O mercado privado de vacinas no Brasil: a mercantilização no espaço da
prevenção
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Introdução
No campo das políticas públicas considerando as duas últimas décadas
a saúde foi um setor em que se experimentaram mudanças significativas. A
chamada reforma sanitária brasileira expressada (de modo limitado) na
constituição do Sistema Único de Saúde (SUS), é o marco dessas mudanças. Ainda
assim, os princípios da universalização, da igualdade, da descentralização, do
controle social, do acesso aos serviços (entre outros), apesar de alguns
avanços, estão longe de terem sido alcançados.
Neste contexto a questão dos insumos (medicamentos, imunobiológicos,
hemoderivados e equipamentos médico-hospitalares) adquire importância
crescente. Ou seja, a garantia do direito à saúde não pode prescindir da
garantia do acesso aos insumos necessários para viabilizá-lo.
Vacina como objeto de estudo pode ser abordado de diferentes óticas,
privilegiando distintas dimensões analíticas, podendo-se citar: a política, de
saúde pública, histórica, de pesquisa e desenvolvimento, clínica, de direitos
do consumidor, econômica e gerencial. A maior parte dos estudos desenvolvidos
neste campo aborda principalmente os aspectos relacionados à análise
epidemiológica, estudos clínicos, tecnológicos, avaliação de políticas em
relação ao acesso e cobertura, além de estudos de custo-benefício.
Sobre o setor de insumos há no país uma produção acadêmica razoável, mas
concentrada ao campo da política de medicamentos e indústria farmacêutica.
Publicações mais recentes, como a organizada por Negri & Giovanni (2001),
ampliam o foco, incorporando análises sobre o setor de equipamentos. Estudos
acadêmicos realizados sobre o tema dos imunobiológicos, especificamente
abordando a produção e o consumo de vacinas no Brasil, de uma perspectiva de
política de Estado e de saúde, são escassos (Gadelha & Temporão, 1999).
Embora este segmento não tenha peso econômico significativo dentro das despesas
globais do setor ou mesmo em comparação com as demais classes terapêuticas
já que o mercado mundial de medicamentos está estimado em cerca de 300
bilhões de dólares, e o de vacinas atingiu apenas sete bilhões de dólares em
2000 (Greco, 2002) as perspectivas dadas pelos avanços tecnológicos
recentes, pelo seu potencial de crescimento e pela importância das vacinas como
poderoso instrumento de redução de morbidade e mortalidade, merecem análises
que abordem seu impacto na dinâmica do setor saúde.
São escassos os estudos sobre esta área de atuação do Estado, sobre sua
especificidade e singularidades. Estas, determinadas pelas características dos
bens produzidos (vacinas) historicamente ligados a uma concepção tradicional de
saúde pública não considerando questões do mercado e da competição.
No Brasil, ao interior da política de saúde, desenvolvem-se durante as décadas
de 70 a 90 dois programas que irão, em conjunto, criar as condições necessárias
e suficientes à estruturação de um mercado maduro para as vacinas: o Programa
Nacional de Imunizações (PNI) e o Programa Nacional de Auto-suficiência em
Imunobiológicos (PASNI).
A continuidade dada ao longo dos anos à execução da estratégia das campanhas
nacionais de vacinação, ao lado da expansão acentuada da rede básica de
serviços, ocorrida a partir de meados dos anos 80, estabelecem as bases de uma
demanda crescente e consistente para as vacinas, e provêem a base operacional
necessária para seu desenvolvimento.
Constituiu-se nesse processo um espaço eqüitativo e universal do ponto de vista
do acesso a este tipo de oferta. Dentro de um sistema historicamente desigual
no acesso a bens e serviços de promoção e recuperação da saúde, o Estado
constrói um segmento de igualdade do ponto de vista do acesso às vacinas
disponíveis no PNI. Este fato estabelece a definição dos limites deste segmento
do mercado de vacinas: espaço público onde a população tem acesso aos produtos
definidos como essenciais pelo próprio Estado, para o controle de doenças
consideradas estratégicas. Mas, como da perspectiva do Estado, a essencialidade
do que deve ser garantido à população envolve aspectos técnicos, políticos e
financeiros, abre-se no interior do mercado um outro espaço que se organiza
obedecendo a outra lógica. Setores da população buscam neste outro espaço,
organicamente vinculado ao setor privado de oferta de cuidados em saúde, e
obedecendo a um sentido particular, uma atenção diferenciada e o acesso a
produtos da fronteira tecnológica que o Estado não oferece ou, quando oferece,
o faz parcialmente.
A partir do final dos anos 80, surge um forte vetor de mudanças no mercado com
o lançamento de novos produtos que aperfeiçoam vacinas já existentes ou que
passam a oferecer proteção até então indisponível contra determinados agravos.
Com o surgimento dessas novas vacinas, frutos do desenvolvimento tecnológico,
tem início uma defasagem entre a oferta garantida pelo Estado, as necessidades
do controle de doenças anteriormente não preveníveis por imunização e a demanda
da sociedade pelo acesso aos novos produtos. Como o PNI não garante o acesso da
população a esse conjunto de produtos, estabelecem-se iniciativas privadas
voltadas para o atendimento específico desta demanda. Estavam assim criadas as
condições para a estruturação de um novo segmento neste mercado: o da
comercialização privada de vacinas e, com ele, o surgimento de um novo espaço
de desigualdade até então inexistente: o do acesso diferenciado às modernas
vacinas. Estes fatos criam novas possibilidades no campo da prevenção de
doenças e novas perspectivas para a dinâmica do mercado, com a estruturação de
práticas comerciais específicas.
Espaço desconhecido e desconsiderado por gestores de políticas públicas e por
especialistas, o estudo do segmento privado do mercado de vacinas buscou não
apenas o dimensionamento de seu real peso econômico, mas também caracterizá-lo
como espaço de transformações importantes que se processam dentro do setor
saúde e seu impacto na organização das políticas e práticas assistenciais.
Apesar das especificidades que o mercado de vacinas apresenta (oligopólio
estatal na produção e hegemonia pública na oferta), que permitem afirmar que
este ainda seja um espaço predominantemente público, os resultados obtidos
apontam para a penetração das práticas privadas de oferta e consumo de vacinas,
neste que sempre foi paradigma da presença estatal no campo das políticas
públicas em saúde.
Metodologia
O estudo desenvolvido para a caracterização do segmento privado apresentou
importante grau de dificuldade. Por tratar-se de tema analisado pela primeira
vez em nosso país, foi necessária investigação específica que envolveu: o
levantamento de informações referentes às importações realizadas;
caracterização dos principais produtores deste segmento; dados históricos sobre
a oferta, incluindo a forma como se definiram as estratégias de
comercialização, entre outras variáveis. Para reconstituir a trajetória e
desempenho deste segmento do mercado procedeu-se a levantamento de dados junto
a órgãos públicos, laboratórios multinacionais produtores, clínicas de
vacinação, empresas distribuidoras de vacinas, sociedades médicas e
especialistas. A realização de entrevistas junto a esses vários atores e os
dados complementares levantados, revelaram-se de grande valor.
O tratamento dos dados referentes às importações de vacinas pelo segmento
privado, esbarrou em obstáculos metodológicos: tanto as fontes disponíveis para
consulta no Ministério da Indústria e Comércio (Sistema Alice) quanto as do
Ministério da Fazenda (Sistema de Estatísticas do Comércio Exterior
Sixcomex) apresentavam problemas. Em primeiro lugar, permitiam obter apenas o
valor total das importações efetuadas pelo país, não discriminando entre as
importações realizadas pelo setor público e pelo privado. Em segundo lugar,
apresentavam o total de importações em um tipo de agregação por produtos que
não permitia análise referida ao grau ou nível de tecnologia inserida nos
diferentes tipos de vacinas. Por fim, não permitiam discriminar as importações
realizadas no interior do setor público, por instituições e por níveis de
governo.
Para poder proceder ao levantamento dos dados necessários à caracterização
deste segmento do mercado, foram utilizados aqueles obtidos junto à Divisão de
Estatísticas do Comércio Exterior do Ministério da Fazenda. Para tanto definiu-
se o período compreendido entre 1997 e 2001, dado que apenas a partir daquele
ano as informações sobre importações de vacinas passaram a ser registradas no
Sixcomex.
Levantou-se para o período referido todas as importações realizadas com base em
análise dos registros individuais de cada importação onde, entre outras
informações, podem-se obter: produto importado por denominação genérica e nome
de marca, número de doses, empresa importadora, produtor e valor da transação.
As informações assim obtidas foram complementadas com a realização de
entrevistas com uma empresa distribuidora, empresa produtora multinacional,
clínicas de vacinação e especialistas.
O complexo médico industrial e a indústria de vacinas: público e privado na
dinâmica do mercado
No Brasil, o conceito de complexo médico industrial (CMI) foi utilizado pela
primeira vez por Cordeiro (1980), ao estudar o padrão de consumo de
medicamentos no país. Referindo-se ao CMI como determinação fundamental das
práticas de consumo de medicamentos, definiu-o enquanto "...a produção e
circulação de medicamentos, a organização da prática médica, as formas de
intervenção estatal no setor e as práticas concretas de consumo individual...a
formação de recursos humanos, as articulações da escola médica com a Indústria
Farmacêutica e as relações com o setor de equipamentos" (Cordeiro, 1980:113).
Segundo Braga & Silva (2001), existem duas etapas no processo de
desenvolvimento da atenção à saúde no país. A primeira denominada de
capitalização da medicina, cobre a fase em que o Estado foi o centro do
processo de financiamento da ampliação da oferta e demanda aos serviços e bens
do setor. A segunda, referida como de "mercantilização da saúde", "é a fase
que, no Brasil, se segue à da capitalização da medicina...onde o setor privado
vai se autonomizando no financiamento, cuja expressão máxima são os seguros
saúde privados, na produção de serviços que já conta com uma base própria de
acumulação em expansão...multiplicam-se os tipos de empresas de saúde e o
consumidor de serviços se encontra no mercado e não mais diante do serviço
público..." (Braga & Silva, 2001:20).
Este processo, em pleno desenvolvimento no país, encontrava no mercado de
vacinas um espaço de singularidade: a persistência do conjunto de práticas
preventivas que envolvem a utilização de vacinas como espaço eminentemente
público, de caráter universal e equânime. Mantinha-se portanto, posição
distinta em relação a outros bens, produtos e serviços inseridos na dinâmica
capitalista do complexo industrial da saúde. A introdução da lógica mercantil
nesse espaço dá-se com mais intensidade e organicidade frente ao conjunto de
práticas do complexo apenas a partir do início dos anos 90. Ou seja, no momento
em que o processo de capitalização e mercantilização do sistema de saúde do
país já se encontra em fase avançada de seu desenvolvimento. Percebe-se nesse
processo uma dinâmica tardia de inserção no processo de mercantilização em
curso, que ocorre a partir do momento em que as vacinas se transformam em "uma
mercadoria submetida às regras de produção, financiamento e distribuição de
tipo capitalista" (Braga & Silva, 2001:21). Está determinada por dois
aspectos fundamentais: pelo desenvolvimento da ciência e da tecnologia ao criar
um novo produto com tecnologia de DNA recombinante, rapidamente seguido por
outros; e pelo encontro com um crescente e cada vez mais presente setor privado
de oferta de serviços médico-hospitalares, onde esse novo segmento se insere.
Isso trará consigo a quebra da eqüidade historicamente observada neste espaço
das práticas preventivas.
Enquanto na década de 80 já estavam claramente estabelecidas as bases de
capitalização crescente do sistema de saúde, com o início do processo de
estruturação do segmento de planos e seguros de saúde, no campo das vacinas o
Estado consolida o PNI e lança o PASNI. Dessa forma, propunha-se a garantir a
auto-suficiência do país na oferta das vacinas consideradas essenciais.
Ao contrário da indústria de medicamentos, que desde a década de 50 iniciara um
forte processo de internacionalização da indústria no país, no segmento de
vacinas a década de 80 vê o último produtor privado de capital estrangeiro
interromper sua produção. Portanto, desse ponto de vista, este segmento pode
ser considerado como de inserção tardia na dinâmica mercantil do CMI
brasileiro.
Como determinantes fundamentais dessa especificidade na dinâmica do mercado de
vacinas no país, podem ser citados:
A especificidade do objeto vacina e sua força simbólica no conjunto de
instrumentos de intervenção no campo da saúde. Seu capital simbólico está
marcadamente vinculado à idéia da vacina como um bem público, como um
instrumento do Estado no controle de determinadas situações sanitárias;
O conjunto de recursos financeiros mobilizados no setor, dado pelo baixo
valor agregado dos produtos disponíveis até então, era ainda restrito em
relação ao conjunto do mercado de medicamentos, ou seja, um segmento de baixa
expressão econômica;
A até então baixa dinâmica de inovações nesse segmento, só quebrada a partir
de 1986 com o licenciamento para uso da vacina contra a hepatite B;
A política de seletividade restritiva adotada nas décadas de 80 e 90 pelo
Estado na definição do conjunto de vacinas disponibilizadas no PNI, não
incorporando ao calendário obrigatório os novos produtos;
O desinteresse da indústria farmacêutica e dos grandes produtores por esse
segmento, dada sua baixa dinâmica e insuficiente retorno financeiro.
Este processo de inserção tardia na dinâmica mercantilista setorial
determinaria alguma singularidade em seu processo de estruturação? Alguns
fatores podem ter contribuído para conceder uma certa especificidade no
desenvolvimento desse segmento. Um deles foi a opção do país por manter e
modernizar a indústria estatal, criando uma capacidade instalada significativa
para a produção de produtos tradicionais que garantissem a maior parte da
oferta dos produtos utilizados pelo PNI. Ao iniciar este processo de mudança
(da oferta artesanal/ marginal para o desenho de um segmento estruturado) já
encontra um segmento privado de oferta de serviços médico-hospitalares,
desenvolvendo e aperfeiçoando um conjunto de práticas e lógicas de organização
do cuidado assistencial. Seu ritmo de expansão estaria limitado pelo alto preço
desses novos produtos e pelo fato de o Estado ainda prover as vacinas mais
importantes. Por outro lado, ele cresce em um momento de crise da qualidade dos
serviços públicos, mas onde a oferta estatal de vacinas ainda se mantêm como
espaço respeitado criando uma espécie de contraponto à hegemonia crescente do
espaço privado no setor saúde.
No caso do Brasil, a erradicação da varíola, a drástica redução da poliomielite
e sarampo, por meio das campanhas de controle de âmbito nacional, e o
enfrentamento da epidemia de meningite nos anos 70 contribuíram para criar uma
"cultura" positiva, uma imagem moderna e "protetora" para a vacina como
estratégia médica de atenção. Esta dinâmica, que retoma a tradição Pasteuriana
em novas bases, onde o desenvolvimento da ciência ocupa um papel central,
criará as condições necessárias para o desenvolvimento de um subsetor
específico, composto por organizações e práticas até então incipientes: o da
comercialização privada de vacinas por intermédio da estruturação de uma rede
de clínicas de vacinação e de consultórios médicos, hospitais e empresas, como
espaço complementar e alternativo da rede pública. Este novo segmento se insere
sem conflitos no interior do CMI.
De fato, ao oferecer produtos tecnologicamente mais modernos, não disponíveis
no PNI, ele vem suprir uma lacuna articulando-se funcionalmente e politicamente
à medicina privada e às praticas empresariais no campo da prevenção e da
promoção.
Entretanto, a caracterização deste mercado, em contraponto ao de especialidades
farmacêuticas, deve considerar outros aspectos. No caso dos medicamentos, seu
consumo se banalizou enquanto recurso terapêutico, estimulado em grande parte
pelas estratégias comerciais e pela incorporação cultural do autoconsumo
enquanto estratégia corriqueira de recuperação da saúde. Já no caso das
vacinas, estas ainda são vistas com reserva, como um recurso mais nobre,
manipulável apenas no campo restrito do saber médico e das práticas
institucionais. Seu consumo ainda depende fortemente da intermediação do
profissional médico e do conjunto de instituições públicas envolvidas no
desenvolvimento das políticas preventivas no campo da saúde. Estas
características colocam limites ao processo de ampliação do consumo e
estabelecem processos específicos às estratégias de comercialização.
Estruturação e consolidação do segmento privado
No Brasil a produção e a oferta de vacinas sempre estiveram sob forte hegemonia
estatal. A própria história do desenvolvimento da saúde pública brasileira se
confunde com a estruturação de instituições produtoras de biológicos.
Entretanto, a participação de empresas privadas neste campo, apesar de
historicamente minoritária, destacou-se em situações específicas. De fato, o
desenvolvimento do segmento de produção privada de produtos biológicos deu-se a
partir do Estado (Fernandes, 1999; Ribeiro, 2001).
Estas relações, de forte conteúdo estruturante, têm-se mantido presentes em
toda a trajetória das organizações de desenvolvimento e produção de
imunobiológicos. "Durante as décadas de 1920 e 1930, senão até hoje, a
trajetória dos Institutos Butantan e Oswaldo Cruz seria, em larga medida,
condicionada pelo campo de tensão gerado por essa contradição entre o público e
o privado na produção e distribuição de terapêuticos..." (Benchimol &
Teixeira, 1993:181).
No campo das vacinas, mais que uma contradição, estabelece-se uma organicidade
entre produção e consumo nos espaços público e privado. O segmento privado de
oferta de vacinas é gestado, estimulado e, em seu início, mantido pelo próprio
Estado.
As primeiras clínicas de imunização privadas do país se estabelecem no início
dos anos 70, antes mesmo da estruturação do PNI. Seus principais exemplos são a
Climuno Clínica de Vacinação fundada por três sanitaristas, entre eles
Nelson Moraes no Rio de Janeiro, e a Clínica Especializada em Doenças
Infecciosas e Parasitárias e Imunizações (CEDIPI) por Gabriel Oselka e outros
médicos em 1972, em São Paulo.
O conjunto de fatores envolvidos na estruturação da CEDIPI é um exemplo do modo
como o segmento privado de oferta se organiza no Brasil. Segundo Gabriel Oselka
(proprietário da clínica CEDIPI, em entrevista realizada em 22 de outubro de
2001), em São Paulo, no início dos anos 70 um grupo de médicos do Hospital dos
Servidores Públicos exercia suas atividades em um dos primeiros postos de
vacinação organizado em hospital público do país, vinculado ao Serviço de
Doenças Infecciosas e Parasitárias, chefiado à época pelo Dr. Vicente Amato.
Espaço diferenciado de prática clínica onde os médicos, residentes e internos
participavam em conjunto das atividades, era considerado à época um posto de
saúde padrão. O grande interesse despertado pelas vacinas como instrumento de
prevenção, aliado à crescente credibilidade conquistada pelas políticas
públicas nesse campo, aumentava o interesse de profissionais médicos em
estabelecer um espaço diferenciado e especializado, onde pudessem prestar seus
serviços. Esta opção respondia, possivelmente, a demandas crescentes da
sociedade por espaços diferenciados daqueles disponibilizados pelo Estado na
oferta de vacinas.
Surge então a idéia de se aliar a prática liberal de consultório à oferta de
vacinas, em uma visão de diferenciação dos serviços oferecidos. No caso do
CEDIPI, o atendimento desde o início de sua fundação era realizado apenas por
médicos: um claro movimento de diferenciação, dado que o espaço das práticas de
imunização era fortemente dominado por profissionais de enfermagem.
A CEDIPI, assim estruturada, começou por oferecer serviços de imunização
utilizando as seguintes vacinas: DPT, sarampo, Sabin e BCG oral. A clínica era
credenciada a vacinar de modo integrado ao sistema público. A cobrança pelos
serviços limitava-se aos honorários médicos, decorrentes da consulta médica
prévia ao ato de imunização (G. Oselka, entrevista). Ou seja, a clínica atuava
na prática como um posto de saúde especificamente voltado para a aplicação das
vacinas constantes do calendário do PNI. Obviamente, visava a um público
diferenciado capaz de pagar pelo ato médico que antecedia a vacinação. Mas,
desde o início, a clínica ofertava um produto que o PNI só iria incorporar na
década de 90: a vacina tríplice viral que tem sua importação iniciada em 1973 e
só seria gradualmente incorporada ao PNI a partir de 1992.
A possibilidade de conjugar oferta privada utilizando-se de vacinas fornecidas
pelo Estado só foi possível por meio da existência de uma regulamentação
específica. Em 1977, a Resolução 42, do então Secretário de Saúde do Estado de
São Paulo, Walter Leser, estabelecia diretrizes para o credenciamento de postos
de vacinação privados na área do território paulista a fim de atuarem na
execução do PNI do MS. Um conjunto de pré-requisitos eram exigidos para o
credenciamento e, em seu artigo terceiro, estabelecia que os mesmos, "... serão
abastecidos gratuitamente com vacinas previstas como obrigatórias no PNI.
Poderão, se assim o desejarem, receber honorários pelo exame médico realizado
antes da vacinação" (SES-SP, 1977).
Em 1978, o então Secretário de Saúde Pública do Estado de Sergipe solicita
orientação ao Ministério da Saúde (MS) sobre como proceder em relação às
clínicas particulares onde eram desenvolvidas atividades de vacinação. Ele
refere-se especificamente a dois aspectos: ao fornecimento de vacinas pela
Secretaria de Saúde a essas clínicas; e de que modo elas poderiam cobrar pelo
serviço realizado (MS, 1978). Em resposta, a consultoria jurídica do MS,
segundo parecer de número 4-108/1978 e baseando-se no Decreto 78.231 de 1976
que regulamentou a Lei 6.259 de 1975, esclarecia que o artigo 33 itens VI e VII
do referido decreto, definia como funções das Secretarias de Saúde: VI
"promover a criação de postos de vacinação em todos os serviços de saúde de
natureza pública e particular"; VII "credenciar médicos, como agentes,
para a execução de vacinações" (MS, 1978).
Por outro lado, o artigo 40 do mesmo decreto afirmava a gratuidade das vacinas
obrigatórias ao frisar que "as vacinas obrigatórias e seus respectivos
atestados serão gratuitos inclusive quando executados por profissionais em suas
clínicas ou consultórios, ou por estabelecimentos privados de prestação de
serviços de saúde" (MS, 1978).
O parecer do MS concluía com as seguintes recomendações: "as vacinas
obrigatórias distribuídas pelas Secretarias de Saúde às entidades privadas e
aos agentes de vacinação credenciados, bem como o ato de emissão do atestado de
vacinação lançado na caderneta nacional de imunizações padronizada pelo MS,
serão gratuitos. Não existe proibição legal expressa à cobrança pelas pessoas
credenciadas dos serviços relacionados à aplicação das vacinas obrigatórias..."
(MS,1978).
Fica evidente, desde o nascedouro, as íntimas relações estabelecidas entre o
desenvolvimento do PNI e a criação de um mercado nos moldes capitalistas para a
área da oferta de serviços de imunização. A partir do conhecimento acumulado na
organização de um serviço público diferenciado de imunização, o grupo de
médicos em São Paulo estabelece espaço privado de oferta dos mesmos serviços.
Essa relação apóia-se inclusive na oferta dos imunobiológicos a partir do
próprio Estado. Ou seja, o fenômeno que se havia processado no espaço da
produção repete-se no da oferta: Ribeiro (2001), com base no trabalho original
de Benchimol & Teixeira (1993), reflete sobre as relações entre os
laboratórios privados e os institutos públicos de pesquisa e produção, tratando
de uma "mercantilização da ciência", em que "...a difusão do consumo de
produtos elaborados nos laboratórios dos institutos públicos tornou a atividade
produtiva lucrativa, e os cientistas das instituições públicas, que detinham o
saber fazer, passaram a ter interesse no estabelecimento de empresas ou no
trabalho realizado na iniciativa privada. O know how adquirido pelos
profissionais em instituições estatais seria posto a serviço de interesses
mercantis" (Ribeiro, 2001:619).
A estruturação em âmbito nacional de um programa voltado especificamente ao
combate às doenças infecciosas por meio da imunização expande um conjunto de
saberes, tecnologias e práticas institucionais, dentro do espaço público.
Médicos e outros profissionais que exercem sua prática nos serviços públicos,
com base em conhecimento e práticas ali adquiridas e acumuladas, e de avaliação
das possibilidades comerciais vislumbradas por um novo negócio, sentem-se
estimulados a estabelecer um serviço privado. No início, o próprio Estado era o
fornecedor do principal insumo necessário: a vacina.
Processo semelhante ocorreu no espaço do desenvolvimento e da produção a partir
da década de 30, mas que apenas nos anos 70 veria sua contraface no espaço da
comercialização privada, sob a forma da organização de empresas especializadas
na oferta de serviços de imunização. De início, o nascente segmento privado de
oferta trabalhava praticamente com os mesmos produtos do PNI, com exceções
muito específicas. Este fato estava determinado pelas próprias limitações da
indústria e pela inexistência de novos produtos no mercado. Clínicas e
consultórios funcionavam como complemento à rede pública. Entretanto, a
existência de cobrança pelo ato médico precedente à vacinação obviamente
limitava o acesso a esses espaços a extratos populacionais em condições de
pagar. De outro lado, o fornecimento das vacinas pelo Estado, na prática,
funcionava como subsídio ao desenvolvimento do mercado privado nesta área.
A ciência, ao desenvolver e colocar no mercado um produto que o revolucionaria
e lhe traria nova dinâmica, daria novo impulso a este nascente e ainda tímido
segmento do mercado. Teríamos então finalmente, a transformação da vacina em
uma mercadoria "submetida às regras de produção, financiamento e distribuição
de tipo capitalista" (Braga & Silva, 2001:21).
O segmento que se estrutura a partir de então vai envolver empresas produtoras,
importadores, distribuidores, médicos especialistas (principalmente pediatras,
clínicos gerais, infectologistas, ginecologistas e obstetras, e
gerontologistas), entidades médicas, escolas, empresas e consumidores
individuais. Em uma visão abrangente, esta atividade historicamente entendida
como eminentemente pública (reforçada pela mística da Fundação Oswaldo Cruz e
do Instituto Butantan) foi gradualmente construindo outra face, contraponto à
que lhe deu origem. Voltada basicamente para a população de maior poder
aquisitivo e que já utiliza o sistema privado de assistência médica, é
desenvolvida por clínicas especializadas e consultórios de especialistas onde
são oferecidos horários flexíveis de atendimento, conforto e visual moderno,
além de atendimento em domicílio ou no local de trabalho. Lá, podem ser
encontrados não só produtos não disponíveis nos centros de saúde, mas também as
vacinas tradicionais, criando um espaço de "competição" com o setor público.
Os extratos de maior poder aquisitivo, empresas e escolas são seus principais
clientes. Todos buscam novas opções de consumo neste campo, em parte
estimulados pela mídia. Matérias sobre saúde, práticas saudáveis de vida e
prevenção de doenças freqüentam com assiduidade as revistas semanais, as
publicações dirigidas ao público feminino e os principais jornais. No caso
específico das vacinas, o público alvo é composto principalmente pelos
pediatras, clínicos, gerontologistas e outros especialistas. A estes a
indústria dedica esforços e adota estratégias de marketing semelhantes às
utilizadas pela indústria de medicamentos. De fato, as tendências
internacionais parecem aproximar as estratégias de comercialização dessas duas
indústrias (Temporão, 2002). Por outro lado, grandes e médias empresas passam a
oferecer a seus funcionários e familiares o acesso a algumas dessas novas
vacinas dentro de uma concepção de saúde no trabalho (prevenção), motivadas
principalmente pela possibilidade de diminuir o tempo de afastamento do
trabalho em caso de doença. Este conjunto de fatores vai estabelecer uma nova
dinâmica para o mercado, ampliando os interesses dos produtores internacionais.
O quadro percebido no início dos anos 90 já era bem distinto. A introdução no
mercado da vacina recombinante contra a hepatite B iria causar uma radical
expansão deste segmento. Como o PNI não incorporou esta nova vacina ao seu
elenco de recursos, teve início a proliferação de estratégias privadas de
oferta, que tem em consultórios médicos e clínicas especializadas as principais
formas de organização. O surgimento de outras vacinas modernas, como a vacina
contra Haemophilus B, influenza, hepatite A e outras, ampliaria ao longo da
década de 90, ainda mais este mercado.
Até o surgimento da vacina contra hepatite B, os produtos ofertados pelo PNI e
pelas poucas clínicas e consultórios eram praticamente os mesmos. O mercado era
restrito, voltado para segmentos específicos da sociedade. Segundo G. Oselka
(entrevista), "o PNI não tinha a credibilidade que tem hoje. Até a metade dos
anos 80 nossa clínica vacinava mais do que hoje e praticamente com as mesmas
vacinas que o PNI oferecia". As relações estabelecidas entre o PNI e esse
nascente segmento privado, desde o início, foram marcadas pela
complementaridade. De fato, nunca teria existido um padrão de competição entre
o PNI e o segmento privado, mas sim um processo de interpenetração de espaços,
onde o setor privado se estabelece em nichos definidos pela ausência de oferta
ou oferta restrita por parte do Estado.
Entrevista realizada com proprietária de clínica privada evidencia este
aspecto: "Vejo o PNI como um fator positivo que ajuda a abrir mercado. O PNI
ampliou a consciência da população em relação à imagem da vacina. Isto levou
inclusive a um aumento da demanda por vacinas de adultos. Por exemplo, se o PNI
introduz uma nova vacina, o mercado se abre para novos produtos como vacinas
combinadas" (Regina Tavares, proprietária da clínica PREVCLIN, em entrevista
realizada em 21 de setembro de 2001).
Trata-se da construção de um processo de deslocamento e ampliação direcionado
não apenas por demandas de um mercado que se sofistica e amplia, mas
principalmente, pelo desenvolvimento e lançamento de novos produtos, em que
nichos de mercado se superpõem, substituem e se complementam sempre que
necessário. Exemplo disso é quando o PNI incorpora com restrições uma nova
vacina como, por exemplo, a oferta de vacina contra hepatite B apenas a menores
de vinte anos ou de gripe a maiores de 60.
O outro extremo é quando o PNI incorpora ao calendário de vacinação um produto
para cobertura universal da população. Nesse caso o volume de recursos
vinculados à comercialização privada desses produtos se reduz substancialmente.
A pesquisa de campo realizada, demonstra que a partir de 1998 a vacina Hib (que
havia sido um dos "carros-chefes" do processo de crescimento do mercado), ao
ser incorporada universalmente ao PNI, levou à redução dos gastos com sua
importação pelo segmento privado em 80% (Temporão, 2002).
O processo de estruturação desse segmento apresenta características singulares.
Uma das clínicas entrevistadas surge e se estabelece em torno de um único
produto. A Clínica de Imunizações Vaccini, criada em 1993, uma das primeiras do
Rio de Janeiro, surgiu da idéia de constituir a empresa a partir do trabalho da
proprietária como médica especialista em saúde escolar. Como o PNI não oferecia
a vacina contra Haemophillus tipo B, utilizada em crianças, esse foi o estímulo
para realizar uma campanha voltada no primeiro momento para as creches
privadas. A partir daí, a empresa se estruturou e ampliou suas atividades
(Izabella Benevides, proprietária da clínica VACCINI, em entrevista realizada
em 18 de setembro de 2001).
Esta dinâmica passa a constituir subsegmentos dentro do mercado. Um é
constituído por empresas que tradicionalmente implementam políticas
estabelecidas pelos departamentos de saúde ocupacional. Estas passam a ser um
dos alvos do segmento privado, principalmente para as vacinas contra influenza,
tétano e hepatite B. Da mesma forma, os planos de autogestão, cada mais vez
mais abertos a estas práticas, começam a subsidiar a vacinação privada de seus
associados.
A importância dos consultórios como espaço de consumo é destacada por Oselka
(entrevista). Hoje a principal oferta no segmento não seria de clínicas
formalmente estruturadas, mas de médicos especialistas que imunizam em seus
consultórios. Para o entrevistado é a forma mais comum de oferta neste
segmento. Aponta ainda que, dadas às suas dimensões e características, esta
prática coloca dificuldades aos órgãos de saúde pública para fiscalizar e
controlar (Oselka, entrevista).
As relações entre os vários atores no interior do segmento estão determinadas
pelas relações econômicas. As distribuidoras, por exemplo, comercializam os
produtos adquiridos diretamente dos fabricantes e desenvolvem atividades de
promoção sempre em conjunto com os laboratórios produtores. Segundo entrevista
realizada com uma das maiores distribuidoras de vacinas do país, a Express, na
prática elas competiriam com os produtores no processo de vendas para clínicas,
consultórios e empresas; entretanto podem vender produtos de vários
fabricantes, têm maior agilidade, pois são voltadas especificamente para
vendas, além de poder vender produtos em pequenas quantidades (Waldir Grasso,
diretor da distribuidora de vacinas Express, em entrevista realizada em 27 de
novembro de 2001).
O aumento da competição e os crescentes interesses econômicos trariam consigo
alguns problemas. Um deles decorreria da falta de experiência comercial da
maioria dos profissionais de saúde que se envolvem com este mercado, levando à
aproximação destes profissionais, principalmente dos proprietários das pequenas
clínicas, com empresários sem nenhuma inserção orgânica na saúde ou mesmo sem
qualquer projeto mais conseqüente no campo da saúde. Segundo um dos
entrevistados, opera no mercado um "limitador de negócios", ou seja, quanto
mais se respeitam os limites éticos entre a demanda e a exigência legal da
prescrição médica, mais reduzidas as possibilidades de o negócio crescer
(Tavares, entrevista).
De toda forma, as campanhas de vacinação em massa do governo parecem ampliar o
mercado para todos. "Com o início das campanhas, o aumento da procura à clínica
é imediato. Se durante a campanha os serviços públicos entram em greve, como
ocorreu recentemente com a rubéola, nossa demanda também aumenta" (Nelson
Moraes Filho, proprietário da clínica CLIMUNO, em entrevista realizada em 6 de
dezembro de 2001).
A base sobre a qual se apóiam as forças que direcionam o segmento privado está
determinada, em grande parte, pelas estratégias comerciais dos grandes
fabricantes.
O segmento privado de vacinas: dimensões, principais produtos e fabricantes
As informações referentes às vendas de vacinas no mercado brasileiro, assim
como da participação das principais empresas e produtos, são mantidas sob
rigoroso sigilo pelas empresas. De fato, este segmento do mercado é totalmente
desconhecido do setor público responsável em última análise pelo seu controle,
nos termos da legislação em vigor. Durante o trabalho de levantamento das
informações sobre o setor e ao longo das entrevistas, os comentários dos
formuladores de políticas, dirigentes do MS, das empresas produtoras e
especialistas, variaram entre "minimizar sua importância" até considerá-lo como
"desprezível dentro do contexto setorial". No entanto, a realidade mostra-se
bastante distinta.
A tentativa de delimitar o universo de pontos de venda de vacinas, incluindo
clínicas e consultórios, foi de difícil realização. Esforços realizados junto à
Sociedade de Pediatria do Estado do Rio de Janeiro (SOPERJ), no sentido de
obter informações sobre o número de pediatras que desenvolvem serviços de
vacinação em seus consultórios, foram infrutíferos. Esta entidade afirma
desconhecer qualquer estudo, ou mesmo estimativa neste sentido (SOPERJ,
entrevista realizada com sua diretoria, em setembro de 2001). Esforço
semelhante realizado junto à Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro
(SMS-RJ), no sentido de obter uma estimativa do universo desses serviços
instalados na cidade, também não obteve sucesso. Embora, por determinação
legal, todas as clínicas e consultórios devam estar cadastradas junto às
secretarias de saúde de cada município, na prática esses cadastros não se
encontravam à época, disponíveis para consulta (Maria Cristina F. Lemos,
coordenadora de imunizações da SMS-RJ, realizada em 25 de outubro de 2001).
A caracterização desse universo, ainda que de modo aproximado, só foi possível
por meio das entrevistas realizadas com o principal distribuidor de vacinas do
país e com um dos maiores fabricantes mundiais.
A entrevista realizada com aquela que é considerada a maior distribuidora de
vacinas do país, a Express, detentora de 60% do mercado de distribuição,
permitiu uma primeira aproximação a esse universo. Consulta ao seu cadastro de
pontos de venda permitiu sua delimitação aproximada. A empresa possui cerca de
3.800 pontos de venda ativos, assim distribuídos: 380 clínicas de vacinação,
1.900 consultórios médicos, 380 hospitais e 1.140 empresas (W. Grasso,
entrevista).
A projeção desses dados para o universo de unidades envolvidas no mercado leva
à estimativa de um total de 600 clínicas, 3 mil consultórios, 600 hospitais e
cerca de 2 mil empresas que realizam rotineiramente atividades de imunização em
seus funcionários. Ou seja, cerca de 6.200 pontos de vendas.
Entrevista realizada com o gerente de produtos de grande produtora
multinacional (Amauri Gomes, da empresa Alfa, entrevista realizada em 18 de
março de 2002) sediada no país permitiu obter números que se aproximam muito
dessa estimativa. Segundo essa fonte, existem hoje cerca de 450 clínicas de
imunização no Brasil, cerca de 3.500 pediatras que vacinam em seus
consultórios, e entre 2 mil a 3mil empresas que realizam com regularidade
atividades de vacinação.
Os dados obtidos apontam para uma divisão do mercado em que os fabricantes
detêm cerca de 60% das vendas e as distribuidoras cerca de 40%. O mercado está
basicamente concentrado em São Paulo, para onde se destinam cerca de 50% das
vendas. Seguem-se os estados da Região Sul e Sudeste e, com uma parcela
reduzida do mercado, as regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste (W. Grasso,
entrevista).
O levantamento, sistematização, tabulação e análise dos dados obtidos na
pesquisa de campo, em relação à caracterização do segmento privado, permitiram
obter informações que delineiam com clareza seu peso e dinâmica dentro do setor
saúde.
A Tabela_1 mostra a evolução das importações do segmento privado para o período
1997-2001. O total de importações atingiu cerca de 20 milhões de dólares em
2001. Há uma redução dos gastos com importações de cerca de 18% no período
analisado, além de importante mudança no perfil dos produtos importados.
Enquanto em 1997 as vacinas hepatite B e Haemophillus influenzae tipo b (Hib)
respondiam por 46% do total de importações, em 2001 foram responsáveis por
apenas 4,6%.
Por outro, lado observa-se um crescimento importante do mercado para a vacina
Influenza, que em 2001 foi responsável por metade das importações para este
segmento em valores, alcançando cerca de 10 milhões de dólares. Um outro
conjunto mais restrito de vacinas modernas responde por porcentual também
significativo, como hepatite A, hepatite A/B, varicela, pneumococo conjugada e
as novas vacinas combinadas.
Como fica evidente, as importações realizadas por este segmento destinam-se
principalmente à oferta de produtos modernos, embora mantenha-se um fluxo de
importações para as vacinas tradicionais voltado para nichos de mercado em que
a demanda por produtos tradicionais ainda persiste.
Pode ser observado uma forte tendência de redução da participação dos produtos
tradicionais no conjunto das importações. Percebe-se que o principal fator
responsável pela redução dos valores comprometidos com importações foi a queda
da participação das vacinas tradicionais no conjunto de gastos. Ë importante
destacar que as importações das vacinas modernas manteve-se em torno de 20
milhões de dólares no período, mesmo se considerada a forte desvalorização da
moeda brasileira ocorrida em 1999.
A dinâmica observada está intimamente relacionada às transformações em
andamento no mercado como um todo, principalmente o desenvolvimento mais
recente do PNI. A Tabela_2 ilustra esta análise.
A ampliação do processo de universalização da oferta de vacinas pelo PNI (como
hepatite B, Hib e tríplice viral) leva à grande redução no volume destes
produtos comercializados no segmento privado. À medida que sua incorporação ao
calendário oficial do PNI progride, observa-se uma queda significativa do
volume de doses importadas para o segmento privado. Mantém-se entretanto, um
espaço residual voltado para segmentos e demandas específicos da população. No
caso da vacina contra influenza, o segmento privado mantém praticamente estável
seu volume de negócios, apesar de o PNI tê-la incorporado ao calendário
oficial. Isso ocorre pelo fato de o PNI disponibilizar este produto apenas aos
maiores de 60 anos de idade, fazendo com que o segmento privado mantenha um
espaço específico no mercado, voltado para atender às demais faixas etárias,
além dos maiores de 60 anos que por variados motivos o utilizam. Já as vacinas
contra hepatite A, hepatite A/B e varicela, que ainda se encontram na fase de
lançamento no ciclo de vida desses produtos, ampliam no mesmo período, sua
presença no segmento privado.
As importações de vacinas para o segmento privado do mercado no Brasil são
oriundas predominantemente de duas das principais empresas do setor. A
GlaxoSmithKline e a Aventis Pasteur, em conjunto, responderam em 2001, por
cerca de 80% das importações. Como pode ser visto na Tabela_3 e na Figura_1,
outros três fabricantes foram responsáveis, naquele ano, pela maior parte do
fornecimento restante de vacinas para este segmento. Esta participação se
manteve sem grandes oscilações no período analisado, com exceção da entrada em
2001 da Novartis com cerca de oito por cento das importações, e da Wyeth, que
apresentou um crescimento de sua participação de 2,93% em 1997, para 4,59% em
2001. A Merck perde mercado no período em tela com uma redução de cerca de 60%
no volume de produtos importados pelo segmento privado do mercado brasileiro.
A participação dos produtores na importação das principais vacinas pode ser
apreciada na Tabela_4.
A Aventis Pasteur detém a hegemonia nas importações das vacinas influenza,
varicela, hepatite A, tríplice bacteriana e Hib, que responderam por cerca de
90% do total de produtos fornecidos por essa empresa. A GlaxoSmithKline tem
forte presença também em influenza e varicela, com destaques para as vacinas
hepatite A/ B e pentavalente combinada. As demais apresentam portfolio restrito
com destaque para a Wyeth que vem ampliando sua participação no mercado, com a
nova vacina conjugada contra pneumococo. Alguns produtos tradicionais são
fornecidos pela Aventis (poliomielite, meningite a/c e dupla adulto),
GlaxoSmithKline (poliomielite) e Novartis (poliomielite e dupla adulto).
Entretanto, o volume de recursos envolvidos no segmento privado apresentado até
aqui refere-se apenas àqueles gastos com as importações, acrescidos dos
impostos. O passo seguinte, ou seja, sua comercialização no mercado, movimenta
volume de recursos muito mais significativo. Para melhor aproximação dessa
realidade, procedeu-se ao levantamento dos preços de venda ao consumidor
praticados em nove das maiores clínicas privadas da cidade de São Paulo, estado
que responde por cerca 50% do mercado nacional deste segmento. O preço médio
assim obtido foi multiplicado pelo número de doses de cada vacina importada
naquele ano. Os resultados obtidos podem ser vistos na Tabela_5.
<formula/>
Com base na utilização desta metodologia de conformação deste segmento, o
volume de recursos mobilizados alcança 170 milhões de reais. Isso é facilmente
explicável considerando-se o preço médio praticado pelo mercado com a
comercialização das vacinas. Apesar de trabalhar com um volume de doses muito
inferior ao do PNI, o preço médio praticado no mercado por dose aplicada faz
com que o montante de gastos com vendas atinja níveis consideráveis. Observa-se
que a vacina contra influenza detém cerca de 32% do segmento em valores,
seguida por um conjunto de vacinas modernas, entre elas hepatite A e A/B,
varicela, a tríplice bacteriana acelular e a combinada pentavalente
(DtaP+poliomielite+hib).
O mercado brasileiro de vacinas: uma primeira caracterização
A análise do segmento privado permite que se possa proceder a uma primeira
aproximação à avaliação das dimensões do conjunto do mercado de vacinas,
englobando os segmentos público e privado.
A caracterização do mercado total de vacinas a partir desta abordagem ganha
outros contornos em termos de seu peso econômico no conjunto do complexo
industrial da saúde. Se considerados, além do volume de recursos envolvidos na
comercialização privada, aqui analisados, aqueles despendidos pelo PNI para a
oferta no segmento público, pode-se obter uma visão global deste mercado no
país.
A Tabela_6 permite analisar o mercado total, detalhando-o por tipo de vacina.
<formula/>
Desse modo, o mercado total alcançava em 2000, cerca de 396 milhões de reais,
representando a participação do segmento privado 43% do total. Embora se tenha
revelado grande a diferença no volume de doses utilizadas e, portanto, no
número de pessoas cobertas em cada segmento, o preço praticado pelo mercado na
venda direta dos produtos ao consumidor faz com que o volume de recursos
mobilizados pelo segmento privado aproxime-se, em valores, daquele do segmento
público.
A Tabela_6 permite também obter algumas análises singulares:
O segmento público respondeu pela totalidade de oferta das vacinas: dupla
viral, febre amarela e raiva canina.
A vacina BCG é totalmente fabricada no país pela Fundação Ataulfo de Paiva.
Apesar de no ano de 2000 apenas 0,96% de sua produção ter se destinado ao
mercado privado, sua participação em termos financeiros no conjunto do mercado
é significativa.
Predomínio absoluto do segmento privado em relação às vacinas contra hepatite
A, hepatite A/B, tríplice bacteriana acelular, varicela, e as modernas
combinadas. Ou seja, domínio completo do segmento privado na oferta dos
produtos mais modernos disponíveis no mercado.
O volume de recursos envolvidos na comercialização da vacina contra influenza
atinge mais de 100 milhões anuais, sendo o volume de recursos mobilizados pelos
dois segmentos praticamente o mesmo. Entretanto, enquanto o PNI imunizou em
2000 cerca de 14 milhões de pessoas, o segmento privado o fez em apenas cerca
de 2,5 milhões.
97% dos valores mobilizados com o uso da vacina tríplice bacteriana acelular
(DtaP) foram no segmento privado.
O segmento privado ainda detém 43% do mercado para a vacina contra hepatite
B.
Vacinas tradicionais como a DPT e sarampo apresentam ainda significativa
presença no segmento privado de oferta em termos de valores (em torno de 25%).
As vacinas modernas, considerando ambos os segmentos, representam em valores
73% do mercado brasileiro.
Estes dados exigem uma revisão não apenas do entendimento sobre o tamanho e
dinâmica deste setor dentro do complexo da saúde, como também do expressivo
volume de recursos mobilizados no interior do segmento privado. A Figura_2
compara o volume de vendas de algumas classes terapêuticas do mercado de
medicamentos do Brasil, disponíveis para o ano de 1998, com o de vacinas para o
ano de 2000. Com um volume de vendas de 396 milhões de reais para esse ano, o
mercado de vacinas no Brasil apresentou dimensões próximas ao de analgésicos e
praticamente idêntico ao de vitaminas, colocando-se como o quinto em termos de
vendas, no conjunto do mercado farmacêutico.
<formula/>
Trata-se portanto, de um dos principais segmentos de mercado da indústria
farmacêutica e possivelmente um dos maiores da industria biotecnológica do país
na área da saúde.
Conclusões
A inserção tardia das vacinas no processo de mercantilização da saúde
determinou que apenas recentemente fosse despertada a curiosidade de
pesquisadores e instituições governamentais na procura de melhor compreensão de
sua dinâmica. A organização de espaços privados para a oferta de vacinas é um
fato que exige reflexões sobre a presença do setor público como um todo, no
campo da saúde. A construção de um sistema misto como o brasileiro, em que
formas privadas de organização do cuidado para segmentos específicos da
população, convivem com a oferta estabelecida pelo SUS, parecem criar
crescentes e complexos espaços de restrição ao acesso universal e equânime a
serviços e produtos (Almeida, 1998). A análise aqui desenvolvida permite
estender essa tendência ao campo da política de imunizações e ao espaço das
políticas de prevenção.
A análise realizada deste segmento permite observar:
O processo de inserção das práticas privadas de consumo de vacinas no país,
que tem início nos anos 70, é alcançado pela dinâmica de mercantilização do
setor saúde apenas no final dos anos 80;
A considerável capilaridade da rede de pontos de venda desse segmento
incluindo clínicas especializadas, consultórios, hospitais e empresas;
O processo de estruturação deste segmento guarda íntimas relações com o
desenvolvimento do PNI e das políticas públicas neste campo;
Apesar da cobertura populacional ser baixa em relação à alcançada pelo PNI, o
volume de recursos mobilizados pelo segmento privado é semelhante àquele
despendido pelo PNI;
O mercado brasileiro de vacinas é dominado pelas duas empresas farmacêuticas
multinacionais que, atualmente, implementam em conjunto com os dois principais
produtores estatais (Biomanguinhos e Butantan) contratos de transferência de
tecnologia (Temporão, 2002);
A estruturação e consolidação do segmento, suas relações estruturais com o
setor privado de oferta de serviços médico-hospitalares introduzem a lógica
mercantil em espaço "nobre" das políticas públicas do setor saúde.
A caracterização do segmento privado do mercado de vacinas foi desenvolvida por
meio de um esforço de sistematização e da inter-relação entre os vários atores
e instituições na dinâmica do mercado. Com base na análise das inter-relações
entre os vários atores e da dinâmica de atuação deste segmento, pode-se
perceber a complexidade do sistema, que apresenta relações de interdependência,
com o Estado ocupando um papel de grande capacidade indutora.
No caso do segmento privado, os grandes produtores multinacionais, por meio de
suas filiais aqui estabelecidas, fornecem os produtos que vão movimentar este
segmento, fruto do desenvolvimento de suas atividades de P&D e de seus
esforços de marketing. Suas filiais, por intermédio de distintas estratégias de
comercialização, fornecem os produtos principalmente a distribuidores e
clínicas de vacinação. No caso destas, "existe uma tendência para o
estabelecimento de relações entre fabricantes e clínicas que tendem para a
exclusividade em troca de vantagens como descontos, apoio de vendas etc." (I.
Benevides, entrevista). As filiais multinacionais atuam também na venda direta,
principalmente a grandes e médias empresas por meio das atividades de prevenção
destinadas a funcionários e seus familiares. Desenvolvem também, trabalho
inovador de marketing junto a médicos de várias especialidades, além de
estabelecer relações com sociedades médicas e universidades (Temporão, 2002).
As clínicas de imunização, além de atenderem à demanda de pequenas e médias
empresas, estendem sua atuação para escolas e clientes referenciados por
médicos. Os consultórios de especialistas adquirem as vacinas junto aos
distribuidores e oferecem serviços aos seus clientes. A possibilidade de
espaços de comunicação entre os serviços públicos e privados não deve ser
descartada, ou seja, médicos que atendem pacientes no serviço público referindo
para vacinação no espaço privado. De fato seus clientes transitam de um
segmento a outro, influenciados por aspectos econômicos, educativos, da
dinâmica de funcionamento dos serviços públicos e privados, entre outros.
Hospitais e maternidades privados aparecem como espaços menores de oferta. Aqui
a regulação do Estado se dá tanto na exigência de registro dos produtos, como
na fiscalização do funcionamento dos serviços que, como visto, no caso dos
consultórios, parece ser muito deficiente.
Evidencia-se que a dinâmica do mercado ao estabelecer relações e fluxos obedece
à lógica implícita no ciclo de vida dos distintos produtos e à estratégia de
preços administrados pelos produtores centrais. Nas fases de lançamento e de
penetração no mercado, quando predominam poucos produtores (normalmente apenas
um) e altos preços, os produtos encontrados e utilizados nos países centrais,
são oferecidos apenas no segmento privado. Já na fase de maturidade, quando a
entrada de vários produtores leva à redução dos preços, os produtos são
incorporados ao PNI e utilizados em larga escala. Nesta fase de "deslocamento",
o segmento privado incorpora novos produtos, ainda em fase de lançamento ou de
penetração no mercado, além de manter para os produtos maduros nichos de
mercado cujas características estão determinadas pela maior ou menor
abrangência da política de universalização desenvolvida pelo PNI (Temporão,
2002).
O fato é que o PNI, por restrições orçamentárias, não pode disponibilizar aos
usuários do SUS, desde o início, produtos eficazes e disponíveis no mercado,
enquanto o segmento privado os oferece aos que podem pagar diretamente pelos
mesmos produtos. Este tipo de restrição ao acesso das novas tecnologias
disponibilizadas em outras áreas do diagnóstico ou terapia, não parece ter
paralelo no interior do SUS, onde apenas os procedimentos considerados
experimentais apresentam restrições ao acesso.
A SOPERJ evidencia uma visão dividida em relação ao exercício da vacinação em
consultórios.
"É política da Sociedade Brasileira de Pediatria defender o direito dos
pediatras de vacinarem em seus consultórios. Entretanto, é necessário que se
fiscalize o cumprimento da portaria conjunta número 1 da ANVISA e FUNASA,
referente aos estabelecimentos privados. A fiscalização praticamente inexiste"
(SOPERJ, entrevista).
Outro depoimento, obtido junto à diretoria da SOPERJ, reforça o apoio à prática
em clínicas especializadas mas, no caso dos consultórios, "somos formalmente
contra, pois neles não há um controle quanto à conservação e validade das
vacinas...sabe-se que a rede de frio é negligenciada em várias situações, e
parece ser mais falha em consultórios particulares".
De todo modo, a SOPERJ vê a oferta privada como um fator positivo dentro do
sistema de saúde: "as clínicas de vacinas, assim como os consultórios, desde
que cumpram a legislação, exercem papel complementar ao do PNI disponibilizando
vacinas ainda não existentes no PNI e que são recomendadas pela Sociedade
Brasileira de Pediatria, vacinas de tecnologia mais recente, combinações etc. A
nosso ver geram demanda da população pela ampliação dos serviços nos centros de
saúde, o que a longo prazo, gera mais benefícios no campo das imunizações. O
papel do pediatra ou outro médico no setor privado é indispensável porque há um
grande desenvolvimento técnico e científico na área, demandando aquisição e
difusão desses conhecimentos para manter um atendimento atualizado e de melhor
qualidade".
Nessa visão, a oferta de produtos modernos na rede privada cumpriria um papel
indutor sobre a rede pública por intermédio da pressão da população pela
inclusão desses produtos ao PNI. Como visto, a lógica em que o mercado opera é
pouco sensível a estas pressões obedecendo particularmente aos princípios que
regem a dinâmica concorrencial.
O crescimento da presença de serviços privados em espaços até então de
hegemonia pública exige uma reflexão sobre as repercussões econômicas e
técnicas dos distintos aspectos envolvidos nesse processo. Entretanto, essa
análise deve envolver também as repercussões políticas. À trajetória aqui
analisada somam-se fenômenos presentes em outros espaços da assistência à
saúde, caracterizando uma crescente fragilização da presença do Estado e de
restrição ao acesso a bens e serviços garantidos constitucionalmente.
A dinâmica aqui estabelecida, as relações entre os dois segmentos e o volume de
recursos envolvidos demonstram a penetração de lógicas e práticas comerciais em
um espaço até então de total hegemonia do poder público. A tendência aqui
demonstrada de um processo em curso de introdução da mercantilização nas
práticas de prevenção, parece apontar para o fortalecimento da lógica e
dinâmica capitalistas no interior do sistema de saúde brasileiro, ampliando
seus espaços de influência e de capacidade de direcionamento de práticas e
processos.