"Um arranjo produtivo em xeque": campo, habitus e capital simbólico em um
Arranjo Produtivo Local moveleiro em Minas Gerais
1. INTRODUÇÃO
No Arranjo Produtivo Local (APL) de Ubá são gerados, atualmente, cerca de nove
mil empregos em cerca de 600 empresas, entre fabricantes de móveis e
fornecedores de produtos e serviços especializados no setor moveleiro (Botelho
& Bustamante, 2004). Apesar de sediar a maior empresa de móveis de aço da
América Latina, além de três outros grandes fabricantes de móveis de madeira, o
APL é constituído predominantemente de micro e pequenas empresas, geralmente
voltadas à produção de móveis residenciais de madeira (maciça e painéis)
destinados ao mercado interno. As empresas apresentam diversificação em sua
linha de produtos, o que proporciona benefícios como aproveitamento da matéria-
prima, ampliação do campo de trabalho para profissionais em design e maior
capacidade para atender diferentes demandas de mercado.
Essa peculiaridade em seu surgimento, no entanto, parece ter proporcionado
também o aparecimento de disputas que transcendem os conceitos de competição e
de competitividade econômica. Trata-se, principalmente, de relações entre
fabricantes e fornecedores locais do ramo de móveis, que chegam a preocupar os
próprios empresários que delas fazem parte. Existem queixas, de ambos os lados,
que ilustram essa disputa. Uma delas, por exemplo, é a reclamação dos
fabricantes em relação à qualidade dos materiais produzidos pelos fornecedores
locais e à falta de pontualidade na entrega. Os fornecedores, por sua vez,
queixam-se do tratamento que lhes é dado pelos fabricantes, que privilegiam
fornecedores de mercados maiores, sem entenderem o por quê de tal situação.
É nesse contexto que se insere o problema deste artigo, que pode ser assim
apresentado: até que ponto essas disputas, notadamente entre fabricantes e
fornecedores, colocam em risco o APL de Ubá? O objetivo neste trabalho é
apresentar um entendimento de como se dão as relações de poder entre
fabricantes e fornecedores da indústria de móveis no APL de Ubá e discutir suas
implicações e riscos para o desenvolvimento desse arranjo. Em vista de
características peculiares existentes no campo estudado, optou-se por adotar
como referencial teórico a teoria de campo de Bourdieu (1996; 2004b; 2004c). No
trabalho de fomento de arranjos cooperativos ocorrem relações de poder difíceis
de serem identificadas e estudadas e, nesse contexto, as ideias do poder
simbólico e da teoria de campo (Bourdieu, 2004c) apresentam-se como
referenciais úteis para o estudo do funcionamento de arranjos produtivos
locais. É oportuno esclarecer que, apesar de a pesquisa abranger um APL, as
investigações priorizaram as relações entre fabricantes de móveis e
fornecedores locais, ou seja, apenas a dimensão vertical do arranjo produtivo,
conforme define Maskell (apud Zen, 2010). O poder simbólico é entendido como
uma forma modificada, irreconhecível e legitimada de outras formas de poder,
dissimulado nas relações sociais na forma de relações de força, como foi
possível observar no campo pesquisado, onde acontecem transmutações de
diferentes espécies de capital em capital simbólico, como teorizado por
Bourdieu (2004c).
Bourdieu, Chamboredon e Passeron (2010) defendem que o objeto de estudo não
deve ser definido previamente à pesquisa, mas sim construído ao longo de seu
desenvolvimento. Dessa forma, a construção do subcampo representado pela
dimensão vertical do APL de Ubá foi sendo definida ao longo da pesquisa, por
meio dos contatos subsequentes realizados com os dois principais grupos de
atores dessa dimensão: fabricantes e fornecedores. Em outras palavras, essa
construção deu-se de forma interligada, já que, por exemplo, a definição dos
fornecedores locais do campo foi feita com base nas informações obtidas dos
fabricantes, que foram os primeiros entrevistados. Ainda, a própria teoria de
Bourdieu (2004c) auxilia a construir o objeto, uma vez que define as
propriedades dos campos que lhes conferem autonomia relativa. Para Bourdieu
(2004c), um objeto de investigação não deve ser definido senão em função de uma
problemática teórica, por mais parcial que esse objeto possa ser.
Ressalta-se que este estudo decorre de parte das investigações realizadas no
âmbito do projeto Iniciativa de Reforço da Competitividade do APL de Ubá,
ocorrido em 2009, com o objetivo de incrementar a competitividade das empresas
que compõem o arranjo, integrando as perspectivas individuais a partir de uma
visão consensual de futuro e iniciando ações coordenadas para a melhoria do
entorno. Esse projeto foi implantado pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro
e Pequenas Empresas de Minas Gerais (SEBRAE-MG), em parceria com o Instituto
Euvaldo Lodi/Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (IEL/FIEMG) e
com o Sindicato Intermunicipal das Indústrias de Marcenaria de Ubá (INTERSIND).
Quatro grupos de trabalho foram criados, abordando-se os seguintes temas:
produção, logística, design e ponto de venda. O grupo vinculado ao tema
produção, cujas reuniões ocorreram ao longo do segundo semestre de 2009,
considerou necessário apoiar a transformação de parte das micro e pequenas
empresas locais em fornecedores especializados de monoprodutos, componentes e
processos para a indústria de móveis. Tal transformação foi considerada
condição essencial para a evolução do APL de Ubá no cenário competitivo,
especialmente em virtude da concentração do varejo, da iminente entrada de
novos jogadores no setor e da crescente presença de fornecedores estrangeiros
no segmento de móveis nacional. No entanto, a viabilidade de tal transformação
está condicionada à capacidade de estabelecimento de mecanismos de cooperação
entre os seus empreendedores. Para Botelho e Bustamante (2004), a ausência de
tais mecanismos de cooperação afeta negativamente a eficiência coletiva de
aglomerados de empresas, dentre eles os arranjos produtivos locais.
Para o referido grupo de trabalho, era de especial interesse o desenvolvimento
das relações entre os maiores fabricantes de móveis e os fornecedores locais do
APL de Ubá. Trata-se, portanto, da cooperação na dimensão vertical,
caracterizada como sendo estabelecida entre empresas que executam atividades
diferentes, porém complementares (Zen, 2010). As relações entre os atuais
fornecedores locais e os fabricantes de móveis do APL de Ubá possuem tais
características, uma vez que, nesse arranjo praticamente não existe a figura do
fornecedor-concorrente. É nesse processo que se insere a interação dos
pesquisadores com o APL de Ubá. A intenção neste trabalho de campo foi levantar
informações necessárias para que fosse possível compreender o estado dos
relacionamentos entre os maiores fabricantes de móveis e seus fornecedores no
arranjo pesquisado.
A interação dos pesquisadores com o APL de Ubá deu-se por meio de um trabalho
de campo nos quatro primeiros meses do ano de 2010, período no qual foi
possível amadurecer a potencialidade das ideias de Bourdieu (1996; 2004a;
2004b; 2004c) para compreensão do problema pesquisado e para atendimento do
objetivo do estudo. Os dados foram obtidos por meio de entrevistas e de
observação simples (Gil, 2009) e interpretados por meio da técnica de Análise
de Conteúdo (Bardin, 1977; Triviños, 1987).
Este artigo está dividido em cinco seções, contando com esta introdução. Na
seção a seguir apresenta-se a teoria de campo de Bourdieu (1996; 2004b; 2004c).
Na terceira seção, são apresentados os caminhos percorridos na pesquisa e a
metodologia adotada. Na quarta seção trata-se da acepção de APL e apresentam-se
os dados, as interpretações e os resultados obtidos. A quinta seção é destinada
às considerações finais.
2. REFERENCIAL TEÓRICO: O PODER SIMBÓLICO E A TEORIA DE CAMPO DE PIERRE
BOURDIEU
Ainda que o campo de estudo deste artigo esteja inserido em um APL, a pesquisa
enfatiza aspectos simbólicos que o envolvem. A intenção não é estudar o APL a
partir de teorias sobre arranjos produtivos, tampouco pesquisar sua conformação
ou seu desempenho perante outros arranjos econômicos. O que o estudo enfatiza
são simbolismos nas relações interpessoais dos participantes do campo de
pesquisa. Mais especificamente, a ênfase está nas relações entre fabricantes de
móveis e fornecedores desses fabricantes, partícipes da formação do APL de Ubá.
Para Bourdieu (1996; 2004b; 2004c), a sociedade é composta por diversos campos
sociais que possuem relativa autonomia. Trata-se de um espaço com regras de
funcionamento e com relações de força próprias. Os campos são como microcosmos
sociais que possuem objetos e interesses específicos, denominados capitais, que
são tanto instrumentos quanto objetos de disputa. Bourdieu (2004c) compreende
que o sistema de poder é gerado a partir de campos sociais autônomos, em cujo
interior travam-se lutas por poder e lutas desses campos entre si por poder. Um
campo social é mais fortemente estabelecido quanto maior for o seu grau de
autonomia e quanto maior for a quantidade de capital simbólico (econômico,
social e cultural) acumulado por seus membros. Mesmo dentro de campos
autônomos, como educação, religião e cultura, por exemplo, integrantes de um
sistema de poder (ideológico) coexistem com outros campos, cujos integrantes
(pessoas e grupos em afinidade) estão em constante embate.
O conceito de capital simbólico, que é interdependente do conceito de campo
(Emirbayer & Johnson, 2008), foi derivado por Bourdieu (1996; 2004b; 2004c)
da noção econômica de capital, que se baseia em aspectos como acumulação,
investimentos e extração de lucro (Thiry-Cherques, 2006; Rosa, 2007). No
entanto, em Bourdieu (2004c), o conceito de capital adquire outras interfaces
(Teixeira, 2011), que o levam às concepções de capital cultural e social que
vão além do capital econômico. Este compreende os recursos econômicos e os
fatores de produção, como renda, patrimônio, bens e trabalho. O capital
cultural diz respeito ao conhecimento, às habilidades e às informações detidas,
podendo, ainda, assumir três formas. Pode estar em estado incorporado no
indivíduo, como uma disposição durável, tais como talentos, forma de falar em
público e domínio de idiomas; pode estar em estado objetivado, quando se possui
bens culturais, como obras de arte, por exemplo, e pode estar
institucionalizado, que é o capital sancionado por instituições, como os
diplomas e títulos acadêmicos (Bourdieu, 1996; Teixeira, 2011).
O capital social, por sua vez, é formado pela rede de relações de conhecimento
mútuo, como as redes de contatos e os acessos sociais que se possui, como
colegas e amigos pessoais (Bourdieu, 1996). O capital simbólico, síntese dos
outros capitais, é aquele capital valorizado em determinado campo. É o
conhecimento e o reconhecimento dos capitais interiores segundo a importância
de cada um no campo. Como expõem Carvalho e Vieira (2007, p. 28), "refere-
se à acumulação de prestígio, honra, consagração". O poder simbólico está
associado tanto à conjugação dos três capitais quanto à preponderância de um
deles em determinado indivíduo. Se determinado campo reconhece determinado
capital simbólico, quanto mais posse desse capital a pessoa reunir, mais
reconhecimento ela terá naquele campo.
Nos estudos que realizou sobre o sistema educacional francês, por exemplo,
Bourdieu (1996) baseou-se na ideia de capital cultural para formular a hipótese
de que a desigualdade de desempenho escolar não está associada a aptidões
naturais ou esforço pessoal, mas sim "à distribuição de capital cultural
entre as classes e frações de classe" (Nogueira & Catani, 1998, p.
73). Nesse sentido, os capitais tornam-se tipos específicos de poder que são
desigualmente acumulados pelos indivíduos nos campos (Bourdieu, 1996; 2004c).
E, nesses campos, os agentes e as instituições enfrentam-se de acordo com a
posição que ocupam (Bourdieu, 1996; 2004b), posição essa diretamente
relacionada à acumulação de capitais simbólicos. Além desses, aos campos se
atribuem propriedades universais, que seriam o habitus, a doxa,o nomos, a
hexise a illusio. Garcia (2011, p. 13) explica que esses conceitos funcionam
como instrumentos metodológicos para a compreensão do espaço social:
"campo, capital e habitus formam a tríade que funciona como
'feixe' por meio do qual podem ser captadas as características e os
condicionantes que definem as práticas dos agentes". Doxa, nomos, hexis e
illusio complementam a tríade.
O conceito de habitusé central para o entendimento da teoria de campo, pois
permite compreender a forma com que Bourdieu (2001) articula a intermediação
que ele se propõe a fazer entre estruturalismo e subjetivismo. O habitus
refere-se a estruturas estruturadas que operam como estruturas estruturantes,
organizando as práticas e as representações dos indivíduos. São os princípios
que geram as distintas práticas (Bourdieu, 1996) e compreendem o que as pessoas
vão incorporando durante sua trajetória de vida, como a forma de andar, vestir,
falar e gesticular. São estruturas estruturadas porque foram construídas
socialmente e estruturantes porque, internalizadas, operam orientando as ações
dos indivíduos. A doxa está associada à visão dos que dominam o campo, algo que
representa o senso comum. Já o nomos
congrega as leis gerais, invariantes, de funcionamento do campo.
[...] Todo campo, como produto histórico, tem um nomosdistinto. Por
exemplo, o campo artístico, instituído no século XIX, tinha como
nomos: a arte pela arte. Tanto a doxacomo o nomossão aceitos,
legitimados no meio e pelo meio social conformado pelo campo (Thiry-
Cherques, 2006, p. 37).
A hexis está relacionada ao corpo físico e significa posturas físicas e
corpóreas dos que participam de um campo ou espaço social específico. É um
conceito que representa a internalização das práticas sociais, e sua
exteriorização dá-se por meio dos modos de andar, falar, gesticular e olhar
(Bourdieu, 2005). Cabe esclarecer por que se faz menção a falar e gesticular
como práticas integrantes tanto da hexisquanto do habitus. A noção de habitus e
a de hexis podem se confundir, porque a hexis é uma das dimensões do habitus.
Além disso, em Bourdieu (2004c) o habitus é, ele próprio, uma conversão da
noção aristotélica de hexis, sendo também uma tradução latina da hexis de
Aristóteles (Casanova, 1995). Tanto habitus quanto hexis representam
disposições incorporadas, quase posturais, dos agentes em ação (Bourdieu,
2004c). No entanto, o habitus pode ser considerado tanto uma conjunção como uma
superação da noção de hexis (Casanova, 1995), pois trata-se de uma noção mais
abrangente, que engloba a própria noção de hexis. Além da hexis, outras
dimensões do habitus são o ethos, o eidos e a aesthesis. O ethos indica a
dimensão da conduta moral; o eidos, a dimensão lógica; e a aesthesis, a
dimensão de gosto e estilo. A hexis, por sua vez, indica a dimensão corporal,
na qual se inclui o gestual e a linguagem do indivíduo (Araújo & Melo,
2007). Assim, é possível dizer que a noção de hexis indica o corpo socializado
(Bourdieu, 2004c), uma espécie de dimensão que possibilita internalizar
consequências de práticas sociais e de sua exteriorização, por meio do jeito de
falar, de andar, de gesticular e de olhar das pessoas (Luciano Júnior, Salerno,
& Rosa, 2008). Portanto, é o habitus feito corpo (Bourdieu, 1983).
É possível relacionar a acepção de illusioàs motivações dos participantes em um
espaço social específico, com o objetivo de acumularem mais capitais simbólicos
e, assim, obterem mais poder dentro do campo (Garcia, 2011). A teoria de campo
de Bourdieu (2004c), com todos esses conceitos relacionados, enfatiza o caráter
simbólico do poder, que reúne tanto um caráter de invisibilidade quanto uma
conivência por parte daqueles que são dominados (Teixeira, 2011). No entanto,
se esse poder é invisível e ignorado, como pode ser reconhecido e como só pode
ser exercido com a cumplicidade daqueles que estão sujeitos a ele? É que a
conivência por parte dos dominados é uma conivência implícita, ou seja, trata-
se de uma forma de poder cujos dominados não querem sequer se reconhecer na
condição de dominados. Contudo, ao mesmo tempo reconhecem tal poder como
legítimo, o que não necessariamente ocorre de forma consciente, pois há um jogo
simbólico envolvido. O poder precisa ser reconhecido pelos dominados, mas isso
se dá de forma implícita, com base no reconhecimento do valor simbólico dos
capitais detidos por aqueles que o exercem.
Pierre Bourdieu, como bom jogador de futebol que foi, teve inspiração em
partidas de futebol para desenvolver algumas de suas ideias, mas outros
exemplos lúdicos permitem fazer analogia a elas, ajudando em sua compreensão. A
popularmente conhecida música Geni e o Zepelim, de Chico Buarque de Holanda,
pode ser um exemplo elucidativo de como o poder relacional, na acepção de
Bourdieu (2004c), pode transitar no tempo e no espaço.
[...] Mas, de fato, logo ela, tão coitada e tão singela, cativara o
forasteiro. O guerreiro tão vistoso, tão temido e poderoso, era dela,
prisioneiro. Acontece que a donzela, e isso era segredo dela, também
tinha seus caprichos. E, ao deitar com homem tão nobre, tão cheirando
a brilho e a cobre, preferia amar com os bichos. Ao ouvir tal
heresia, a cidade em romaria, foi beijar a sua mão: o prefeito de
joelhos, o bispo de olhos vermelhos e o banqueiro com um milhão. Vai
com ele, vai, Geni! Vai com ele, vai, Geni! Você pode nos salvar!
Você vai nos redimir! Você dá pra qualquer um! Bendita Geni! [...]
Mas logo raiou o dia, e a cidade em cantoria, não deixou ela dormir:
joga pedra na Geni! Joga bosta na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela
é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!
Tal analogia, ainda que de forma lúdica, permite relacionar a história contida
na música com a noção de autonomia dos campos sociais, que possuem, cada um
deles, interesses específicos, assim como capitais simbólicos que se constituem
em sínteses diferenciadas dos outros capitais, de acordo com o campo. Um mesmo
indivíduo pode ter acumulação significativa de capital simbólico em um campo,
ou em determinado lugar do campo, e uma pequena acumulação de capitais em
outro, capital simbólico que pode variar de um espaço para outro ou de um tempo
para outro: ora "Bendita Geni!" ora "Maldita Geni!"
Transitando no tempo e no espaço entre diversos tipos de campo, o capital
simbólico constitui referencial teórico considerável para o estudo de
diferentes campos sociais, como podem ser assim compreendidos os arranjos
produtivos locais.
3. CAMINHOS METODOLÓGICOS
A metodologia utilizada neste estudo busca associação com a opção teórica
adotada para sustentação da pesquisa. Como foi utilizada a teoria de campo de
Bourdieu (2004b), buscaram-se técnicas de pesquisa que auxiliassem "na
percepção das relações que possibilitaram o espaço social específico se
diferenciar do espaço social global e se constituir de determinada
maneira" (Garcia, 2011, p. 79). Trata-se de um estudo de natureza
qualitativa, visando compreender a natureza das relações estabelecidas entre os
integrantes do APL de Ubá. A população-alvo do estudo foi formada por
empreendedores de pequeno, médio e grande porte, localizados no referido
arranjo produtivo. Especificamente, trata-se de fabricantes moveleiros e
fornecedores locais de produtos ou de serviços para a indústria de móveis,
selecionados intencionalmente, adotando-se como critério a acessibilidade do
pesquisador a eles, buscando-se ainda priorizar as maiores empresas do APL
moveleiro. Para identificar as empresas da população-alvo, foi utilizado o
banco de dados das empresas vinculadas ao INTERSIND.
Inicialmente, foram feitos contatos com os diretores dos 19 maiores fabricantes
do APL de Ubá, dos quais 12 concordaram em participar da pesquisa. Ao final,
foram agendadas visitas a nove deles, que compuseram o conjunto de fabricantes
que constituíram as unidades de análises da pesquisa. As visitas para as
entrevistas com os diretores foram realizadas no período compreendido entre os
meses de janeiro e março de 2010, para entender as experiências com
terceirização de processos produtivos com fornecedores locais. Foi também
solicitado aos diretores entrevistados que apontassem fornecedores locais de
materiais ou serviços vinculados ao processo produtivo dos móveis. Alguns
desses fornecedores foram selecionados para entrevista, que foram realizadas
durante os meses de março e abril de 2010. Nem todos os fornecedores
identificados consentiram o agendamento da visita, alguns por problemas de
agenda, outros por desinteresse em participar da pesquisa, entre outros
motivos. Ao final, foram realizadas entrevistas com os diretores e visitas às
instalações de 17 empresas.
O primeiro passo dado para o levantamento dos dados foi a elaboração de um
roteiro de pesquisa semiestruturado. Nesse roteiro, foram incluídas perguntas
com o objetivo de levantar os principais aspectos do contexto relacional na
indústria de móveis de Ubá, tais como histórico de fornecimento, ocorrência e
intensidade de conflitos explícitos e identificação de conflitos latentes,
modelo de negociação das condições de fornecimento adotado, entre outros. Foram
também levantadas as principais características operacionais dos fornecedores,
tais como grau de atualização tecnológica no parque fabril, grau de adequação
da estrutura predial e da configuração nos processos operacionais, métodos de
programação da produção e nível geral de serviço no atendimento aos clientes,
além da existência e adequação do sistema de informações. Por fim, foram
levantados aspectos relacionados às perspectivas e aos entraves para
investimentos no negócio.
Após cada entrevista, o pesquisador permanecia na empresa por algum tempo, a
fim de observar o trabalho operacional e outros fatos e elementos que pudessem
conter informações relacionadas ao objetivo desta pesquisa. Durante esse tempo
de observações, eram anotadas as informações sobre o trabalho operacional, as
movimentações no fluxo produtivo, a adequação do ambiente de trabalho, o grau
de diversificação das atividades desempenhadas, o aspecto do maquinário e dos
equipamentos. Prestou-se atenção também em posturas e objetos que pudessem
dizer algo em relação ao comportamento dos indivíduos pesquisados. Em outras
palavras, a obtenção dos dados foi feita principalmente por meio de
entrevistas, mas utilizou-se a técnica que pode ser caracterizada como
observação simples, pela qual se verificaram espontaneamente os fatos ocorridos
no ambiente pesquisado (Gil, 2009). Segundo Gil (2009), trata-se de uma técnica
apropriada ao estudo das condutas que mais se manifestam nas pessoas em sua
vida social, como as de conveniência social e de frequência a lugares públicos,
por exemplo.
Para interpretação dos dados, foi utilizada a técnica da análise de conteúdo,
que visa denotar elementos da linguagem humana, além de organizar e
possibilitar a descoberta de significados originais dos seus elementos
manifestos (Bardin, 1977; Triviños, 1987). O que se pretendeu foi identificar
categorias, restrições, motivações, atitudes, crenças e tendências explícitas e
implícitas que circundam aspectos das práticas de gestão dos relacionamentos
entre as empresas. As principais categorias analíticas utilizadas nessas
interpretações foram as de campo,capitaisehabitus. De maneira complementar,
foram utilizadas as categorias de doxa, nomos, illusio e hexis, fechando,
assim, as sete categorias que compõem a teoria de campo de Bourdieu (2004c).
4. A ACEPÇÃO DE ARRANJO PRODUTIVO LOCAL E A NATUREZA DO ARRANJO MOVELEIRO DE
UBÁ
Para autores como Santa Rita e Sbragia (2002), uma característica da indústria
moveleira brasileira é a tendência à verticalização dos processos de produção,
fenômeno verificado inclusive em empresas de grande porte do setor. Para esses
autores, trata-se de um segmento com alta intensidade de uso de mão de obra e
com baixo valor adicionado por unidade dessa mão de obra, em comparação com
outros setores da economia brasileira. Ademais, conforme Gorini (1999), essa
realidade nacional contrasta com a internacional, sobretudo com a da Europa e a
dos Estados Unidos, principalmente no que diz respeito à incipiente difusão de
tecnologia de ponta e à significativa verticalização da produção nacional.
O APL de Ubá e região, como expõe Bustamante (2004), originou-se do fechamento
de uma grande empresa local nos anos de 1960, liberando pessoas qualificadas
para produção de móveis, que se tornaram empresárias ou mão de obra para as
fábricas que foram sendo criadas. A partir daí, teve início a formação de um
clusterde empresas, dada a concentração geográfica dessas fábricas. A partir
dos anos 1990, o nível de interação estabelecido entre os fabricantes, e entre
eles e as instituições de fomento e ensino, fez com que o clusteroriginal
atingisse características de APL (Casarotto Filho & Pires, 2001).
O fenômeno das aglomerações espaciais de empresas é importante para explicar a
capacidade de geração de externalidades positivas para boa parte dos
empreendimentos integrantes, especialmente para os pequenos e médios (Marshall,
1984). Para Marshall (1984), trata-se de uma oportunidade que as empresas
menores têm para superar os desafios advindos da pequena escala de suas
operações, uma vez que a atuação conjunta possibilita a elas operarem grandes
volumes sem as elevadas complexidades administrativas das empresas de grande
porte. Zen (2010) argumenta que a formação de aglomerações geográficas envolve
diversos fatores direcionadores da concentração de empresas, como facilidade de
acesso e infraestrutura, existência de externalidades positivas, proximidade de
empresas líderes e potencial cooperação interorganizacional, afetando
positivamente o desenvolvimento de inovação e o aumento da eficiência.
Para Becattini (1991), a aglomeração espacial de empresas de pequeno e médio
portes, atuantes em um mesmo setor de negócios, pode levá-las a alcançar níveis
de eficiência na produção de produtos de demanda variável e diferenciada
superiores aos das grandes empresas que produzem produtos similares. Existem
diversos conceitos e vertentes originados nos estudos acerca dessas
aglomerações ou arranjos produtivos locais. Segundo Zen (2010), clusteré a
denominação mais comum existente na literatura. Para Giuliani (2005),
clusterssão aglomerações geográficas de firmas operando na mesma indústria.
Para Amato Neto (2000), os clusterspermitem às pequenas e médias empresas
desenvolverem, em conjunto, atividades que de forma isolada não conseguiriam,
obtendo, assim, maior competitividade. Costa e Costa (2005) apontam que a
denominação arranjo produtivo local está associada a estudos sobre clusters.
Para Casarotto Filho e Pires (2001), os APLs caracterizam-se como um conjunto
de empresas que atuam em clusters,mas usufruindo de atividades complementares.
Para Cassiolato e Lastres (2003), esses arranjos pressupõem a existência de
mecanismos de governança e aprendizagem para o desenvolvimento de inovações. Já
no âmbito do SEBRAE (2003, p. 12), arranjos produtivos
são aglomerações de empresas localizadas em um mesmo território, que
apresentam especialização produtiva e mantêm algum vínculo de
articulação, interação, cooperação e aprendizagem entre si e com
outros atores locais, tais como governo, associações empresariais,
instituições de crédito, ensino e pesquisa.
Marshall (1984) aponta três tipos básicos de economias oriundas da
especialização dos agentes produtivos localizados: existência concentrada de
mão de obra qualificada e com habilidades específicas ao setor ou segmento
industrial em que as empresas locais são especializadas; presença de
fornecedores especializados de bens e serviços destinados aos produtores
locais, como fornecedores de máquinas e equipamentos, de peças e componentes ou
de serviços especializados; e possibilidades de transbordamento de conhecimento
e de tecnologia a partir das empresas. Em arranjos produtivos, verifica-se a
presença de externalidades de natureza técnica, financeira e tecnológica,
fundamentais para que sejam capazes de produzir inovações. Um exemplo de
externalidade é a existência de instituições de ensino e pesquisa capazes de
formar mão de obra qualificada para um conjunto de pequenas e médias empresas
instaladas em uma mesma área geográfica, operando em um mesmo setor econômico.
A atuação das empresas de um APL será mais eficaz quanto mais elas forem
capazes de explorar as potenciais sinergias decorrentes de sua proximidade
geográfica e da similaridade de seus processos operacionais. A ocorrência de
ações conjuntas planejadas deve ser a principal característica de um APL para
garantir capacitação competitiva e maior eficiência (Crocco, Galvão, &
Silva,1999). Segundo Britto (2002), em um APL deve-se verificar a presença de
regras e práticas comuns, como formação de laços de confiança mútua, vantagens
competitivas coletivas e estabelecimento de ações estratégicas entre os
agentes. Putnam (1996) assinala que é importante nas empresas a percepção de
que a eficiência coletiva do agrupamento depende da proliferação de parcerias,
da formação de associações e do desenvolvimento de cooperação entre as
empresas, permitindo que consigam superar fragilidades e deficiências
coletivas. Pequenas e médias empresas que atuem coordenadamente são capazes de
afetar positivamente a demanda, pois se apoiam mutuamente para desenvolver
novas tecnologias e produtos, compartilhar processos produtivos, reduzir
custos, obter melhor nível de serviço de seus fornecedores e oferecer melhor
nível de serviço a seus clientes.
A suposta aglutinação de diferentes ativos e de diferentes competências pode
levar a uma nova divisão do trabalho que considere o fracionamento da produção
entre diferentes empresas do APL. As empresas não controlam todos os recursos
de que necessitam para operar, e a interação entre elas é a forma de acesso a
esses recursos externos (Skjoett-Larsen, 1999). Isso ocorrerá, entretanto, se
os empreendedores inseridos no APL responsabilizarem-se por ações conjuntas e
por investimentos com vistas à geração de ganhos coletivos (Zen, 2010).
Maskell, citado por Zen (2010), aponta para a existência de duas dimensões em
APLs: uma horizontal e outra vertical. A dimensão horizontal é composta por
empresas que executam atividades similares, o que possibilita a troca de
informações. A dimensão vertical é composta por empresas que executam
atividades diferentes, mas complementares, potencializando cooperações. Os
gestores das empresas inseridas em APLs em que predomine a dimensão vertical
deverão ser capazes de fomentar ações conjuntas formais para gerar diferenciais
competitivos.
O APL de Ubá apresenta características que se enquadram na acepção de arranjo
produtivo local e possui potencial significativo para se desenvolver mais nesse
sentido. No que tange à teoria de campo (Bourdieu, 1996; 2004b; 2004c), é
possível dizer que se trata de um subcampo dentro de um campo maior, o da
produção industrial de móveis. As propriedades universais (habitus, doxa, nomos
e illusio) desse campo estarão refletidas nas características das relações
estabelecidas especificamente em Ubá e região. Delimitar um campo social não é
uma tarefa fácil (dado que as peculiaridades próprias que os diferenciam e
conferem a eles autonomia dão o caráter de campo social); quando a teoria de
campo foi aplicada neste estudo, não se pretendeu isolar um campo. Não se
pretendeu, assim, limitar o campo estudado à ideia de cadeia de suprimentos
inserida no APL, por exemplo. Em outras palavras, o nível de análise de
Bourdieu (2004b) é social e não pode estar inadequadamente circunscrito aos
limites de uma organização ou mesmo ao agrupamento de organizações. Assim,
quando se fala especificamente das relações entre fabricantes e fornecedores
que compõem a dimensão vertical do APL de Ubá, não são desconsideradas as
influências externas a essas relações, as quais dizem respeito ao próprio campo
e a outros campos diversos.
4.1. Campo, habitus, capitais e relações simbólicas de poder no Arranjo
Produtivo Local de Ubá
Logo no início dos trabalhos de campo, alguns relatos obtidos por meio de
entrevistas já evidenciavam a divisão existente entre os dois subcampos
fornecedores e fabricantes. Algumas expressões dos fabricantes já mostravam a
existência de comportamentos e habitus distintos, o que, posteriormente, seria
também percebido nas entrevistas feitas com os fornecedores. São subcampos que
fazem parte de um campo maior, no caso, do APL de Ubá, mas que aparecem com
características simbólicas bem diferenciadas e separadas. Em outras palavras,
já nas primeiras entrevistas foi possível observar que o relacionamento entre
fabricantes e fornecedores no APL apresenta sérios problemas no que se refere
ao uso do poder e à disputa por capital simbólico. A teoria de campo de
Bourdieu (1996; 2004b; 2004c) já se mostrava promissora aos pesquisadores. Os
termos e trechos selecionados a seguir, obtidos nos primeiros contatos com os
fabricantes de móveis, contêm indicadores que revelam o exercício de poder
simbólico e a divisão existente no campo.
Eles não [...]. (Fabricante A)
Falta competência em Ubá [...]. (Fabricante B)
Pedem muito tempo para [...]. (Fabricante C)
Um potencial fornecedor exigiu [...] preferimos produzir aqui dentro
mesmo. (Fabricante D)
Eles trabalham apenas [...]. (Fabricante E)
Mais do que as palavras, a forma com que foram expressas reforça as
interpretações apresentadas neste estudo. Durante o transcurso da pesquisa, foi
possível observar, por exemplo, o uso da palavra eles por parte dos
fabricantes, quando se dirigiam especificamente aos fornecedores locais,
entremostrando distanciamento. O uso de expressões como "falta
competência" e "preferimos produzir aqui dentro mesmo" parece
revelador do exercício de poder simbólico pelos fabricantes sobre os
fornecedores locais. Nos relatos, é possível observar a diferença de
desenvolvimento de habitus nos membros nos dois campos. Como em qualquer outro
campo econômico-social, um espaço específico como o moveleiro requer de seus
partícipes habilidades e conhecimentos adquiridos histórica e culturalmente.
Esse capital cultural adquirido é fundamental para que empreendedores e
profissionais do ramo moveleiro tenham mais desenvoltura e êxito em seus
negócios.
No entanto, na região de Ubá surgiu primeiramente a indústria moveleira, que
cresceu e se desenvolveu, adquirindo, além de capital cultural, capital
econômico necessário ao negócio. Também é possível pensar na aquisição de
significativo capital social por parte dos que participam no lado da
fabricação, devido ao setor ser reconhecido nacionalmente. Depois de instalado
o parque industrial, negócios adjacentes a ele começaram a surgir, como o de
fornecimento de acessórios para os móveis fabricados na região. O
habitusfuncional seria como uma espécie de pré-requisito ao desempenho
profissional no setor moveleiro em Ubá, mas os fornecedores, por não terem
adquirido o habitus em um mesmo nível dos fabricantes, encontram dificuldades
para transporem ou adiantarem fases desse desenvolvimento, dificuldades que
parecem aumentar na medida em que não conseguem reconhecimento ou mesmo boa
vontade dos fabricantes em ajudá-los. Observações levaram a crer que os olhares
dos fabricantes se voltam para detentores de habitus tão ou mais desenvolvido
que o deles, localizados em parques industriais maiores.
É possível interpretar que a diferença de desenvolvimento de habitus entre os
participantes dos dois subcampos, fabricantes e fornecedores, proporciona
também diferenciação de acúmulo de capital simbólico em cada um. Em decorrência
de terem acumulado mais capital cultural no segmento moveleiro, os fabricantes
também acumularam mais capital econômico, adquirido com o elevado nível de
desenvolvimento de sua indústria local. Conseguiram, ainda, maior
respeitabilidade na cidade, o que significa acumulação de capital social.
Tais interpretações vão ao encontro da abordagem de Bourdieu (2004c) sobre
poder simbólico, quando o autor afirma que os mais bem-sucedidos em termos
sociais são os que têm domínio do habitus, de forma que a interação no campo se
torna algo comum e que lhes faz sentido, aumentando sua capacidade de tomar
decisão adequada no momento certo. Os pesquisadores assumem que se fez, neste
estudo, a transposição dos capitais teorizados por Bourdieu (2004c) para
capitais acumulados por indivíduos inseridos em organizações. Nos próprios
relatos dos entrevistados, percebe-se atribuição às organizações da detenção ou
não de determinado capital, mas é oportuno o alerta de que não se pretende aqui
reificar organizações ao considerá-las acumulando ou não determinados capitais.
Capitais culturais são acumulados por indivíduos e não por empresas, assim como
o exercício de poder simbólico se dá por parte de pessoas, e não de
organizações ou entidades.
4.2. Os capitais econômicos e culturais em jogo no Arranjo Produtivo Local de
Ubá
A disputa por capital simbólico fica evidenciada em comentários de fabricantes
sobre os fornecedores, mas também em expressões dos fornecedores a respeito dos
fabricantes. Há, nessas relações, disputa evidenciada por capital simbólico.
Os fabricantes, pelo fato de possuírem mais capital econômico do que os
fornecedores locais, parecem buscar associação com outros campos mais poderosos
localizados em São Paulo e na Região Sul do Brasil. Nesse sentido, a reclamação
de um dos fornecedores é elucidativa, ao relatar que peças de amostra
desenvolvidas por eles já foram enviadas para serem cotadas nesses mercados
maiores, quebrando a possibilidade de existência de uma relação comercial ética
que estivesse acima da relação competitiva. O capital cultural, contido na
ambiência do exercício do poder simbólico, pode ser observado em expressões
como:
Eles não executam as tarefas mais complexas. (Fabricante A)
Falta competência em Ubá para peças curvas ou mais complexas.
(Fabricante B)
Pedem muito tempo para desenvolver amostras. (Fabricante C)
Um potencial fornecedor exigiu que tivéssemos um estoque mínimo
dessas peças, pois o prazo de entrega dele é longo; preferimos
produzir aqui dentro mesmo. (Fabricante D)
O fornecedor local de quem mais compramos demora muito a entregar
- de 15 a 20 dias. (Fornecedor D)
Possuem problemas de qualidade sérios, principalmente no acabamento.
(Fornecedor E)
Alguns trechos nas expressões dos fabricantes aparecem carregados de
significados, entremostrando o exercício simbólico de poder: "falta
competência", "possuem problemas de qualidade sérios" e
"pedem muito tempo". Os fornecedores, por sua vez, contestam essas e
outras alegações feitas pelos fabricantes. O principal problema levantado pelos
fornecedores locais é a escassez de mão de obra produtiva na região, o que
dificulta ainda mais a acumulação de capital econômico.
Nosso principal gargalo é mão de obra. Tenho máquinas para produzir
60% acima do que produzo, mas falta mão de obra. (Fornecedor A)
Trabalho no limite da capacidade porque não consigo mão de obra.
(Fornecedor B)
No APL de Ubá, as empresas fornecedoras podem ser classificadas em dois grupos
distintos quanto à necessidade de mão de obra. O primeiro grupo é formado pelos
fornecedores cujo processo produtivo demanda uso intensivo de mão de obra,
porém com baixa qualificação exigida ou, pelo menos, com a mesma qualificação
exigida pela indústria de móveis. São as empresas fornecedoras de componentes
de madeira, espuma e tecidos. Esses fornecedores concorrem com os fabricantes
de móveis pelo mesmo tipo de trabalhador, porém com sérias desvantagens
relacionadas ao nível de remuneração pelo trabalho e à oferta de benefícios.
Segundo o relato de um fornecedor, alguns fabricantes de móveis disponibilizam
transporte para sítios e fazendas na tentativa de captar mão de obra desses
locais, iniciativa que não está ao alcance da capacidade dos fornecedores.
Estes relatam ainda que há casos de fabricantes de móveis que investem em
estratégias bem elaboradas para fidelizar futura mão de obra, que são os
filhos, sobrinhos e netos de seus funcionários. Os fornecedores procuram
desenvolver também esse tipo de recurso, ou porque não dispõem de alternativas,
ou porque simplesmente precisam sobreviver no mercado. No entanto, também não
possuem capacidade para competir nessa seara com os fabricantes. Algumas
expressões parecem evidenciar esse tipo de preocupação:
Como não há mão de obra qualificada no polo [...], treino os próprios
filhos e mais um funcionário, para formar mão de obra própria.
(Fornecedor C)
Trabalho no limite da capacidade porque não consigo mão de obra.
(Fornecedor B)
Meu gargalo é a mão de obra, geral e qualificada. O SENAI não tem
cursos para a indústria metalúrgica. Vou tentar criar programa
aprendiz aqui na empresa. (Fornecedor D)
O outro grupo de empresas fornecedoras é formado por aquelas que sofrem com a
escassez de mão de obra qualificada, como as empresas de ferragens, aramados,
vidros e peças de plástico injetado. Nesses casos, o uso de mão de obra não é
intensivo, mas a exigência sobre a organização fornecedora é que ela domine
algumas etapas específicas do processo produtivo. Segundo esses fornecedores,
não é possível solucionar de maneira individual o problema de escassez de mão
de obra especializada que enfrentam, uma vez que é muito caro oferecer cursos
técnicos para os funcionários em outras cidades, como Belo Horizonte, Contagem
ou São Paulo. Além disso, não é viável contratar mão de obra especializada de
outras cidades e transferi-la para Ubá e região. A dificuldade de acumulação
de capital econômico, em decorrência do problema com a mão de obra, transparece
em relatos duros feitos pelos fornecedores. Do lado dos fabricantes, há relatos
não menos ásperos associados ao capital econômico, afirmando-se a existência de
disputas em um tom que parece se elevar cada vez mais:
É só o preço que interessa [para o fabricante de móveis] na hora de
escolher o fornecedor. Eles não querem saber de qualidade e entrega,
mas nem todos pensam assim. (Fornecedor E)
Os clientes maiores impõem preços irreais nos materiais que eu
fabrico. (Fornecedor F)
Os fornecedores do Rio Grande do Sul possuem preço melhor.
(Fabricante C)
Eles são pequenas empresas com problemas sérios de mão de obra,
maquinário antigo e espaço físico muito ruim. (Fabricante C)
Não conheço o processo produtivo desses fornecedores, mas sei que
enfrentam problemas de mão de obra. (Fabricante F)
O preço não é competitivo. (Fabricante G)
Há alguns que atendem volumes maiores, mas falta mão de obra.
(Fabricante A)
Foi possível observar que as deficiências quanto à adequação das máquinas e
equipamentos, bem como à tecnologia utilizada nos processos produtivos, são
mais evidentes nas empresas que atuam em setores cujo fator técnico é mais
crítico, como é o caso dos fornecedores de peças metálicas, de plástico
injetado e de vidros. Os relatos mostram que o ambiente de desconfiança nas
relações com os fabricantes de móveis provoca desinteresse na realização de
investimentos para aquisição de novas máquinas, fato que pode ser interpretado
como deficiência de capital social. Os fornecedores relatam que são poucos os
fabricantes de móveis que podem ser considerados confiáveis, a ponto de
justificarem os investimentos em equipamentos. Consequentemente, poucos
fornecedores produzem artefatos cromados, e os que produzem utilizam métodos e
equipamentos tecnologicamente desatualizados, deficiência associada ao conceito
de capital cultural.
O argumento principal, novamente, é a desconfiança quanto à recuperação de tais
investimentos, uma vez que há o receio, por parte dos fornecedores, de
"sofrerem", como dizem, com leilões de preços estimulados pelos
clientes fabricantes, tendo como concorrentes as empresas fornecedoras de
acessórios mais estruturadas do sul e do sudeste do País. Na fase de
entrevistas com os fabricantes de móveis, foram descritos problemas quanto à
qualidade dos artefatos metálicos produzidos no APL de Ubá, especialmente
aramados e peças cromadas. Essas deficiências surgem da conjunção da
deficiência tecnológica dos fornecedores com as restrições na capacidade
produtiva, com a escassez de mão de obra especializada e com o desinteresse dos
fornecedores em investir em aprimoramentos em um ambiente de hostilidade com
potenciais clientes (capitais econômicoecultural deficientes).
Os fornecedores locais não são uma opção aceitável, têm todo tipo de
problemas: entrega, capacidade, qualidade e preço. (Fabricante A)
O único fornecedor local com potencial é a empresa Alfa [nome
fictício], que tem máquina ultrapassada e não passou no teste de
qualidade; nosso consumo é altíssimo nesse processo. (Fabricante G)
Preciso de fornecedor local capaz de entrega diária, a partir de
programações semanais. (Fabricante H)
A qualidade dos treinamentos dados pelo SENAI de Ubá caiu; quando
outro SENAI oferece cursos, tem que fechar turmas mínimas, e os
cursos são oferecidos de dia, não dá para o funcionário participar.
(Fabricante B)
Eles [os fabricantes de móveis] não planejam o lançamento de
coleções. O prazo é sempre muito curto, e a gente tem que desenvolver
componente na véspera das feiras. (Fornecedor G)
Nessas expressões, é possível interpretar que capitais valorizados no campo,
sobretudo o econômicoe ocultural, seguidos do social (nessa ordem, no que se
refere especificamente ao relato dos entrevistados), são pouco acumulados pelos
fornecedores locais, o que faz com que os fabricantes busquem seus materiais em
outras regiões. Parece haver, assim, falsa aparência de APL, onde as práticas
não são orientadas de forma cooperativa visando à competitividade. Pelo
contrário, são práticas orientadas diretamente para a disputa. Os relatos de
ambos - fabricantes e fornecedores - apresentam exemplos
específicos dos capitais envolvidos no estabelecimento, exemplos de relações e
de não relações, principalmente. Algumas reclamações dos fornecedores, que
podem ser associadas aos capitais econômicoesocial, dão ideia de quão sério é o
sentimento deles em relação à dominação simbólica exercida pelos fabricantes:
Há muito leilão; sempre que acontece, eu paro de fornecer, porque
eles usam a minha amostra para orçar com outros. (Fornecedor D)
O principal gargalo? É o relacionamento! Eles espremem a gente pelo
menor preço, não querem nem saber da minha saúde financeira. Agora,
tem cliente que é parceiro, e a gente tenta focar nestes. Com os
demais, a margem de lucro não justifica fornecer nem investir em
expansão: prefiro não vender. (Fornecedor H)
O fabricante de móveis não investe no crescimento do fornecedor
local. A negociação é no curto prazo. Querem o menor preço e ponto.
No sul do país, os caras fabricam volume maior e cobrem o nosso
preço, por centavos. É um leilão, sempre! Acontece mesmo no
desenvolvimento da amostra; já mandaram várias vezes amostras minhas
para o sul, para orçamento. Não forneço mais peças personalizadas
para Ubá, só o que é de prateleira [ou seja, modelos padronizados].
(Fornecedor I)
Investir em um molde para fazer uma peça de plástico injetado é muito
caro, e a peça vai custar centavos. Tinha que ter compromisso de
compra por parte do cliente, mas não tem. Muitas vezes, perdi
dinheiro. (Fornecedor J)
Ainda que os fabricantes reconheçam as limitações dos fornecedores, não são
estabelecidos esforços conjuntos de cooperação para que esse panorama seja
alterado. O que se observa é a preponderância do exercício de poder simbólico,
principalmente por meio dos elementos capital econômico e capital cultural.
Relativamente ao capital cultural, destacam-se os discursos dos fabricantes, o
que demonstra implicitamente que os fornecedores não entendem que suas
deficiências são oriundas preponderantemente de falta desse capital. Para os
fornecedores, as deficiências decorrem da falta de capital econômico. Quanto ao
capital social, em sua acepção de cooperação entre empreendedores, ele é mais
citado pelos fornecedores, o que se justifica pela posição que ocupam no campo,
desvalorizada em relação à posição ocupada pelos fabricantes. A falta de
cooperação é mais sentida pelos fornecedores. Ainda em relação aos
fornecedores, é oportuno ressaltar que a imagem que têm em relação aos
fabricantes não é generalizada. Algumas expressões como "Agora, tem
cliente que é parceiro, e a gente tenta focar nestes" e "Eles não
querem saber de qualidade e entrega, mas nem todos pensam assim" indicam
relativo respeito e confiança deles em relação a alguns fabricantes de móveis.
A forma como se expressam pode indicar também vontade e interesse no
desenvolvimento de relações saudáveis e cooperativas com os fabricantes.
Em suma, esses relatos podem indicar vontade dos fornecedores no sentido de
construir capital social para o APL como um todo.
4.3. O Arranjo Produtivo Local de Ubá: "um arranjo produtivo em
xeque"
As interpretações desenvolvidas até aqui mostram que as práticas, os
comportamentos e as relações estabelecidas no âmbito do APL de Ubá não combinam
com a noção de arranjo produtivo local. A concentração espacial de negócios não
tem proporcionado às empresas desse arranjo diferenciais potenciais, como prevê
Schmitz e Nadvi (1999). Observa-se movimento tanto em direção a fornecedores
extra-arranjo quanto em direção a uma nova verticalização das empresas, já que
alguns fabricantes declaram produzir a própria matéria-prima ou ter a intenção
de fazê-lo, decisão que pode provocar baixos índices de produtividade. Algumas
expressões dos entrevistados ilustram essa tendência:
Um potencial fornecedor exigiu que tivéssemos um estoque mínimo
dessas peças, pois o prazo de entrega dele é longo; preferimos
produzir aqui dentro mesmo. (Fabricante D)
Consumimos muito, mas não dá hoje para comprar aqui, compramos fora.
(Fabricante H)
O polo é carente de empresas [fornecedoras] e profissionais.
(Fabricante E)
Optamos por produzir aqui; a falta de estrutura dos fornecedores
locais comprometeu o sucesso [da iniciativa de terceirizar o
processo]. (Fabricante A)
Por sua vez, os fornecedores reclamam do não estabelecimento de relações de
parceria e de confiabilidade entre os dois elos da cadeia de suprimentos.
Embora existam menos aspectos explicitamente relatados relacionados ao capital
social, é possível interpretar que é nesse capital que reside um dos maiores
entraves ao processo de cooperação entre as empresas. Algumas expressões dos
fabricantes parecem evidenciar valorização excessiva do capital social que
possuem individualmente, procurando preservá-lo ou ampliá-lo, sem terem
consciência dos riscos que correm com isso e dos riscos que tal comportamento
gera ao desenvolvimento do capital social para o próprio APL como um todo. O
relato "Vamos criar uma empresa para produzir para consumo próprio",
por exemplo, parece estar carregado de significados nesse sentido.
Vamos criar uma empresa para produzir para consumo próprio; hoje
adquirimos em outros estados; preferia não montar esta fábrica, caso
tivesse fornecedor para me atender; conhecemos a cultura local,
jamais poderemos ser fornecedores de outros fabricantes [de móveis],
concorrentes da empresa. (Fabricante I) Conheço todos [os fabricantes
de móveis] e posso dizer que só três são parceiros. Já aconteceu de
cliente solicitar desenvolvimento, comprar duas vezes e abandonar a
encomenda, e eu fico com o prejuízo do molde. (Fornecedor K)
Já o relato de um dos fornecedores ("posso dizer que só três são
parceiros") parece demonstrar mais uma vez a vontade de estabelecimento de
outro tipo de relação entre eles e os fabricantes. Geralmente, quando os
fabricantes se expressam em relação aos fornecedores, o fazem em tom genérico.
No entanto, os fornecedores, amiúde, expressam ressalvas em relação a alguns
fabricantes, a quem consideram "parceiros". No Quadro 1 resumem-se as
características que parecem preponderar na relação entre fabricantes e
fornecedores. É possível observar que a relativa carência de acumulação de
capital social no APL de Ubá está associada à não construção (estruturas
estruturadas) e à não internalização de um habitus que oriente as ações dos
empresários (operando como estruturas estruturantes) para um comportamento
condizente com os objetivos de um arranjo cooperativo. Consequentemente, cresce
a distância dos fabricantes em relação aos fornecedores, o que descaracteriza a
própria condição de APL atribuída à indústria moveleira em Ubá.
O que se nota é a acumulação de um capital social que se baseia apenas em
relações fracas entre fabricantes e fornecedores, não se observando
estabelecimento de relações efetivas, nem mesmo no interior de cada uma dessas
categorias. Quando o fabricante I diz, por exemplo, "jamais poderemos ser
fornecedores de outros fabricantes [de móveis], concorrentes da empresa",
ele não vê o outro fabricante como um possível cooperado, mas somente como um
competidor. De outro lado, os fornecedores acusam os fabricantes de não
"investirem" em seu crescimento ou ao menos incentivá-lo. Tampouco,
enquanto categoria, os fornecedores se organizam para buscar em conjunto
soluções para suas deficiências, apesar de transparecerem, em alguns relatos,
sentidos de cooperação (que não são notados nos relatos dos fabricantes), como
foi mencionado anteriormente, ao se referirem a alguns fabricantes com exceção
e citá-los como parceiros.
De maneira geral, defende-se, em termos práticos, que a indústria de móveis
nacional avance em direção à adoção de estratégias de terceirização de
processos produtivos, em busca de ganhos de agilidade, flexibilidade e inovação
(Gorini, 1999). Naturalmente, tal constatação é extensiva ao caso do APL de
Ubá, uma vez que espelha a realidade dessa indústria no País, caracterizada por
pequenas e médias empresas, uso intensivo de mão de obra, baixa inovação
tecnológica e baixo valor adicionado por unidade de mão de obra (Santa Rita
& Sbragia, 2002). Estratégias de terceirização de processos produtivos
ganham cada vez mais importância no ambiente de negócios em geral (Monczka
& Morgan, 2000).
Para que esses ganhos ocorram, é necessária uma base de fornecedores avançada
em termos de competência de gestão e estrutura produtiva. No entanto, é no
âmbito das relações, mais especificamente em sua transformação, que estão os
principais entraves para o avanço do APL de Ubá no cenário nacional. O que se
nota é que os empreendedores fornecedores da região pesquisada não têm tanto
habitus quanto os fabricantes e, por isso, não possuem tanta capacidade para a
tomada de decisões importantes quanto os fabricantes. Nesse sentido, a
utilização de lupas teóricas, como a concepção de poder simbólico desenvolvida
por Bourdieu (2004c), pode contribuir para despertar os empreendedores em
disputa sobre o risco a que eles próprios se submetem, o qual decorre do
desnivelamento de habituscoletivo e local no campo industrial moveleiro
pesquisado. O alerta pode ajudar na construção de outra realidade social, que
substitua a realidade atual, estruturada em perspectivas diferentes e
conflitantes entre dominante e dominado.
Tais perspectivas podem ser observadas, por exemplo, quando o pequeno
fornecedor, que leva tempo para desenvolver um projeto de acessório mobiliário
para um grande fabricante de móveis, estabelece com ele uma relação de
confiança. Em outras palavras, confia que sua criação técnica será recompensada
em forma de pedido de compra no futuro, o que não necessariamente ocorre. Como
o fabricante exerce mais influência sobre o fornecedor local do que sobre
outros fornecedores mais distantes (já que acumula maior capital simbólico no
subcampo do APL de Ubá do que em outros subcampos), encomenda o projeto ao
fornecedor local para fazer o pedido a outro grande fornecedor localizado em
centros maiores. O fabricante do APL de Ubá, por sua vez, não conseguiria
contratar um projeto para o desenvolvimento de um acessório de um grande
fornecedor localizado em grandes centros, já que não teria capital simbólico
suficiente para fazê-lo. Por isso, exerce poder simbólico sobre os fornecedores
locais, encomendando a eles projetos, mas com o objetivo de tirar proveito por
estarem em uma relação desigual de poder.
Alguns relatos mostram que o poder simbólico exercido pelos fabricantes parece
ser "ignorado, portanto, reconhecido" (Bourdieu, 2004c, p. 7) pelos
fornecedores, talvez na esperança de serem recompensados no futuro por essa
relação. Tal interpretação vai ao encontro da ideia de Bordieu (2004c, p. 7-8)
de que "o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível, o qual só
pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe
estão sujeitos ou mesmo que o exercem". O poder simbólico exercido pelos
fabricantes sobre os fornecedores locais não teria visibilidade e, sendo
visível por parte dos fornecedores locais, seria ignorado por eles. A noção de
habitus ajuda a explicar, de um lado, o exercício de influência de fabricantes
e, de outro, a submissão dos fornecedores perante eles. Suas supostas fraquezas
estariam, assim, associadas muito mais aos efeitos desse domínio do que às
alegações de que, por exemplo, não são capazes de concorrer com outros
fornecedores, de que não conseguem entregar as encomendas em dia, de que não
possuem mão de obra qualificada ou de que não possuem capacidade para o
desenvolvimento de novas tecnologias. Com habitus diferenciados, em um arranjo
no qual seria desejado que habilidades fossem compartilhadas, fabricantes e
fornecedores possuem práticas em oposição um ao outro.
Na relação dos fabricantes com outros mercados, nos quais conseguem se envolver
com detentores de capitais que lhes são de interesse (como o cultural e o
econômico), parece haver um processo de alimentação e realimentação de
acumulação de capitais simbólicos. Quanto maior acumulação por parte dos
fabricantes, menor a interação deles com os fornecedores locais. Não atendendo
ao que seria necessário à competitividade do APL, parece haver relativa ruptura
com os fornecedores locais, o que coloca o arranjo produtivo em xeque. Ademais,
pode-se dizer que o próprio habitus, que seria característico de organizações
atuando em arranjos, parece não ter sido incorporado pelos próprios
fabricantes. Na ânsia por competir, fabricantes distanciam-se do caráter
cooperativo dos arranjos, por meio dos quais poderiam, por exemplo, desenvolver
parcerias com os fornecedores, estimulando-os e investindo em sua capacitação e
em seu desenvolvimento.
Algo que chama especial atenção é a falta do exercício de papel articulador por
parte de algum agente, seja institucional, governamental ou entidade que os
represente, no sentido de que essa cooperação ocorra. Como falar de APL implica
em falar da existência de órgãos institucionais vinculados ao arranjo, além de
universidades e centros de pesquisa, o papel de um intermediador nessas
relações poderia ser uma solução para o estímulo à cooperação e ao
desenvolvimento regional. Porém, nessa desvinculação, cabe somente ao
fornecedor o esforço de adaptação dos processos às necessidades do cliente, o
que torna o processo lento, ineficiente e ineficaz. Ao final, problemas de
qualidade nos insumos são disseminados na experiência do APL de Ubá em relação
a seus fornecedores locais, seja por problemas de adaptação às necessidades dos
clientes, seja por problemas de gestão da empresa fornecedora. Problemas de
qualidade podem ser atribuídos ainda às deficiências relacionadas ao parque
fabril do fornecedor, à tecnologia utilizada ou à capacitação da mão de obra.
Os relatos dos fornecedores apresentaram repetidas vezes a palavra
"desestímulo", resultante das práticas algumas vezes perversas
adotadas pelos fabricantes de móveis nas relações com eles, as quais estão na
dimensão do senso comum, da doxa do campo.
Nesse sentido, em um campo no qual relações de poder estão presentes, bem como
está presente a disputa por capitais simbólicos, observa-se que uma das
principais práticas é a resistência, por parte dos fabricantes de móveis, em
sinalizar de maneira confiável para os fornecedores perspectivas de negócios
além do curto prazo. A insegurança quanto à demanda impede o investimento no
aprimoramento de processos e na ampliação das capacidades por parte dos
fornecedores. Ainda, muitas vezes é solicitado ao fornecedor que invista em
ativos específicos, como ferramentas e moldes, sem que haja garantia de consumo
dos produtos resultantes desses investimentos. Para Bourdieu (2004a), a posição
ocupada pelo agente no campo influencia diretamente suas possibilidades ou
impossibilidades de ação.
Nota-se, assim, uma relação estabelecida pelos fabricantes de móveis com os
fornecedores baseada preponderantemente no capital econômico, muitas vezes sob
o argumento de falta de capital cultural desses fornecedores. A questão que
fica é: Como fabricantes e fornecedores desenvolverão suas capacidades
produtivas em um ambiente no qual o nomos - as leis do campo - se
baseia em disputa simbólica e não em cooperação produtiva? Se for mais
competitivo relacionar-se com fornecedores de outros estados, no campo não se
percebe a construção de um nomos e de uma doxa que oriente os agentes para essa
cooperação. Para falar da illusio presente no campo pesquisado, vale a pena
resgatar os aspectos pontuais destacados por Bourdieu (1996, p. 139-140) de que
a illusio significa:
[...] estar no jogo, estar envolvido no jogo, levar o jogo a sério. A
illusio é estar preso ao jogo, preso pelo jogo, acreditar que o jogo
vale a pena ou, para dizê-lo de maneira mais simples, que vale a pena
jogar [...] Illusio [...] é dar importância a um jogo social,
perceber que o que se passa aí é importante para os envolvidos, para
os que estão nele [...] É estar em, participar, admitir, portanto,
que o jogo merece ser jogado e que os alvos envolvidos merecem ser
perseguidos.
Dessa forma, a illusiotem a ver com a motivação dos agentes dentro do campo
para participarem dos jogos a ele relacionados. O que se observa na relação
entre os integrantes do APL de Ubá são "fissuras e contradições na
composição da illusiocoletiva", fissuras que residem "na riqueza e na
diversidade de possibilidades expressadas em conflitos e dinâmicas variados que
retroagem uns sobre os outros" (Oliveira, 2005, p. 539). Havendo
contradição nas illusios dos fabricantes e dos fornecedores, há, então,
"habitus divididos, flutuantes e variáveis, [...] resultados de lugares
imaginários conflitantes" (Oliveira, 2005, p. 539). Em relação à hexis,
outra propriedade do campo, observou-se que os fabricantes utilizam veículos
próprios para a fábrica, o que pode ser interpretado como uma tentativa de
estender o fabricante para além de sua extensão corporal. Agindo assim,
fabricantes deixam a entender que as pessoas poderiam relacionar determinado
veículo a determinada pessoa proprietária da indústria à qual pertence o
veículo, o que favoreceria a acumulação de capital social pessoal. Não havendo
um veículo que se vincule diretamente à empresa, ações pessoais e profissionais
misturam-se nesse mesmo ambiente. Não foi notada, durante as observações feitas
em campo, uma distinção de postura corporal entre fabricantes e fornecedores.
Os autores deste artigo consideram que a interpretação dos dados obtidos por
meio de entrevistas e observação permitiu a identificação de situações e
comportamentos que parecem se adequar às categorias que compõem a teoria de
campo de Bourdieu (2004c). Considera-se que as interpretações desenvolvidas
possibilitaram a compreensão de aspectos subjetivos significativos impregnados
no APL pesquisado. A dinâmica da luta por poder e da utilização de poder
simbólico acumulado ficou transparecida, abrindo ensejo para se investigar a
transposição e a acumulação de capital simbólico no APL estudado, elementos
inseridos no problema e no objetivo deste estudo. Tal compreensão, se levada a
efeito pelos integrantes do APL pesquisado, pode contribuir para a construção
de uma nova realidade voltada ao seu desenvolvimento.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo neste artigo foi apresentar um entendimento de como se dão as
relações de poder entre empreendedores locais fabricantes de móveis e
fornecedores dessas indústrias, procurando discutir as implicações da natureza
dessas relações para o desenvolvimento do APL de Ubá. Por tratar-se do estudo
de relações que residem em dimensões simbólicas e envolvem disputa por poder,
os autores adotaram como referencial teórico a teoria de campo de Bourdieu
(1996; 2004b; 2004c) e seus conceitos integrados de capital, habitus, doxa,
nomos, illusio e hexis.
Os resultados indicaram a existência de problemas e deficiências sérias nas
relações entre fabricantes e fornecedores, decorrentes principalmente da
desigual acumulação de capitais simbólicos entre eles, dos diferentes
interesses e motivações em jogo (illusio), bem como dos diferentes princípios
que orientam as práticas dos agentes (habitus). Como capitais simbólicos
identificados no campo pesquisado, destacam-se o capital econômico e o
cultural, responsáveis tanto pela ocupação de diferentes posições entre
fabricantes (mais influentes) e fornecedores (menos influentes) como pelo
estabelecimento ou não de relações entre eles. Os resultados indicam que a
natureza e o modo de relacionamento praticado no âmbito das empresas estudadas
inibem a transformação e o desenvolvimento do tecido industrial do APL de Ubá.
Nesse ambiente, esses capitais tornam-se tanto objetos quanto instrumentos de
disputa, comprometendo o desenvolvimento de relações efetivas entre esses dois
segmentos que possam contribuir para o fortalecimento do espírito de cooperação
em um APL. Dada a ausência de capital social em termos consideráveis e sendo
ele um dos elementos fundamentais para a constituição e manutenção de um APL,
considera-se que os integrantes do APL de Ubá estejam colocando seu próprio
arranjo produtivo em xeque, lance, aliás, proibido pelas regras do jogo de
xadrez, já que colocar o rei em xeque representa a perda da partida. A falta de
colaboração, de investimento mútuo, de orientação coletiva e de um habitus
coletivo dos agentes coloca em risco, inclusive, o próprio status de APL,
fazendo com que o arranjo ganhe características de aglomerado.
No entanto, como existe relativo grau de relações entre fabricantes e
fornecedores, pode-se dizer da existência de um APL em Ubá, principalmente
porque fabricantes e fornecedores não são os únicos agentes desse arranjo,
embora sejam os mais importantes. Porém, a fragmentação que vem ocorrendo nesse
subcampo industrial moveleiro coloca em risco a própria existência do arranjo,
no que se refere não ao aspecto físico e geográfico, mas ao sentido do APL, em
sua acepção de colaboração direcionada à competitividade.
Em termos teóricos, o trabalho contribui para o campo dos estudos
organizacionais ao atender à necessidade destacada por Brandão (2010) de se por
à prova empírica os conceitos de Bourdieu (2004c) no que se refere,
especificamente neste estudo, ao contexto das organizações. Além disso, ao se
aplicarem os conceitos do autor para a pesquisa empírica, não se utiliza de um
ponto de vista escolástico apenas para reflexões teóricas, como ele próprio
condenava. Pretende-se que os resultados encontrados sejam levados em
consideração por parte dos interessados no problema, principalmente por parte
de fabricantes e fornecedores do campo pesquisado. Quanto à utilização da
teoria de campo de Bourdieu (2004c) para o estudo das relações estabelecidas no
campo pesquisado, esta pesquisa contribui para a percepção de sua pertinência,
já que há considerações de que a utilização dessa teoria para o estudo desse
tipo de relações pode contribuir para a ampliação de visões de poder comumente
restritas às capacidades individuais dos agentes em uma relação (Emirbayer
& Johnson, 2008); e também porque, por meio do estudo dessas relações, é
possível entender formas de poder e dominação trabalhadas pelo autor (Dubois,
2005).
Embora elementos presentes nos resultados encontrados pudessem ter sido
apreendidos por meio de outras escolhas teóricas, a utilização da noção de
poder simbólico de Bourdieu (2004c), bem como dos conceitos presentes na teoria
de campo, permitiu enfatizar a posição dos integrantes do APL como jogadores em
um campo e, além disso, enfatizar como os conflitos existentes em um arranjo
dessa natureza podem estar relacionados à existência de diferentes
habitusincorporados e externalizados pelos indivíduos. Pessoas oriundas de
grupos diferentes, com objetivos, interesses e práticas sociais divergentes,
mesmo em um APL, não conseguem se desvencilhar de seus habitus, atitude
necessária para que os interesses do arranjo possam prevalecer. Trata-se de um
aspecto que poderia ter sido negligenciado em outras escolhas teóricas.
Algumas limitações do estudo devem ser observadas. Na compreensão do habitus,
por exemplo, para que se pudesse apreendê-lo mais, outros métodos de pesquisa
poderiam ter sido utilizados, tais como etnografia e história de vida
(Teixeira, Antonialli, & Cappelle, 2011). No que se refere também às outras
dimensões, doxa,nomos,illusioehexis, não há apreensões muito detalhadas; no
entanto, considera-se que o cenário configurado pelo que se observou a respeito
de cada uma dessas propriedades redundou em interpretações importantes
apresentadas neste estudo.
As contribuições deste artigo também podem ser destinadas à área de cadeias de
suprimentos e estratégias de gestão de fornecedores. A partir da constatação de
que as estratégias são individualizadas, sem alinhamento interorganizacional no
âmbito do APL, pode-se inferir que as empresas do setor moveleiro do APL de Ubá
deixam de aproveitar os benefícios que uma estratégia de fortalecimento do
tecido industrial poderia proporcionar, como redução dos custos, melhoria no
nível de serviço recebido e melhoria no nível de serviço oferecido aos clientes
finais. Fabricantes e fornecedores deixam de explorar as potenciais sinergias
decorrentes da proximidade geográfica e da similaridade dos processos
operacionais. O tipo de relação existente entre fabricantes e fornecedores
pesquisados contribui para inibir a formação de parcerias, associações e
cooperação entre as empresas. Tal forma de agir representa um entrave ao avanço
de um APL em direção a um projeto de desenvolvimento conjunto entre seus
diversos integrantes.
As acepções de APL apresentadas neste artigo explicitam diversas razões que
reforçam a importância da gestão dos relacionamentos entre empresas inseridas
em APLs, relacionamento que pode ser, ele próprio, constituidor de um capital
social para o conjunto dessas empresas. Nessa proposição de gestão de
relacionamentos, informações são compartilhadas de forma aberta, permitindo que
cada parte possa agir e reagir de maneira apropriada e imediata, a fim de
eliminar atrasos e ineficiências em seus processos, por exemplo. Essas partes
podem ainda trabalhar juntas em questões como redução de custos ou incremento
da funcionalidade dos componentes. Ainda é possível apontar outros benefícios
associados a aspectos operacionais de encurtamento dos prazos de entrega,
aumento da confiabilidade no cumprimento dos prazos acordados, redução em
quebras de programação e dos níveis de estoques, bem como aumento nos padrões
de qualidade. Para isso, é necessário que sejam substituídas as relações de
disputa entre fabricantes de móveis e fornecedores locais por ações de
colaboração, o que proporcionará desenvolvimento de adequado nível de capital
social baseado em relações locais.
Considera-se que as implicações desta pesquisa para o estudo de APLs residem
não somente na dimensão do poder, mas também em seu caráter simbólico, que não
é, muitas vezes, evidenciado, acabando por mascarar deficiências nas relações
estabelecidas nesses arranjos. Além disso, as disputas no setor, mesmo que
localmente, demonstram possíveis dificuldades para um desenvolvimento integrado
em contexto nacional. O estudo abre também precedentes para que se atribua aos
APLs conceitualmente estabelecidos o status de pré-APLs. Observa-se que o
relacionamento entre fabricantes e fornecedores é difícil, configurando-se como
um limitador da capacidade de expansão dos fornecedores para o próprio
fortalecimento da indústria local.
Em termos extensionistas, a lente de compreensão da teoria de campo pode
contribuir para que os indivíduos envolvidos no campo moveleiro pesquisado,
sobretudo os que atuam em condições de inferioridade, compreendam a dominação
simbólica exercida sobre eles, que não se dá apenas na dimensão econômica, como
pensam. Com isso, poderão pensar diferentemente para lidar com fabricantes e
com seus próprios pares fornecedores. Os fabricantes, por sua vez, poderão
refletir sobre os riscos a que eles próprios se submetem com o uso extrapolado
de poder, quando colocam em risco o próprio APL ao se subordinarem a mercados
maiores. Para futuras pesquisas, sugere-se a ênfase nos sujeitos participantes
desses arranjos, a fim de que os conceitos de Bourdieu (2004c) possam ser
apreendidos com maior profundidade, contribuindo para que se pense as relações
interorganizacionais não como relações naturais entre organizações reificadas,
como se essas fossem entes autônomos da sociedade
(*)
, mas como relações entre pessoas nas organizações, movidas por interesses e
motivações próprias.
NOTA
(*) Expressão utilizada por Misoczky (2003) ao criticar o fato de que a
tradição dominante na pesquisa em estudos organizacionais é resultado de um
cientificismo positivista.