Percepção dos perigos ambientais urbanos e os efeitos de lugar na relação
população-ambiente
População e ambiente: desafios metodológicos
Enquanto campo de pesquisa consolidado, os estudos em População e Ambiente (P-
A) têm à sua frente o desafio de avançar em metodologias de análise para
aprofundar a compreensão da relação dos grupos populacionais e seus ambientes.
Este desafio tem várias facetas que se apresentam aos estudiosos da área.
Entre as dificuldades históricas do campo está a necessidade de incorporação da
dimensão espacial às análises. Embora isso seja amplamente reconhecido e até
reivindicado enquanto essencial (MARTINE, 2007), os caminhos para tal intento
continuam sinuosos e imprecisos. Na visão de Lutz, Prskawetz e Sanderson
(2002), um dos pontos mais importantes para a consolidação do campo de P-A é
conseguir, metodologicamente, construir uma abordagem eminentemente relacional,
que não enfatize a flecha no sentido PàA nem AàP. A saída para este dilema é
conseguir considerar de forma equilibrada os aspectos do polo Ambiente em suas
características próprias. É aí que a dimensão espacial aparece como sugestão de
solução.
Historicamente, a questão do espaço tem sido trabalhada a partir do componente
da distribuição espacial da população, reconhecidamente a questão central dos
estudos (HOGAN, 2000; MARTINE, 2001). Em termos teórico-metodológicos, no
entanto, a incorporação do espaço tem sido difusa, partindo de matrizes de
outras áreas (especialmente a ecologia humana e a produção do espaço) e não de
uma discussão propriamente demográfica (MARANDOLA JR.; HOGAN, 2007a). No
entanto, se tematicamente o espaço já faz parte do escopo das análises (foi até
mesmo incluído no nome do Grupo de Trabalho da Associação Brasileira de Estudos
Populacionais, a partir de 2006), metodologicamente ele ainda carece de uma
incorporação mais efetiva no conjunto dos estudos em P-A.
Há vários motivos para esta permanente dificuldade, que não diferem dos motivos
de outras áreas em incorporar as questões propriamente espaciais dos processos
em questão. Entre eles, a falácia ecológica (atribuir características
individuais tendo como base observações de dados agregados a partir de esferas
de grupo ou de recortes espaciais) é um fantasma que acompanha todo o
desenvolvimento teórico e metodológico dos estudos de P-A, servindo de alerta
constante para os pesquisadores. Este fantasma teve sempre um papel ambíguo de
ameaça e de patrulhamento, servindo como fonte de desconfiança para aqueles que
tratavam a dimensão ideologicamente, procurando descaracterizar ou
desqualificar questões ambientais que tinham raízes ou eram produzidas por
iniquidades sociais (MARTINE, 1993).
No entanto, mesmo fora do contexto dos estudos de P-A, a Demografia tem
avançado e procurado incorporar a dimensão espacial. Paul Voss (2007) afirma
que o espaço está presente na Demografia desde sua gestação inicial, mas que
nos últimos anos adquiriu novo papel. O autor defende a demografia espacial
como campo específico, por tratar os fenômenos demográficos numa perspectiva
eminentemente espacial. Este olhar não se restringe às técnicas modernas de
geoprocessamento, estando ligado direta e indiretamente a uma perspectiva
metodológica e epistemológica de considerar a dimensão espacial dos fenômenos.
Um dos principais embates que trazem a importância de um olhar espacial à
Demografia são os cortes escalares macro e micro. Os estudos demográficos vêm
utilizando recortes espaciais, mas não têm incorporado propriamente uma
perspectiva metodológica e analítica das implicações escalares destes recortes.
Voss (2007) defende a necessidade de incorporar as variáveis ecológicas e os
efeitos de vizinhança na análise demográfica em todas as escalas, o que
permitiria estudos de perfis escalares do tipo down ou up-scales. Tais
análises, complementares, são muito presentes nos estudos de P-A, sendo uma das
principais estratégias de aproximação de processos de organização regional ou
nacional com processos específicos de uso e ocupação do solo (BARBIERI, 2007;
D'ANTONA; CAK; VANWEY, 2007).
Barbara ENTWISLE (2007), por outro lado, procura "colocar as pessoas no lugar",
ao avaliar os estudos ecológicos em Demografia, especialmente aqueles ligados
às análises de vizinhança e de saúde. O espaço é considerado metodologicamente
nas análises a partir dos efeitos ou impactos de vizinhança, levando-se em
conta fatores como proximidade, relações topológicas e recursos disponíveis na
comunidade como variáveis ecológicas fundamentais para entender as questões de
saúde. Esses efeitos de vizinhança, ou de forma mais ampla efeitos de lugar
(place effects), são estudados nas Ciências Sociais, na Psicologia, nas
Ciências da Saúde e até nos estudos de políticas públicas e gestão do
território.
Esses estudos buscam uma alternativa para a falácia ecológica que não implica
fugir dos elementos espaciais e ambientais. Sua estratégia é diminuir a escala
e investigar de maneira mais detida as múltiplas influências e formas de
envolvimento das pessoas com o lugar, encontrando aí as variáveis e nuances que
ligam as pessoas aos lugares. A questão é qualificar esse envolvimento para
poder reconhecer o que interfere, nesta escala, na relação sociedade-natureza.
MACINTYRE, Ellaway e Cummins (2002, p.125) afirmam que os efeitos de lugar são
uma categoria residual, uma caixa preta dos estudos a respeito da influência do
ambiente sobre a população. Para avançar neste sentido, eles adotaram que "a
distinção entre 'composição' e 'contexto' pode ser mais aparente do que real, e
as características tanto de infraestrutura material quanto do funcionamento
social do coletivo podem influenciar a saúde" (tradução nossa). Em termos dos
estudos demográficos, esta distinção permite ver de forma simultânea e
articulada os elementos estruturais do lugar (físicos, simbólicos ou
relacionais) e os componentes próprios da população: seus atributos, estrutura
e composição.
Esse se mostra um caminho promissor para os estudos de P-A. Os efeitos de lugar
envolvem uma ampla gama de questões que permitem associar as variáveis
ecológicas às consequências e condicionantes de problemas ambientais, como
riscos e perigos, poluição, contaminação, além de revelarem de forma mais
precisa os fatores que interferem na forma como as populações reagem e dão
resposta a tais situações de estresse ambiental (vulnerabilidade).
Por outro lado, os efeitos de lugar são importantes para compreender a mediação
escalar do lugar, abrindo a possibilidade de se pensar o papel das escalas nas
atitudes e percepções das pessoas diante de perigos específicos, ou da situação
ambiental de forma mais geral.
Estas questões têm sido abordadas tradicionalmente pelas mediações sociais e
culturais mais evidentes, tais como renda e escolaridade, bem como origens
religiosas ou culturais. No entanto, com a fluidez contemporânea e a velocidade
das comunicações e da mobilidade, as dinâmicas socioculturais têm se
generalizado mais intensamente. Este processo, ao invés de enfraquecer as
mediações das escalas menores, tem reforçado a importância da heterogeneidade,
enfatizando a questão local como uma das escalas de mediação das pessoas com o
mundo (BOURDIN, 2001). Neste sentido, as percepções que as pessoas têm das
questões ambientais expressam de forma candente os efeitos do lugar e seu papel
na relação P-A, enquanto dimensão espacial fundamental da problemática.
Estes são temas que têm sido perseguidos nos trabalhos desenvolvidos no Núcleo
de Estudos de População, pela equipe ligada à linha População e Ambiente e ao
Projeto Vulnerabilidade.1 Neste contexto, as questões do lugar são pensadas em
relação aos perigos e à mobilidade, a partir da abordagem da vulnerabilidade do
lugar (MARANDOLA JR.; HOGAN, 2009). Utilizando basicamente uma abordagem
qualitativa, de orientação fenomenológica, a equipe tem avançado no sentido de
compreender os elementos componentes da experiência urbana que interferem nas
atitudes e na forma como pessoas, grupos e lugares reagem diante de certos
perigos. A abordagem estabelece a relação entre as escalas do bairro, da cidade
e da região, tentando acompanhar os perigos e o desenho da vulnerabilidade a
partir de um olhar micro (lugar) e meso (região) da experiência.
Um dos desafios desta perspectiva é conseguir transgredir as escalas e as
temporalidades, identificando elementos essenciais que permitam pensar os
processos enquanto fenômenos, e não apenas como excepcionalidade de um caso.
Uma das estratégias neste sentido foi a inclusão, no levantamento amostral por
domicílio realizado pelo Projeto Vulnerabilidade, em 2007, no módulo sobre as
características do domicílio e de seu entorno, de quesitos que exploram a
percepção dos perigos em diferentes escalas. Embora com limitações inerentes à
sua própria característica, tal levantamento permite discutir aspectos
relevantes do papel dos efeitos do lugar em problemáticas de P-A, especialmente
ligados aos perigos ambientais urbanos.
O objetivo deste artigo é iniciar esta discussão, procurando refletir sobre as
implicações desta pesquisa para uma reflexão metodológica que incorpore os
efeitos de lugar nos estudos de P-A enquanto estratégia de apreensão da
dimensão espacial e transescalar dos fenômenos demográficos.
Para isso, é necessário pensar as variáveis pertinentes do lugar para os
estudos de P-A e refletir sua aderência ao desenho amostral e teórico-
metodológico da fonte dos dados.
O lugar e seus efeitos
Lugar é uma essência ou categoria espacial que implica proximidade. Embora
alguns o tomem como um conceito multiescalar (TUAN, 1983), é na escala da
experiência corpórea que ele tem sua maior força e seus significados são mais
densos e abundantes (RELPH, 1976).
Os estudos interdisciplinares sobre o lugar, embora partam deste entendimento
básico fundamentado nos geógrafos humanistas dos anos 1970, procuram
sistematizar e compreender as formas como o lugar é constituído, bem como suas
influências nos âmbitos social e ambiental. Da Geografia herdaram um olhar
específico sobre a centralidade da experiência e da escala próxima para a
construção dos lugares, mas acrescentaram uma gama de elementos sistemáticos
para medir o que passou a ser chamado de efeitos de lugar.
A abordagem psicométrica, por exemplo, trabalha com uma tríade de componentes
para medir a relação das pessoas com o lugar: envolvimento com o lugar (place
attachment), identidade com o lugar(place identity) e dependência do lugar
(place dependence), os quais envolvem diferentes atitudes, respectivamente:
afetação, cognição e elementos conotativos (KYLE et al., 2004). Envolvimento
com o lugar corresponde aos laços emocionais que ligam a pessoa a um lugar;
identidade com o lugar é o grau de características do lugar que refletem a
pessoa, enquanto a dependência do lugar refere-se ao grau de facilidades
comparativas oferecidas pelo lugar.
Estes conceitos, embora muito empregados por uma ampla bibliografia (ALTMAN;
LOW, 1992), possuem uma carência teórica básica: "As relações teóricas entre os
construtos de ligação com o lugar, no entanto, não são consistentemente
empregadas" (NIELSEN-PINCUS, 2010, p. 1, tradução nossa). Falta um olhar mais
geral que esteja "conectado com a relação entre este conceito e outros que
façam referência equitativa aos laços que estabelecemos com o nosso meio."
(HERNÁNDEZ et al., 2007, p. 311, tradução nossa).
Hernández et al. (2007) procuram ampliar as possibilidades analíticas destes
conceitos, estudando o envolvimento com o lugar entre nativos e não nativos em
três ambientes diferentes: bairro, cidade e ilha. Os resultados apontam para o
maior envolvimento dos nativos, que pelo tempo de experiência no/com o lugar
possuem maior identificação e laços afetivos com ele. Não é possível,
argumentam os autores, determinar um mínimo de tempo de envolvimento, mas a
linha é ascendente em relação ao tempo de residência.
A pesquisa aponta ainda que o envolvimento e a identidade com o bairro são
menos fortes do que com a cidade e a ilha, contrariando a tradição de estudos
que têm dado maior ênfase aos bairros e às comunidades. Embora reconheçam a
necessidade de mais estudos para apoiar esta tendência, os autores atribuem o
resultado das relações simbólicas mais fortes, no caso da cidade e da ilha, a
uma história compartilhada e com limites mais definidos do que o bairro. Por
outro lado, pode-se pensar que o bairro contemporâneo é a primeira célula
espacial a sofrer com os processos de fluidez e desagregação da identidade e do
mundo do trabalho (BAUMAN, 2003; 2007).
A dimensão do pertencimento é uma das mais complexas a se abordar. A posição do
ego no discurso expõe a forma de se colocar no mundo e de perceber o próprio
ambiente. O lugar "pertence a mim" ou "faz parte de mim"? Nesta, a posição do
ego está expressa na natureza do envolvimento, identidade e dependência com/no
lugar (KYLE et al., 2004).
No caso do "pertence a mim", a relação com o lugar é a de posse. O ambiente é
recurso e ativo que são movimentados e transformados de acordo com as
necessidades, vontades e desejos. Já o entendimento "faz parte de mim" implica
um envolvimento inerente homem-meio, uma relação de cumplicidade que envolve o
cuidado e a identidade. No primeiro há a ênfase da dependência, enquanto no
segundo destacam-se a identidade e o envolvimento.
É para aprofundar esta discussão que o sentido geográfico de lugar, associado a
uma leitura fenomenológica, pode contribuir. Lugar é a existência, sem
dissociação do ego: uma cumplicidade visceral homemterra que tem sua
manifestação máxima no lugar, expressão da própria ontologia da espacialidade,
ou como prefere Dardel (1952), da geograficidade.
Lugar assim entendido é construído na entridade (betweenness), uma
característica própria de estar-com por estar-entre, edificado entre a
objetividade e a subjetividade, ou seja, na intersubjetividade das experiências
(ENTRIKIN, 1991). No lugar estão o enraizamento e o envolvimento e, em última
análise, as possibilidades de ligação elementar com as escalas superiores. Não
é, portanto, uma leitura essencialista. Antes, é uma perspectiva relacional e
contextual.
No entanto, os lugares não são homogêneos, e nosso envolvimento com eles varia
muito em intensidade, característica e tempo de experiência. Relph (1976) foi
um dos primeiros a sistematizar estas possibilidades de envolvimento, adotando
dois conceitos fundamentais: interioridade (insiderness), ou senso de
pertencimento, e exterioridade (outsiderness), senso de não pertencimento. Para
o autor, este envolvimento diferenciado com lugares estava ligado às
características próprias deles, bem como à natureza da relação da pessoa com
ele. Esta relação entre interioridade e exterioridade é a base para a
identidade do lugar, estabelecendo um gradiente de relacionamento que dilui a
tradicional polarização insider-outsider(de dentro e de fora). Relph propõe
entender os lugares no âmbito de suas características físicas (forma),
atividades e significados, tentando compreender a experiência na
intersubjetividade.
Os lugares, no entanto, não são apenas externos, são internos também: as
pessoas carregam em seus corpos os lugares. É por isso que os estudos de lugar
precisam abarcar os dois polos da relação P-A: o lugar tem características
próprias (os efeitos de dependência e de identificação), mas as pessoas
precisam se identificar e se envolver com ele, ou seja, precisam ter nelas
mesmas sentimentos e memórias que estabeleçam ligações com o lugar (LOWENTHAL,
1975; LEWICKA, 2008; 2010).
Em termos demográficos, é essencial pensar que tipo de experiência demográfica
as pessoas carregam em seus corpos. Ciclo vital, gênero, estrutura familiar,
morbidades, condição migratória não costumam ser considerados em sua dimensão
espacial (salvo o último), mas são essenciais para a compreensão do próprio
lugar e, em contrapartida, também da forma como aquela comunidade se vê e se
envolve com ele. Nielsen-Pincus et al. (2010) investigaram o papel de três
aspectos sociodemográficos na composição dos laços com o lugar: pertencimento
de grupo (residentes locais vs. proprietários não moradores), tempo de
residência e sazonalidade da residência, entendendo estas variáveis como
reveladoras do envolvimento com o lugar e mostrando como o tempo de experiência
tanto interfere na forma e intensidade da identidade, dependência e
envolvimento com o lugar, quanto contribui para fortalecer os laços de
confiança e de proteção do próprio lugar.
A relação P-A se dá justamente nesta intersubjetividade singular: grupos
demográficos, que possuem e carregam suas trajetórias, coletividades e
territorialidades, tentando identificar-se e envolver-se com outras
trajetórias, coletividades e territorialidades. Neste processo, constituem
lugares ao mesmo tempo em que são constituídos por eles.
Perigos urbanos e a percepção do ambiente
Acompanhar estes níveis de envolvimento, pertencimento e dependência, no
entanto, não é uma tarefa simples. Duas estratégias têm sido mais utilizadas
para tentar abarcar estes processos: as pesquisas qualitativas, com imersão e
envolvimento do pesquisador; e os levantamentos de percepção e atitudes
ambientais. A primeira permite a discussão mais aprofundada dos processos e
fenômenos constituintes do lugar e das circunstâncias e possibilidades
diferenciadas de envolvimento. Estas pesquisas lançam luz sobre características
particulares, provocando a formulação de entendimentos que projetam teorias
compreensivas dos fenômenos. A segunda pode servir tanto de antena para
fenômenos ou aspectos significativos que são mais gerais (aparecem na
heterogeneidade), quanto para avaliar a amplitude de compreensões provenientes
dos estudos de imersão. Em vista disso, as duas estratégias são complementares
e se retroalimentam.
Temos trabalhado com pesquisas específicas, procurando a compreensão fenomênica
do lugar e sua dinâmica própria (MARANDOLA JR., 2008a; MARANDOLA JR.; HOGAN,
2009). Estes estudos permitiram avançar na reflexão sobre a percepção dos
perigos urbanos e os componentes da vulnerabilidade, bem como a dimensão do
lugar nos processos de P-A. Por outro lado, estas pesquisas fundamentaram a
elaboração de quesitos para o questionário do levantamento domiciliar amostral
realizado pelo Projeto Vulnerabilidade, em 2007, fornecendo assim dados mais
abrangentes sobre os efeitos de lugar na percepção dos perigos urbanos em
contextos de elevada urbanização.
Três questões centrais nortearam a elaboração das questões, a partir destas
experiências de pesquisa:
os perigos compreendem os fenômenos concretos que causam dano e,
portanto, são eles, e não os riscos, que devem ser questionados. Os
perigos constituem a materialidade que aparece na experiência das
pessoas, e por isso precisamos primeiro entender a percepção deles,
para depois pensarmos a dimensão dos riscos (a probabilidade de eles
ocorrerem) (MARANDOLA JR.; HOGAN, 2007b; 2009);
a percepção dos perigos está diretamente ligada à posição na cidade
e na região, sendo esta posição uma expressão dos círculos sociais e
culturais em que a pessoa está exposta e potencialmente inserida, bem
como das restrições e potencialidades espaciais que mediam sua visão
dos perigos e do próprio ambiente (DE PAULA; MARANDOLA JR.; HOGAN,
2007; MARANDOLA JR., 2008b);
a condição de migrante é um viés fundamental na experiência
espacial que interfere diretamente na forma como a pessoa vive e
percebe o ambiente e o urbano. Ser migrante ou não é essencial no
enfrentamento e percepção dos perigos urbanos (MARANDOLA JR., 2008b;
2008c).
A percepção é extremamente sensível para captar as consequências do
envolvimento com o lugar e suas nuances, porque está no nível mais elementar de
relacionamento sensorial do corpo com o mundo, desde que se atente para as
mediações (PINHEIRO, 1997; 2006). A percepção tem sido utilizada há muito tempo
para conhecer e investigar os sentidos e as identidades dos lugares nos estudos
urbanos e ambientais, justamente por apresentar a apreensão do mundo visual de
forma imediata, sem mediações (GIBSON, 1974; OLIVEIRA, 1977; LYNCH, 2003).
A percepção, diferente de como é trabalhada por alguns, é parte constituinte do
próprio fenômeno, ou seja, seu estudo é um caminho que nos permite tentar
compreender o porquê de as pessoas terem determinada percepção que talvez não
seja a mesma verificada pelo estudo técnico. A percepção é intuitiva, imediata,
e é por isso que, com relação à maioria dos perigos, as pessoas não passam da
sua percepção, pois não chegam a refletir ou elaborá-los enquanto tal. Os
perigos são constituintes da história de vida das pessoas e da própria forma
como elas se colocam nas cidades, como elas constroem suas identidades, mas nem
sempre se tornam conscientes.
A percepção dos perigos é o primeiro passo porque estes são tangíveis,
diferentemente dos riscos, que necessitam de uma elaboração cognitiva para sua
apreensão. Os perigos podem ser perguntados de forma mais direta, enquanto os
riscos requerem um trabalho maior para a acurácia no questionário. Neste
sentido, as perguntas sobre perigos específicos (áreas contaminadas, trânsito,
poluição, etc.) são mais adequadas para um questionário grande cujo objetivo
era maior do que este módulo de questões.
Há uma ampla bibliografia sobre percepção de riscos, com longa tradição de
estudos e de estratégias metodológicas, mostrando que muitos fatores interferem
na percepção, desde a renda, a escolaridade, os círculos culturais e religiosos
e o lugar, até os ativos e as estruturas materiais disponíveis para as pessoas
enfrentarem os perigos (KATES, 1967; DOUGLAS, 1985; 1987; LUPTON, 1999; SLOVIC,
2000). Medos, incertezas e as características próprias dos eventos, como a
distinção entre perigos naturais, sociais e tecnológicos, também são
importantes para perceber as diferenças na percepção (SAARINEN, 1966; LUHMANN,
1993; WILDAVSKY; DAKE, 1994). Nos últimos anos cresceu uma tendência de ler a
percepção dos perigos como manifestação dos novos cenários globais de
comunicação, investigando-se o papel dos diferentes atores na comunicação e na
construção social do próprio risco, além, é claro, de uma preocupação em
compreender os processos de estigmatização e amplificação social do risco
(CASTIEL, 2002; KASPERSON; KASPERSON, 2005).
Todos estes desenvolvimentos ajudaram a compreender melhor a forma como o risco
é compreendido e construído socialmente em contextos culturais distintos. No
entanto, os efeitos de lugar nesta percepção não têm recebido a mesma atenção.
A influência da situação e posição espacial e os processos de identificação,
dependência e envolvimento com o lugar não têm sido considerados com a mesma
frequência que os processos socioculturais na delimitação dos fatores que
interferem na percepção dos riscos e perigos. É justamente nesta seara que
elaboramos as questões e procuramos indícios para a discussão.
Os elementos espaciais que foram incluídos nas questões, que permitem discutir
os efeitos de lugar foram:
Escala dos perigos- diz respeito às perguntas da percepção dos
perigos em três escalas: entorno da casa (bairro), cidade e região.
Este quesito possibilita compreender as questões de proximidade e
distância, centrais para discussão da percepção, pois os perigos são
percebidos de forma muito diferente nestas escalas;
Posição - refere-se à situação de moradia na região metropolitana
(RM). O desenho amostral não permite a representatividade por
municípios, mas sim por sede da RM e os demais municípios do entorno,
o que oferece uma situação espacial, embora heterogênea, com
especificidades significativas para entender o posicionamento em
relação à centralidade e às estruturas espaciais e simbólicas
diferenciais. Morar na sede e no seu entorno implica condições e
especificidades espaciais que possibilitam aventar questões
referentes à percepção e ao seu viés topológico;
Condição migratória: esta é atribuída a partir do quesito tempo de
residência. Trata-se de elemento muito importante porque diz respeito
tanto à experiência espacial que a pessoa tem da cidade e da RM -
mais tempo, mais experiência -, que lhe permite conhecer perigos e
sistemas de proteção, quanto às experiências espaciais anteriores que
a pessoa traz para o novo lugar, modificando-o também. Os migrantes
carregam seus lugares e nesse processo são transformados ao mesmo
tempo em que transformam.
Os três elementos podem ser balizados pelas respostas aos quesitos sobre
mobilidade (cotidiana e pendular), bem como pelos dados da migração
intraurbana, que permitem identificar alguns traços da experiência espacial das
pessoas na região e na cidade, o que interfere sem dúvida na sua percepção e na
forma como se inserem social e espacialmente.
O questionário foi aplicado em 1.823 domicílios entre os 19 municípios da
Região Metropolitana de Campinas (RMC) e em 1.595 domicílios dos nove
municípios da Região Metropolitana da Baixada Santista (RMBS) - as duas RMs do
interior do Estado de São Paulo -, no segundo semestre de 2007. Seu desenho
amostral foi feito a partir de Zonas de Vulnerabilidade (ZVs), que foram
compostas por meio dos dados do Censo 2000, sem representação espacial, mas
permitindo uma análise domiciliar (CUNHA et al., 2006).
Com um questionário organizado em vários módulos, as questões de percepção dos
perigos ficaram no primeiro, aparecendo na sequência das questões referentes às
características do domicílio e do bairro. Isso facilitou as respostas, pois as
pessoas já estavam, no momento das perguntas, com a atenção voltada para o
entorno da casa e suas condições, além de estar no início do questionário, sem
terem sido mencionados os demais temas (família, renda, trabalho, saúde,
educação, etc.) (CUNHA, 2009a; 2009b).
As questões sobre percepção eram semiabertas, com categorias predefinidas, nas
quais o entrevistador classificava as respostas. Quando a resposta era
espontaneamente múltipla, a orientação era que se perguntasse ao entrevistado
qual daquelas era a mais relevante para ele. As categorias foram definidas
tanto pelos pré-testes realizados na montagem geral do questionário, quanto
pelas pesquisas empíricas em bairros de Campinas que a equipe vinha realizando
ao longo do Projeto.
Aplicado apenas a domicílios urbanos, o questionário foi prioritariamente
respondido por mulheres, responsáveis pelo domicílio ou esposas dos
responsáveis. Na inexistência delas ou na sua ausência irremediável, o
questionário foi respondido por homens responsáveis pelo domicílio. O motivo de
tal escolha está associado à complexidade das perguntas e ao entendimento de
que as mulheres teriam melhores condições de responder aos sete módulos do
questionário devido ao seu maior envolvimento com os membros do domicílio.
A amostra envolve cerca de 70% de respondentes mulheres (Tabela_1). Embora não
seja possível indicar estatisticamente um viés de gênero claro em relação à
percepção dos perigos ambientais (os dados não diferem entre homens e
mulheres), é importante estar atento para a quantidade das mulheres
respondentes, bem como ao direcionamento do próprio questionário, que foi
elaborado tendo-se em mente que teríamos mulheres como informantes.
Castro e ABRAMOVAY (2005) apontam para a importância de avançar na compreensão
da perspectiva de gênero ao se pensar o ambiente, já que esta permite entender
o papel de homens e mulheres nas organizações, no que se refere às questões
contemporâneas. A bibliografia sobre percepção de risco está atenta ao viés de
gênero e há estudos que indicam a significativa diferença da percepção entre
homens e mulheres em relação tanto aos tipos de risco quanto à própria
percepção do ambiente. Segundo Gustafson (1998), embora sociólogos e
antropólogos classifiquem que os riscos são social e culturalmente construídos,
estudos da psicologia revelam, segundo o autor, que existe uma dimensão
subjetiva na percepção dos indivíduos, pois a percepção de risco não apenas
reflete a exposição a ele, mas também é influenciada pela experiência
individual e pelas construções coletivas. Dessa forma, homens e mulheres não só
percebem os mesmos riscos de maneiras diferentes, como também percebem riscos
diferentes.
Existem algumas hipóteses que tentam explicar as diferenças na percepção do
risco entre homens e mulheres, tais como condições biológicas, experiência de
algum risco e diferenças sociais (FLYNN et al. 1994). Entre as causas sociais,
pesquisas qualitativas têm mostrado que a atenção das mulheres com a casa e a
família se reflete em sua percepção dos riscos, tornando-as preocupadas com
ameaças à sua família e a outras pessoas com quem tenham relações estreitas,
bem como com relação à sua casa, como mostram akobsen e karlsson (apud
GUSTAFSON, 1998). Frequentemente são mencionados riscos de acidentes, riscos de
saúde e de morte. A mesma pesquisa mostra que as preocupações dos homens estão
relacionadas em maior grau com a vida profissional, como, por exemplo, risco de
ficar desempregado e problemas econômicos. Porém, isso não indica que as
diferenças de gênero nas percepções de risco estão ligadas às atividades e aos
papéis sociais de homens e mulheres, mas sim às desiguais relações de poder que
ambos exercem nos diferentes contextos sociais.
Um componente importante da percepção do risco é a percepção do perigo, o
evento concreto, o que está relacionado diretamente à experiência. Algumas
pesquisas revelam que os homens tendem a manifestar níveis mais baixos de
preocupação quando questionados sobre perigos ambientais. Por se preocuparem
menos, sua atenção e consequentemente sua percepção dos riscos também são
menores do que as das mulheres (FLYNN et al., 1994; RIECHARD et al., 1998;
FINUCANE et al., 2000; HENWOOD, 2008).
Mas essa perspectiva não é uma unanimidade. Greenberg et al. (1995) rebatem a
ideia de percepções ambientais diferenciadas entre os sexos. Os autores
defendem que homens e mulheres que residem em uma mesma vizinhança e que
vivenciam múltiplos perigos demonstram preocupações parecidas sobre as
condições do ambiente local.
No caso dos dados da pesquisa, isso pode ter ressonância na não diferenciação
estatística entre as respostas de homens e mulheres. Por outro lado, não é
demais lembrar que o desenho amostral não foi espacial, baseando-se em Zonas de
Vulnerabilidade (ZVs), o que também não sustenta um viés espacial nas
respostas. As ZVs foram compostas com base em características apreendidas de
quesitos do Censo 2000 que representassem o capital social, humano e físico, o
que deu ênfase para a escolaridade, a renda e outros aspectos sociodemográficos
(CUNHA et al., 2006). Este é outro viés importante na amostragem.
Trabalhamos com os dados/valores reais, sem expansão da amostra, para obter uma
precisão mais clara dos dados. Foram utilizados dois conjuntos de dados que
mediram a percepção, sempre cortados por duas categorias: posição e condição
migratória. Cada conjunto de dados permite ver, a partir destas categorias,
indícios dos efeitos de lugar agindo na diferenciação das respostas e na
própria interpretação dos dados.
O primeiro foi apreendido pelos quesitos 52 a 66 do questionário, que envolvem
questões sobre as vantagens e os perigos de viver no bairro, na cidade e na RM.
Estas perguntas objetivavam identificar a influência da experiência direta dos
perigos para a percepção, assim como possíveis ajudas e correlações entre os
conjuntos de perigos. A violência foi indagada de maneira separada para poder
abrir espaço para outros perigos serem mencionados.
O segundo conjunto refere-se aos quesitos 67 a 82 do questionário, que listam
uma série de perigos, os quais os informantes devem classificar como muito
grave, grave, pouco grave, nada grave e não sabe. Estas questões foram
direcionadas para o entorno da casa, contendo, portanto, uma escala próxima
referente ao próprio lugar.
Assim, levando-se em conta este desenho amostral, as características da
composição do questionário e as questões levantadas por nossas pesquisas no
campo da vulnerabilidade do lugar, propomos discutir dois temas centrais que
perseguimos a partir dos dados da pesquisa: qual o papel do lugar na percepção
dos perigos ambientais urbanos? Qual o impacto do tempo de residência e do
envolvimento com o lugar na relação P-A? Esperamos que estas questões subsidiem
uma reflexão metodológica sobre o papel dos efeitos de lugar nos estudos de P-
A.
Discutem-se os dados a partir das categorias de análise, incluindo aí a
discussão por escalas, com o intuito de que, com isso, seja possível ressaltar
seu papel na forma como a percepção dos perigos se revela.
Posição: sede e entorno
Com aproximadamente 2,7 e 1,7 milhões de habitantes, a RMC e a RMBS,
respectivamente, são áreas de concentração de fluxos, de densa urbanização e de
concentração de serviços. A mobilidade intrarregional e as migrações internas
são significativas do conjunto de sua dinâmica populacional, apresentando um
elevado dinamismo econômico e cultural (JAKOB, 2002; PIRES, 2007; MARANDOLA
JR., 2008a).
Em termos ambientais e de sítio, porém, as duas RMs não poderiam ser mais
diferentes. A RMC está na transição entre o Planalto Atlântico (onde está a
Região Metropolitana de São Paulo) e a Depressão Periférica Paulista, de
terrenos sedimentares aplainados, por onde se consolidaram uma ampla conurbação
e um processo de dispersão. Este último ocorre em mancha em quase todas as
direções (exceto justamente o leste, onde dominam os relevos do Planalto),
seguindo os eixos rodoviários de grande porte, denominados por Caiado e Pires
(2006) de eixos de desenvolvimento (Mapa_1).
![](/img/revistas/rbepop/v29n1/a02m01.jpg)
Apesar da concentração da sede, inerente aos processos de metropolização, a RMC
possui uma relativa desconcentração oriunda da sua própria formação a partir
dos anos 1970 (PIRES, 2007). Há cinco cidades com mais de 150 mil habitantes
(três delas com mais de 200 mil), sendo outras cinco com população superior a
50 mil pessoas (estando duas no limiar dos 100 mil). Estas cidades apresentam
significativa atividade comercial e de serviços, especialmente desde os anos
1990, tendo uma relação com a sede mais independente do que os modelos de
metropolização da era industrial produziram. As trocas populacionais e a
pendularidade não estão apenas direcionadas para a sede, apresentando
interações espaciais significativas entre os municípios do entorno (MARANDOLA
JR., 2008a).
Em vista disso, em vez de uma mancha mais densa em torno do centro
metropolitano, temos um padrão rizomático de desenvolvimento da mancha urbano-
metropolitana, capilarizada pelas grandes rodovias e pelos principais
corredores viários. Esse padrão de construção, que desde os anos 1970 elegeu a
região como o local da produção do espaço urbano, privilegiou as localizações
mais conectadas à densa malha viária, produzindo uma integração metropolitana
bastante significativa.
Já a RMBS apresenta um quadro bastante diferenciado, mas que, igualmente,
coloca a mobilidade e a integração regional no centro de sua constituição.
Região litorânea, entre a serra e o mar, a estreita faixa de terra que envolve
os nove municípios possui um formato linear bastante acentuado, não havendo a
mesma capilaridade da sede, Santos, mas mantendo uma integração muito intensa
por poucos caminhos. A conexão entre as cidades se dá toda pela SP-55, Rodovia
Manoel da Nóbrega, e pela estrada que acompanha a orla, que possui muitas
variações em sua infraestrutura ao longo da costa. Todo o trânsito se concentra
em estreitos corredores viários, sempre no sentido paralelo à costa,
deslocando-se dentro dos municípios e entre eles. Apenas na Ilha de São
Vicente, onde estão Santos e a cidade de São Vicente, existe uma morfologia um
pouco distinta, embora os morros, localizados no centro da ilha, garantam que
se mantenha o sentido do contorno da costa como a orientação da urbanização
(Mapa_2).
[/img/revistas/rbepop/v29n1/a02m02.jpg]
Há pelo menos duas situações espaciais bem claras em termos das interações
espaciais entre as cidades: um eixo mais concentrado em Santos, que inclui São
Vicente, Guarujá e Cubatão; e os demais municípios, que apresentam maior
intensidade de atividades turísticas, uma urbanização menos densa e uma nítida
relação entre a distância da sede e a intensidade dos processos e trocas
populacionais.
Estes fatores, somados à história da própria ocupação da região muito mais
antiga do que a de Campinas, associada de forma direta a toda a
industrialização da Região Metropolitana de São Paulo, produziram uma
concentração muito mais significativa. A ausência de outras conexões com outras
cidades ou regiões que não sejam mediadas pela sede acentua um modelo de região
metropolitana industrial: com muita concentração e dependência da sede frente
ao seu entorno.
Essas configurações, evidentemente, se refletem nos modos de vida, na relação
com os lugares e mediam a percepção dos perigos.
Os 16 perigos sobre os quais se pediu a avaliação do informante sobre a
gravidade para o entorno da residência foram agrupados em sete categorias, as
quais permitem refletir sobre suas especificidades em termos de percepção
(Quadro_1). Isso se fez necessário devido aos limites estatísticos de expansão
da amostra, que podem comprometer sua representatividade. Por este mesmo
motivo, também foram agrupados os gradientes de gravidade predefinidos como
resposta para apenas grave ("muito grave" e "grave") e pouco grave ("pouco
grave" e "nada grave"). Há uma proximidade cognitiva significativa entre muito
grave e grave, e entre pouco grave e nada grave, o que justificou esta
agregação. Como os dados para a categoria "não sabe" se mostraram insuficientes
estatisticamente para serem considerados, utilizou-se apenas a informação
contabilizada como "grave e muito grave" para fins de análise, identificando os
perigos que sobressaíram em termos da gravidade.
As categorias revelam aspectos diferentes do envolvimento com o lugar e o papel
da localização da sua percepção. As categorias contaminação e climáticos são
aquelas em que a pessoa precisa ter em mente eventos específicos, devido à sua
particularidade e concretude na experiência. Uma enchente não se dá de forma
generalizada e nem indiscriminada. Trata-se de um evento facilmente
identificável e tem duração e localização muito definidas. A contaminação
também é definida espacialmente, embora seja mais difusa no tempo. Quando esta
chega à percepção é porque foi legalmente notificada, divulgada e houve
intervenção do poder público para sua contenção. Isso também marca um lugar
específico. Estas duas categorias são também aquelas mais associadas ao
ambiente, enquanto dimensão não urbana.
Já as categorias acessibilidade, qualidade de vida e trânsito dizem respeito ao
cotidiano mais direto da pessoa. Sua percepção está associada diretamente a
práticas e à própria experiência. Mesmo que não estejam ligadas a eventos
específicos, elas se constroem de forma mais difusa na experiência, associadas
a acontecimentos cotidianos. Elas possuem também, assim com as categorias
infraestrutura e manutenção, a percepção do papel do poder público e da sua
intervenção na gestão do espaço público urbano, apontando para sua ausência, ao
mesmo tempo em que qualificam esta ausência.
Quando se observam os dados agregados, ou seja, o conjunto das respostas dadas
pelos informantes em cada RM, nota-se uma diferenciação clara entre as
posições. O entorno da RMBS somou 25,0% de respostas "grave", para o conjunto
dos 16 perigos, o que é mais do que o dobro das demais posições. A sede da
RMBS, por outro lado, registrou apenas 6,8%, o menor índice entre as posições.
Na RMC foi a sede que acusou mais respostas como "grave e muito grave" (10,4%),
enquanto o entorno da RMC apontou 8,5%.
Considerando-se os dados pelas categorias criadas, foi possível identificar
melhor onde estão estas diferenças entre as posições (Gráficos_1 e 2). Em todas
as categorias de perigos, as respostas para "grave e muito grave" do entorno da
RMBS foram superiores às do entorno da RMC, enquanto as respostas da sede da
RMC foram sempre maiores às da sede da RMBS. Destacam-se as porcentagens de
respostas como "grave" do entorno da RMBS para contaminação (31,0%), qualidade
de vida (40,9%) e manutenção (32,2%), categorias com essa avaliação em,
respectivamente, apenas 5,9%, 10,0% e 10,7% de respostas do entorno da RMC.
[/img/revistas/rbepop/v29n1/a02gra01.jpg]
[/img/revistas/rbepop/v29n1/a02gra02.jpg]
As maiores porcentagens de respostas "graves ou muito graves" na RMC foram
dadas pela sede: 14,2% na categoria qualidade de vida; 14,8% para manutenção; e
14,3% para trânsito. A categoria infraestrutura foi a única em que a resposta
"grave ou muito grave" do entorno superou a da sede, com respectivamente 16,4%
e 9,9%.
Estas respostas apontam para o envolvimento com a região e a importância da
proximidade em algumas regiões. O entorno da RMBS é uma área com muitos
assentamentos precários, muito afastados da sede, com problemas sérios de
infraestrutura, acessibilidade e manutenção. As questões urbanas estão muito
latentes, como aparecem na porcentagem da gravidade dos perigos relacionados a
trânsito, manutenção e qualidade de vida, todos indicadores desta precariedade.
A exceção é a gravidade apontada para os perigos da contaminação na RMBS, em
especial no entorno (na sede as respostas "grave e muito grave", nesta
categoria, só somaram 8,1%), que possui um histórico de ainda está presente no
imaginário da região. áreas contaminadas que, mesmo já tendo Os grandes eventos
de contaminação se passado alguns anos, percebe-se que ocorreram nas cidades do
entorno, em especial Cubatão, e esta preocupação com a contaminação ainda
presente não se dá apenas pela repercussão de casos antigos, mas também pelo
ainda convívio com as consequências destas contaminações, principalmente para o
mercado de trabalho e a saúde.
É interessante notar que, em ambas as regiões, independentemente da posição, os
perigos climáticos não receberam destaque, sendo os aspectos do espaço
construído muito mais latentes para as pessoas em termos da sua gravidade. Isso
mesmo considerando-se que o levantamento domiciliar foi feito apenas poucos
meses após a divulgação do Fourth Assessment Report (AR4) do International
Panel on Climate Change (IPCC), ocasião em que o tema mudança climática estava
sendo amplamente divulgado e discutido pela mídia. A acessibilidade também é
muito pouco mencionada como um problema para as duas regiões, o que indica
tanto uma articulada infraestrutura de mobilidade quanto uma rede de serviços
relativamente bem distribuída.
A relação entre sede e entorno da RMC, por outro lado, é invertida. A maior
densidade de deficiência de infraestrutura está na própria sede. Município com
mais de um milhão de habitantes e com níveis de desigualdade elevados, Campinas
ostenta uma ampla área de urbanização precária que se conurba com municípios
vizinhos, repercutindo carências urbanas de toda ordem. A única categoria em
que o entorno registrou mais respostas "grave" foi na infraestrutura, pois há
muitas cidades da região com problemas crônicos de abastecimento e tratamento
de efluentes, o que tem sido trabalhado, nos últimos anos, no município-sede.
Estas relações também se revelam quando se observam os dados da percepção dos
perigos por escalas. Neste quesito, a estratégia na elaboração do questionário
foi perguntar tanto pelos perigos, quanto por vantagens, entendidas enquanto o
oposto ao perigo. Perguntamos para a escala do bairro, da cidade e da região
("A Sra. acha que há alguma vantagem em viver neste bairro/cidade/região?"),
percebendo nuances importantes na qualidade das respostas. Quando a resposta
era positiva, permitia-se que a pessoa mencionasse livremente até três
vantagens. Estas foram classificadas de acordo com categorias predefinidas. A
Tabela_2 sintetiza as vantagens mais mencionadas.
As vantagens mostraram-se diretamente ligadas à questão locacional, de
acessibilidade e de proximidade. O item "proximidade a qualquer serviço
mencionado" recebeu as maiores frequências para quase todas as escalas,
excetuando-se bairro na RMC e região na RMBS, embora nestes dois casos tenha
sido a segunda mais mencionada. No primeiro caso, a mais mencionada foi
"aluguel ou preço do terreno/casa", o que é uma vantagem locacional estrutural
ligada à escolha do lugar de moradia, e no segundo caso foi a categoria
"outros", cujo índice elevado aponta para o fato de que perdemos alguma
dinâmica relevante.
É importante observar também os dados menores, tendo sido a categoria "espaços
verdes" a menos mencionada nas duas RMs (o que é corroborado pelos altos
índices de percepção de perigos ligados à qualidade de vida, cuja existência de
espaços verdes está incluída), além do baixíssimo índice de respostas para
"aluguel ou preço do terreno/casa" nas escalas da cidade e da região na RMBS.
Chamam atenção também os baixos índices de respostas nestas mesmas escalas para
"parentes próximos", categoria muito importante na RMC e na própria categoria
bairro. Há, na percepção das vantagens nas escalas cidade e região na RMBS, uma
importância na estrutura de serviços maior do que na RMC, onde fatores ligados
ao cotidiano e à mobilidade apresentam-se mais relevantes em termos desta
percepção.
O Gráfico_3 apresenta as respostas afirmativas agregadas para as duas RMs,
mostrando uma percepção inversa na relação sede-entorno. Na RMC, é a sede que
percebe mais as vantagens do que o entorno, o que ocorre de forma inversa na
RMBS, com uma amplitude bem maior. No geral, o índice de vantagem na sede da
RMBS é muito baixo, com patamares entre 29% e 31% para as três escalas,
enquanto seu entorno registra índices acima dos 50%. Na RMC, a diferença é
menor: na base de 38%-39% no entorno e 49%-53% na sede.
Há dois movimentos distintos nestes dados. Um é a constância entre as escalas
(entorno da RMC e sede da RMBS). Isso aponta para uma percepção da posição e
sua articulação entre as escalas. No caso do entorno da RMC, é o reconhecimento
da articulação da região e de suas interações espaciais, ao passo que na sede
da RMBS o peso da própria sede é preponderante no posicionamento escalar. Estar
na sede é a principal vantagem.
Essa percepção também é revelada pelos dados da sede da RMC, que tem um índice
muito alto nesta escala (53,0%), em oposição aos 49,1% que apontaram vantagem
em morar na região. Esse segundo movimento, de reconhecimento maior entre as
diferentes escalas, também se manifesta nos dados do entorno da RMBS, embora em
menor grau, indicando a menor importância da cidade. Isso pode estar ligado à
própria dimensão menor da RMBS e de sua forma urbana, que coloca na
acessibilidade um peso muito forte na percepção da posição, já que a
concentração na sede é maior e gera um fluxo significativo para ela.
Quanto à percepção dos perigos, a questão foi aplicada após a realização de uma
pergunta separada sobre violência, pois os pré-testes haviam mostrado que a
palavra perigo, nestas situações urbanometropolitanas, trazia imediatamente a
dimensão da violência. Para captar outros perigos, portanto, primeiro
perguntou-se sobre a violência, para depois indagar sobre os demais.
Neste caso, perguntamos apenas nas escalas do bairro e da cidade, pois as
respostas aos perigos na RM, nos pré-testes, não se mostraram consistentes.
Isso em si é importante, porque a reação das pessoas quando questionadas sobre
os perigos no bairro, na cidade e por fim na RM era de indiferença ou de não
entendimento. A diferença entre perigo no bairro (o entorno da casa) e na
cidade (no seu cotidiano, mas não no seu "quintal") é muito clara para as
pessoas e isso se reflete nas respostas. Já a RM parece uma escala em que os
perigos não se manifestam, não aparecem na experiência. A região é difusa
espacialmente e, embora as vantagens possam ser identificadas (especialmente
pelas potencialidades da acessibilidade), os perigos não são percebidos nesta
escala.
A pergunta feita ("E fora a violência, há algum outro perigo no seu bairro/
cidade?") permitia primeiro a resposta sim ou não, com a especificação do
perigo para as respostas sim. Assim como as vantagens, os perigos eram
mencionados livremente, cabendo ao entrevistador classificar nas categorias
predefinidas. Para fins de análise, tais perigos foram reunidos em categorias
mais amplas, que expressam problemas semelhantes: inundação, enxurrada e
deslizamento; poluição do ar; trânsito e acidentes de carro; manutenção
(terrenos baldios, lixo e problemas sanitários); e outros. A distribuição pelas
duas RMs pode ser vista na Tabela_3.
A poluição do ar e a manutenção foram os perigos mais mencionados na RMC,
enquanto a manutenção e o trânsito foram os mais relevantes na RMBS. Isso
aponta uma ressonância significativa com as particularidades das regiões, cujas
formas urbanas intensificam tais problemas.
Quanto às diferenças escalares, chama atenção o fato de o índice de percepção
do perigo referente à poluição do ar na RMC ser maior no bairro do que na
cidade, o que indica uma percepção e experiência direta dele. A poluição do ar,
em geral, é tratada como um problema difuso, concentrado nas regiões centrais
ou corredores viários, mas o dado indica a concretude e proximidade do problema
na percepção da população. Neste mesmo sentido, praticamente não há diferença
na percepção do problema com trânsito nas duas escalas, mostrando sua
generalização no conjunto da RMC.
No reverso, perigos naturais ligados a eventos hidrometeorológicos (inundações,
enxurradas e deslizamentos), na RMC, são mais identificados na cidade (18,9%)
do que no bairro (5,4%), o que não acontece na RMBS, onde os índices para as
duas escalas são muito próximos. O alto índice registrado na categoria
manutenção inclui os problemas sanitários, historicamente presentes na RMBS e
que marcam muito o cotidiano da urbanização precária presente amplamente na
região.
Este perigo corresponde a boa parte dos 32,0% e 35,7% de perigos no bairro e na
cidade, respectivamente, apontados pelo entorno da RMBS (Gráfico_4). A análise
por posição mostra a mesma inversão vista nos dados de vantagens: a sede da RMC
e o entorno da RMBS percebem mais perigos, sendo a sede da RMBS aquela que
apresenta menores índices. Isso mostra que não há uma ligação direta entre
perceber vantagens e perigos, ou seja, que uma elevada percepção de vantagens
levaria a perceber menos perigos, ou vice-versa. Os dados apontam para um viés
de lugar na percepção das questões ambientais. A sede da RMBS tem uma tendência
geral de perceber menos tanto perigos quanto vantagens. Por quê? Essa é uma
questão que está relacionada aos efeitos de lugar, que não aparecem nos dados.
Condição migratória: tempo de residência
Que é ser migrante? É estar em busca de uma nova territorialização, de
conhecimento espacial e de inserção no lugar (MARANDOLA JR.; DAL GALLO, 2009).
O migrante está em condições distintas em relação aos nativos em termos do
tempo de envolvimento e na sua relação com o lugar (HERNÁNDEZ, 2007). Desde a
já clássica compreensão de Norbert Elias (1994) sobre as diferenças entre os de
fora e os estabelecidos, o fenômeno da migração tem sido visto também em seu
processo de adaptação, o que implica uma reterritorialização (HAESBAERT, 1997;
SAQUET, 2003).
Em vista disso, o tempo de residência é um indicador adequado que mede o tempo
de experiência na cidade, permitindo inferir diferenças entre o conhecimento
espacial e o envolvimento com o lugar. Embora não seja possível por meio desta
informação qualificar com muita precisão a natureza deste envolvimento, as
pesquisas na região têm mostrado a diferença nos espaços de vida e na relação
com os lugares entre migrantes e não migrantes (MARANDOLA JR., 2008a; 2008b;
MARANDOLA JR.; HOGAN, 2009).
Por outro lado, as categorias dos perigos em discussão permitem identificar
aspectos que dizem respeito às diferenças de envolvimento com os lugares
mantidos por migrantes e não migrantes em regiões metropolitanas como estas,
onde a migração dos últimos 20 anos advém de outras áreas urbanas. O que nossas
pesquisas na região têm mostrado é que uma parcela significativa de migrantes
possui familiares em outras cidades da RM, realizando viagens para visitá-los
com certa frequência. Por outro lado, há um conjunto de migrantes de estrato
médio que vivem na região sem parentes ou amigos da infância ou juventude,
tendo se mudado a trabalho e que, em vista disso, precisam viajar
frequentemente para o lugar-natal para manter os laços. Nestes casos, embora
possam viver vários anos na região, estas pessoas podem manter-se vinculadas ao
circuito de lugares metropolitanos - os lugares neutros de que fala Bauman
(2001) -, onde é possível ficar à parte do sistema do local (MARANDOLA JR.,
2008a; 2008b).
Isso gera uma situação extremamente complexa em termos da percepção dos perigos
e sua aderência aos efeitos de lugar. De um lado, temos os naturais (não
migrantes), enraizados nestas regiões antes da metropolização, antes dos
grandes fluxos migratórios dos anos 1970 e antes dos migrantes mais recentes
que vieram principalmente trabalhar em empresas ou procurar empregos em áreas
de concentração urbana. De outro, há os migrantes, tanto os chegados há mais de
dez anos (migrantes estabelecidos), que já possuem suas próprias redes e
lugares na região que tendem a não coincidir com o sistema de lugares dos
estabelecidos, como aqueles que chegaram há menos tempo (migrantes recentes),
já com a metropolização completamente consolidada, e que têm acesso aos lugares
e à informação de uma forma muito mediada, muito distantes do sistema de
lugares dos não migrantes.
Esta situação é rica, no entanto, porque traz para o lugar outros lugares (pela
memória e corporeidade dos migrantes), conectando o lugar a outros, pois
diferente de outros períodos, estes são migrantes que vivem entre-territórios,
mantendo ligações mais intensas (temporalmente e espacialmente) com seu lugar-
natal (ALMEIDA, 2009). Isso agrega outra dimensão de envolvimento, diminuindo a
dependência do lugar e o próprio tempo de experiência, já que as viagens podem
ser, em alguns casos, extremamente frequentes.
Os dados permitem apreender alguns destes elementos quando se observa a
percepção dos perigos ambientais urbanos, agora categorizados pelo tempo de
residência. São os mesmos dados ora apresentados e, por isso, notam-se algumas
permanências, como o destaque para o entorno da RMBS em apontar a gravidade dos
perigos. No entanto, há também algumas tendências instigantes.
Por exemplo, observando-se os dados agregados para o conjunto das respostas,
verifica-se que a percepção dos perigos é maior quanto menor for o tempo de
residência. Em ambas as regiões, os respondentes que são migrantes recentes
apontaram os perigos como graves ou muito graves mais vezes do que o fizeram os
não migrantes. Estas proporções foram, respectivamente, de 11,1% e 8,5%, na
RMC, e de 20,9% e 15,9%, na RMBS.
Estes dados indicam a importância do tempo de experiência no lugar para o
enfrentamento dos perigos. Tempo de experiência possui uma associação não
linear, mas crescente e positiva, com o envolvimento, a identidade e a
dependência com/do lugar, como mostraram Hernández et al. (2007). A experiência
ganha densidade e profundidade com o tempo, a partir da pausa (não mudanças),
bem como pelos laços e atividades desenvolvidas tendo o lugar como mediação com
o mundo (TUAN, 1983). Quanto maior for este envolvimento (o attachment), maior
é a importância do lugar para a mediação das atitudes e percepções, inclusive
dos perigos (TUAN, 1980; 2005).
Por outro lado, a percepção do perigo está diretamente associada à percepção do
risco (DOUGLAS; WILDAVSKY, 1982) e esta, por sua vez, está ligada à capacidade
de enfrentamento, ou seja, à vulnerabilidade (WISNER et al., 2004). O tempo de
experiência e o envolvimento com o lugar (seja pela via da dependência seja
pela identidade) aumentam o conhecimento espacial. A ausência deste é uma das
origens da insegurança existencial e da incerteza, que estão intimamente
ligadas à percepção do perigo (GIDDENS, 2002). A gravidade dos perigos,
portanto, é atenuada diante do conhecimento do perigo, mais do que isso, do
conhecimento dos lugares onde estão o perigo e das práticas necessárias para
enfrentá-lo (MARANDOLA JR., 2008b).
Outro dado importante neste olhar mais geral sobre a percepção dos perigos por
condição migratória é a diferença entre as duas RMs, além do fato de aquela
discrepância entre sede e entorno da RMBS ter se dissipada num maior equilíbrio
entre as categorias de migrantes, o que reforça a importância da diferença
entre estes dois lugares no caso desta região.
Já o foco na especificidade das diferentes categorias de perigo e sua
influência nestes dados mais gerais mostra como a condição migrante interfere
na percepção de cada perigo. Na RMC, os migrantes recentes apresentaram os
maiores índices de percepção de gravidade do perigo em relação a três
categorias (contaminação, qualidade de vida e manutenção), enquanto os não
migrantes o fizeram com relação aos perigos ligados ao trânsito e à categoria
climáticos e os migrantes estabelecidos (que vivem na região há dez ou mais
anos) registraram índices maiores em acessibilidade e infraestrutura (Gráfico
5).
Na RMBS, os migrantes recentes tiveram maior número de respostas de perigos
graves e muito graves nas categorias contaminação, climáticos, infraestrutura e
manutenção, enquanto os migrantes estabelecidos sobressaíram nas categorias
acessibilidade, qualidade de vida e trânsito (Gráfico_6).
Observa-se, assim, que não há correspondência, entre as regiões, da condição
migratória determinando a relação com os perigos específicos. Isso se dá pelas
características destas regiões e das suas diferentes posições. Os efeitos de
lugar, neste caso, são muito mais topológicos e referem-se às características
próprias dos lugares que colocam migrantes, não migrantes e migrantes
estabelecidos em condições diferentes diante de cada perigo. As únicas
categorias de perigos que mantiveram a mesma distribuição por condição de
migração foram acessibilidade e manutenção, podendo-se incluir também qualidade
de vida, que teve uma diferença irrisória na posição entre migrantes recentes e
migrantes estabelecidos na RMBS. Os perigos que estão reunidos nestas
categorias referem-se ao cotidiano, o que tem um viés direto da condição
migratória. Mesmo a categoria manutenção tem relação com a situação do bairro
no uso do espaço público.
Um destaque merece a categoria qualidade de vida, pois a RMBS, por se tratar de
uma região litorânea, tem a praia como principal espaço público. Os altos
índices de resposta para "grave e muito grave", neste caso, revelam a condição
do conjunto da cidade, com a praia sendo o único espaço público na maioria das
cidades e nem sempre acessível, devido à distância e à própria ausência de
meios de transporte público no sentido perpendicular à linha da costa (os
bairros mais pobres se estendem em direção à serra, afastando-se do mar).
Os dados da percepção das escalas ajudam a avançar nessa discussão. O Gráfico_7
mostra os dados da percepção da vantagem de morar no bairro, na cidade e na RM,
por condição migratória. Em todas as escalas, nas duas RMs, os migrantes
estabelecidos foram os que apontaram mais vantagens, sendo que os migrantes
recentes sempre tiveram os menores índices. Em termos das escalas, há uma
constância nas duas RMs em relação à proporção entre os grupos de condição
migrante, o que indica uma conexão cognitiva entre as vantagens do bairro com a
cidade e a região.
Os dados indicam a não associação entre a mudança para a região e a percepção
de vantagens. Se esta aumenta com o tempo de permanência, como se observa nos
dados, ela tem uma relação mais direta com a experiência e o envolvimento com o
lugar, e não com a imagem projetada por ele enquanto atrativo.
O mesmo ocorre com relação aos perigos. O Gráfico_8 mostra claramente que os
migrantes recentes identificam os perigos como graves e muito graves em
patamares bem menores. A diferença em relação às vantagens é que, na RMC, são
os não migrantes que apresentam o maior índice, com os migrantes estabelecidos
em patamares bem próximos e os migrantes recentes com níveis menores ainda de
percepção dos perigos do que da percepção das vantagens.
Se pensarmos nos perigos que foram mais apontados como "graves e muito graves"
(Tabela_3), notamos a importância que a poluição do ar tem nos dados da RMC,
denotando alteração e intensificação nos últimos anos, que têm sido percebidas
ao longo do tempo. No caso da RMBS, o perigo mais apontado foi manutenção, para
o bairro, e trânsito, para a cidade, o que não representa um viés de tempo de
residência específico, mas sim um efeito de lugar mais contextual.
Efeitos de lugar nos estudos de P-A
O esforço desta pesquisa é o de avançar em conjunto em termos teóricos e
metodológicos, procurando movimentar temas específicos com metodologias de
integração de abordagens que contribuam para pensarmos as questões de P-A de
forma ampla e que contribua para os estudos populacionais. Diante de suas
limitações, o processo de pesquisa e sua construção metodológica aqui
discutidos são relevantes para a problematização dos desafios que o campo P-
A tem enfrentado, em seu conjunto, para extrapolar limites colocados pelas
próprias bases de dados e metodologias convencionais.
Em vista disso, a estratégia de combinar trabalhos verticalizados com aplicação
de metodologias qualitativas (de orientação fenomenológica) com resultados de
levantamentos de percepção colhidos em larga escala (duas RMs) é um esforço
para identificar elementos nas duas frentes, colocando um a serviço do outro
para a discussão do espaço na relação P-A.
Este trabalho mostra muitas das possibilidades e também muitas das lacunas
deste esforço. Se, por um lado, podemos ver com clareza os efeitos de lugar
influenciando a percepção dos perigos ambientais urbanos, por outro, ficamos
devendo uma incursão mais analítica de outras variáveis demográficas na
composição dos próprios efeitos. Condição migratória é relevante, mas não
suficiente para esta incursão, assim como não é, em si, o reconhecimento do
viés de gênero dos dados. Mas, pelo desenho amostral da pesquisa, não se pode
avançar muito além, pois esbarramos nas limitações estatísticas.
Entre os aspectos que ficam muito evidentes, está o papel do lugar na percepção
dos perigos. Tanto o corte por posição e condição migratória quanto a
consideração das percepções pelas escalas indicam a importância do lugar, em
seu sentido amplo. A operacionalização de pesquisas com dados empíricos sempre
provoca certas escolhas de recortes que ressaltam alguns aspectos. Neste caso,
vemos claramente que os elementos tangenciais dos efeitos de lugar, escolhidos
para evidenciar seu papel, são significativos o suficiente para não serem
ignorados. Se, por um lado, a natureza tangencial não permite precisar alguma
medida de impacto ou uma metrificação de sua natureza (como os estudos
psicométricos), por outro, tais levantamentos reforçam e coadunam com as
pesquisas qualitativas de profundidade e as formulações teóricas delas
oriundas.
Por outro lado, estes estudos apontam questões antes não consideradas, como a
especificidade da sede da RMBS em perceber menos tanto perigos quanto
vantagens, ou os baixos índices de percepção de questões que a teoria urbana
constantemente reforça, como a importância de parentes próximos e dos valores
da terra urbana, que nos dados para cidade e região, na RMBS, não possuem
relevância.
Outra questão central que a discussão dos dados aponta é a mistura, no caso da
percepção, dos perigos ambientais relacionados a eventos naturais e os de
origem da produção humana (man-made). Os perigos são mais percebidos pela
questão espacial da localização, segundo proximidade e distância, quando se
referem a eventos do seu cotidiano, diferente de quando se pensa em perigos que
são mais difusos, tanto no tempo quanto no espaço, que tendem a ser percebidos
mais pelas mediações socioculturais.
Isso aponta para a importância de fatores materiais, sociais e individuais na
composição e consideração dos efeitos de lugar. Estes não se resumem às
trajetórias individuais, nem à configuração material estrutural. É na
compreensão da forma específica de configuração destes fatores que as
diferenças se configuram, o que explica as distinções entre as posições.
Já a condição migratória se mostra uma excelente categoria para analisar as
questões de perigos e para pensar os efeitos de lugar. A condição coloca as
pessoas em posição diferencial no espaço, o que institui níveis de
envolvimento, dependência e identidade muito variáveis. Por seu turno, é
lamentável que os dados não permitam avançar na análise das percepções por
critérios mais específicos, como a origem dos migrantes, ou mesmo por uma
escala de tempo de residência menor. Isso possibilitaria considerar de forma
mais precisa as influências e o peso do lugar de origem nas percepções e suas
formas de ver e entender o mundo. Outros fatores demográficos também seriam
potencialmente elucidativos destes efeitos, como a estrutura familiar, o
estágio do ciclo vital e o seu padrão de mobilidade.
O tempo de residência, portanto, é extremamente relevante para discutir os
efeitos de lugar em termos da dinâmica P-A, podendo trazer uma série de
questões referentes ao espaço, à estrutura urbana e à própria dinâmica
demográfica. Juntamente com ele, a própria questão da escala torna-se mais
forte e evidente, permitindo pensar a experiência na região, na cidade e no
bairro, o que qualificaria mais ainda os dados aqui analisados.
Região, cidade e lugar mostraram-se, por seu turno, escalas espaciais
necessárias aos estudos de P-A, para compreender e conectar as escalas de
percepção, estruturação e produção do espaço. É difícil pensar a não aderência,
tanto em estudos urbanos quanto rurais, destas escalas que conectam a
efetivação dos perigos na experiência com sua organização e distribuição de
forma mais difusa, no tempo e no espaço. Proximidade e distância são questões
que os estudos de P-A precisam trazer com mais força quando estão pensando a
dimensão do espaço em seus processos.
O desafio é conseguir tal articulação com bases de dados adequadas. Para isso é
necessário investir em levantamentos específicos e em pesquisas que permitam a
análise transescalar e que dialoguem e se retroalimentem. O fantasma da falácia
ecológica só voltará a rondar os estudos de P-A com mais força se mantivermos a
pesquisa no tema engessado em uma das escalas, seja a micro, seja a macro. A
maior força da falácia ecológica está na ilusão de que o espaço é homogêneo e
que não há fenômenos de ordens diferentes que não são apreensíveis com os
métodos empregados. Evitá-la, portanto, implica uma análise transescalar que
não considere as escalas mais próximas como determinadas pelas mais distantes,
nem o inverso.
Uma das virtudes dos estudos de P-A no campo da Demografia tem sido a
incorporação do espaço como uma dimensão propriamente demográfica dos
fenômenos: os efeitos de lugar são uma especificação desta espacialidade,
manifesta em escalas diferentes e com processos de constituição, manutenção e
difusão diferenciados. Explorá-los em par com as componentes da dinâmica
demográfica é uma necessidade para a consolidação metodológica da consideração
do espaço na relação P-A nos estudos populacionais.