Eqüidade e reforma setorial na América Latina: um debate necessário
Introdução
Reforma e eqüidade são palavras que assiduamente têm freqüentado os discursos
políticos, os documentos técnicos e a literatura científica nas últimas
décadas. Como recurso de retórica têm servido a distintos espectros
ideológicos, adequando-se a diferentes propostas e propósitos. Como conceitos,
têm suscitado inúmeras discussões que não logram muito consenso, seja sobre
definições, seja sobre operacionalização. Em termos técnicos e metodológicos
têm merecido muita atenção dos estudiosos, consultores e pesquisadores,
desenvolvendo-se instrumentos de medida e de implementação de políticas pró-
eqüidade, que, de novo, alavancam diferentes agendas e projetos políticos.
Isso se verifica seja no âmbito geral das discussões sobre desenvolvimento
econômico e social, seja no campo das políticas setoriais. Entre estas últimas,
o debate vem sendo pautado pela discussão de novos modelos de reorganização de
sistemas de proteção social e pela redefinição de pacotes de benefícios e
serviços, revigorando falsos dilemas e velhos confrontos, como público versus
privado, Estado versus mercado. Por outro lado, é permeado também pela busca de
evidências empíricas e pela constatação das inerentes contraposições que esses
processos de reforma setorial têm enfrentado, principalmente entre eficiência,
eqüidade e qualidade.
E ainda que a implementação de mudanças, e a própria discussão de políticas de
reforma tenham inúmeras especificidades e sejam únicas em cada país, seja no
Norte ou no Sul, agendas e argumentos comuns têm sido difundidos e adaptados a
distintas realidades, traduzidos em propostas dirigidas à superação de
desigualdades.
A que se deve tanta atualidade e versatilidade?
Entender a importância e centralidade desses temas no debate setorial
contemporâneo em nossa região pressupõe tanto aprofundar a reflexão sobre a
política de saúde no âmbito das políticas sociais, quanto qualificar de que
reformas estamos falando e o lugar que a questão da eqüidade ocupa nessa
discussão.
A crise econômica e a mudança na perspectiva de desenvolvimento econômico
alavancado pelo Estado, pari passu à hegemonia neoliberal das últimas décadas e
às exigências dos ajustes macroeconômicos, com pesados condicionantes
estabelecidos pelos credores internacionais, aumentaram de forma importante as
desigualdades históricas nos países da região latino-americana. Essa dinâmica é
concomitante a complicados processos de transição democrática. Como resultado,
as políticas públicas implementadas, muitas vezes mais radicais que em outras
regiões do mundo, foram objeto de intenso debate crítico, que aumentou de forma
substantiva o interesse dos bancos e organismos internacionais na "questão
social". Definiram-se agendas e específicas prescrições de reforma na área
social, acopladas aos empréstimos e apoios financeiros necessários para a
superação das crises cíclicas e constantes que têm caracterizado a situação
regional desde os anos 80.
Os sistemas de serviços de saúde foram particularmente visados nesse processo
de mudanças, e ainda que tenham aumentado de forma importante as publicações
sobre o tema, a reflexão analítica ainda é incipiente, se comparada com outras
áreas de política social. A tônica central da maioria dessa literatura, pouco
avança na reflexão sobre a análise histórica de estruturação dos sistemas de
saúde, ou sobre os pressupostos subjacentes a essas reformas contemporâneas, ou
ainda sobre o contexto em que operam, e mesmo a natureza da mudança que
preconizam, tendo absorvido, de forma bastante acrítica, a agenda de mudança
definida desde fora.
O balanço das décadas de 80 e 90 na América Latina é desanimador: crescimento
econômico inexistente ou muito modesto e cíclico; concentração de renda cada
vez mais intensa e perversa; aumento importante dos níveis de desigualdade, do
número de pobres e da exclusão social, com crescentes limitações ao
desenvolvimento e à superação dessas condições de pobreza (Almeida, 2002). No
que toca aos sistemas de saúde, apesar da diversidade, têm características
comuns que ao mesmo tempo que justificam uma perspectiva regional, impõem maior
rigor analítico na análise de cada país particular. A heterogeneidade é muito
grande e as reformas implementadas tiveram forte inspiração neoliberal. Mesmo
assim, a vanguarda privatizadora chilena e a ambiciosa experiência colombiana
convivem com a particular reforma brasileira, com o singular sucesso do modelo
sanitário socialista cubano e o igualmente exitoso sistema de Costa Rica.
Alguns países dedicam somas importantes de recursos financeiros à saúde, sem
entretanto conseguir resultados equivalentes, se comparados com alguns países
do Norte do mundo ou mesmo com os conterrâneos mais bem sucedidos em âmbito
sanitário. Essa rica diversidade regional está merecendo, de fato, maior
atenção dos analistas, acadêmicos ou não.
O objetivo deste ensaio é contribuir para essa discussão. Na primeira parte,
discutem-se os conceitos de reforma e eqüidade; a seguir, faz-se um breve
repasse de algumas questões referentes à política de saúde como política
social; e por fim, são discutidos os elementos centrais da agenda de reforma de
sistemas de serviços de saúde na região.
Reforma e eqüidade: notas conceituais
A imprecisão conceitual e estratégica que envolve as duas temáticas
reforma setorial e eqüidade não é nova. Santos já alertou que a falta de
clareza conceitual sobre "o que é política social", tem permitido que se
identifique como tal qualquer política que tenha por objeto "problemas
sociais", "independente dos juízos valorativos sobre a ordem social que
subscrevem" (Santos, 1998:35). Inclui-se assim nesse rol, qualquer ação
assistencialista ou focalizada para "pobres e necessitados", alegando-se
superar desigualdades, mesmo que apenas busquem mitigar os graves resultados
negativos de outras políticas e nada ofereçam em termos de justiça social. E
advoga-se ser essa a melhor forma de superar as enormes desigualdades evidentes
na região latino-americana, historicamente acumuladas é verdade, mas
dramaticamente exacerbadas nas duas últimas décadas que encerraram "o longo (e
intenso) século XX".
Por outro lado, a noção de "desenvolvimento com eqüidade", que ganha força nas
últimas décadas frente ao descalabro mundial do aumento das desigualdades
proporcionado pelas políticas neoliberais, também possibilita a construção de
consenso entre distintas correntes político-ideológicas, uma vez que não fere a
priori os interesses individuais, pois o avanço em direção à superação da
iniqüidade pode ser tão lento e gradual que, de fato, a adoção da eqüidade como
princípio pode ser completamente inócua ou vazia de significado.
Em relação ao termo reforma, embora tenha uma origem mais definida
historicamente, centrada na clássica antítese reformas-revoluções, que
caracterizou a antiga (mas sempre renovada) oposição entre diferentes
estratégias de mudança social no interior do desenvolvimento do movimento
operário, guardou desse legado a essência dessa antítese, isto é, se refere "ao
modo através do qual se dá a mudança e não ao resultado" (Bobbio, 2000:579).
Reforma e revolução não são conceitos homogêneos, pois como se referem ao
problema da mudança social, às suas causas e seus efeitos, podem ser tratados
ora como alternativos, ora como complementares e, tradicionalmente, essa
antítese é considerada em forma de dilema. Pode-se dizer que esse dilema foi
parcialmente dissolvido ao se dissociarem as duas temáticas no processo de
consolidação das sociedades modernas.
Na realidade, embora o tema reforma-revolução seja dominante e constitutivo do
movimento operário mundial desde sua origem, configurando-se também como
divisor de águas na estruturação de partidos políticos de esquerda, propensos à
conquista do poder numa perspectiva de impulsionar uma mudança específica da
sociedade, não nasceu com o movimento operário. Segundo Bobbio, embora a idéia
de revolução entendida como transformação radical da sociedade não fosse
estranha ao pensamento político tradicional, um marco importante na temática da
reforma-revolução, com todas suas articulações, se dá com a Revolução Francesa,
no final do século XVIII. Antes, o termo utilizado para designar uma mudança
específica e ampla da sociedade era precisamente "reforma", que se referia ao
fenômeno da crise religiosa, e conseqüente ruptura de sua unidade, que assolou
a Europa, do século XVI em diante, e que representou, juntamente com o
desenvolvimento da nova ciência e da técnica, e da formação dos grandes estados
nacionais, o nascimento do mundo moderno (Bobbio, 2000).
No século XVIII, considerado a "era das reformas e dos princípios reformistas,
o termo reforma já havia perdido seu caráter original de renovação religiosa e
assumira o significado, que permaneceu, de mudança política e social ... além
de gradual, legal e parcial, que enquanto tal serve para designar uma idéia das
tarefas do governante, um modo de exercer o poder e uma concepção geral do
progresso histórico, evolutivo e não catastrófico..." (Bobbio, 2000: 586). Essa
concepção é antitética à idéia da grande revolução transformadora radical,
simbolizada pela revolução Francesa, o primeiro grande movimento histórico
interpretado como uma inversão radical da ordem constituída. Portanto, a
antítese "reformas ou revolução" nasce com a contraposição entre a era das
revoluções e a Revolução Francesa e foi retomado no âmbito do movimento
operário, consolidando o perene debate entre reformistas e revolucionários.
Entretanto, com o passar dos séculos, os dois termos foram mudando de
significado e, no dizer de Bobbio, se radicalizaram. A era das reformas foi
também a era do despotismo esclarecido, da crença no desenvolvimento da ciência
aplicada ao estudo das sociedades humanas e do triunfo da razão. O instrumento
de controle e de orientação social era a lei e não era necessário o concurso
dos súditos, meros beneficiários das mudanças. As reformas estavam voltadas
para a melhora do aparato estatal, eram mais administrativas do que políticas,
ou mais políticas do que sociais, cujo objetivo era a correção dos abusos de um
poder intocável, com uma conotação mais negativa que positiva. Para os
reformistas, a transformação da sociedade seria resultado de uma série
ininterrupta de reformas graduais realizadas segundo o princípio de que a
mudança quantitativa consiste, afinal, num salto de qualidade, desde que as
reformas incidam sobre as modificações das relações de poder, não apenas
político, mas também econômico (as chamadas "reformas estruturais") (Bobbio,
2000).
Já o reformismo do movimento operário visava transformar radicalmente as
relações de poder, a partir de reformas arrancadas a qualquer custo pela luta
revolucionária. Num primeiro momento não desdenhava o instrumento legal, de
onde nasce a legislação social, mas não o considerava suficiente, sendo que a
ele contrapunha a negociação, continuamente desenvolvida e renovada entre as
próprias organizações e o poder do Estado, na perspectiva de melhora contínua
da sociedade, econômica e social. As demandas por mudança se referem assim não
tanto à transformação do aparato estatal, mas "à transformação das relações
entre Estado e cidadãos, entre o poder estatal e a sua base social. Trata-se,
portanto, de um reformismo que não age no interior do Estado e de seus
aparatos, mas se move da sociedade em direção ao Estado ... considerando-
o apenas como um instrumento da sua satisfação" (Bobbio, 2000: 588-589).
Entretanto, como só o Estado pode fazer reformas, desde que controlado por
forças transformadoras, leia-se de inspiração socialista, a "ocupação do
Estado" é passo crucial para preparar as reformas que levarão à revolução.
A mudança também se deu em relação ao conceito de revolução: segundo os
marxistas, a Revolução Francesa conseguira emancipar o cidadão, mas não o
homem, que permanecera à sombra da igualdade apenas formal, mantendo-se todas
as desigualdades históricas e constitutivas das sociedades capitalistas. Como
tal, foi uma revolução parcial e a "revolução proletária teria sido a revolução
total ... e definitiva ... levando a humanidade a sair definitivamente do
domínio de classe, e enfim de toda forma de organização política" (Bobbio,
2000:589).
Independentemente das oposições com relação ao método, as duas estratégias
partem de uma concepção da história entendida como mudança e como progresso,
mas subjacente ao reformismo não revolucionário existe uma idéia evolutiva e
positivista da história, onde a transformação se dá de forma cumulativa e
gradual. Por trás dos movimentos revolucionários, a concepção progressiva se
constrói a partir de uma sucessão de movimentos positivos e negativos, em
permanente avanço, seja da realidade objetiva, seja do conhecimento sobre ela,
e, portanto, o processo histórico não se dá por sucessivos acréscimos mas por
mudanças dialéticas, que contêm em si o germe da dissolução, onde as negações
representam a passagem obrigatória para as subseqüentes afirmações (Bobbio,
2000; a partir de Marx e Engels).
Em síntese, os movimentos de reforma visam melhorar e aperfeiçoar, até mesmo de
forma radical, mas nunca destruir o ordenamento existente. Em relação ao
sistema político, o reformismo não tem dúvidas: a liberdade individual, a
democracia e o bem-estar de todos são princípios fundamentais a serem
preservados e, sendo assim, defende que a democracia liberal se fortalece e
amplia nos processos de reforma. Quanto ao ordenamento econômico capitalista,
porém, a posição do reformismo muda com o tempo, passando da idéia de uma
mudança radical, ainda que obtida por meios democráticos e graduais, à
convicção de que bastam medidas que lhe regulem os mecanismos visando a um
funcionamento mais eficiente e uma distribuição mais justa de benefícios. Essa
mudança de posição é conseqüência dos próprios sucessos do reformismo através
dos séculos, que demonstrariam que as enormes desigualdades se devem menos à
essência do sistema que às dificuldades ou equívocos da "arrancada" inicial de
origem do desenvolvimento (Settembrini, 1993), e como tal podem ser
"corrigidos".
Essa perspectiva reformista mais estreita é a grande vencedora do final do
século XX e início do XXI, onde não apenas as revoluções estão desacreditadas,
mas cederam passagem a guerras sangrentas ou desmandos políticos de toda ordem,
concomitante a uma "nova era de reformas", com características bastante
particulares, e qualquer semelhança com idéias aparentemente longínquas não é
mera coincidência.
Quanto ao termo eqüidade, conceitual e historicamente sua formulação está
relacionada às noções de igualdade e liberdade e remetem à questão da justiça,
dos direitos e deveres do homem/cidadão e do Estado. Os antecedentes dessas
discussões estão nos séculos XVII e XVIII, culminando na Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, após a Revolução Francesa e,
posteriormente, no século XX, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de
1948, e na Convenção Européia dos Direitos do Homem (1950), que marcam a nova
era pós-Segunda Grande Guerra Mundial e serviram de guia para todas as
constituições posteriores, dos diversos países. Nesse processo, embora as
palavras sejam as mesmas liberdade e igualdade a validade jurídica
e o significado conceitual mudou substancialmente, de forma estreitamente
correlacionada uma à outra, ampliando-se e enriquecendo-se os seus conteúdos
(Bobbio, 2000).
Esses dois valores se enraízam na concepção do homem como pessoa, na
determinação do conceito de pessoa humana, e remetem um ao outro no pensamento
político e na história. A igualdade, por um lado, como valor supremo de uma
convivência ordenada, feliz e civilizada, como aspiração perene dos homens em
sociedade e, por outro, como tema constante das ideologias e teorias políticas,
vem sempre acoplada com a liberdade, e ambos têm na linguagem política um
significado predominantemente positivo. Entretanto, no que se refere ao
significado descritivo, axiológico e conceitual os dois termos são muito
diferentes, embora apareçam com freqüência ideologicamente articulados.
Em termos muito sintéticos, liberdade indica um estado e igualdade uma relação:
um estado do indivíduo e uma relação geral, desejável, entre indivíduos em
sociedade (Bobbio, 2002). No que se refere ao significado descritivo do termo,
no caso da liberdade a dificuldade está na sua ambigüidade na linguagem
política, que permite diversos significados (qualidade ou propriedade da
pessoa); e em relação à igualdade, a dificuldade está na sua indeterminação,
pois é preciso especificar com que entes estamos tratando e em relação a que
são iguais. Sendo assim, o conceito e o valor da igualdade mal se distinguem do
valor e do conceito de justiça: consistindo numa relação, o que a torna um
valor é o fato de ser justa, onde por justa se entende que "tal relação tem a
ver, de algum modo, com uma ordem a instituir ou a restituir (uma vez abalada)"
(Bobbio, 2002:-8). Em outras palavras, em si mesma a igualdade não é um valor,
mas o é apenas na medida em que seja uma condição necessária, mas não
suficiente, de um ordenamento justo, ou seja, "a liberdade é o bem individual
por excelência, ao passo que a justiça é o bem social por excelência" (a
virtude social de Aristóteles). Em suma, "a esfera da aplicação da justiça, ou
da igualdade social e politicamente relevante, é a das relações sociais ... que
remonta à distinção tradicional entre justiça comutativa" (relação entre as
partes) e "justiça distributiva" (relação entre o todo e as partes, ou vice-
versa) (Bobbio, 2002:15-16). E isso remete ao problema de atribuir vantagens ou
desvantagens, benefícios ou ônus, direitos ou deveres a indivíduos em
sociedade, além da distinção entre uma igualdade justa e injusta. Pressupõe o
estabelecimento da chamada regra de justiça, isto é, o modo pelo qual o
princípio de justiça deve ser aplicado, a regra segundo a qual se deve tratar
os iguais de modo igual e os desiguais de modo desigual, que assume importância
em face da determinação da justiça, "concebida como o valor que preside a
conservação da ordem social" (Bobbio, 2002: 20-21).
Portanto, a definição de igualdade que interessa discutir é a igualdade
afirmada como propriedade das regras de distribuição (Oppenheim, 1993). Nessa
perspectiva o que importa analisar é o caráter distributivo da própria regra.
Igualdade e justiça possuem na realidade uma importante característica comum:
ambas só podem ser sustentadas por regras que especificam como determinados
benefícios ou ônus devem ser distribuídos. Portanto, a classificação de
qualquer regra de distribuição como igualitária ou não igualitária não pode
prescindir de considerações valorativas e nem toda distribuição igualitária é
eqüitativa.
É necessário distinguir de modo mais preciso a igualdade perante a lei da
igualdade de direito, da igualdade nos direitos (ou dos direitos) e da
igualdade jurídica. A primeira é apenas uma forma jurídica e historicamente
determinada de igualdade dos direitos; e a igualdade de direito é utilizada em
contraposição à igualdade de fato; já a igualdade nos direitos significa o
igual gozo, por parte dos cidadãos, de alguns direitos fundamentais
constitucionalmente assegurados e, finalmente, a igualdade jurídica é aquela
que transforma qualquer integrante de um grupo social em um sujeito dotado de
capacidade jurídica. Assim, a igualdade nos direitos tem um âmbito mais amplo
que o da igualdade perante a lei, e a igualdade jurídica tem um âmbito mais
restrito (Bobbio, 2002).
Um outro princípio de igualdade, considerado um dos pilares do Estado de
democracia social (tal como a igualdade perante a lei representou um dos
pilares do Estado liberal) é o da igualdade de oportunidades ou de chances, ou
de pontos de partida, que abstratamente não tem nada de novo, a menos que seja
definido seu conteúdo "com referência a situações específicas e historicamente
determinadas" (Bobbio, 2002:30). O que esse princípio tem de inovador, nos
estados sociais e economicamente avançados, é o fato de ter se difundido de
forma importante, como "conseqüência do predomínio de uma concepção
conflitualista global da sociedade, segundo a qual toda a vida social é
considerada uma grande competição para a obtenção de bens escassos" (Bobbio,
2002:31). Dito de outra forma, o princípio da igualdade de oportunidade como
princípio geral tem como objetivo colocar todos os membros de determinada
sociedade na condição de participar da competição pela vida, isto é, pela
conquista do que é vitalmente significativo, a partir de posições iguais de
partida. E Bobbio, assim como outros autores, chama a atenção para o fato de
que para colocar indivíduos desiguais de nascimento nas mesmas condições de
partida pode ser necessário favorecer os mais pobres e desfavorecer os mais
ricos, numa distribuição desigual. Dessa forma a desigualdade torna-se
instrumento da igualdade, ao corrigir uma desigualdade anterior.
Obviamente, a definição de quais devem ser essas condições de partida e quais
as condições materiais a serem consideradas iguais não é dada a priori nem é
uma questão trivial. Definir os bens em relação às necessidades remete à
determinação do que é ou não é um bem, e de quais são as necessidades dignas de
serem satisfeitas e em relação às quais se considera justo que os homens sejam
iguais. Sendo assim, segundo Bobbio (2002), nada é mais indeterminado do que a
fórmula a cada um segundo suas necessidades, transformada em ideal-limite da
sociedade comunista, mas por outro lado, é o princípio mais igualitário de
todos, já que se considera que os homens são mais iguais entre si (ou menos
diversos) com relação às necessidades do que, por exemplo, em relação às
capacidades (Oppenheim, 1993). E mesmo que seja possível essa determinação, o
problema ainda não estaria resolvido: a igualdade deve ser absoluta ou
relativa?
De qualquer forma, ao longo do decurso histórico existem diversas formas de
doutrinas igualitárias, freqüentemente em conflito uma com as outras, mas entre
os próprios princípios de justiça, uns são mais igualitários que outros e um
princípio será mais igualitário quanto menores forem as diferenças presumíveis
entre os homens com relação ao critério adotado. Sendo assim, é importante
distinguir entre desigualdades naturais e desigualdades sociais e desde
Rousseau (Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens), a meta é a
eliminação da segunda. E o que caracteriza as ideologias igualitárias em
relação a todas as outras ideologias sociais, que exigem ou admitem formas
particulares de igualdade, é a exigência de uma igualdade também material,
distinta da igualdade perante a lei e da de oportunidade.
Constata-se que, no debate político, a igualdade constitui um dos valores
fundamentais em que se inspiraram as filosofias e ideologias de todos os
tempos, mas em todos os contextos em que é invocada, é sempre uma igualdade
determinada e o que lhe atribui carga positiva não é a igualdade em si, mas a
sua extensão a todos. Sendo assim, e sendo uma máxima qualquer de justiça, duas
questões devem ser respondidas e são fundamentais: igualdade em quê? E entre
quem? (Bobbio, 2000, 2002).
Liberalismo e igualitarismo têm suas raízes em concepções da sociedade
profundamente diversas: "individualista, conflitualista e pluralista, no caso
do liberalismo; e totalizante, harmônica e monista, no caso do
igualitarismo..." E diversos também são os modos de conceber a natureza e as
tarefas do Estado: "limitado e garantista, o Estado liberal; intervencionista e
dirigista, o Estado dos igualitários" (Bobbio, 2002:42). Segundo Bobbio, essas
diferenças não excluem porém a possibilidade de sínteses teóricas e soluções
práticas de compromisso entre liberdade e igualdade, uma vez que esses dois
valores, mais a ordem, são fundamentais de toda convivência civilizada e
considerados também como complementares.
Enquanto igualitarismo e não-igualitarismo são totalmente antitéticos,
igualitarismo e liberalismo são parcialmente antitéticos, o que não anula o
fato de historicamente serem considerados antagônicos e alternativos. O
liberalismo admite a igualdade de todos não em tudo, mas somente em algo
(parcialmente igualitário), algo este constituído habitualmente pelos chamados
direitos fundamentais, ou naturais ou humanos, que são as várias formas de
liberdade pessoal, civil e política, enumeradas progressivamente pelas várias
Constituições dos Estados nacionais desde o fim do século XVIII até hoje, e
reconfirmadas após a Segunda Guerra Mundial, em documentos internacionais
(Bobbio, 2000). Entretanto, as doutrinas igualitárias sempre acusaram o
liberalismo de ser defensor e protetor de uma sociedade econômica e, portanto,
politicamente não igualitária. Para Marx, a igualdade da Revolução Francesa
apenas serviu para liberar a força de trabalho necessária ao desenvolvimento
capitalista. "Da crítica das teorias igualitárias contra a concepção e a
prática liberal do Estado é que nasceram as exigências de direitos sociais, que
transformaram profundamente o sistema de relações entre o indivíduo e o Estado,
até mesmo nos regimes que se consideraram continuadores, sem alterações
bruscas, da tradição liberal do século XIX" (Bobbio, 2002:42).
Do ponto de vista da filosofia da história, a afirmação dos direitos do homem,
antes puramente doutrinal e prático-política, ganha novos contornos a partir
das Declarações dos Direitos do Homem e do Cidadão do fim do século XVIII
(1789) e isto representou uma inversão radical na história secular da moral
(Bobbio, 2000). Na história do pensamento moral e jurídico, o ponto de vista
predominante foi mais pelo lado dos deveres do que pelo dos direitos. Para a
passagem do código dos deveres para o dos direitos foi preciso que o problema
fosse observado não apenas do ponto de vista da sociedade, mas também do ponto
de vista do indivíduo uma verdadeira revolução.
A doutrina dos direitos naturais pressupõe uma concepção individualista da
sociedade e portanto do Estado, continuamente em conflito com a bem mais sólida
e antiga concepção orgânica, segundo a qual a sociedade é um todo que está
acima das partes. A concepção individualista custou a avançar porque foi
geralmente considerada como fomentadora de ruptura da ordem constituída e
sempre foi criticada, mesmo às portas da Revolução Francesa e no período da
restauração, entre outras coisas, por "destruir a idéia de dever" (Bobbio,
2000). Significa que antes vem o indivíduo, isolado, que tem valor em si mesmo,
e depois o Estado, que por sua vez, é feito pelo indivíduo. Nessa inversão de
relação entre o indivíduo e o Estado, inverte-se também a relação tradicional
entre direito e dever: no que concerne aos indivíduos, vêm antes os direitos e
depois os deveres; no que concerne ao Estado antes os deveres, depois os
direitos. O mesmo ocorre em relação à justiça: em uma concepção orgânica, a
definição mais apropriada é que cada uma das partes que compõem o corpo social
deve desempenhar a função que lhe é própria (platônica), enquanto na concepção
individualista é justo que cada um seja tratado de modo a poder satisfazer suas
próprias necessidades e alcançar seus próprios fins, sendo o primeiro deles a
felicidade. Contraditoriamente, o individualismo é a base da democracia (cada
cabeça um voto), entendida como a forma de governo onde todos são livres para
tomar decisões em questões que lhe dizem respeito e têm poder de fazê-lo;
liberdade e poder que derivam do reconhecimento de alguns direitos
fundamentais, inalienáveis e invioláveis, que são os direitos do homem". Sendo
assim, o individualismo sempre se contrapôs às concepções holistas da sociedade
e da história, qualquer que seja a sua proveniência, ao mesmo tempo que é a
base das concepções democráticas da sociedade e dos direitos fundamentais.
Desde sua primeira aparição no pensamento político dos séculos XVII e XVIII,
até o primeiro documento histórico depois do fim da guerra, a Carta das Nações
Unidas, a doutrina do direito dos homens avançou muito. E nessa história
progressiva, foram percorridas diversas etapas: a primeira foi a
"constitucionalização, que transformou uma aspiração ideal secular .... em um
direito público subjetivo, ainda que no restrito âmbito de uma nação" (Bobbio,
2000:481). A segunda, que dura até hoje, numa evolução contínua, foi a sua
progressiva extensão iniciando no próprio interior dos direitos de
liberdade (de associação, por exemplo), passando para o reconhecimento dos
direitos políticos até a concessão do sufrágio universal masculino e feminino
(passagem do Estado liberal ao Estado democrático), e a introdução dos direitos
sociais (Estado democrático e social). E a terceira etapa, que teve seu ponto
de partida na Declaração Universal dos Direitos dos Homens (1948), é a da
universalização, isto é a transposição da sua proteção do sistema interno para
o sistema internacional, embora mais hipotética do que real (Bobbio, 2000).
Se pode acenar ainda, segundo Bobbio, a uma quarta etapa: a de especificação
dos direitos, uma vez que a expressão "direito dos homens" é demasiado genérica
e não é suficiente, sendo necessário, desde o início, diferenciar os direitos
do homem em geral dos direitos do cidadão, no sentido que a este último se
podem atribuir direitos ulteriores. Essa especificação continuou, porém, na
medida da necessidade de exigências específicas de proteção, segundo sexo
(direito das mulheres), fase da vida (direito das crianças, dos idosos) ou
condições específicas de proteção (de enfermos, deficientes, doentes mentais
etc.).
Todo esse desenvolvimento é conseqüente à idéia original do indivíduo,
considerado em todos os seus aspectos como titular de direitos, isto é, de
pretensões que lhe devem ser reconhecidas em relação à sociedade. Obviamente, a
pretensão não significa satisfação, e "à medida que as pretensões aumentam, a
sua proteção torna-se cada vez mais difícil": os direitos sociais são mais
difíceis que os de liberdade; a proteção internacional é mais difícil que
aquela no interior do próprio Estado, exacerbando o conflito entre o ideal e o
real. Mas dada a "vastidão que assumiu atualmente o debate sobre os direitos
dos homens como um sinal de progresso moral da humanidade, ... esse crescimento
...deve ser medido não pelas palavras, mas pelos fatos. De boas intenções está
pavimentado o caminho para o Inferno" (Bobbio, 2000:483).
Pode-se afirmar que enquanto os direitos individuais se inspiram no valor
primário da liberdade, os direitos sociais se inspiram no valor primário da
igualdade. São direitos que tendem senão a eliminar, a corrigir desigualdades,
que nascem das condições de partida, econômicas e sociais, mas também, em
parte, das condições naturais de inferioridade física. Entretanto, antes de
serem antitéticos entre si, para Bobbio (2000), o reconhecimento de alguns
direitos sociais fundamentais é o pressuposto ou a pré-condição para um efetivo
exercício dos direitos de liberdade. E a liberdade positiva (liberdade como
poder) corresponde à igualdade social, isto é, igualdade de oportunidade, e
exigi-la significa exigir que se concretizem os direitos sociais, tema que tem
sido bastante negligenciado, seja pela direita que sempre exaltou de forma
particular os direitos de liberdade, especialmente as liberdades econômicas,
seja pela esquerda, que nos Estados comunistas exaltou os direitos sociais em
detrimento dos direitos de liberdade, e após a queda do Muro de Berlim "parece
seguir a direita em seu próprio terreno" (Bobbio, 2000:501).
A noção de eqüidade é caudatária desse percurso histórico, e está estreitamente
vinculada à idéia de igualdade, na perspectiva discutida acima. Na revisão da
literatura, a eqüidade, de uma maneira geral, se refere "a diferenças que são
desnecessárias e evitáveis, além de consideradas injustas" (Whitehead, 1992:
431) e, portanto, passíveis de intervenção por meio das políticas dos diversos
setores, inclusive o de saúde. Para que uma determinada situação seja
identificada como injusta, suas causas deverão ser examinadas e julgadas no
contexto mais amplo da sociedade (Mooney & Jan, 1997), o que remete
necessariamente aos valores e princípios morais, éticos e político-ideológicos
que orientam a política setorial num dado país, em um dado momento histórico.
Sendo assim, em função do conjunto de valores predominantes, o termo eqüidade
pode ganhar diferentes conotações ao longo do tempo e em distintas sociedades,
sendo vários os seus significados e raro o consenso em torno de uma definição
(Almeida et al., 1999). Além disso, existem diversas maneiras de medir a
justiça social e cada uma delas produz diferentes resultados. Portanto, a
definição de eqüidade escolhida para ser operacionalizada e as formas de medi-
la, refletem os valores e escolhas de determinada sociedade em momentos
específicos. Essas considerações não são triviais e revelam os objetivos
estratégicos de diferentes definições.
Tratando-se, portanto, de uma meta ideal que marcou o século XX, esteve
extremamente presente no final do milênio e continua cada vez mais atual no
início do século XXI, e cuja urgência não se pode mais ignorar, é surpreendente
que esteja subsumida por uma adoração do livre mercado (Bobbio, 2000).
A partir dos anos 1970-1980, a discussão da crise do Estado de Bem-Estar
Social, na esteira da crise econômica, suscitou o questionamento dos resultados
em termos de benefícios dos investimentos realizados nos sistemas de saúde. Até
então, a valorização da noção de igualdade havia permeado de forma importante
os princípios que nortearam a construção dos sistemas de serviços de saúde no
século XX, embutida na percepção do direito à saúde como direito de cidadania,
sobretudo, depois da Segunda Grande Guerra e sob a égide das políticas
econômicas e sociais de cunho keynesiano. A idéia central voltava-se para
assegurar o direito de consumo de serviços de saúde, em caso de necessidade,
para todos os indivíduos, independente da sua condição social e econômica. Em
outras palavras, o princípio dessa estruturação era que todo cidadão que
necessitasse de atenção à saúde deveria ter direito assegurado de acesso aos
serviços. E somente a forte intervenção do Estado, como provedor e financiador
de serviços, através da arrecadação fiscal ou de contribuições sociais, poderia
promover a eqüidade, entendida como igualdade de oportunidades no consumo de
bens e serviços de saúde, segundo necessidades. Esse princípio foi traduzido na
prática, de diversas maneiras nos distintos países e sistemas de saúde, com
diferentes resultados que, de forma geral, passaram a ser questionados a partir
dos anos 70, com a crise econômica e a subseqüente crise de custos no setor.
O debate conceitual sobre a eqüidade retoma força, portanto, no final do
milênio, a partir dos anos 80, no âmbito das políticas de reforma, que ao mesmo
tempo em que questionam a extensa intervenção estatal em saúde (leia-se o
montante de financiamento público, a provisão estatal de serviços etc.),
preconizam a reforma do Estado e dos sistemas de saúde, para atuarem de forma
mais eficiente e efetiva e com melhores resultados em termos de eqüidade. Ao
longo dos anos 90, esse debate se amplia consideravelmente, frente ao aumento
inquestionável das desigualdades, sobretudo no Sul do planeta, tornando-se um
dos principais pontos da agenda de discussão sobre as reformas (do Estado e
setoriais) nos fóruns nacionais e internacionais.
Em 1995, a Organização Mundial da Saúde definia a reforma do setor como um
processo sustentado de mudanças fundamentais na política de saúde e nos
arranjos institucionais, coordenado pelo Estado, com a finalidade de melhorar o
funcionamento e o desempenho do setor, visando alcançar melhores níveis de
saúde da população (WHO, 1995). A reforma na saúde estaria referida então à
definição de prioridades, refinamento da política de saúde e reforma das
instituições que implementam essas políticas (Janovsky & Cassels, 1995). Em
1997, Knowles & Leighton (1997), reconhecendo a ausência de definições
precisas e de várias e diferentes conotações, definiam reforma em saúde
colocando ênfase no elenco de objetivos e na abrangência da reforma como mais
importante do que uma definição precisa, reiterando as premissas acima.
Outros autores definem a reforma setorial como mudanças específicas para
melhorar a eficiência, a eqüidade e a eficácia dos sistemas de serviços
(Berman, 1995), ignorando as inerentes contraposições implicadas nessas
relações. E formulam-se também tipologias de reforma: umas levando em
consideração a abrangência da mudança e a forma de implementação (Ham, 1997)
reforma big-bang, incremental, "de baixo para cima" e incipiente e
outras que apóiam-se na definição das "dimensões estratégicas" ou
"macrofunções" dos sistemas de saúde, que devem ser objeto de reforma (Berman
& Bossert, 2000) financiamento, prestação de serviços, incentivos,
regulação e informação.
Na conjuntura atual de reformas setoriais, o princípio da eqüidade, presente na
agenda reformadora, freqüentemente está condicionado aos objetivos de
eficiência, submetida aos "limites de caixa" e de custo-efetividade, que por
sua vez, não inclui a análise dos objetivos de determinada política e exclui
explicitamente a valoração dos fins que a justificam, cuja definição e
implementação pertencem ao campo político e não à análise técnica. As políticas
restringem-se, assim, a determinar a alternativa mais eficiente e efetiva para
alcançar determinados objetivos, porém não levam em consideração os resultados
de determinada ação para a sociedade em seu conjunto. Em outras palavras,
embora seja desejável e necessário que as ações em saúde sejam mais efetivas e
eficientes, a questão das diferentes necessidades de distintos grupos
populacionais é reduzida à diminuição da intervenção estatal e do financiamento
público, traduzidas nas políticas de focalização (nos mais pobres) e de
privatização, apregoadas como mais eqüitativas.
Nenhuma dessas reflexões e propostas avança em termos conceituais, partindo da
premissa básica de que as reformas sanitárias são processos tecnocráticos,
decorrência natural da "grande transformação" na qual o mundo está envolvido há
mais de duas décadas. Esse pressuposto permite que, por um lado, somente se
identifique como "reforma" aquelas mudanças que se adeqüem a determinados
referenciais, como por exemplo, "as reformas orientadas para o mercado",
excluindo-se, em conseqüência, todas as outras mudanças de política de saúde
que não levem em consideração esse paradigma. E, por outro, que se
particularize o caráter social da política de saúde, isto é, que se redefina o
direito à saúde, excluindo-o do elenco dos benefícios sociais, segmentando-se
diferentes beneficiários, determinando-se prioridades e focalizando-se
benefícios e serviços para "pobres e necessitados", alegando-se recursos
escassos e impossibilidade de atender a uma demanda inerentemente infinita.
Política social e política de saúde
Como nos recorda Santos (1998), o problema da escassez de recursos para
satisfazer as necessidades e demandas dos membros de uma sociedade não é novo e
sempre esteve presente no pensamento político e econômico, durante séculos,
inserindo-se no âmbito da questão mais ampla sobre a possibilidade de
manutenção da ordem social. E são bem discutidas na literatura as vinculações
entre a consolidação e complexificação do Estado moderno, e o desenvolvimento
da ação política como forma de construção da ordem social. A crença numa ordem
política promovida desde o Estado e organizadora da sociedade, simultânea ao
desenvolvimento do sistema econômico capitalista, são as bases da expansão da
capacidade de regulação social do Estado, da criação das representações
democráticas e da idéia dos direitos sociais que sustentam os princípios de
cidadania (Baltodano, 1997). A dinâmica dessa intervenção estatal no campo
social repercutirá de forma importante e específica em cada sociedade.
Em termos muito sintéticos, num longo processo histórico que atravessa séculos,
mais precisamente nos séculos XIX e XX, a institucionalização paulatina de
direitos sociais, como parte do desenvolvimento do princípio da cidadania,
inspirado na idéia liberal de igualdade, gerou políticas públicas voltadas seja
para a compensação das desigualdades produzidas pela dinâmica de expansão do
capital, seja como moeda de troca no jogo político.
A idéia de uma política setorial para a saúde, tal como para outras áreas
sociais, não existia antes da segunda metade do século XIX. Historicamente,
através dos séculos, o discurso médico-científico da saúde se imbricou com o
âmbito social, permitindo a emergência do discurso da saúde pública e da
política de saúde como campos específicos de intervenção do Estado. Entretanto,
esse processo não se deu de forma linear nem tampouco essa intervenção foi
uniforme, mas historicamente determinada, como resposta a diferentes demandas e
necessidades em espaços e épocas distintas (vejam-se as diferentes e
complementares etapas de constituição da medicina social na Europa da
medicina do Estado na Alemanha, da medicina urbana na França e da medicina da
força de trabalho na Inglaterra, discutidas por Foucault, 1979).
Na realidade, a partir do século XVIII, observa-se a emergência da saúde e da
doença como problemas que exigem, de uma maneira ou de outra, um encargo
coletivo; além disso, e mais importante, observa-se também um outro processo
o surgimento da idéia do bem-estar físico da população em geral (saúde)
como um dos objetivos essenciais do poder político. Já no final do século XIX,
a ampliação e dominância da racionalidade científica médica foi acompanhada de
um crescente desenvolvimento e dependência das estatísticas. E no século XX, o
espetacular desenvolvimento da tecnologia médica reforçou o lado curativo
assistencial do cuidado da saúde. Ou seja, a importância da medicina na
política de saúde tem origem no cruzamento entre uma nova economia analítica da
assistência (inicialmente voltada para os pobres e posteriormente para a
população como um todo), incluindo a transformação dos hospitais em local
privilegiado de produção de saúde e de conhecimentos sobre as doenças, e a
emergência de um "policiamento" da saúde em nível da população (Foucault,
1979). Em síntese, numa outra clave analítica Foucault também apontou que o
conceito de população, estatisticamente esquadrinhada e ordenada, e,
posteriormente, o de política de saúde, emergiram e se realizaram no processo
de disciplinamento da sociedade, ou seja, saúde e doença tornaram-se categorias
que integram os sistemas de administração e controle da população, e a política
de saúde o campo privilegiado de regulação de várias tensões sociais (Foucault,
1979; Rosen, 1980, 1994). Em outras palavras, são elementos constitutivos do
estabelecimento de uma determinada ordem social.
Os direitos e deveres dos indivíduos em relação à sua saúde e a dos outros, o
mercado onde interagem as demandas e as ofertas de cuidados médicos, as
intervenções do poder na ordem da higiene (prevenção) e das doenças (cura), a
institucionalização e defesa da relação privada com o médico (predomínio da
medicina científica), marcam o funcionamento global da política de saúde do
século XIX (Foucault, 1979). E na segunda metade do século XX, a valorização da
noção de igualdade de oportunidade de acesso a serviços passou a constituir um
dos princípios que nortearam a construção dos sistemas de saúde, embutida na
percepção do direito à saúde como direito de cidadania, sobretudo depois da
Segunda Grande Guerra e sob a égide das políticas econômicas e sociais de cunho
keynesiano, isto é, com forte intervenção do Estado como provedor e financiador
de serviços, por meio da arrecadação fiscal ou de contribuições sociais.
Essa análise é pertinente para os países desenvolvidos do Norte, sobretudo
europeus, mas para a nossa região a história é outra. Nossa evolução histórica
está marcada pela constituição de estados economicamente dependentes;
sociedades altamente segmentadas, com consideráveis níveis de exclusão e
marginalidade social; bases territoriais socialmente desintegradas;
instituições com baixa capacidade de implementação de políticas e de regulação
social; e estruturas de direitos de cidadania extremamente frágeis e parciais.
Estados com uma "inserção subalterna nos mercados internacionais" e pautada por
endividamento progressivo e perverso (Baltodano, 1997:56).
A intervenção do Estado na saúde, embora importante num primeiro momento,
vinculou as atividades médico-sanitárias (beneficência pública, salubridade),
de forma estreita e centralizada, aos interesses econômicos imediatos e às
necessidades do comércio internacional. E a transformação da atenção médica
somente se deu depois dos anos 30 do século passado, com importante ênfase na
atenção hospitalar, mas de forma privatizada ou fortemente subsidiada pelo
Estado e voltada para grupos particulares. Essa estruturação foi coerente com a
lógica de cidadania regulada (Santos, 1979), que norteou a forma de segmentação
particularista que adquiriu a política social na região, privilegiando os
sistemas corporativos da sociedade. Este modelo conviveu também com variadas
formas de controle social de tipo oligárquico e de coerção estatal, pela forte
presença militar no poder, sobretudo no Cone Sul, que impediram a formação de
espaços públicos e o desenvolvimento da capacidade de intervenção da sociedade
e de canais efetivos de participação e controle social. Acrescenta-se ainda a
este panorama a histórica influência dos organismos internacionais na
formulação e implementação de políticas na região (Malloy, 1993; Melo &
Costa, 1994).
O resultado foi a implementação de políticas sociais pouco inclusivas,
ineficientes e inefetivas e o desenvolvimento de complexos médico industriais
desregulados, com alto grau de autonomia, que cresceram à sombra do Estado ou
francamente subsidiados com recursos públicos.
A agenda de reforma da política social e de saúde
Na América Latina, o debate sobre a política de bem-estar social prosperou no
contexto de crítica aos regimes ditatoriais, pouco aprofundando uma discussão
da política social em si, a não ser como "não-política" ou como a expressão
material da pouca prioridade conferida pelos regimes burocráticos-autoritários
aos aspectos distributivos. A ênfase estava posta então nos efeitos regressivos
(perversos) das políticas públicas não sociais, e na pressuposição da
inexistência de uma política social (segunda metade dos anos 60 e início dos
70). E, posteriormente (da segunda metade dos 70 a primeira dos 80), na crítica
da racionalidade que havia incorporado a política social a uma específica forma
de acumulação a constituição de complexos empresariais em torno à sua
dinâmica (Melo, 1998).
Esse debate se processa, porém, em escala planetária a partir da segunda metade
dos anos 70 do séc. XX, capitaneado pelo Banco Mundial, que enfatiza a
contraposição entre eficiência (alocativa) e eqüidade, retomando a cantilena
crescimento versus distribuição, e passando a difundir a fórmula de
"redistribuição (apenas) com crescimento". Introduz-se também a abordagem das
"necessidades básicas" (Melo, 1998; Melo & Costa, 1994). Ao mesmo tempo em
que se reconhecia a importância da intervenção estatal no setor social,
exacerbava-se a crítica à sua efetividade e capacidade resolutiva, sendo que a
questão central seria a incapacidade das políticas do Estado de atenderem às
necessidades básicas da população alvo, isto é, os mais necessitados. O novo
conceito que passa a ser então difundido é o de "má alocação", ou seja, o
problema não era a irrelevância do gasto social público mas a sua "má
utilização", uma vez que os benefícios eram inexpressivos frente aos custos
associados à manutenção de estruturas organizacionais gigantescas, caras e
inefetivas.
A análise centrou-se então na forma de operacionalização da política social e
no seu caráter burocrático, excludente, ineficiente e ineficaz. A reforma
administrativa e a descentralização (que além de "aproximar os decisores e
excutores das políticas das necessidades de suas comunidades e populações,
poderiam superar o "gigantismo burocrático") ocupam lugar de destaque nesse
debate. A partir de "reengenharias" institucionais e mudanças "nas regras do
jogo", influência clara do paradigma neo-institucionalista, espera-se obter
maior eficiência, eqüidade e a concomitante diminuição de comportamentos
predatórios e nocivos, utilizando-se mecanismos que incentivem a competição
(Almeida, 1995, 1999, 2001; Melo, 1998). A ênfase foi posta, assim, na reforma
das leis (Constituição) e da arquitetura legal dos programas e políticas,
entendidas como estruturas de subsídios e incentivos a serem redefinidos para
modelar novos comportamentos. Uma vez mais o Banco Mundial tomou a dianteira,
agora na área social: ao mesmo tempo que criou um fundo com o objetivo de
aliviar as conseqüências econômicas e sociais adversas dos programas de ajuste,
anunciava sua entrada ativa nos processos de reformulação das políticas
setoriais (Banco Mundial, 1989, 1993).
A natureza dual da questão saúde para a região como um fim em si mesma e
como um meio para fomentar o desenvolvimento já havia sido assinalada por
documentos produzidos anteriormente pela CEPAL (1990), que subsidiaram a
análise do Banco, e a proposta de política de saúde, que emergiu do embate
entre as agências internacionais que atuam na região, foi finalmente endossada
também pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPS, 1995; OPS/CEPAL, 1994). As
condicionalidades dos credores internacionais passaram então a incluir
recomendações explícitas para a reforma das políticas sociais, incluídas as de
saúde, defendendo-se uma melhor utilização dos recursos escassos, que deveriam
ser direcionados para intervenções que diminuíssem a "carga de doença" e fossem
comprovadamente custo-efetivas (Banco Mundial, 1993).
Em trabalhos anteriores analisei essa agenda e os respectivos modelos de
reorganização dos sistemas de saúde com maiores detalhes. Para o que nos
interessa discutir aqui, basta reter que essa nova agenda constitui um conjunto
articulado de proposições: redefinição do mix público e privado e separação de
funções de financiamento e provisão, diminuição da intervenção do Estado na
provisão de bens e serviços e fortalecimento de seu poder regulatório;
direcionamento da esfera pública para os grupos sociais "mais necessitados"
(que não tenham condições de satisfazer suas necessidades a partir da oferta
desses serviços no mercado) e reorientação da oferta pública, priorizando a
prestação de serviços básicos e de baixo custo, o que permitiria maior
abrangência e eficácia; descentralização funcional das responsabilidades de
prestação para os níveis sub-nacionais de governo; introdução de mecanismos
competitivos (criando-se quase-mercados ou mercados regulados) e de contenção,
controle e recuperação de custos, como forma de melhorar a eficiência; e
estímulo à privatização, sobretudo em relação à assistência médica, com fomento
do mercado privado de serviços, e da previdência social privada.
Identificam-se elementos dessa agenda reformista em praticamente todos os
processos de reforma dos sistemas de saúde na região, introduzidos numa
perspectiva (teórica) de conciliar eficiência e eqüidade. Para tal,
modificaram-se as regras de financiamento e os benefícios, como também a
participação dos agentes públicos e privados, separando-se as funções de
regulação, provisão e financiamento. Estimulou-se uma maior participação do
setor privado na provisão de serviços, e instituiu-se a competição entre as
entidades seguradoras e prestadoras de serviços, implantando-se formas de
quase-mercado na provisão pública de serviços. A idéia de seguro é dominante e
existem diferenças importantes nas combinações entre seguro social (público e
solidário) e seguros de saúde privados, estruturando-se complicados mix
público/privado (Almeida, 1999, 2002; CEPAL, 2000, 2001; Sojo, 2001).
Para concluir
As reformas recentes implementadas na América Latina exacerbaram alguns dos
traços constitutivos das sociedades na região e criaram novos problemas ao
privilegiar uma perspectiva economicista, pragmática e restritiva. Assiste-se
assim, à substituição dos valores de solidariedade e igualdade de oportunidade
pelos de um "individualismo utilitarista radical" (Mateucci, 1993), mais
característico de séculos passados do que do início de um novo milênio; e do
princípio de "necessidades de saúde ou de serviços de saúde" pelo de "risco",
monetarizado e definido segundo a posição social e econômica do indivíduo. A
partir dos anos 80, passou-se a acreditar na possibilidade de harmonizar os
interesses particulares egoístas ou de fazer coincidir a utilidade particular
com a pública, a partir da aplicação à saúde, por analogia, dos conceitos de
mercado e de utilidade formulados para a economia.
Em termos gerais, a situação dos sistemas de saúde não é animadora: pode-se
dizer que, na última década do século XX, apesar das imensas desigualdades
regionais, o financiamento público pouco se alterou ao mesmo tempo que o gasto
privado se manteve alto, com redução do componente direto do gasto das famílias
em favor do gasto com seguros privados e esquemas de pré-pagamento, das
empresas e outras organizações da sociedade, além de que diminuiu a cobertura
populacional (com exceção de alguns países como Brasil e Colômbia), piorou o
acesso e a utilização dos serviços de saúde e deteriorou-se consideravelmente a
capacidade instalada setorial, majoritariamente pública, também com poucas e
honrosas exceções (Almeida, 2002).
Pode-se afirmar que, em alguns casos, as reformas implementadas foram muito
mais radicais que as dos países do Norte, abrangendo vários âmbitos do
financiamento à reorganização dos sistemas de serviços e implicaram em
importantes conflitos com o princípio de solidariedade e eqüidade, aumentando
de forma importante a complexidade inerente aos sistemas de saúde. Além disso,
aprovaram princípios legais que institucionalizaram o direito à saúde como
benefício social, formalizaram a cobertura universal e o comprometimento com o
princípio da eqüidade (como Brasil e Colômbia), mas a operacionalização dessas
mudanças, de fato, tem aumentado a fragmentação e segmentação dos sistemas de
saúde e não tem superado as desigualdades, além de deixar a desejar em termos
de eficiência.
Apesar da necessária capacidade regulatória e de implementação, a reforma do
aparelho de Estado não se efetivou como desejado, além de que o desenvolvimento
dessa capacitação foi extremamente prejudicado pelo stress fiscal e
desprestígio das instituições públicas e dos funcionários do Estado.
Em síntese, o dilema genuíno entre a administração de recursos escassos
(eficiência) e a superação das desigualdades (justiça social) foi extremamente
exacerbado nas últimas décadas, quando a crença na possibilidade de equilibrar
esses dois parâmetros foi questionada, e as políticas neoliberais enfatizaram o
individualismo e vincularam a política social estritamente ao cálculo
econômico, exacerbando o conflito entre valores e revigorando a contabilidade
ética que lhe é subjacente (Santos, 1998). E esse dilema é especialmente
importante na região latino-americana, uma vez que as condicionalidades
externas têm encontrado forte aceitação nacional e a experimentação tem
proliferado de forma acrítica.
Seria necessário, portanto, retomar a discussão das políticas sociais numa
outra perspectiva, como por exemplo sugere Santos (1998: 51), ao defini-las
como metapolítica, isto é, como a "matriz de princípios que justifica o
ordenamento de quaisquer outras políticas". Isto significa revigorar a
discussão dos princípios e valores que lhe são subjacentes, e definir
princípios de justiça coerentes e consistentes nos quais se apoiar, além de
operacionalizá-los de forma efetiva. Resta portanto, incluir nessa equação a
negociação política.
Além disso, embora seja necessário fazer escolhas, definir prioridades para a
atuação do Estado no setor, a solução não está em "transferir o problema do
âmbito político, significativamente indeterminado e altamente valorativo, para
o universo do discurso lógico" (técnico), supostamente neutro e que obedece a
regras racionalmente irrecusáveis (Santos, 1998:40), como se vem fazendo. Essa
dinâmica requer o ordenamento de preferências, que implica na introdução de
condicionalidades (nacionais e locais) impostas pela realidade, onde o discurso
e a retórica dos decisores e de seus críticos se efetiva. E esse ordenamento de
preferências não pode ser logicamente deduzido, o que significa que não é
possível resolvê-lo a partir unicamente da lógica científica (técnica). Em
outras palavras, é preciso lembrar que se está tratando de decisões de
políticas que pressupõem a distribuição de cotas distintas de benefícios e
sacrifícios entre os indivíduos de uma sociedade, que assegurem a minimização
do conflito social e alguma ordem social, o que requer procedimentos adequados.
A questão substantiva, portanto, é definir qual seria a "distribuição justa da
relação sacrifício/benefício entre os indivíduos da sociedade" (Santos, 1998:
51). Recai, assim, na lógica política do "cálculo do dissenso", isto é, qual o
consenso possível, ou o dissenso suportável em determinada sociedade, em
determinada conjuntura. Refere-se em última instância, ao grau de desigualdade
(e de conflito) que uma sociedade está disposta (ou consegue) suportar.
Agradecimentos
Agradecemos o apoio da Red de Investigación en Sistemas y Servicios de Salud en
el Cono Sur de América Latina (Red), uma vez que este artigo é parte do
trabalho de pesquisa desenvolvido no Programa Equity-Oriented Health Policy
Analysis in Latin America, financiado pelo International Development Research
Center (IDRC)/Canadá e desenvolvido pela Red, em colaboração com a Escola
Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Agradecemos também à revisão
atenta e às sugestões extremamente pertinentes dos(as) revisores(as) anônimos
(as).