria-prima aditiva ou complementar de qualquer natureza, destinada
a emprego em medicamentos, quando for o caso, e seus recipientes. Apesar das
definições legais, não é recomendável empregar a palavra droga para se referir
à matéria-prima, dada a sua evidente associação com as drogas ilícitas,
preferindo-se fármaco, substância ativa ou princípio ativo. O termo
especialidade farmacêutica é sinônimo de produto medicamentoso.
Em meados da década de 60, considerava-se reação adversa ou efeito indesejável
como sendo a piora do estado clínico ou biológico de um indivíduo, que o médico
atribuía à tomada de um medicamento em doses habitualmente utilizadas e que
demandava uma terapêutica, a diminuição da dose ou ainda a suspensão do
tratamento, senão geraria um risco incomum no caso de tratamento posterior com
o mesmo medicamento (Dangoumau et al., 1978). Trata-se de uma definição que tem
a marca da sua época: ênfase nos aspectos biológicos e no diagnóstico atribuído
ao médico. Posteriormente, a OMS definiu reação adversa como sendo aquela que é
nociva, involuntária e que ocorre nas doses normalmente usadas em seres humanos
(WHO, 1972). A maioria delas é leve e não requer o uso de antídotos; um número
menor é de gravidade moderada, podendo causar ou prolongar a internação
hospitalar ou demandar o uso de antídotos; num número ainda menor, a reação é
grave, pois ameaça a vida ou leva à morte.
Há várias expressões usadas para caracterizar os eventos adversos. As palavras
acidentes e intoxicações sugerem inadequações na produção, na circulação ou no
uso de produtos farmacêuticos. Nestes casos, é costume atribuí-los a
medicamentos fraudados, contaminados, adulterados ou falsificados. Tais
expressões são empregadas na própria legislação brasileira sugerindo
intencionalidade dos produtores, dos distribuidores, dos provedores de atenção
à saúde ou dos usuários, tais como, ingestão de doses anormais com finalidade
não terapêutica; prescrição ou dispensação quando há restrições de uso ou
contra-indicações; adulteração na fabricação, na comercialização ou no
transporte dos produtos por motivações comerciais. Conforme consta no artigo 48
da Lei no 5.991/1973 (MS, 1978), uma vez "comprovada a alteração,
falsificação, adulteração ou fraude, será lavrado, de imediato, auto de
infração e notificada a empresa para início do processo". A palavra
"acidente' usada nestes casos seria, portanto, inadequada, uma vez que
atribui aos eventos o caráter aleatório.
Os termos reações ou efeitos adversos, colaterais ou indesejáveis focalizam os
resultados da utilização dos produtos e relacionam-se às suas características
intrínsecas e à prescrição. Às vezes, emprega-se a palavra iatrogenia, que
significa qualquer malefício ocasionado pelos procedimentos médicos. Tais
termos sugerem o emprego de medicamentos em circunstâncias nas quais o
conhecimento clínico-farmacológico é insuficiente para evitar o dano, dado o
estágio atual das pesquisas no plano internacional; ou ainda, nos casos em que
a análise benefício/risco é favorável, em que os benefícios superam os riscos.
O controle dos problemas daí decorrentes envolve mecanismos de defesa criados
pela sociedade para salvaguardá-la dos danos potenciais dos medicamentos,
mecanismos estes que podem ser agrupados sob o rótulo de 'estratégias para o
uso racional'. Com relação aos 'acidentes' e 'intoxicações', o controle é feito
por meio da aplicação rigorosa da lei, identificando as irregularidades e
punindo os infratores. As autoridades sanitárias responsáveis atuam nas
vigilâncias sanitárias municipal, estadual ou federal (Rozenfeld, 1989) e nos
Conselhos de Classe. Embora as reações adversas aos medicamentos sejam
definidas pela OMS como evento involuntário, não há como desconsiderar a sua
ocorrência por imperícia, imprudência ou negligência.
Reações adversas alguns marcos históricos
A história da identificação das reações adversas está articulada à da criação
pelo Estado de normas para garantir a qualidade dos remédios e proteger a saúde
da população contra o charlatanismo e a fraude. Isso ocorreu ao longo dos
tempos tendo como pano de fundo as mudanças sociais, o avanço das ciências
básicas e, particularmente, a atuação da saúde pública através dos seus órgãos
de controle e de regulamentação. Tais órgãos estão hoje implantados na maioria
dos países. Há também instituições internacionais participando deste esforço,
tais como, a OMS, a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Comunidade
Econômica Européia.
Tempos Antigos O registro das reações adversas e o das punições aos
responsáveis é tão antigo quanto a história do homem e da medicina. O Código de
Hammurabi da Babilônia, datado de 2200 aC, dizia que um médico que causasse a
morte de um paciente perderia as mãos. Hipócrates (460-570 aC) preconizava
"Não causem dano", e Galeno (131-201 dC) advertia contra os perigos
das prescrições mal escritas e obscuras. Os efeitos tóxicos do arsênico e dos
ungüentos de mercúrio eram conhecidos. Em 1224 o Imperador de Hohenstaufen,
Frederico II, implantou a inspeção regular dos compostos preparados nas
farmácias e declarou que a vida de um fornecedor seria sacrificada caso o
consumidor morresse. No Renascimento (1500-1750) surgiram as farmacopéias. Os
autores da primeira Farmacopéia de Londres, em 1618, condenavam as pessoas que
vendiam as mais repugnantes misturas sob a designação de remédio, embora eles
mesmos incluíssem vermes, serpentes secas e pulmão de raposa no catálogo de
medicamentos aceitáveis (Davies, 1987).
No século XVII, pela primeira vez, uma droga foi proscrita por causa da sua
toxicidade. Os membros da Faculdade de Medicina de Paris foram proibidos de
usar antimônio, mas o banimento não foi mantido, pois atribuiu-se ao antimônio
a cura de um ataque de febre tifóide sofrido por Luís XIV. Escritores famosos
pontificavam sobre o assunto; Voltaire dizia que os médicos "entornavam
drogas que pouco conheciam em corpos que conheciam menos ainda". Uma
epidemia de febre amarela em alguns estados norte-americanos conferiu
notoriedade ao mercúrio; os médicos acreditavam que a cura da doença estava na
expulsão de substâncias biliares fermentadas no trato gastrintestinal e por
isso recomendavam-no em altas doses misturado com outros purgantes. Alguns
pacientes apresentaram perda dos dentes, úlcera ou gangrena da boca e face e
osteomielite da mandíbula. Ainda assim, ele continuou sendo usado pelos médicos
por muitos anos (Davies, 1987).
No Brasil, as ordenações do Reino do século XVI estabeleceram que a
distribuição de drogas era privativa de boticários. Em 1744 o regimento do
físico-mor do Reino proibiu a distribuição de drogas por estabelecimentos não
habilitados, fixando multas e apreendendo estoques nos casos de violação da
lei; criou a figura do profissional responsável; exigiu que as boticas
possuíssem balanças, pesos, medidas, medicamentos galênicos, produtos químicos,
vasilhames e livros elementares e criou a fiscalização sobre a conservação das
drogas e dos vegetais medicinais (Zubioli, 1992).
Entre 1750 e 1830, na Europa, surgiram os primeiros registros nacionais de
mortalidade e os inquéritos regionais. Acirrou-se a competição entre os
produtores, gerando a necessidade de regulamentação para evitar a concorrência
fraudulenta. No campo da administração, Johann Peter Frank e Franz Anton Mai
assentaram as bases da polícia médica exercida pelo Estado, marco inaugural da
medicina social (Rosen,1994) e ancestral direto da vigilância sanitária.
No início do século XIX, dois acontecimentos marcaram o desenvolvimento
industrial farmacêutico e a regulamentação dos medicamentos: a lei de patentes
e o isolamento da morfina pura a partir do ópio em 1805 (Lee & Herzstein,
1986). Surgiram novas farmacopéias em vários países e pela primeira vez
estabeleceram-se os padrões de pureza dos fármacos. Em 1848 foi criado o
primeiro estatuto de controle da qualidade dos fármacos nos Estados Unidos após
o episódio de importação para o Exército de quinina adulterada (Davies, 1987).
Enquanto isso, no Brasil, criou-se em 1809 no Rio de Janeiro a cadeira de
Medicina Clínica teórica que continha matéria médica e farmacêutica, polícia
médica, higiene e terapêutica. As visitas às boticas e as inspeções sanitárias
eram exercidas pelo físico-mor e cirurgião-mor do Império até 1828, e
posteriormente pelas Câmaras Municipais. Mais tarde, a Sociedade de Medicina
passou a exercer algumas ações de regulamentação, tais como aplicar multas aos
que faziam propaganda em lugares públicos, anunciavam a cura pela imprensa ou
vendiam remédios não aprovados pela Sociedade ou por uma faculdade de Medicina
(Machado et al., 1978).
Nos últimos anos do século XIX e no início do século XX, apareceram na
Inglaterra, na Suíça e nos Estados Unidos as primeiras legislações e órgãos
específicos de controle de medicamentos, com ênfase na proteção do consumidor
contra as fraudes. Mas a Noruega e a Suécia foram pioneiras no desenvolvimento
de uma regulamentação voltada não somente para a segurança, mas também para a
eficácia dos fármacos (Lee & Herzstein, 1986). Neste período ocorreram
importantes inquéritos sobre suspeitas de reações adversas, tais como os
referentes às mortes súbitas durante anestesia por clorofórmio e à icterícia
após o uso de arsenicais no tratamento da sífilis. Assim, a American Medical
Association criou o Council on Pharmacy and Chemistry, e finalmente surgiu o
American Food, Drug and Inseticide Administration, que mais tarde originou a
agência norte-americana de regulamentação, o Food and Drug Administration/FDA
(Davies, 1987).
O surgimento de um dos órgãos de controle mais influentes no mundo não impediu
a ocorrência, em 1937, de mais de cem mortes pelo dietilenoglicol contido no
xarope de sulfanilamida, cujos efeitos tóxicos já estavam documentados. No
rastro deste desastre, o Congresso norte-americano aprovou o Food, Drug and
Cosmetic Act, alterando a regulamentação dos medicamentos e influenciando
outros países. A nova legislação proibiu a comercialização de novos fármacos
sem a autorização do FDA, concedida mediante comprovação de sua segurança pelo
fabricante. Deixava-se a cargo do médico a avaliação da eficácia (Lee &
Herzstein,1986).
No Brasil, entre a segunda metade de século XIX e a primeira metade do século
XX, apareceram as primeiras regulamentações para garantir a qualidade dos
medicamentos. Elas são contemporâneas de denúncias como a que se segue,
publicada em 1918 por Monteiro Lobato: "Em matéria de drogas nem é bom
falar. Iodofórmio adulterado com enxôfre. Emetina fabricada com sais de quina.
Quinino e aspirina feitos com lactose. Óleos minerais e medicinais clarificados
com ácido sulfúrico impuríssimo, contendo arsênico. E, cúmulo, 914 em ampolas
que não passa de finíssimo fubá de milho amarelo... São Paulo virou o paraíso
da fraude bromatológica. Indefesa como está a cidade, confiada a uns fiscais
que fiscalizam para sí, os desalmados envenenam-nos por todas as vias e
amontoam fortunas colossais à custa da saúde alheia... São duas coisas que,
arre! valem a pena: falsificar e fiscalizar" (Lobato, 1964).
No plano federal, o Decreto no 19.606/1931 estabeleceu as normas para o
controle sanitário e a atuação da indústria farmacêutica no Brasil, inovando em
alguns aspectos, entre os quais o condicionamento da venda dos produtos que
agem sobre o sistema nervoso central e causam dependência física ou psíquica à
retenção da receita médica na farmácia (Zubioli, 1992). Em 1934, o Relatório da
Inspetoria de Farmácias menciona o fechamento de um laboratório devido à
denúncia de "intoxicação de um cidadão por aplicação ao mesmo de duas
ampolas de auto-vacina estafilocócica do laboratório em questão que após
procedidas todas as formalidades legais foi multado e fechado, pois também
tinha o agravante de não possuir licença da Diretoria Geral de Sáude"
(Guedes, 1990).
No plano regional, os Estados do Paraná e de São Paulo foram pioneiros. No
Paraná, a legislação de 1864 regulamentou a concessão de habilitação para o
exercício da medicina e da farmácia (Guedes, 1990). Em São Paulo, criou-se no
final do século XIX um corpo de delegados para fiscalizar as profissões
médicas, e em 1938 o Serviço de Laboratórios de Saúde Pública, abrangendo o
Instituto Butantã, o Instituto Bacteriológico e o Laboratório de Análises
Químicas e Bromatológicas; os dois últimos fundiram-se dois anos depois para
dar origem ao Instituto Adolfo Lutz, órgão de referência para o controle de
qualidade até os dias atuais (Waldman, 1991).
Apesar da criação dos órgãos de controle e da divulgação dos graves acidentes
relacionados ao uso dos medicamentos no Brasil e no mundo, a difusão de
informações sobre toxicidade sempre foi tardia e muitas vezes de efeito
transitório. Assim é que foram necessários 47 anos para se descobrir que o
analgésico amidopirina produzia intoxicação medular; a aspirina foi usada
durante 39 anos antes de ser incriminada como responsável por causar hemorragia
gástrica e outros vinte para que a notícia se espalhasse; os perigos do
cloranfenicol foram observados no início da década de 50, mas décadas depois as
advertências ainda eram desconsideradas (Davies,1987).
Graças ao acúmulo de conhecimento no campo das ciências biomédicas e à
concentração de recursos financeiros engendrada no Pós-Guerra, testemunhou-se,
entre as décadas de 30 e 60, o mais intenso desenvolvimento de toda a história
das descobertas de agentes profiláticos e terapêuticos. Surgiram os
antibióticos e os tranqüilizantes que revolucionaram a própria prática médica.
Paralelamente, aparece em 1952 o primeiro livro inteiramente dedicado às
reações adversas e, no mesmo ano, o Council on Pharmacy and Chemistry
daAmerican Medical Association implanta uma organização para monitorar as
discrasias sangüíneas induzidas por fármacos (Davies, 1987).
Tempos Modernos Em 1961, surgiram as primeiras notícias dos efeitos danosos
da talidomida o nascimento de bebês com deformidades dos membros. O episódio
marcou tragicamente o início de uma nova era no controle das reações adversas
aos fármacos, caracterizada pelo lançamento de estratégias mais inteligentes e
menos policiais e pela diversificação e expansão dos mecanismos de
regulamentação e monitoramento. Multiplicaram-se as iniciativas em todos os
níveis da organização social: nacional, supranacional e regional. Muitos países
criaram agências para tratar da segurança no uso dos fármacos e praticamente
todos os países europeus desenvolveram regulamentos específicos (Lee &
Herzstein, 1986).
Os EUA aprovaram, em 1962, a emenda Kefauver-Harris, reforçando os requisitos
do FDA para comprovar a segurança dos fármacos, mediante a exigência de
apresentação pelos fabricantes de extensos estudos pré-clínicos farmacológicos
e toxicológicos e estudos clínicos bem controlados. Ademais, a emenda
determinou a revisão da eficácia de todos os produtos aprovados entre 1938 e
1962; disso resultou o Drug Efficacy Study Implementation, desenvolvido pela
National Academy of Sciences, que recentemente concluiu o trabalho, resultando
na remoção de milhares de produtos ineficazes e de associações em doses fixas
(Strom, 1994a). Associações em doses fixas são combinações de duas ou mais
substâncias ativas na mesma fórmula.
Na área hospitalar, o FDA começou, a partir de 1960, a coletar os registros de
reações adversas e a patrocinar programas de monitoramento de fármacos
(Davies,1987). Nas universidades iniciou-se a vigilância de antibióticos e de
anticoagulantes. Estudos prospectivos pioneiros estimaram a incidência de
reações adversas durante a internação na faixa de 10% a 15%; ademais, 5% dos
pacientes eram internados com reações adversas, sendo a maioria delas
responsável pela internação (Seidl et al., 1965, 1966; Hurwitz, 1969).
Atualmente, a Joint Commmission on Accreditation of Health Care Organizations
requer que cada hospital tenha um programa de monitoramento de reações adversas
e um programa de avaliação do uso de fármacos (Strom, 1994b).
No Brasil, nas décadas de 60 e 70, o Serviço Nacional de Fiscalização da
Medicina e Farmácia e a Comissão de Biofarmácia do Ministério da Saúde
proscreveram ou restrigiram vários produtos, tais como: acetato de
medroxiprogesterona de uso intramuscular, óleo de vaselina de uso nasal,
arsenicais inorgânicos, procaína oral, cálamo, sais de cobalto, penicilina
tópica, sulfato de neomicina em preparações extemporâneas, clorpromazina
associada a dipirona e aminopirina, metiltestosterona de uso oral, silicone
líquido, sulfas, cromatos e bicromatos de uso tópico, anticoncepcionais
seqüenciais, cloranfenicol associado, naproxeno, corante Bordeuax S, alguns
anti-helmínticos, sementes de cânhamo, hexaclorofeno de uso em mucosas e
talidomida. Nas décadas de 70 e 80, a Câmara Técnica de Medicamentos do
Conselho Nacional de Saúde impôs restrições a: uretana, carbamato de etila,
clorofórmio, dihidroestreptomicina, fernormin em associação, estrógeno-
progestágeno para diagnóstico da gravidez, vitaminas em produtos dietéticos,
níveis de ciclamato e sacarina em produtos edulcorantes. Na década de 80, o
Conselho Federal de Entorpecentes impôs restrições aos produtos com substâncias
estimulantes do sistema nervoso central.
Além dos atos normativos específicos, surgiu a legislação geral que vigora até
hoje. Destacam-se duas leis. A Lei no 5.991/1973 dispõe sobre o controle
sanitário do comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e
correlatos e prevê a colheita periódica de materiais e a interdição do estoque
em estabelecimentos suspeitos de fraude. A Lei no 6.360/ 1976 regula os atos
relacionados à cadeia de produção desde a fabricação até a propaganda;
determina a transmissão à autoridade sanitária competente dos acidentes ou
reações nocivas, define produto alterado, adulterado ou impróprio para o
consumo e tipifica as infrações (MS, 1978).
No plano internacional, acumularam-se iniciativas nas últimas décadas. A
garantia de qualidade das especialidades farmacêuticas tem estado presente nas
estratégias de integração da Comunidade Econômica Européia, embora motivada por
razões de ordem econômica. Desde 1965, representantes dos países-membros
elaboram normas para harmonizar dispositivos legais e reguladores. Difundiu-se
para todos os países a obrigatoriedade da autorização pré-comercialização,
posterior à comprovação pelo fabricante da qualidade, da inocuidade e da
eficácia, mediante os resultados dos ensaios e dos testes experimentais e
clínicos (Ministério de Sanidad y Consumo, 1984). A Organização Mundial da
Saúde organizou encontros regionais e globais entre as agências
regulamentadoras dos vários países e entre os pesquisadores das universidades e
dos centros de investigação. Deve-se também registrar a sua recomendação para
limitar o uso àqueles medicamentos de eficácia e segurança comprovadas, com os
menores custos e que atendam ao leque mais amplo de necessidades sanitárias
(WHO, 1977). A ONU publica, desde 1982, uma lista cumulativa das substâncias
que sofreram restrições à comercialização por razões de segurança, nos últimos
trinta anos, onde figura o nome dos países responsáveis pela decisão e as
justificativas. Ela contém hoje cerca de trezentos princípios ativos (United
Nations, 1991).
Importantes estudos destinados a avaliar a dimensão do problema nos países
subdesenvolvidos têm sido realizados. A OMS, em 1983, promoveu o encontro de
autoridades dos países asiáticos para discutir a regulamentação de fármacos, no
qual sugeriu-se agregar à legislação elementos referentes ao monitoramento de
reações adversas e à compensação para as vítimas dos fármacos (Jayasuriya,
1985). Posteriormente, a OMS patrocinou um inquérito para avaliar os resultados
do Programa de Ação de Medicamentos Essenciais e da Implantação da Lista de
Medicamentos Essenciais em 104 países subdesenvolvidos; os resultados mostraram
que o controle de qualidade laboratorial existia em 70% dos países, embora na
maioria deles não funcionasse adequadamente; 65% do países não possuíam
mecanismos de monitoramento de reações adversas e 19% possuíam mecanismos
assistemáticos (WHO, 1988). O Office of Technology Assessement, órgão do
Congresso norte-americano, realizou um inquérito para examinar as práticas
usuais de rotulagem na qual a bula é o componente mais importante das
companhias farmacêuticas norte-americanas em países subdesenvolvidos, incluindo
o Brasil; foram analisados os impressos de 273 produtos correspondentes a 18
grandes empresas. Como resultado, constatou-se o comportamento diferenciado
conforme sejam dirigidos a países do primeiro mundo ou subdesenvolvidos. No
campo dos efeitos adversos, 25% do material apresentaram problemas, entre os
quais 59% foram considerados graves, como, por exemplo, a ausência de alerta
quanto à agranulocitose ou à Síndrome de Stevens-Johnson (OTA, 1993).
Resumindo, pode-se afirmar, como Lee & Herzstein (1986), que os fármacos
estão entre os produtos mais pesadamente regulamentados da sociedade. Isso se
deve, em parte, ao impacto da difusão dos eventos adversos. Embora o impulso
inicial da regulamentação tenha derivado da necessidade de normatizar a
competição entre os fabricantes, quanto aos nomes de marca, por exemplo, ela
evoluiu posteriormente para a proteção dos consumidores contra as fraudes e
para a incorporação dos resultados dos estudos epidemiológicos.
Há um debate recorrente que coloca, de um lado, argumentos combatendo a 'mão
pesada' do Estado, tais como: os elevados custos industriais para a pesquisa e
o desenvolvimento de novos fármacos; a restrição à liberdade de produção e de
prescrição de novidades terapêuticas e o atraso tecnológico gerado pela demora
na concessão governamental da licença para comercialização. Do outro lado, há o
entendimento de que o reforço às agências regulamentadoras é o antídoto mais
eficaz para combater os efeitos danosos dos medicamentos, sejam eles o
resultado de fraude, negligência ou insuficiência do conhecimento científico.
Nesta linha de argumentação, recomenda-se: a difusão das informações clínico-
farmacológicas; os registros sistemáticos das reações adversas; o
desenvolvimento de sistemas de vigilância pós-comercialização; a necessidade de
basear as decisões terapêuticas em ensaios clínicos controlados e em estudos
observacionais bem desenhados.
Entretanto, basta dar uma olhada no alentado volume de substâncias que sofreram
restrições nas últimas décadas e nas respectivas justificativas, ou então
observar a freqüência e o perfil das reações adversas, sobretudo em grupos
populacionais mais vulneráveis, para fazer a balança pender inexoravelmente
para o segundo grupo de argumentos.
Apesar dos custos econômicos do investimento na regulamentação de fármacos é
preciso compreender, como Lee & Herzstein (1986), que "the potencial
benefits and hazards of modern drugs are too important to be left to the
marketplace and the unregulated functioning of the pharmaceutical
industry". Ou, se nenhum destes argumentos for suficiente, é bom lembrar
que, por mais rigorosos que sejam os ensaios clínicos e os estudos
observacionais, por mais racionais que sejam as prescrições e por mais éticos
que sejam os que prescrevem, dispensam, transportam ou vendem medicamentos,
ainda assim, estamos diante de substâncias cujos riscos de efeitos tóxicos não
podem ser totalmente eliminados ou, às vezes, sequer conhecidos.
Classificação e mecanismos de produção de reações adversas
Não há substância química totalmente segura ou totalmente tóxica. O
dimensionamento do risco requer a compreensão dos mecanismos de produção dos
efeitos tóxicos que embasam as classificações.
No Brasil, um dos pioneiros no estudo das reações adversas foi o professor
Paulo Dias da Costa, que publicou um trabalho sobre alergia à penicilina em
1948 e, posteriormente, sintetizou classificações antigas de reações adversas
(Costa & Souza, 1985). Nessa síntese, observa-se que os efeitos
indesejáveis mais conhecidos eram as manifestações alérgicas e por isso as
primeiras classificações enfatizavam este mecanismo; mas havia autores que, no
início da década de 40, alertavam para o erro de atribuir todas as
manifestações indesejáveis às alergias e levantavam outras possibilidades, tais
como os efeitos tóxicos, os efeitos cumulativos, a hipersensibilidade, os
processos desconhecidos ou a combinação desses mecanismos. Ainda segundo Costa
& Souza (1985), Naranjo, em 1965, apresentou uma classificação baseada nos
seguintes grupos: reações do tipo tóxico intoxicações e idiossincráticas;
efeitos colaterais ou secundários o mesmo efeito produzido por distintas
drogas ou efeitos produzidos por um mesmo grupo farmacodinâmico; reações por
hábito dependência física ou psíquica; reações por sensibilização
alérgicas, anafiláticas ou por liberação de histamina; reações fotoinduzidas;
reações teratogênicas ou embriotóxicas.
Há uma classificação que, embora didática, tem escassa aplicabilidade prática
clínica ou epidemiológica, além de dificultar o enquadramento de certos tipos
de reação, como, por exemplo, a teratogênica: 1) superdosagem relativa
resulta da concentração superior de um fármaco administrado em doses normais,
por razões farmacocinéticas; 2) efeitos colaterais são inesperados e
inerentes à própria ação farmacológica; 3) efeitos secundários são
conseqüência do efeito desejado mas não se relacionam à ação farmacológica
principal; 4) idiossincrasia é uma sensibilidade peculiar a um produto
motivada pela estrutura do sistema enzimático e geralmente de base genética; 5)
hipersensibilidade alérgica ocorre após a sensibilização prévia mediada por
mecanismo imunológico; 6) tolerância é o fenômeno pelo qual a administração
repetida na mesma dosagem diminui a intensidade dos efeitos (Capellà &
Laporte, 1989). Comparando esta classificação com a de Naranjo, nota-se que as
reações idiossincráticas e as intoxicações não figuram mais no mesmo grupo;
isto é compreensível, pois o avanço no campo da genética realça as
idiossincrasias como explicação dos eventos indesejáveis.
Atualmente, a classificação mais empregada é a de Rawlins e Thompson (Davies,
1987), que agrupa as reações adversas naquelas que são ações farmacológicas
normais, porém aumentadas (tipo A), e nas que são efeitos dos fármacos
totalmente anormais, bizarros (tipo B). As reações do tipo A são
farmacologicamente possíveis de prever, são dose-dependente, têm altas
incidência e morbidade, baixa mortalidade e podem ser tratadas ajustando-se a
dose. As reações do tipo B não são farmacologicamente previsíveis, não são
dose-dependente, têm incidência e morbidade baixas, alta mortalidade e devem
ser tratadas com suspensão do fármaco.
Reações adversas do tipo A (aumentada) Ocorrem por causas farmacêuticas;
farmacocinéticas, ligadas ao modo anormal pelo qual o organismo de alguns
indivíduos 'conduzem' os fármacos; farmacodinâmicas, determinadas por fatores
genéticos ou doenças que alteram a sensibilidade dos órgãos-alvo. A bradicardia
com os -bloqueadores adrenérgicos, a hemorragia com os anticoagulantes ou a
sonolência com os benzodiazepínicos são reações do tipo A. Às vezes, a ação
farmacológica primária do fármaco ocorre num órgão ou tecido que não é aquele
para o qual estava destinado; é o caso da úlcera péptica e hemorrágica com os
antiinflamatórios não esteróides ou da osteoporose com os glicocorticóides.
Muitas delas ocorrem graças a uma propriedade da substância não relacionada ao
efeito terapêutico: algumas fenotiazinas, muitos anti-histamínicos H e a
maioria dos antidepressivos tricíclicos têm propriedades anticolinérgicas que
resultam numa reação do tipo atropina com boca seca, dificuldade de acomodação
visual e retenção urinária. O mesmo ocorre com as propriedades antiandrogênicas
da cimetidina, a ação de bloqueio neuromuscular dos aminoglicosídeos ou a
teratogenicidade da talidomida. Pode haver variabilidade individual com a
administração da mesma quantidade de fármaco. Isso ocorre, por exemplo, com o
salicilato: observa-se pequeno sangramento gastrintestinal, facilmente
compensado, em praticamente todas as pessoas, após a ingestão de uma única dose
de aspirina, mas alguns indivíduos perdem quantidades apreciáveis de sangue,
podendo desenvolver anemia franca por deficiência de ferro. O zumbido ocorre em
todos os que tomam doses elevadas de aspirina; a susceptibilidade individual a
este sintoma, entretanto, é muito grande a para produzi-lo varia de 3g a 29g
(Davies,1987).
Reações adversas do tipo B (bizarras) Caracterizam-se por alguma diferença
qualitativa no fármaco, no paciente ou em ambos. As reações do tipo B por
causas farmacêuticas ocorrem por: decomposição de constituintes ativos; efeito
de aditivos, solubilizantes, estabilizantes, corantes e excipientes; efeitos de
produtos secundários aos constituintes ativos, provenientes do processo de
fabricação. A tetraciclina, quando armazenada em temperaturas elevadas,
degrada-se, transformando-se numa massa viscosa marron e produz uma síndrome do
tipo Fanconi com aminoacidúria, glicosúria, acetonúria, albuminúria, piúria,
elevação do -aminonitrogênio plasmático e fotossensibilidade. O propilenoglicol
usado como solvente em fármacos injetáveis pode ser parcialmente
responsabilizado pela hipotensão que se segue à injeção endovenosa de
fenitoína. As reações por causas farmacocinéticas, isto é, anormalidades na
absorção, na distribuição ou na eliminação, são escassas, pois a absorção e a
distribuição são predominantemente processos passivos e anormalidades na
eliminação podem surgir quando o metabolismo de um fármaco origina um
metabolito novo e raro. Nas causas farmacodinâmicas, fatores como peso, idade,
sexo, via e tempo de administração influenciam a resposta dos órgãos-alvo a um
dado fármaco, produzindo diferenças quantitativas nas respostas. A presença de
doença pode resultar em diferenças qualitativas ou quantitativas, sendo que as
primeiras podem ser genéticas, imunológicas, neoplásicas ou teratogênicas.
Entre as causas genéticas, uma das mais conhecidas é a deficiência de glicose-
6-fosfato desidrogenase, que resulta em hemólise e envolve um grande número de
fármacos, tais como, as aminoquinolonas, as sulfonamidas e sulfonas, os
nitrofuranos, os analgésicos (incluindo a aspirina) (Davies,1987). Entre as
causas imunológicas estão: as anemias hemolíticas induzidas por penicilina; a
anemia hemolítica auto-imune induzida por metildopa; a púrpura trombocitopênica
induzida por quinidina; a granulocitopenia induzida por sulfonamida e o lupus
eritematoso sistêmico induzido por procainamida ou por hidralazina (Goodman
& Gilman's, 1996). No que se refere às reações neoplásicas e as
teratogênicas, é preciso considerar que uma resposta qualitativamente anormal a
um fármaco pode ocorrer pela presença de tecido potencialmente neoplásico ou
teratológico no organismo (Davies, 1987).
Diagnóstico das reações adversas
Esta é uma das questões mais problemáticas da área. A dificuldade para decidir
se um determinado quadro clínico foi induzido por um fármaco pode ser ilustrada
com o estudo de eventos suspeitos a partir dos resumos médicos de alta
hospitalar: quinhentos deles foram avaliados por três farmacologistas clínicos
usando definições explícitas e testadas de reações adversas, e em apenas um
quinto dos casos os registros estavam indubitavelmente corretos (Davies, 1987).
Na verdade, a falta de uniformidade no diagnóstico se estende por toda a
prática médica. O diagnóstico de reações adversas é apenas um caso particular
de diagnóstico diferencial, onde o fator implicado é uma substância
paradoxalmente indicada para curar. Um dos elementos-chave para o entendimento
das diferenças entre os diagnósticos de vários clínicos para um mesmo caso é a
subjetividade presente nos processos de decisão diagnóstico e terapêutico.
Procurando compreender as diferenças na preferência dos médicos entre várias
opções terapêuticas, Denig et al. (1993) concluíram que um modelo de decisão
que inclui apenas valores e expectativas biomédicas é capaz de predizer o
tratamento em não mais do que 53% dos casos; a inclusão de aspectos sociais,
tais como a aprovação dos colegas e dos pacientes e a experiência, sobretudo a
própria, aumentam a capacidade de previsão do modelo para 77%. O mesmo estudo
revelou uma grande variação nas expectativas quanto às reações adversas: 94% de
todas elas foram citadas por menos de 50% dos entrevistados.
A inconsistência das decisões médicas entre os profissionais levou à busca de
critérios objetivos para diagnosticar as reações adversas. Surge o algoritmo de
Karch & Lasagna (1977), apresentado no formato de três tabelas de decisão:
1) exclusão dos envenenamentos, dos suicídios e do não-cumprimento da
prescrição;
2) aplicação de cinco critérios: seqüência temporal apropriada, curso clínico
consistente com o efeito conhecido de doenças ou de terapias não
farmacológicas, curso clínico consistente com o efeito conhecido do fármaco,
efeito da redução ou da suspensão da dose e efeito do reinício da terapia. De
acordo com esses elementos, a reação é classificada como definida, provável,
possível, condicional ou não relacionada.
3) identifica as causas: cumprimento atípico da prescrição, erro de prescrição,
interação, doença terminal, uso do fármaco apropriado.
O algoritmo foi testado por meio do estudo de pacientes internados com suspeita
de reação adversa, comparando-se o laudo elaborado por três farmacologistas
clínicos com o algoritmo aplicado por um investigador independente, havendo
concordância em 71% dos casos. O método, embora confira objetividade ao
diagnóstico, é inútil para identificar as reações desconhecidas e não fornece
critérios para julgamentos individuais ou dados para a reprodutibilidade da
avaliação (Karch & Lasagna, 1977).
Outros autores criaram um método semelhante denominado imputabilidade, com dois
componentes; imputalibidade intrínseca, sustentada nos critérios do algoritmo
citado acima, acrescido de exames complementares, características
constitucionais ou congênitas e antecendentes patológicos; e imputabilidade
extrínseca, baseada na literatura. Atribuem-se pontos a cada um dos critérios a
fim de criar combinações númericas que descrevem nove situações. Uma delas
enquadra uma reação como verossímil, segundo as características do caso, e como
duvidosa, segundo a literatura, o que sugere uma reação adversa nova. A
complexidade do método pode ser ilustrada com as possíveis situações
intermediárias quanto à regressão dos sintomas com a suspensão do tratamento: a
tardia; a provocada por tratamento corretivo com enfraquecimento da relação
entre o sintoma e o medicamento e a regressão irreversível, como na surdez por
aminoglicosídeos (Dangoumau et al., 1978).
No final da década de 70, surge um novo algoritmo empregando os mesmos
critérios anteriormente citados, acrescido do "nível do fármaco e
evidência de superdosagem" (Kramer et al., 1979). A reprodutibilidade e a
validade do algoritmo foram testadas (Hutchinson et al., 1979) em trinta casos
hospitalares de suspeita de reações adversas; três profissionais não
especializados em farmacologia clínica aplicaram um questionário com 56
perguntas derivadas do algoritmo e concordaram com a probabilidade atribuída à
reação em 67% dos casos, com concordância entre os pares variando de 73% a 87%.
Ademais, dois farmacologistas clínicos avaliaram os casos e concordaram em 47%
das vezes quando não empregaram o algoritmo, e em 63% quando o empregaram. A
maior fonte de discordância consistiu no julgamento das alternativas
etiológicas. Este mesmo algoritmo foi submetido a testes por Leventhal et al.
(1979) com oito clínicos que revisaram trinta casos implicitamente e dois meses
depois aplicando o algoritmo; a reprodutibilidade da avaliação dos clínicos
mais experientes melhorou, embora a melhora na avaliação dos internos não tenha
sido estatisticamente significante.
Na busca de métodos mais simples para uso de não-especialistas, Naranjo et al.
(1981) criou uma escala de probabilidades com dez perguntas e respostas do tipo
sim-não, baseadas nos critérios tradicionais de avaliação de reações adversas.
Dois médicos e quatro farmacêuticos julgaram independentemente 63 supostas
reações. Após seis e 22 semanas, reavaliaram usando a escala de probabilidades
e estimaram os coeficientes de concordância, bem como a validade consensual, de
conteúdo e concorrente, tendo concluído que os valores obtidos eram altos e que
o método oferecia uma alternativa sensível de monitoramento. Como no caso
anterior, a maior fonte de discordância foi a avaliação das causas
alternativas.
Na década de 80, os esforços para aprimorar o diagnóstico de reações adversas
continuaram. O método de imputabilidade foi testado por Begaud et al. (1982)
através da revisão de duas mil observações de um centro de farmacovigilância e
da identificação do número de vezes em que cada critério era atribuído sem
ambigüidade. Em mais da metade dos casos (52%), a estimativa global repousou em
apenas dois critérios a cronologia e a bibliografia.
Concluindo, é possível afirmar que os diferentes métodos não evitam a
subjetividade das decisões médicas, porém diminuem as dúvidas. Os critérios
propostos por Karch & Lasagna (1977) serviram de base para as tentativas
subseqüentes; entre eles, a reexposição raramente é feita por razões de ordem
ética e o timing e a bibliografia têm sido os mais úteis. Os métodos que
atribuem pontos a cada critério são mais vantajosos, pois permitem a comparação
entre scoresde dois ou mais fármacos suspeitos e a medição da
reprodutibilidade. Os algoritmos permitem estabelecer dados de incidência mais
acurados, facilitam as atividades epidemiológica e de monitoramento e a tomada
de decisão política. Entretanto, a comparação entre os distintos estudos nem
sempre é fácil, já que há diferenças entre as características das populações
submetidas aos inquéritos, entre as técnicas empregadas e entre os critérios e
as definições. O julgamento clínico e a experiência são fundamentais para o uso
do algoritmo; segundo Hutchinson et al. (1979), sua utilidade maior reside nos
estudos de avaliação da toxicidade de fármacos individuais. O uso do algoritmo
pode melhorar com o manual de instruções e com o conhecimento da lógica que
presidiu a sua construção (Leventhal et al., 1979).
Perspectivas atuais da farmacovigilância
Retomando a questão da criação de sistemas de monitoramento de reações adversas
em nosso meio, têm-se agora elementos para discutir o panorama no campo da
farmacovigilância. Conceitualmente ela pertence à Farmacoepidemiologia ou
Epidemiologia dos Medicamentos, e pode ser denominada vigilância pós-
comercialização. Entre seus objetivos destacam-se: a determinação da freqüência
dos eventos adversos e dos fatores de risco e a detecção precoce de reações
novas e graves. A descrição pormenorizada dos seus métodos e técnicas escapa
aos objetivos do presente trabalho, mas são acessíveis nos livros e coletâneas
citados.
Com relação à sua necessidade, muito se tem dito a respeito da insuficiência
dos ensaios clínicos controlados pré-comercialização para detectar reações
adversas. Eles possuem o poder conferido pela randomização, que é o de evitar o
confundimento pela indicação e tornar os grupos comparáveis (Greenland &
Morgenstern, 1988; Miettinen, 1989), porém possuem algumas fraquezas. Como
expressou Rogers (1989), eles padecem dos cinco 'muitos': muito poucos, muito
simples, muito idade 'média', muito estreitos e muito curtos. Isso significa
que o número de pacientes expostos é pequeno, aqueles com complicações ou em
uso de outras terapias são excluídos, os muito idosos e os muito jovens não
participam, as indicações expressas nos protocolos são bem definidas e o tempo
de experimentação costuma ser muito curto. Tais condições não expressam nem de
longe o que se passa no cotidiano da terapia farmacológica.
Na medida em que cresce a consciência dos profissionais de saúde com respeito
às insuficiências apontadas acima, amplia-se o interesse pelos estudos pós-
comercialização. Impulsiona também este interesse a descoberta dos efeitos
latentes ou que aparecem após o uso prolongado, dos modificadores da eficácia,
e dos demais elementos que definem a eficiência de um tratamento. Na avaliação
das condições para o desenvolvimento de sistemas da farmacovigilância, um dos
tópicos que merece destaque é a obtenção das informações.
Nos Estados Unidos, além dos sistemas de registros espontâneos, estão
disponíveis os seguintes bancos de dados: populacionais; dos programas de
atenção à saúde; coletados continuamente para estudos de farmacoepidemiologia;
previamente coletados como parte de estudos ad hoc; coletados ad hoc para
estudos de farmacoepidemiologia (Strom, 1991). Cada um apresenta vantagens e
desvantagens e, em conjunto, permitem cobrir um amplo leque de opções
metodológicas e de objetivos. Exemplificando, o sistema de notificações
espontâneas é útil para identificar reações raras ou novas (Biriell &
Olsson, 1989); os conjuntos de dados populacionais são preciosos para
identificar tendências seculares (Katschinski & Logan, 1991). Ademais, há
novos métodos de detecção baseados em dados coletados na rotina dos serviços de
saúde, tais como a revisão diária e sistemática dos diagnósticos de um serviço
de urgência, usando uma lista de diagnósticos suscetíveis de ser reações
adversas (Armadans et al., 1988; Ibañez et al., 1991).
No Brasil, algumas destas fontes, como os bancos de dados populacionais, dos
programas de atenção à saúde ou das contas hospitalares, não dispõem de
registros do uso de medicamentos. Eventualmente, os programas de assistência
farmacêutica em sistemas locais de saúde possuem informações sobre a
distribuição de fármacos, mas é incomum encontrar as variáveis de uso de
fármacos associados às variáveis de morbidade ou sócio-econômicas, de tal forma
que se possam estimar os riscos associados às exposições. Apesar das lacunas,
existem em nosso meio sistemas de registros de eventos adversos (não
relacionados apenas ao uso de medicamentos) com experiência acumulada, e alguns
estudos de Farmacoepidemiologia, como se verá adiante.
Um importante sistema com fluxo contínuo de informações é o Sistema Nacional de
Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox). Foi constituído em 1980 e divulga
anualmente os casos de intoxicações e envenenamentos humanos provenientes de 31
centros regionais. Até 1995 estavam registrados 386.861 casos; dentre estes, os
ocasionados por medicamentos estão em segundo lugar, sendo seguidos pelos
acidentes com animais peçonhentos (Bortoletto, 1997). Segundo uma avaliação
recente (Marques et al., 1993), trata-se de um sistema complexo, em construção,
limitado, entre outros fatores, pela subnotificação, dado que um grande número
de casos é registrado na rede de serviços de saúde. Como é um sistema voltado
para as intoxicações, o registro dos problemas relacionados ao uso terapêutico
de fármacos possivelmente não aporta a ele.
Um outro sistema permanente é o Estudo Colaborativo Latino-Americano de
Malformações Congênitas (Eclamc), que registra os nascimentos hospitalares na
região para investigar fatores de risco para malformações congênitas; foi
criado em 1967 e já diagnosticou mais de 75.000 delas. Funciona no Brasil desde
1972, sediado na Fiocruz (Castilla et al., 1994). Entre as diretrizes para a
prevenção primária dos defeitos congênitos, preconiza monitorar vários agentes,
entre eles, os medicamentos; para isso, recomenda coletar dados de uso de
fármacos durante a gravidez, registrando o nome, a dose, a indicação e a semana
de gravidez da exposição (Castilla et al., 1991). Trata-se de um sistema da
maior relevância para a saúde pública, embora restrinja-se no campo dos
fármacos à identificação das reações teratogênicas e mutagênicas.
Como ilustração de ações de monitoramento temporário, é interessante citar a
experiência de vigilância dos efeitos do tratamento da hanseníase com múltiplos
fármacos, desenvolvida pelo Programa de Controle da Hanseníase da Secretaria de
Saúde do Estado de São Paulo. Foi criado um fluxo de informações entre os
diversos níveis do sistema que registrou as reações durante trinta meses, em
550 unidades de saúde (Brasil et al., 1996). A despeito da possível
subnotificação, o sistema chamou a atenção dos médicos participantes para esses
eventos (Brasil, 1997).
Quanto aos dados coletados especificamente para estudos de
Farmacoepidemiologia, têm sido realizados alguns trabalhos com distintas
abordagens, como, por exemplo, estudos transversais (Fuchs et al., 1977);
observação de coortes de usuários (Koifman et al., 1987); análise de série de
casos (Fonseca et al., 1991); estratégias de casos e controles (Rozenfeld,
1997).
Um vez constatada a existência em nosso meio de experiência acumulada, resta
indagar das condições materiais de viabilização de um sistema permanente de
notificação de reações adversas e de investigação epidemiológica da ocorrência
e dos fatores associados às reações adversas. Para que tais ações não ocorram
em caráter episódico, é importante que sejam institucionalizadas em Centros de
Informação sobre Medicamentos (CIM), criando um ambiente favorável e
culturalmente transformador. Segundo o trabalho desenvolvido no Conselho
Federal de Farmácia (Vidotti, 1997), os CIMs consistem em um serviço prestado à
comunidade, sendo sua principal meta o uso racional de medicamentos.
Diferentemente das bibliotecas e dos centros de documentação, os CIMs não se
limitam a proporcionar documentos ou referências bibliográficas, mas soluções
para problemas concretos sobre medicamentos. Suas funções são: responder
perguntas, revisar o uso de fármacos, elaborar publicações, realizar atividades
educativas, de pesquisa e de coordenação de programas de notificação. Segundo o
mesmo autor, vem sendo estruturada no País uma rede (Sismed) que possui dez
CIMs, cujo objetivo é potencializar a troca de informações e de experiências,
além de desenvolver projetos colaborativos de investigação; alguns deles,
sediados em universidades, estão iniciando atividades de notificação
espontânea, como os da Universidade Federal do Ceará, da Universidade Federal
de Mato Grosso e da Universidade Estadual de Maringá (Sociedade Brasileira de
Vigilância de Medicamentos, 1997).
Concluindo, é possível assegurar que há condições para que a Portaria SVS no 40
de 09/05/95 seja plenamente implantada nos próximos anos. Só não o será se
preponderarem mais uma vez os vícios do campo da Vigilância Sanitária, que têm
sido sobretudo de natureza política, como já foi apontado anteriormente
(Luchesi, 1992; Souto, 1996). Segundo Waldman (1991), têm preponderado desde a
sua criação os aspectos burocráticos sobre os técnicos, desconsiderando-se as
atividades de pesquisa, a vigilância de eventos adversos, a monitorização da
qualidade dos produtos, dos insumos e dos serviços e a orientação sanitária.
Espera-se que a estruturação do campo de vigilância em saúde (OPAS, 1994) no
contexto da descentralização dos serviços e o advento da nova Portaria possam
propiciar novas práticas no setor. O volume de informação hoje disponível é de
tal magnitude, que dificilmente justifica-se que um país com a qualificação
científico-tecnológica do Brasil não possua programas permanentes de
farmacovigilância e um sistema nacional de notificação de reações adversas.
Agradecimentos
Agradeço as valiosas sugestões e opiniões do Prof. Dr. Luis Antonio Bastos
Camacho, da Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz.