Padrões de seletividade relacionados aos casais homossexuais e heterossexuais
no Brasil
Introdução
Esse artigo se propõe a testar a hipótese de seletividade marital entre casais
heterossexuais e homossexuais no Brasil. O estudo a respeito das escolhas
conjugais na sociedade é importante nos âmbitos econômico e demográfico, pois
retrata as preferências dos indivíduos na formação da família, a divisão sexual
do trabalho do casal tanto no mercado de trabalho quanto no ambiente
domiciliar, além de ser um aspecto fundamental para a transmissão
intergeracional das desigualdades socioeconômicas (LIMA,_1999). Nesse artigo,
focaliza-se o caráter endogâmico ou exogâmico dos casais de acordo com as
características educacionais, raciais e por faixa etária. Um estudo mais
detalhado sobre as formações dos casais seria desejável, mas existem limitações
quanto às informações disponíveis para essas análises, principalmente no que
diz respeito à divisão sexual do trabalho.
Há uma extensa literatura nacional e internacional que trata da seletividade
marital entre casais heterossexuais, levando em conta características
educacionais, raciais, de renda, entre outras. No entanto, a oportunidade de se
estudar a seletividade marital entre casais homossexuais no Brasil surgiu
apenas partir do Censo Demográfico de 2010, com a inclusão, no questionário, da
opção "cônjuge do mesmo sexo" no quesito de relação de parentesco, tornando
possível a análise dos padrões de seletividade dos casais homossexuais
brasileiros.
A importância de se estudar essa parcela da população está relacionada ao fato
de que tais casais fazem parte da sociedade e, portanto, merecem a devida
atenção por serem sujeitos sociais com direitos à constituição de uma família e
direitos sexuais e reprodutivos. Luiz_Mello_(2005,_p._200) faz referência à
importância da conjugalidade homossexual como constituição de família:
Por meio da constituição de casais conjugais, cujos membros
geralmente se autodefinem como uma família, os homossexuais […]
reivindicam não mais apenas o direito à cidadania, em nível
individual, mas, também, o direito à constituição de grupos
familiares, integrando-se ao rol de sujeitos sociais portadores de
demandas que, no mundo ocidental, convencionalmente realizam-se por
meio da constituição do casal conjugal.
Logo, o reconhecimento da existência desses tipos de casais na sociedade
contemporânea coloca a necessidade de se investigar o tema para que se tenha um
entendimento melhor acerca dos arranjos familiares brasileiros. Assim, esse
artigo procura contribuir para uma maior compreensão dos diferentes arranjos
familiares no Brasil, oferecendo subsídios para possíveis desdobramentos
analíticos em termos da análise dos processos de estratificação social.
Revisão da literatura
Ao abordar o tema de seletividade marital, deve-se considerar a amplitude de
teorias que há décadas tentam explicar porque as pessoas tendem a se casar
dentro de um mesmo grupo (endogamia) e com status social semelhante
(homogamia). Dada a complexidade do assunto, existem várias vertentes do
conhecimento que tomaram para si a responsabilidade de tentar entender tal
fenômeno e até medi-lo. É nesse sentido que o objeto tratado nesse trabalho
espalhou-se entre as áreas da sociologia,1economia, demografia, entre outras.
Entre os economistas, Becker_(1981) foi um dos primeiros a desenvolver uma
teoria microeconômica que disserta a respeito da seletividade marital de forma
quantitativa. Segundo o autor, no mercado matrimonial existe um equilíbrio no
qual a pessoa decide casar se, e somente se, a utilidade do casamento for maior
que a de permanecer solteiro. Além do fator utilidade, há duas outras variáveis
que incidem sobre a decisão de se casar ou não: a função de produção no
domicílio e a oferta de potenciais parceiros. A utilidade nesse caso não
depende dos bens comprados pelo domicílio, mas sim dos bens produzidos pelo
domicílio, como qualidade das refeições, qualidade e quantidade de filhos,
prestígio, recreação, companheirismo, amor e saúde. Como é possível perceber,
esses bens não são quantificáveis como bens de consumo, mas Becker_(1981)
assume que se pode colocá-los todos em uma função agregada (Z).
De acordo com Becker_(1981), as associações no mercado matrimonial representam
a busca de um parceiro que aumenta a utilidade de ambos, independentemente se o
fator é financeiro, biológico ou psicológico. No entanto, a composição
populacional, assim como outras forças sociais, funciona como um fator
importante que afeta a busca pelo parceiro. Dessa forma, se os indivíduos
pertencem a grupos mais populosos, maiores são as chances de se encontrarem
pessoas com características semelhantes formando uma união endogâmica. Se o
indivíduo pertence a uma população menor, suas chances são mais restritas,
podendo haver maiores chances de uma união exogâmica. Isso é o que propõe a
teoria de Blau_e_Schwartz_(1984), dado que os casamentos ocorrem
aleatoriamente, mas existem questões sociais e demográficas que afetam essas
escolhas. A literatura relata que as taxas de endogamia e exogamia observadas
em qualquer sociedade são produtos de forças sociais relacionadas: preferências
e vontades individuais; influências dos grupos ou normas sociais; e
características estruturais dos mercados matrimoniais (RIBEIRO;_SILVA,_2009).
Os trabalhos de Ribeiro_e_Silva_(2009) e Longo_(2011) são os mais recentes que
utilizam o Censo Demográfico de 2000 para estudar os padrões de associações dos
casais heterossexuais no Brasil. Ribeiro_e_Silva_(2009) escolheram as variáveis
cor/raça e escolaridade para identificar as barreiras existentes entre as
uniões. Além disso, os autores utilizam dados dos Censos Demográficos de 1960
até 2000 como forma de verificar as diferenças dos padrões em diversos
períodos, indicando um aumento nos casamentos inter-raciais no Brasil ao longo
do tempo e uma diminuição das barreiras educacionais entre os casais. Além
disso, eles destacam ainda que há uma redução das barreiras entre brancos e
pardos maior do que entre pardos e pretos. Mais do que isso, essas tendências
são independentes dos níveis educacionais das pessoas.
Longo_(2011) investigou as formas de associação dos casais a partir das
variáveis cor/ raça, escolaridade e religião dos cônjuges, de forma a
demonstrar como ocorre a seletividade das mulheres entre 20 e 29 anos no
Brasil. Os resultados encontrados pela autora tendem para as mesmas conclusões
feitas por Ribeiro_e_Silva_(2009). No entanto, os estudos de Longo_(2011) vão
mais a fundo nas questões de escolaridade, raça e religião, fazendo uma relação
entre as variáveis com modelos log-lineares e topológicos. Os resultados dos
modelos revelam que, no caso da escolaridade, um indivíduo de cor/raça de menor
status social tem mais chance de se unir a um parceiro de uma cor/raça de maior
status social quando as diferenças nos níveis de escolaridade compensarem essas
diferenças raciais. Isso demonstra que, embora haja uma diminuição nas
barreiras raciais nas uniões, o fator escolar é ainda muito forte, sendo
utilizado como compensatório no status social. Em relação à religião, os
resultados demonstraram seu forte poder na escolha do parceiro e não pode ser
usada como característica de troca entre diferenças raciais. Dessa forma,
percebe-se que, no Brasil, as barreiras de religião perpassam as barreiras de
escolaridade e raça em se tratando da rigidez, mostrando claramente o peso que
essa característica tem na formação das famílias.
No que se refere à literatura internacional sobre casais do mesmo sexo, há
evidências que indicam uma diferença na forma de escolha do parceiro quando
comparados aos casais de sexos opostos (BADGETT,_2001). Alguns autores explicam
que essas diferenças devem-se à especialização de sexo na divisão sexual do
trabalho, o que não ocorre com tanta frequência entre casais do mesmo sexo.
Jepsen_e_Jepsen_(2002) utilizaram dados do Censo de 1990 para estudar a
seletividade marital entre casais homossexuais e heterossexuais nos Estados
Unidos. Os autores abordam a diferença de seletividade entre quatro tipos de
casais: casais de homens, casais de mulheres, casais de sexos opostos
conviventes e casais de sexos opostos casados. Os resultados desse estudo
demonstram uma clara diferença entre as preferências de características para
cada tipo de casal. Em relação às variáveis cor/raça e idade, observou-se que
os coeficientes de correlação são maiores entre os casais de sexos opostos
casados e depois entre os casais de sexos opostos conviventes, sendo os menores
níveis de correlação dessas características entre casais de mesmo sexo. No
entanto, correlações para escolaridade não mostraram nenhuma distinção entre os
tipos de casais. Já para as características de mercado de trabalho, como ganhos
por hora, renda e horas trabalhadas, as correlações menores ocorrem para casais
de sexos opostos casados, seguidos por casais de sexos opostos conviventes,
enquanto as maiores são verificadas para casais de mesmo sexo. Por fim, os
autores chegam à conclusão de que os resultados sugerem que os casais de todos
os tipos preferem pessoas com características similares às deles, tanto para
variáveis pessoais como para aquelas de mercado de trabalho. O estudo de Jepsen
e_Jepsen_(2002) demonstra que a composição de gênero do casal influenciará nas
preferências ditas de mercado de trabalho. Isso sugere uma distinção na divisão
sexual do trabalho entre casais do mesmo sexo, que, segundo os estudos citados,
tende a não seguir os padrões heteronormativos.
Metodologia
O primeiro método utilizado nesse estudo corresponde às tabelas de contingência
usuais em trabalhos sobre seletividade marital, as quais possibilitam fazer o
cruzamento das características entre os responsáveis2 pelos domicílios e seus
cônjuges, bem como analisar a distribuição dessas associações na tabela. As
uniões ocorrem de duas formas: quando indivíduos de características semelhantes
se unem, chamada de endogamia ou homogamia; e quando ocorre a união entre
indivíduos com características distintas, conhecida como exogamia ou
heterogamia. Após a padronização das tabelas por meio do método IPF (Iteractive
Proportional Fitting),3 são calculadas as taxas de endogamia e exogamia na
população, proporcionando uma melhor visualização do caráter endogâmico ou
exogâmico dos casais em relação às características analisadas.
Partindo das tabelas de contingência, a metodologia utilizada de modelos log-
lineares avança, ao permitir a decomposição dos efeitos de tamanho dos grupos
na população do efeito da associação estatística entre características dos
cônjuges na escolha marital. Essa separação de efeitos é importante, pois
revela as preferências individuais e/ou normas sociais dos grupos que
estabelecem os padrões das uniões.
O modelo log-linear capta ambos os efeitos: "principal" e "interação". O modelo
que contém todos os efeitos possíveis é chamado de modelo saturado, o qual
reproduz perfeitamente a tabela original de frequências observadas. Neste
modelo, o número de parâmetros independentes é igual ao número de células da
tabela de contingência. O modelo saturado é o seguinte:
Onde: Fij é a frequência esperada na célula ij; η refere-se à média geométrica
das frequências em cada célula da tabela (este termo assemelha-se ao intercepto
da equação de regressão linear); os termos τiC τjO são efeitos das margens ou
distribuições de associações sobre a frequência na célula ij; e τijCO
corresponde aos efeitos da interação das distribuições de associações sobre a
frequência na célula ij.
Base de dados
A base de dados do Censo Demográfico de 2010 utilizada é composta de 64.451
casais4 do mesmo sexo e 36.201.272 casais de sexos opostos. É importante
ressaltar que o Censo Demográfico de 2010 só permite captar casais residentes
no mesmo domicílio. Logo, deve-se ter em mente essa limitação dos dados quanto
ao número de casais tanto heterossexuais quanto homossexuais no país. Dessa
forma, as análises feitas nesse trabalho dizem respeito aos casais
corresidentes tanto heterossexuais como homoafetivos.
Decidiu-se manter os indivíduos com idades de 18 a 65 anos ou mais, que
posteriormente foram subdivididos em grupos etários quinquenais. A decisão por
esse corte etário está relacionada com a perda de observações e também pelo
fato de se estar analisando a seletividade em relação ao grupo etário.
Portanto, ao se restringir a faixa etária estudada poder-se-ia estar
influenciando as taxas de exogamia entre os casais. É claro que essa decisão
influi na variável de escolaridade, em função do seu caráter mutável ao longo
dos anos. Como não há dados sobre a data da união dos casais, a semelhança ou
disparidade de escolaridade pode ter ocorrido posterior à união. Argumenta-se
que, devido a essa limitação de informação, optou-se por estudar as escolhas
dos casais de estarem unidos em 2010.
A variável de nível de instrução é a mesma existente no banco de dados do Censo
de 2010,5 sendo apenas substituídas as nomenclaturas do IBGE para as categorias
pelas seguintes entre parênteses: sem instrução e fundamental incompleto (0 a 7
anos); fundamental completo e médio incompleto (8 a 10 anos); médio completo e
superior incompleto (11 a 14 anos); e superior completo (15 anos ou mais). A
escolha por essa denominação advém de uma melhor noção de quantos anos de
estudo têm as pessoas em cada categoria.
Análise descritiva
A descrição da composição dos grupos estudados revela semelhanças e
disparidades entre os casais. Esses diferencias podem indicar possíveis
comportamentos quanto à escolha do parceiro. No entanto, somente a partir das
taxas de endogamia e exogamia, além dos modelos log-lineares, pode-se analisar
de maneira mais completa as uniões estabelecidas entre os casais. A Tabela_1
revela que o nível de instrução dos casais homossexuais tem uma distribuição
quase que homogênea entre os níveis escolares, tendo uma concentração maior
(39,45% e 40,55%) na faixa de 11 a 14 anos de estudo. Já entre os casais
heterossexuais há uma maior concentração (49,99% e 47,97%) no nível de 0 a 7
anos de estudo. Black,_Sanders_e_Taylor_(2007), utilizando o Censo de 2000,
obtiveram resultados semelhantes sobre a escolaridade de casais homossexuais
nos EUA, que também são mais escolarizados do que os heterossexuais.
TABELA 1 Distribuição dos casais heterossexuais e homossexuais, segundo nível
de instrução, cor/raça e grupo etário Brasil – 2010. Em porcentagem
Variáveis Casais heterossexuais ?asais homossexuais
ResponsávelCônjuge ?esponsávelCônjuge
Nível de Instruç??
0 a 7 anos 49,99 47,97 18,04 19,36
8 a 10 anos 15,76 16,44 14,17 15,6
11 a 14 anos 24,12 25,49 39,45 40,55
15 anos ou mais 10,14 10,11 28,33 24,49
Cor/raça
Preta 8,49 7,19 9,01 8,72
Branca 50,34 51,13 57,12 57,6
Parda 41,17 41,67 33,87 33,68
Grupos etários
18 a 24 anos 5,05 8,45 11,39 18,87
25 a 34 anos 23,14 26,04 36,45 40,08
35 a 44 anos 25,56 25,32 30,43 25,48
45 a 54 anos 21,41 20,02 17,16 12,08
65 anos ou mais 10,7 7,92 0,77 0,70
Total (N) 36.201.272 36.201.272 64.451 64.451
Fonte: IBGE. Censo Demográfico 2010.
Em relação à cor/raça é perceptível uma maior porcentagem de brancos entre os
casais homossexuais (57,12% e 57,6%), o que pode estar correlacionado com a
alta escolaridade desse grupo. Black,_Sanders_e_Taylor_(2007) também analisaram
a composição racial dos casais homossexuais nos EUA, encontrando, na amostra
utilizada por eles, 77,1% de gays brancos e 84,4% de lésbicas brancas. No
entanto, não há como comparar esses resultados com o caso brasileiro, pois a
variável cor/raça para os americanos tem conotação diferente da utilizada no
Brasil.
No Brasil, os responsáveis e cônjuges homossexuais são considerados jovens, com
36,45% e 40,08% na faixa de 25 a 34 anos, respectivamente. Esse fator torna
evidente a diferença etária em relação aos casais heterossexuais, que estão
concentrados na faixa de 35 a 44 anos. Baumle,_Compton_e_Poston_Jr._(2009)
fizeram estudos sobre casais homossexuais utilizando o Censo de 2000 dos
Estados Unidos. Os resultados mostraram que os casais homossexuais,
distribuídos em grupos etários de menos de 30 anos, 30 a 49 anos, 50 a 69 anos
e 70 anos ou mais, concentravam-se (62,6%) na faixa de 30 a 49 anos de idade e
ainda 18% entre 50 e 69 anos. Isso mostra que, comparativamente, nos Estados
Unidos os casais homossexuais encontram-se numa faixa etária mais velha.
Quando analisadas as características dos responsáveis e cônjuges
heterossexuais, observam-se semelhanças nas distribuições de cada variável
estudada. Os responsáveis e cônjuges homossexuais também seguem distribuições
semelhantes, apresentando algumas diferenças quanto à distribuição por grupos
etários, em que os cônjuges homossexuais têm uma porcentagem relativamente
maior no grupo de 18 a 24 anos (18,87%) do que os responsáveis (11,39%).
Padrões de associação dos casais
Nessa seção são retratados os padrões de associações entre os casais tanto
homossexuais quanto heterossexuais a partir de tabelas de contingência. Após os
cruzamentos das características escolhidas para a análise, foram obtidas as
chamadas taxas de endogamia e exogamia entre os casais heterossexuais e
homossexuais, apresentadas no Gráfico_1. Os resultados foram em sua maioria
esperados, uma vez que a endogamia, como a literatura já mostrou (BECKER,_1981;
RIBERIO;_SILVA,_2009; LONGO,_2011; KALMIJN;_FLAP,_2001), é a forma mais comum
de associação. Entre os resultados obtidos, a única taxa de exogamia que
ultrapassa a de endogamia está relacionada ao grupo etário para os casais
homossexuais.
[/img/revistas/rbepop/v32n1//0102-3098-rbepop-32-01-0121-gf01.jpg]Fonte: IBGE.
Censo Demográfico 2010.
GRÁFICO 1 Taxas de endogamia e exogamia dos casais heterossexuais e
homossexuais, segundo grupo etário, cor/raça e escolaridade Brasil – 2010
De acordo com os resultados no Gráfico_1, em se tratando de escolaridade, cor/
raça e idade, as taxas de endogamia para os casais homossexuais são menores
quando comparadas às dos heterossexuais. Em outras palavras, os casais
homossexuais demonstram ser menos endogâmicos nas formas de associações, dadas
essas características. Essa maior exogamia entre esses casais pode ser devida a
uma primeira transgressão das normas sociais de associação, que seria a relação
homoafetiva. Logo, uma segunda ruptura da norma seria mais fácil de ocorrer
(ROSENFELD;_KIM,_2005; SCHWARTZ;_GRAF,_2009). Entretanto, mesmo sendo menos
endogâmicos, esses casais ainda seguem o padrão de endogamia que existe entre
os casais heterossexuais em relação à escolaridade e cor/raça.
As taxas de endogamia e exogamia permitem uma visão sintética sobre os padrões
de seletividade. Dessa forma, analisar as tabelas de contingência por
característica contribui para um olhar mais específico em relação às variáveis
escolaridade, cor/raça e grupo etário. Nas tabelas de contingência é possível
perceber em quais categorias estão concentradas as uniões mais endogâmicas ou
exogâmicas.
Analisando as tabelas de contingência por nível de instrução (Tabela_2),
verifica-se uma concentração de associações nos níveis extremos de
escolaridade, ou seja, nas faixas de 0 a 7 anos de estudo e 15 anos ou mais há
maiores porcentagens de casais ditos endogâmicos tanto para os heterossexuais
(64,76% e 68,61%) como para os homossexuais (60,11% e 68,06%).
TABELA 2 Tabelas de contingência padronizadas dos casais heterossexuais e
homossexuais, por nível de instrução Brasil – 2010. Em porcentagem
Responsável Cônjuge heterossexual
heterossexual Nível de instrução
0 a 7 anos 8 a 10 anos 11 a 14 anos 15 anos ou mais Total
Nível de
instrução
0 a 7 anos 64,76 20,97 10,99 3,28 100,00
8 a 10 anos 21,21 50,32 20,59 7,88 100,00
11 a 14 anos 11,08 21,27 47,42 20,23 100,00
15 anos ou mais 2,95 7,44 21,00 68,61 100,00
Total 100,00 100,00 100,00 100,00
N. abs. 17.364.142 5.950.822 9.227.327 3.658.981 36.201.272
Responsável Cônjuge homossexual
homossexual Nível de instrução
0 a 7 anos 8 a 10 anos 11 a 14 anos 15 anos ou mais Total
Nível de
instrução
0 a 7 anos 60,11 25,52 11,19 3,18 100,00
8 a 10 anos 24,76 49,64 18,45 7,16 100,00
11 a 14 anos 12,81 18,43 47,16 21,60 100,00
15 anos ou mais 2,32 6,42 23,20 68,06 100,00
Total 100,00 100,00 100,00 100,00
N. abs. 12.480 10.054 26.135 15.782 64.451
Fonte: IBGE. Censo Demográfico 2010.
Além da concentração de uniões nos extremos das categorias educacionais, a
Tabela_2 mostra que na faixa de 11 a 14 anos de estudo há uma distribuição de
uniões exogâmicas com porcentagens menos díspares do que nas outras faixas
educacionais. Essa forma de distribuição de uniões ocorre tanto entre
heterossexuais como entre os homossexuais.
Ademais, no grupo de 11 a 14 anos de estudo, observam-se as menores
porcentagens de uniões endogâmicas por nível de instrução (47,42% e 47,16%)
para os dois tipos de casais. Esse resultado aponta para uma maior transposição
de barreiras sociais na faixa de 11 a 14 anos de estudo em relação às outras
categorias educacionais.
A análise das uniões por cor/raça entre os casais heterossexuais e
homossexuais, mostrada na Tabela_3, é bastante similar ao se comparar a
diagonal central de cada tabela de contingência. Assim, verifica-se uma maior
endogamia entre pretos heterossexuais (72,79%) e homossexuais (64,32%).
TABELA 3 Tabelas de contingência padronizadas dos casais heterossexuais e
homossexuais, por cor/raça Brasil – 2010. Em porcentagem
Cônjuge heterossexual
Responsável heterossexualCor/raça
Preto Branco Pardo Total
Cor/raça
Preto 72,79 11,97 15,24 100,00
Branco 12,70 66,72 20,57 100,00
Pardo 14,51 21,30 64,19 100,00
Total 100,00 100,00 100,00
N. abs. 2.604.291 18.510.886 15.086.095 36.201.272
Cônjuge homossexual
Responsável homossexual Cor/raça
Preto Branco Pardo Total
Cor/raça
Preto 64,32 16,31 19,36 100,00
Branco 18,89 56,92 24,18 100,00
Pardo 16,79 26,76 56,45 100,00
Total 100,00 100,00 100,00
N. abs. 5.622 37.125 21.704 64.451
Fonte: IBGE. Censo Demográfico 2010.
É interessante verificar que os valores de exogamia de cor/raça entre os
homossexuais demonstram que as barreiras de associação entre esses casais
parecem ser menos intensas do que para os casais heterossexuais. Isso fica
evidente quando se nota a porcentagem maior de uniões entre brancos e pretos do
que entre pretos para casais homossexuais. Ao se fazer o comparativo para
heterossexuais, as porcentagens de uniões entre brancos e pretos são inferiores
àquelas observadas para homossexuais. Logo, esses resultados diferem um pouco
dos padrões de seletividade marital entre casais heterossexuais, o que deixa
margem para um aprofundamento no entendimento das forças sociais que atuam
entre os casais homoafetivos.
O quesito idade como característica de escolha dos parceiros já foi estudado
por outros autores, como Bergstrom_e_Bagnoli_(1993) em relação a casais
heterossexuais, e Hayes_(1995), que fez um estudo sobre as preferências de
idade entre parceiros homossexuais. Bergstrom_e_Bagnoli_(1993) colocam uma
idade média de casamento para homens maior do que para mulheres nas relações
heterossexuais. Isso porque, segundo os autores, as mulheres são valorizadas
por suas habilidades para cuidar da casa e dos filhos, enquanto os homens são
valorizados pela capacidade de "prover a família". A literatura que trabalha
com seletividade entre casais homossexuais em relação à idade mostra que homens
têm preferência por parceiros mais novos, enquanto as mulheres não demonstram
essa preferência (HAYES,_1995). De acordo com os resultados da Tabela_4,
percebe-se uma alta endogamia nos grupos etários das extremidades. No entanto,
o Gráfico_1apontou para uma maior taxa de exogamia entre os casais
homossexuais, sendo que, na Tabela_4, essas taxas estão concentradas nos níveis
etários próximos da diagonal central. Logo, existe uma diferença etária entre
os casais, mas é preciso investigar posteriormente quão grande é esse hiato.
TABELA 4 Tabelas de contingência padronizadas dos casais heterossexuais e
homossexuais, por grupos etários Brasil – 2010. Em porcentagem
Cônjuge heterossexual
Responsável Cor/raça
heterossexual 18 a 24 25 a 34 35 a 44 45 a 54 55 a 64 65 anos Total
anos anos anos anos anos ou mais
Grupos
etários
18 a 24 anos 68,24 24,91 4,68 1,33 0,46 0,32 100,00
25 a 34 anos 27,30 49,74 17,57 3,65 1,13 0,57 100,00
35 a 44 anos 3,63 21,55 51,10 17,93 4,16 1,62 100,00
45 a 54 anos 0,65 3,09 22,81 51,00 17,89 4,57 100,00
55 a 64 anos 0,14 0,58 3,18 23,10 55,05 17,99 100,00
65 anos ou 0,04 0,13 0,66 2,99 21,31 74,92 100,00
mais
Total 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00
N. abs. 3.059.262 9.428.112 9.165.221 7.246.406 4.433.600 2.868.671 36.201.272
Cônjuge homossexual
Responsável Cor/raça
homossexual 18 a 24 25 a 34 35 a 44 45 a 54 55 a 64 65 anos Total
anos anos anos anos anos ou mais
Grupos
etários
18 a 24 anos 58,10 25,84 10,42 5,04 0,41 0,19 100,00
25 a 34 anos 28,17 38,37 19,42 10,22 3,41 0,42 100,00
35 a 44 anos 8,65 22,61 29,43 22,18 10,97 6,17 100,00
45 a 54 anos 3,36 10,05 26,13 36,05 20,13 4,28 100,00
55 a 64 anos 1,29 2,93 9,73 21,71 40,17 24,17 100,00
65 anos ou 0,48 0,23 4,88 4,80 24,89 64,73 100,00
mais
Total 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00
N. abs. 5.622 37.125 21.704 64.451
Fonte: IBGE. Censo Demográfico 2010.
Modelos log-lineares
Nessa parte são analisados os modelos de melhor ajuste, ou seja, aqueles que,
segundo as estatísticas, demonstram quais características têm maior importância
em relação aos padrões de seletividade dos casais analisados. Inicialmente é
feita a estimação do modelo de independência que é quando não se controla a
probabilidade de ocorrência das associações por nenhuma variável.
Em seguida, adicionam-se variáveis de controle em cada modelo, como cor/raça,
escolaridade e idade. Depois são estimados modelos com interações entre as
variáveis de forma a perceber se uma variável em relação à outra explica mais
os padrões do que elas separadamente (Tabela_5). Para analisar os modelos e
escolher aquele que se ajusta melhor aos dados é preciso considerar o menor
valor de BIC, o maior valor de R2 e os graus de liberdade do modelo (AGRESTI,
1990). O R2 é uma estatística utilizada por Andrade_(1997) que é feita a partir
dos valores de G2 dos modelos e pode ser calculado da seguinte maneira:
[/img/revistas/rbepop/v32n1//0102-3098-rbepop-32-01-0121-e02.jpg]
TABELA 5 Resumo das estatísticas de ajustes dos modelos log-lineares
Modelos G2 ΔG2 gl ΔglBIC R2 (%)
Casal homossexual
Independência 7014.80 1272 -2078.90 0
Cor/raça 5946.10 1068.69 1268 4 -3118.99 15,23
Escolaridade 6540.24 474.55 1266 6 -2510.56 6,77
Cor e escolaridade 5482.34 1532.45 1262 10 -3539.86 21,85
Cor e idade 4834.64 2180.16 1258 14 -4158.97 31,08
Cor, escolaridade e idade 4276.98 2737.81 1252 20 -4673.73 39,03
Modelo de interação
Cor/raça 5607.66 1407.14 1264 8 -3428.84 20,06
Escolaridade 5848.34 1166.46 1257 15 -3138.12 16,63
Cor e escolaridade 5207.14 1807.65 1250 22 -3729.27 25,77
Cor e idade 4681.57 2333.22 1238 34 -4169.05 33,26
Cor, escolaridade e idade 3235.87 3778.93 1216 56 -5457.48 53,87
Casal heterossexual
Independência 16572198.46 4677 1.65E+07 0
Cor/raça 13805672.36 2766526.10 4673 4 1.38E+07 16,69
Escolaridade 13118156.75 3454041.71 4671 6 1.31E+07 20,84
Cor e escolaridade 10187954.48 6384243.98 4667 10 1.01E+07 38,52
Cor e idade 12534636.12 4037562.34 4663 14 1.25E+07 24,36
Cor, escolaridade e idade 8781930.01 7790268.45 4657 20 8742575 47,01
Modelo de interação
Cor/raça 12527496.91 4044701.55 4669 8 1.25E+07 24,41
Escolaridade 11311176.22 5261022.24 4662 15 1.13E+07 31,75
Cor e escolaridade 9934077.16 6638121.30 4655 22 9894739 40,06
Cor e idade 12483572.37 4088626.09 4643 34 1.24E+07 24,67
Cor, escolaridade e idade 3981191.63 12591006.83 4620 57 3942150 75,98
Fonte: IBGE. Censo Demográfico 2010.
Dessa maneira, para casais homossexuais, o modelo que melhor explica o padrão
de associação entre os parceiros é o de interação entre cor, escolaridade e
idade, que possui o menor BIC (-5457.48) e um R2 de 53,87%. A interpretação
desse resultado é mostrar que as três variáveis têm papel importante no
processo de seletividade dos casais. No entanto, o modelo controlado por essas
variáveis sem o fator de interação também se ajusta muito bem aos dados com um
BIC (-4673.73) e um R2 de 39,03%, mas tem mais graus de liberdade do que o
modelo de interação. Logo, é preciso levar em conta que, no modelo de
interação, perdem-se 56 graus de liberdade e, no sem interação, perdem-se
apenas 20. Esse fator deve ser considerado, já que o BIC é bastante sensível
aos graus de liberdade em grandes amostras.
Entre os casais heterossexuais, o melhor modelo de ajuste é o que tem cor/raça,
escolaridade e grupo etário como variáveis de controle com interações, pois
esse modelo possui o menor BIC (3942150) e um R2 de 75,98%. Esses resultados
mostram que, tanto para parceiros heterossexuais como para os homossexuais, as
variáveis cor/raça, escolaridade e idade influenciam os padrões de associações
entre os casais. É claro que os outros modelos dão pistas de qual variável tem
uma influência provavelmente maior nas escolhas conjugais para cada tipo de
casal. Esse é o caso do modelo sem interação entre cor/raça, escolaridade e
grupo etário para casais heterossexuais. Esse modelo, se comparado com os
outros, tem um BIC baixo (8742575) e um R2 de 47,01%, que é um valor maior que
o dos outros modelos. No entanto, não há como afirmar qual variável tem impacto
maior nos padrões, podendo-se apenas supor a partir dos modelos.
Os resultados dos modelos demonstram que as características educacionais entre
os casais homossexuais não constituem sozinhas uma barreira para as associações
desses casais. As características de cor/raça e idade parecem ter uma
importância maior nas decisões dos parceiros. É claro que a educação não deixou
de ser um fator de seletividade, mas simplesmente para esse grupo as
associações dependem das outras características também. Entre os casais
heterossexuais isso não acontece, já que a escolaridade, juntamente com a cor/
raça como variáveis de interação, é o segundo melhor modelo de ajuste. Nesse
sentido, os casais heterossexuais dão uma importância muito grande ao nível de
instrução do parceiro, assim como a cor/raça.
Considerações finais
Esse artigo teve por objetivo testar a hipótese da seletividade marital entre
casais homossexuais e heterossexuais no Brasil. O estudo das similaridades e
diferenças entre esses grupos é relevante, pois se trata da tentativa de
compreender como esses arranjos familiares se comportam em relação à formação
de um casal.
Por meio das tabelas de contingência em relação ao nível de instrução, fica
claro o comportamento semelhante entre os dois tipos de casais na formação de
uniões endogâmicas. É importante apontar que, mesmo com um corte etário de 18 a
65 anos ou mais, os resultados obtidos em relação à escolaridade são próximos
aos encontrados em outros trabalhos (RIBEIRO;_SILVA,_2009; LONGO,_2011) que
restringiram o grupo etário a fim de controlar a questão da mutabilidade da
variável de escolaridade ao longo do tempo.
Em relação à cor/raça prevalece a endogamia entre os dois tipos de casais, mas
novamente as barreiras de união entre eles são diferentes. Para os
heterossexuais, as barreiras educacionais são bastante rígidas em uniões entre
brancos com pretos, enquanto entre pardos e brancos essa barreira é menos
intensa, mostrando que tal resultado está de acordo com os estudos de Ribeiro_e
Silva_(2009). Entre os casais homossexuais, as barreiras de associação são mais
flexíveis em se tratando de uniões entre brancos e pretos quando comparados aos
padrões dos casais heterossexuais.
A taxa de exogamia só é maior entre casais homossexuais referentes ao grupo
etário, o que demonstra, juntamente com os resultados dos modelos log-lineares,
que a idade para os casais homossexuais é uma característica importante para a
escolha do parceiro. Já entre os casais heterossexuais a idade é uma
característica complementar, dado o valor da taxa de endogamia nesse grupo, com
menor peso de acordo com os modelos com melhor ajuste.
Dessa maneira, a partir dos resultados obtidos nesse trabalho, percebe-se que
existem dois grupos em questão que estão inseridos e influenciados pelas mesmas
forças sociais, mas que, devido a algumas diferenças nas escolhas conjugais,
fazem com que se tenham distinções na formação do casal. Esse tipo de
inferência está de acordo com a literatura sobre seletividade marital para
casais heterossexuais (BECKER,_1981; RIBEIRO;_SILVA,_2009; LONGO,_2011). No
entanto, deve ser lembrado novamente que, como não havia estudos no Brasil
sobre os comportamentos dos casais homossexuais em relação aos padrões de
seletividade, não há como se ter certeza ainda dos desdobramentos dessas
escolhas ao longo do tempo. Diante disso, é preciso investir em mais estudos e
pesquisas que captem essas relações para que se amplie o conhecimento na área
de seletividade marital, fundamental para a compreensão mais ampla da
constituição dos arranjos familiares.
1Entre os trabalhos de sociólogos, o artigo de Kalmijn e Flap (1998) faz uma
revisão dos estudos que tratam de seletividade marital na área da sociologia.
2Segundo o IBGE_(2010,_p._30) a pessoa responsável pelo domicílio é: "a pessoa
(homem ou mulher), de 10 anos ou mais de idade, reconhecida pelos moradores
como responsável pela unidade domiciliar".
3Para mais informações sobre o método, ver Agresti_(1990).
4Foram retirados da amostra os indivíduos que não declararam escolaridade, cor/
raça ou idade. Além disso, foram excluídos da amostra indivíduos que se
declararam amarelos ou indígenas.
5Essa é uma variável auxiliar, estimada por aproximação pelo IBGE, visto que o
Censo Demográfico de 2010 não captou a informação sobre última série concluída
com aprovação para pessoas que não frequentavam a escola no momento da
pesquisa.