Múltiplos do Cativeiro: Casamento, compadrio e experiência comunitária numa
propriedade escrava no Grão-Pará (1840-1870)
Por longo tempo, a escravidão negra na Amazônia representou uma zona de
opacidade na historiografia brasileira. Uma ideia fortemente arraigada de que a
economia das antigas capitania e província do Grão-Pará, basicamente
extrativista, havia sido suportada pela mão de obra indígena e, posteriormente,
pela mão de obra de retirantes nordestinos, acabou relegando outras atividades
econômicas e formas de trabalho a um segundo plano e encobrindo, na
historiografia, a sua importância no funcionamento e na dinâmica da economia
amazônica.1 No entanto, como estudos um pouco mais recentes vêm demonstrando,
os escravos negros não apenas figuraram, em determinadas conjunturas, enquanto
uma parte expressiva da população paraense, como também constituíram, até pelo
menos os meados do século XIX, uma força produtiva de grande importância -
principalmente para a agricultura e a pecuária no Grão-Pará.2
Muito embora esse quadro tenha sido (e, em alguma medida, continue sendo)
matizado por novos estudos, a família escrava, em particular, permanece como um
elemento ainda pouquíssimo explorado. Excetuando-se, aqui, alguns apontamentos
feitos nos trabalhos de Luciana Marinho,3 Andréa Pastana4 e Walter Hawthorne,5
e, igualmente, em alguns dos nossos trabalhos,6 praticamente nada foi produzido
a respeito dessa temática, que é de grande importância para o entendimento da
demografia da escravidão no Grão-Pará oitocentista.7 Considerando-se que a
província esteve, ao que tudo indica, um tanto quanto alheia ao tráfico interno
de escravos nos meados do Oitocentos - não tendo sido ainda apresentadas
evidências consistentes da entrada ou da saída de uma expressiva quantidade de
cativos -, a família escrava, em sentido lato, ganha destaque por ter estado,
muito provavelmente, no cerne dos mecanismos de reprodução demográfica dos
cativos paraenses ao longo de grande parte do século XIX.
No esforço de ajudar a suprir esta lacuna e de matizar a compreensão acerca da
família escrava no Grão-Pará oitocentista, o presente artigo tem como objetivo
analisar as práticas de casamento e de compadrio dos cativos do Engenho Bom
Intento, entre 1840 e 1870. Confrontando essas práticas com as tendências
apresentadas pelos escravos da cidade de Belém, e lançando mão do cruzamento
entre os registros paroquiais de batismo e de casamento concernentes àquele
plantel e o inventário post-mortem do proprietário do Engenho,8 analisamos como
o casamento e o compadrio atuaram na conformação de uma comunidade escrava que
transbordava os próprios limites do cativeiro, compreendendo escravos de outras
propriedades, os forros e a população livre de Bujaru. O jogo de escalas que
ora propomos possibilita-nos, por um lado, evidenciar as influências
estruturais (e conjunturais) daquele período sobre uma realidade específica e,
por outro lado, relativizar as tendências apresentadas pela população cativa de
Belém no que diz respeito ao casamento e ao compadrio.
O artigo encontra-se estruturado em três seções. Na primeira delas, interessa-
nos apresentar alguns aspectos gerais (localização, importância econômica e
estrutura física) do Engenho Bom Intento, bem como parte dos mecanismos de
reprodução e o perfil dos escravos dessa propriedade em função dos marcadores
de gênero, geração e etnia. Na segunda seção, objetivamos examinar as práticas
de casamento em si, com foco nas preferências matrimoniais, no perfil dos
cativos que tiveram acesso ao casamento legítimo e, novamente, nos seus
mecanismos de reprodução. Na última seção, a nossa reflexão incide sobre o
compadrio, com a finalidade de entrevermos as estratégias que permearam a
escolha dos padrinhos e a importância do parentesco espiritual na configuração
da tessitura social existente no seio daquela comunidade escrava.
O Engenho Bom Intento: plantel escravo, estrutura e cotidiano
O Engenho Bom Intento, pertencente ao português Joaquim Antônio da Silva,
estava localizado às margens do rio Guamá, na altura do Distrito de Bujaru
(ver: Figura_1). Situava-se em um ambiente predominantemente rural,
caracterizado pela presença de posseiros (ainda fruto das particularidades da
colonização portuguesa nessa região) e pela marcante concentração de cativos.9
Com cerca de 250 léguas de extensão e delimitada pelas terras de Manoel Joaquim
Pinto de Paiva e de Pedro Batista de Sousa Leal Aranha, a propriedade possuía,
no início dos anos de 1860: uma casa de varanda; um oratório; um engenho;
plantações de cana e de arroz, animais diversos e ranchos para moradia dos seus
157 escravos. Sob a administração direta de Januário Antônio da Silva, irmão de
Joaquim, o Engenho Bom Intento dedicava-se à extração da madeira e à produção
do arroz e de derivados da cana.
Figura 1 Engenhos no Estuário AmazônicoFonte: Fernando Luiz Tavares Marques,
"Modelo da agroindústria canavieira colonial no estuário amazônico: estudo
arqueológico de engenhos dos séculos XVIII e XIX" (Tese de Doutorado,
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2004), p.XXIX.
No engenho não havia senzala, e os escravos habitavam em "ranchos" próprios
para sua moradia. Esses "ranchos" nada mais eram do que cabanas rústicas feitas
de material leve, como a palha ou ramos de árvore. Foram, ao lado da casa
principal, morada do administrador do Bom Intento, Januário Antônio da Silva, o
único tipo de moradia especificado no inventário de Joaquim. Nesse documento,
também não encontramos qualquer referência que pudesse indicar a presença de
pessoas livres morando na propriedade. Na descrição dos "ranchos", que poderiam
servir de moradia a esses indivíduos, especificou-se que eles se destinavam
somente aos cativos. Por sua vez, a descrição da casa principal também não faz
qualquer alusão a espaços destinados para uma população livre, que não ao
próprio Januário.
Se a presença de pessoas livres morando no Engenho Bom Intento é incerta, as
fontes permitem-nos assegurar, por outro lado, que a interação entre os
escravos dessa propriedade e as populações livre e forra que moravam na região
era relativamente contínua, assim como a sua interação com os cativos de outras
propriedades. Isso porque, em face da presença ainda pouco estruturada e
organizada da Igreja em Bujaru, o oratório e, anos mais tarde, a capela do Bom
Intento atuaram como espaços onde se realizavam as cerimônias de batismo e
casamento de grande parte da população local - e não apenas dos escravos ou dos
proprietários do engenho, como poderíamos imaginar à primeira vista. Em
verdade, na propriedade realizavam-se cerimônias coletivas que reuniam
indivíduos das mais distintas condições sociais: de uma população ainda
submetida ao regime do cativeiro ou dele recém-egressa, aos mais poderosos
escravistas da Zona Guajarina, como os já mencionados Manoel Joaquim Pinto de
Paiva e Pedro Leal Aranha.
Essa característica específica do Engenho Bom Intento impunha, aos eventos
ocorridos na propriedade, um atributo capaz de particularizar os parâmetros de
interação social dos seus escravos. A abertura à sociedade de Bujaru, ao mesmo
tempo em que ajudava a sedimentar uma base clientelista de poder local para
Januário Antônio da Silva em relação a uma população livre e pobre e,
especialmente, em relação aos demais escravistas da região que faziam uso
daquele espaço,10 acabava, também, por inscrever os cativos em um circuito sem
dúvida ainda mais amplo e complexo de sociabilidades, que não se cingia às
relações essencialmente endógenas ao ambiente do Engenho Bom Intento - i. é, às
relações experimentadas pelos escravos entre si e com o seu senhor de fato,
Januário Antônio da Silva.
Todavia, ainda que a ocorrência dos ritos batismais e nupciais nessa
propriedade tenha engendrado ocasiões importantes para a interação social dos
múltiplos segmentos que compunham a população de Bujaru, a sua realização não
deixou de satisfazer a uma distinção hierárquica. Em alguns dias, aconteciam
separadamente os batizados e os casamentos de pessoas de uma condição social
mais elevada - algumas delas, mais próximas do administrador do Engenho.
Envolviam, a título de exemplo, os familiares de alguns dos proprietários das
terras vizinhas ao Bom Intento que, por vezes, tinham Januário como padrinho de
batismo ou como testemunha de casamento. Nos outros dias, era a vez dos cativos
do Engenho Bom Intento, dos de propriedades vizinhas e da população livre da
região. Evidentemente, toda essa movimentação no Engenho não passaria
despercebida por Januário Antônio da Silva. A nosso ver, seria irreal supormos
que fizessem uso do oratório ou da capela do Bom Intento indivíduos cujas
presenças suas ou dos seus senhores desgostassem Januário.
Mais numerosas e corriqueiras, as cerimônias coletivas de batizado e de
casamento do segundo grupo (escravos do engenho, de demais proprietários e a
população livre da região) apresentavam uma sazonalidade característica, por
certo influenciada pela dinâmica produtiva e econômica do Engenho Bom Intento.
Como boa parte dos engenhos do estuário amazônico, o Bom Intento tinha as águas
das marés e das chuvas como força motriz. Indícios arqueológicos têm ajudado a
esclarecer a lógica desse mecanismo. Muitas vezes situados à margem de rios ou
igarapés caudalosos, alguns engenhos da Amazônia possuíam um complexo sistema
compartimentado de canais que os punha para funcionar.11 Embora se apropriassem
ainda da pluviosidade, eram as águas das marés que concebiam, com efeito, o seu
funcionamento; quanto mais altas as marés, maior seria, consequentemente, a
produtividade desses engenhos.
Considerando-se que, na região de Bujaru, o período de maior maré vai de
outubro a abril ou maio do ano seguinte, é perfeitamente compreensível a
aglutinação de cerimônias entre junho e setembro. Deixava-se para se realizar
os batizados e os casamentos no período em que o engenho era menos produtivo.
Nesse intervalo menos fecundo na produção do arroz e dos derivados da cana, a
predileção por determinados meses e dias para a realização das cerimônias
poderia ainda estar relacionada com os períodos das visitas pastorais ao
Engenho do Bom Intento, assim como à própria organização do trabalho dos
escravos no decorrer das semanas, dos meses e dos anos.
A propriedade não se destacava, entretanto, apenas como um local para os
batismos e casamentos das populações livre e escrava da região, mas sobressaía-
se, especialmente, como uma importante unidade produtiva na Zona Guajarina. Em
meio aos demais estabelecimentos agrícolas e manufatureiros da região de
Bujaru, cuja dinâmica econômica era suportada, em grande medida, pelo
escravismo, o Engenho Bom Intento sobrelevava-se por toda a sua expressividade
econômica e grande posse de cativos.12 Formava, ao lado de outros engenhos,
sítios e fazendas, a paisagem característica daquela região, que contrastava
com todo um universo de pequenos sitiantes que romperam "com a tendência de
monocultivo e ordenaram um sistema de policultivo (mandioca, arroz, milho,
feijão, algodão, café e outros) em pequenas extensões de terra com tendência à
dispersão e que [...] [mantinham] vínculos regulares com o mercado".13
No limiar da década de 1860, quando da feitura do inventário post-mortem de
Joaquim Antônio da Silva, a propriedade escrava do Engenho Bom Intento era
composta por 157 cativos, dos quais 15 foram alforriados pelas disposições
testamentárias do português. Contextualmente, tratava-se de uma propriedade de
grandes proporções, porém, havia poucos escravos em idade produtiva, um número
pequeno de especializados em algum ofício e uma quantidade razoável de cativos
acometidos por moléstias ou problemas físicos. Esses elementos tinham, decerto,
implicações diretas na produtividade econômica do Bom Intento e poderiam
condicionar, de múltiplas formas, os arranjos matrimoniais e as escolhas dos
compadres no seio daquela comunidade escrava. Mas, qual era, afinal, o perfil
dos escravos do Engenho Bom Intento? Havia, na propriedade, mais homens ou
mulheres? Jovens ou velhos? Crioulos ou africanos?
Dos 142 escravos remanescentes no Engenho, 65 eram do sexo masculino e 77 do
feminino, perfazendo uma razão de masculinidade geral de 84,4. Trata-se de uma
razão que pode ser considerada relativamente baixa, principalmente tendo em
vista a dimensão da propriedade, a sua localização em um ambiente
caracteristicamente rural e a sua principal atividade econômica; mas que
condizia com a razão de masculinidade geral dos escravos da chamada Zona
Guajarina - macrorregião em que se encontrava o Engenho Bom Intento.14 Ao que
parece, mais do que uma possível estratégia de composição de plantel referente
a um caso específico, a elevada representatividade das mulheres na população
escrava do Engenho Bom Intento, em particular, e na macrorregião onde estava
inscrita a propriedade, em geral, é um indicativo da importância que a
reprodução endógena dos cativos possuía, provavelmente já há algum tempo, para
a manutenção da escravidão no Grão-Pará.
Em relação ao Engenho Bom Intento, o impacto dessa reprodução se torna ainda
mais claro ao considerarmos a estrutura etária dos seus cativos. A pirâmide
sexo-etária deste grupo (Gráfico_1) evidencia tanto entre os homens, quanto
entre as mulheres, uma concentração nas idades mais altas e mais baixas. Se
tomarmos como parâmetro de escravos jovens os menores de 15 e de escravos
velhos os maiores de 50 anos,15 temos um quadro em que cerca de 70% (46) dos
homens e 55% (43) das mulheres da propriedade eram jovens ou velhos - segmento
em que se incluíam todos os cativos africanos presentes e que era constituído,
notadamente, por escravos com mais de 70 anos. Muito embora essa concentração
possa ser, em alguma medida, desdobramento de uma evasão de cativos em idade
adulta - aspecto ao qual nos ateremos mais adiante -, a alta natalidade e a
baixa mortalidade sugeridas pelo desenho do Gráfico_1 levam-nos a conjecturar a
incidência de um ocasional crescimento natural positivo entre os escravos dessa
propriedade.
[/img/revistas/afro/n50//0002-0591-afro-50-00093-gf2.jpg]
Gráfico 1 Pirâmide sexo-etária dos escravos do Engenho Bom IntentoFonte:
Inventário post-mortem de Joaquim Antônio da Silva.
A alta natalidade que possivelmente permeou a dinâmica demográfica dos escravos
do Engenho Bom Intento pode ter sido favorecida pelo excedente de mulheres em
idade reprodutiva existente na propriedade. Entre os escravos em idade adulta
(15-49 anos), existia uma proporção de duas mulheres para cada homem. Não
obstante a sua presença em maior número, as cativas do Bom Intento ainda
apresentavam uma elevada fecundidade, evidenciada pela expressiva razão
crianças/mulheres de 1.187,5 - índice comparável às suas correspondentes de
outras regiões do Brasil oitocentista que, a exemplo do Grão-Pará, dependiam em
muito da reprodução endógena dos escravos.16 No entanto, essas altas natalidade
e fecundidade dizem respeito, fundamentalmente, ao grande número de crianças e
de jovens no engenho. O que explicaria, por outro lado, o número pouco
expressivo de cativos em idade adulta e a grande quantidade de velhos nessa
propriedade?
No que respeita à compreensão da pouca expressividade dos escravos em idade
adulta no Engenho Bom Intento, o recorte de gênero é importante na medida em
que nos possibilita relativizar a distribuição dos cativos de acordo com os
segmentos etários. Posto que a razão de masculinidade geral dos seus escravos
fosse de 84,4 - um índice que aponta para uma predominância feminina no plantel
-, existiam grandes oscilações entre as razões de masculinidade de cada
segmento. Entre os jovens (0-14 anos), a razão era de 71,4; entre os adultos
(15-49 anos), de 50; e, entre os velhos (50 ou mais anos), de 164,7. Em outras
palavras, não somente havia poucos cativos em idade adulta na propriedade (ver
Gráfico_1), como também havia uma acentuada prevalência feminina nesse segmento
etário, característica que se efetivava de maneira um pouco mais tímida entre
os jovens e que se infletia em relação aos velhos.
Não desconsiderando o possível - mas improvável - impacto de uma mortalidade
diferenciada em função do gênero, a significativa predominância das mulheres
nos dois primeiros segmentos e, dos homens, no último segmento etário, pode ser
sugestiva de uma evasão de cativos do sexo masculino para outras regiões do
Grão-Pará ou, mesmo, para outras províncias. Levando-se em consideração que a
importação de escravos, por parte do sudeste cafeeiro, priorizava cativos do
sexo masculino e em idade produtiva,17 um possível movimento de refluxo de
escravos do Engenho Bom Intento poderia justificar a pouca quantidade de homens
adultos na propriedade, já no limiar da década de 1860. Hipótese que ganha
ainda mais força pelo fato de os meados do século XIX terem representado, no
Brasil, um contexto marcado pela intensificação no controle e a extinção
definitiva do tráfico atlântico.18
Essa posição desfavorável do Engenho Bom Intento perante o tráfico de escravos
parece ter sido anterior ao período em questão; não necessariamente no que
concerne a um provável refluxo de cativos, mas, sobretudo, no que concerne a
uma possível dificuldade em repor eventuais perdas a partir do tráfico. Um
indicativo, nesse sentido, é a presença rarefeita de cativos africanos na
propriedade. No início da década de 1860, quando do inventário de Joaquim
Antônio da Silva, havia apenas cinco escravos (um homem e quatro mulheres) de
origem africana no engenho. Deles, a mais nova, a cativa Catarina Angola, tinha
cerca de 50 anos de idade, e todos os demais já possuíam 70 ou mais anos.
Considerando-se que os cativos africanos eram comprados ordinariamente em idade
produtiva, é possível que os últimos escravos da África tenham aportado na
propriedade até o alvorecer dos anos de 1830, em um dos últimos navios
negreiros destinados ao Grão-Pará.19 E que, desde então, a manutenção dessa
posse de escravos tenha vindo a depender da sua reprodução endógena, nos termos
em que analisamos nas últimas páginas.
Mas, cabe-nos salientar que, fossem eles crioulos ou africanos, a maciça
presença de escravos velhos no Engenho Bom Intento não é atinente apenas ao
comportamento da propriedade em torno do tráfico de cativos e à baixa
mortalidade sugerida no Gráfico_1. A despeito disso e por mais que o perfil do
seu plantel comungasse, em função do gênero e da geração, com o perfil sexo-
etário dos cativos da chamada Zona Guajarina, não podemos deixar de vislumbrar
a estrutura etária dos escravos dessa propriedade sob a sua ótica particular -
intimamente relacionada com as trajetórias de vida de Joaquim e de Januário
Antônio da Silva. O estado envelhecido de alguns cativos e a diminuta
quantidade de escravos em idade adulta não podem ser lidos, portanto, apenas à
luz de um enquadramento contextual, mas, igualmente, como aspectos imbricados à
trajetória e ao ciclo de vida do proprietário do Engenho Bom Intento.
Acreditamos que o estado envelhecido de parte dos escravos fosse decorrente,
dentre outros fatores já citados, do próprio processo de envelhecimento de
Joaquim Antônio da Silva.20 Ao falecer em 02 de julho de 1861, Joaquim tinha 77
anos de idade, doze a mais do que Januário.21 Eram, ambos, da mesma geração que
boa parte dos homens e mulheres escravizados sob sua posse. Nessa perspectiva,
o ciclo de vida dos cativos acompanhara, então, o ciclo de vida do seu
proprietário. Com o avançar da idade e, especialmente, com a sua partida
definitiva rumo a Lisboa em 1834 (deixando, a partir de então, a administração
do Engenho Bom Intento aos cuidados de Januário), é possível que a capacidade
de Joaquim em renovar a sua propriedade tenha se amainado gradualmente, e não
apenas por questões de ordem econômica. Devemos considerar, por outro lado, que
Joaquim Antônio da Silva era viúvo e não tinha filhos, o que pode ter
ocasionado, por sua parte, uma perda de interesse na referida renovação.22 Se
isso estiver certo, a manutenção do seu plantel teria passado a depender, ainda
mais, da sua própria reprodução.
Fortalecendo um grupo: o casamento
A alta dependência criada em relação à reprodução endógena dos escravos não
parece ter sido peculiaridade do Engenho Bom Intento. O estado da arte da
escravidão na Amazônia, nos meados do Oitocentos, praticamente condicionava a
manutenção da escravatura na região, à sua própria reprodução. Com a
rearticulação do escravismo brasileiro, levada a cabo pela Lei Eusébio de
Queirós, e a incapacidade das elites locais em proceder a uma renovação efetiva
da população cativa da província do Grão-Pará por intermédio do tráfico
interprovincial, fazia-se necessário incentivar sua reprodução demográfica. Uma
primeira resposta a essa rearticulação, muito provavelmente orquestrada por
parte dos escravistas paraenses, pode ser notada pelo aumento quase que
instantâneo da taxa bruta de nupcialidade dos cativos de Belém ocorrido naquele
período.23 Sendo o matrimônio apreendido como uma instituição promotora da
fecundidade, na leitura dos proprietários, estimular os casamentos dos escravos
significava, por conseguinte, fomentar a reprodução biológica desse grupo.
Não obstante o aumento da sua nupcialidade, os casamentos entre os cativos
paraenses ocorridos nas décadas de 1840, 1850 e 1860, apresentavam algumas
características gerais que gostaríamos de pontuar. Em um estudo anterior,24 por
meio da análise de todos os registros de casamento de escravos produzidos na
paróquia da Sé de Belém naquelas décadas, observamos naquele grupo um
comportamento matrimonial caracterizado (1) pelas endogamias social e
metaétnica, (2) pela baixa incidência de enlaces em segundas ou mais núpcias, e
(3) por uma acentuada prevalência de casamentos intraplantéis. Além disso,
verificamos que, em relação a esta última característica, existia uma diferença
comportamental entre os cativos que moravam no núcleo urbano central de Belém -
demarcado por um ambiente urbano, de pequenas posses - e aqueles que habitavam
as regiões mais afastadas, marcadamente rurais e com uma elevada concentração
de cativos, vide a Zona Guajarina. Nestes espaços, bem mais do que naquele, os
casamentos entre escravos de uma mesma propriedade eram como uma prática
universalizada, um padrão de comportamento raramente desviado.25
Em meio a todos os registros de matrimônio pesquisados para os anos de 1840 a
1870, deparamo-nos com 25 assentos que envolviam cativos da propriedade no
papel de nubentes - isso sem considerarmos a existência de subregistros e os
eventos nos quais eles atuaram como testemunhas de matrimônio. Por mais que se
trate de um quantitativo que não autoriza o delineamento de padrões de
comportamento, esses registros permitem-nos perceber, como um ponto de partida,
a correlação existente entre as práticas de casamento daquela escravaria, e as
tendências de casamento apresentadas pelos escravos das regiões mais afastadas
de Belém, sobretudo da Zona Guajarina. Os enlaces matrimoniais entre os cativos
de Joaquim Antônio da Silva não eram apenas direcionados pela endogamia social
e metaétnica (esta última, nos casos em que os poucos africanos sob sua
propriedade contraíram núpcias); ao mesmo passo, todos os casamentos se
germinaram no ambiente do plantel, unindo dois escravos do Engenho Bom Intento,
a exemplo do matrimônio entre Domingos e Juliana.
No dia 19 de agosto de 1841, no oratório do Engenho Bom Intento, o cativo
Domingos Dias, filho de pais incógnitos, casou-se com Juliana Joaquina, sua
companheira de cativeiro e filha legítima dos também escravos Joaquim e
Joaquina Maria. A cerimônia teve como testemunhas os escravos José e Joana
Batista, também pertencentes a essa propriedade.26 A partir do registro do
casamento entre Domingos e Juliana, podemos apreender apenas que, naquela
distante quinta-feira, contraíram matrimônio, em primeiras núpcias, dois
cativos de um mesmo senhor; ele, filho ilegítimo e, ela, de condição legítima.
Somos levados a crer, ao mesmo passo, que Domingos e Juliana eram de origem
crioula e que a família dela já se encontrava estabelecida no Engenho há algum
tempo, pois os seus pais eram casados. Porém, ao cotejarmos esse assento com o
inventário de Joaquim Antônio da Silva, abrem-se outras instigantes
possibilidades de análise.
Uma primeira possibilidade diz respeito à idade de casamento dos escravos do
Engenho Bom Intento. Por meio do cruzamento entre os registros de matrimônio
dos cativos e o inventário do proprietário, constatamos que, à época do enlace,
Domingos possuía entre 40 e 50 anos. Já Juliana, provavelmente falecida, não
chegou a ser arrolada nos bens de Joaquim Antônio da Silva, muito embora a
idade de sua mãe possa nos servir de parâmetro. Se Joaquina Maria tinha em
torno de 50 anos à altura do casamento de sua filha, é patente que Juliana era
mais jovem que seu noivo. Uma segunda possibilidade de análise atém-se à
prática de um ofício especializado por parte dos cativos que contraíram
matrimônio. O inventário nos informa que Domingos era carapina, uma espécie de
carpinteiro de construções rurais diversas de grande importância para o
funcionamento dos engenhos. Além disso, o inventário permite-nos abonar a
origem crioula de Domingos e Juliana. De que forma esses três fatores poderiam
condicionar as práticas de casamento dos cativos do Engenho Bom Intento? A
diferença etária entre os cônjuges e o exercício de um ofício especializado
eram particularidades de Domingos e Juliana, ou características gerais dos
escravos que se casaram na propriedade?
Atentemos, primeiro, para as idades de matrimônio. Assim como Domingos Dias,
boa parte dos cativos homens do engenho casava-se em idades superiores aos 40
anos. Sete em cada dez nubentes haviam ultrapassado esse patamar ao terem
acesso ao primeiro casamento; inclusive, a maioria deles já possuía 50 ou mesmo
60 anos na ocasião. Os outros três em cada dez nubentes que se casaram com
menos de 40 anos o fizeram em idades que variavam, mas que nunca foram
inferiores aos 20 anos. Comparativamente, as idades das mulheres escravas da
propriedade na altura do primeiro matrimônio eram menores/mais baixas, todavia
mais diversificadas, sugerindo, em alguns casos, uma preocupação com o seu
período fértil.27 Vitória e Venância, as cativas mais jovens a se casarem no
Engenho Bom Intento, tinham entre 15 e 20 anos de idade. Joaquina Maria
Bibiana, a mais velha, possuía aproximadamente 60 anos quando do seu matrimônio
em segundas núpcias.
Nesse sentido, havia na propriedade uma tendência de os homens casarem com
mais, e as mulheres com menos idade, prática que implicava, consequentemente,
uma diferença etária entre os cônjuges, que oscilava muito mais em função das
idades das nubentes - variáveis -, do que das idades dos nubentes -
relativamente mais constantes. Essa característica sugere que a articulação dos
enlaces no plantel perpassava por um evidente recorte geracional e de gênero,
como no matrimônio entre Domingos e Juliana. Via de regra, os homens entravam
mais tarde, entretanto permaneciam por mais tempo no mercado matrimonial; ao
contrário das mulheres, que poderiam ter acesso ao casamento tão logo
estivessem na sua idade fértil, mas dele saíam mais cedo.
Não foi, contudo, somente em relação à idade ao casar que o enlace entre
Domingos e Juliana se aproximou das práticas de casamento no Bom Intento. A
exemplo do carapina, uma parcela não pouco expressiva dos escravos da
propriedade que tiveram acesso ao matrimônio, exercia um ofício. Para um
cativo, ser carapina, pedreiro ou ferreiro significava ser uma mão de obra
especializada, o que exprimia a sua valorização não apenas em termos
econômicos,28 mas, talvez principalmente, no âmbito das relações sociais
estabelecidas no seio de uma dada comunidade escrava, tendo em vista a
centralidade que a vida material possuía na experiência social dos cativos.29
O terceiro aspecto que, ainda que em menor medida, poderia influenciar as
práticas de casamento na propriedade era a origem africana ou crioula dos
cativos. A origem dos escravos não parece ter sido fator determinante na
organização dos enlaces, haja vista a parca presença de cativos africanos no
plantel do Engenho Bom Intento. Embora os poucos africanos tenham procurado
pela endogamia metaétnica, entendemos que o maior impacto da origem crioula ou
africana no delineamento dos arranjos matrimoniais entre os cativos dessa
propriedade residia, com efeito, no fato de os crioulos e as suas respectivas
famílias estarem estabelecidos há mais tempo na comunidade; o que, em tese,
garantiria a sua inserção em uma rede de inter-relações e um circuito de
sociabilidades mais consolidado.
Os três aspectos elencados (idade ao casar, prática de um ofício especializado
e origem crioula ou africana) são indicativos das condicionantes que permeavam
o casamento legítimo no Engenho Bom Intento. Uma maior idade, o capital
simbólico inerente à especialização em um ofício e a inserção nas redes sociais
e familiares plantadas há tempos naquela propriedade ajudavam alguns escravos a
demarcar o seu lugar de prestígio dentro de uma hierarquia social interna da
comunidade, bem como a dinamizar seu poder de barganha junto ao senhor de fato
do engenho, Januário Antônio da Silva. Eram, portanto, aspectos que acabavam
por imprimir, ainda que no contexto de uma comunidade e de um grupo social
específico, marcas distintivas da posição diferenciada de determinados sujeitos
e famílias.
Como a historiografia referente ao tema vem demostrando, a diferenciação social
entre os cativos ganhava forma, nas palavras de Sílvia H. Lara: "através de
critérios que envolviam tanto a dinâmica das relações específicas que [os
cativos] mantinham entre si, quanto a de suas inserções num universo mais amplo
de outras relações".30 Os elementos demarcadores do seu lugar social eram,
nesse sentido, complementares, e atuavam de forma articulada tanto em relação
ao senhor, como em relação à própria comunidade. A trajetória do escravo Manoel
Carlos pode nos ajudar a compreender, de maneira mais clara, a influência
dessas sociabilidades horizontais e verticais na demarcação do lugar social dos
cativos, assim como na organização dos seus casamentos na comunidade escrava do
Engenho Bom Intento.
Em setembro de 1868, na capela da propriedade, Manoel Carlos, filho legítimo de
Antônio Pedro e Francisca Libânia, contraiu núpcias com Felipa Maria das Dores,
filha natural de Marcelina Maria de Nazaré. O matrimônio teve como testemunhas
dois antigos companheiros de cativeiro: os forros José Joaquim e Alberto
Germano.31 Especializado em calafetagem, Manoel foi um dos poucos escravos a
ter acesso ao matrimônio antes dos 40 anos de idade. A prática de um ofício
especializado, combinada com a sua idade intermediária e a ausência de
quaisquer referências a problemas físicos ou de saúde, fizeram dele o cativo
mais valorizado da propriedade. Quando do arrolamento dos escravos do Bom
Intento, Manoel foi avaliado em cerca de 800 mil réis.
A análise do lugar ocupado por Manoel Carlos na hierarquia interna da
comunidade escrava do Engenho Bom Intento deve levar em consideração alguns
aspectos que ajudaram a tornar sua trajetória particular, diferenciando-a, em
maior ou menor medida, das trajetórias de Domingos Dias e de outros cativos que
tiveram acesso ao casamento na propriedade. Trata-se, em linhas gerais, de três
aspectos. Em primeiro lugar, tanto Manoel como a sua irmã, Geralda, eram filhos
legítimos. A condição de legitimidade evidencia sua posição social de destaque
ao colocá-lo como pelo menos a segunda geração de uma família que teve acesso
ao matrimônio na comunidade. Em segundo lugar, Manoel Carlos também praticava
um ofício especializado que lhe garantia grande prestígio perante os demais
cativos e o administrador da propriedade. Em terceiro lugar, o casamento de
Manoel teve como testemunhas dois libertos. Por mais que José Joaquim e Alberto
Germano muito possivelmente continuassem a integrar aquela comunidade mesmo
depois de alcançarem sua liberdade, o vínculo estabelecido entre eles, Manoel e
Felipa não deixava de ser vertical. Além disso, por terem estado entre os 15
cativos alforriados pelas disposições testamentárias do antigo senhor, é
provável que José Joaquim e Alberto Germano mantivessem uma boa relação com
Januário Antônio da Silva.32
O fato de Manoel integrar uma família bem posicionada socialmente na
propriedade, os vínculos e o conjunto de inter-relações que mantinha com
sujeitos igualmente posicionados em lugares de prestígio na comunidade, e o
capital simbólico inerente à prática do ofício mais valorizado no Engenho (o de
calafate) foram, muito provavelmente, determinantes no sentido de levá-lo ao
casamento legítimo, sobrepondo, inclusive, o próprio recorte geracional imposto
aos homens do plantel no que respeitava à idade de matrimônio. O mesmo podemos
dizer de sua futura esposa, Felipa Maria. Classificada como filha natural por
ter nascido antes do enlace entre a sua mãe e Francisco Antônio Germano -
possivelmente seu pai e irmão de Alberto, que testemunhou aquele casamento -,
Felipa pertencia a uma extensa rede familiar existente na propriedade que, a
exemplo da família de Manoel, levou vários de seus membros ao matrimônio. É
possível, aliás, que o casamento entre Manoel e Felipa tenha representado um
passo no sentido de estruturar uma rede familiar ainda mais ampla entre alguns
escravos do Bom Intento, ajudando não só a fortalecer o grupo, como também a
demarcar e dinamizar lugares na hierarquia social interna da comunidade.
A tessitura social do Engenho Bom Intento e o conjunto de inter-relações
estabelecido pelos escravos da propriedade que lhe dava forma são elementos
centrais para a compreensão das práticas de casamento naquele meio social. A
posição social ocupada pelos escravos na hierarquia interna da comunidade
condicionava a sua ascensão ao matrimônio, possibilitando que um determinado
grupo de cativos - a exemplo de Manoel Carlos e sua família - pudesse negociar
com maior efetividade o seu acesso ao casamento legítimo, e relegando os demais
a experimentarem a conjugalidade em uniões não legitimadas pela Igreja. O grau
de complexidade desse conjunto de inter-relações era particularmente ainda mais
acentuado por estar inscrito numa propriedade escrava de grandes proporções,
estabelecida há décadas e que mantinha interação constante e cotidiana com
vários outros segmentos sociais - dos cativos das demais propriedades a ricos
escravistas, passando pela população livre e pobre, e pelos libertos da região
de Bujaru.
Ao cruzarmos os registros de batismo e casamento dos cativos, com o inventário
post-mortem e o testamento de Joaquim Antônio da Silva, podemos constatar que
grande parte dos matrimônios envolvendo os cativos do Bom Intento orbitava, via
de regra, em volta de uns mesmos escravos. O casamento legítimo naquela
propriedade era mais comum entre algumas famílias; as mesmas que tiveram alguns
dos seus membros alforriados, que concentravam um maior número de escravos com
ofícios especializados e que mantinham relações estreitas seja com o
administrador da propriedade, Januário Antônio da Silva, seja com sujeitos que
podem ter figurado como intermediários sociais, a exemplo do que possivelmente
representaram José Joaquim e Alberto Germano, já libertos, no casamento do
calafate Manoel Carlos.
José Joaquim, Alberto Germano e tantos outros, em face da sua projeção na
comunidade, poderiam intermediar a construção e dinamização das teias sociais
existentes naquele meio social, ao colocarem em interface as redes familiares
existentes e, sobretudo, ao intercederem junto ao administrador da propriedade,
negociando, facilitando o acesso de determinados escravos e famílias ao
casamento legítimo. A atuação desses prováveis intermediários reforça a noção
de que a articulação dos matrimônios na propriedade era concebida em um jogo
entre duas hierarquias sociais interpostas. Não bastava que os escravos
estivessem situados em lugares sociais de destaque na hierarquia interna da
comunidade. Tão importante quanto isso era a anuência de Januário Antônio da
Silva.
A propósito, o papel exercido por Januário na articulação dos casamentos dos
escravos do Engenho Bom Intento ganha relevo pelo fato de todos os escravos
desta propriedade terem contraído matrimônio com companheiros de plantel, a
despeito do amplo rol de sociabilidades no qual estavam inseridos. Como vem
demonstrando a historiografia sobre o tema, por mais que os cativos
provavelmente tivessem a possibilidade de escolher os seus cônjuges com um
relativo grau de autonomia, dificilmente seriam legitimadas as relações que não
fossem vistas com "bons olhos" pelos seus senhores.33 No caso dessa
propriedade, a interferência senhorial nos enlaces foi mencionada, inclusive,
nas próprias atas de casamento. Os registros referentes aos escravos do Bom
Intento foram os únicos assentos que encontramos nos quais se explicitava,
literalmente, que os matrimônios aconteceram "sob a autorização do
administrador da propriedade".
Não seria de todo irreal supormos que a interferência de Januário não tenha se
limitado somente ao casamento legítimo e, como veremos mais adiante, às
relações de compadrio estabelecidas pelos seus cativos. Se, no que respeita ao
matrimônio, a intervenção senhorial é evidente (todos os escravos casaram-se,
sem exceção, com companheiros de propriedade), pode ter havido uma maior
flexibilidade em relação às uniões não legitimadas pela Igreja. O grande
excedente de mulheres em idade fértil existente na escravaria, evidentemente
não deixaria de ser notado por parte do administrador do engenho. É não apenas
possível, como também provável, que Januário não criasse impedimentos para que
as escravas do Engenho Bom Intento se relacionassem com cativos de outras
propriedades, os forros ou os homens livres da região, desde que
consensualmente. Em parte corroborando esta perspectiva, as atas paroquiais de
batismo pesquisadas indicam que, entre 1840 e 1870, três de cada quatro cativos
nascidos no Bom Intento foram concebidos fora do matrimônio.
Nesse sentido, na experiência analisada, as duas faces do casamento (legítima
ou não) atuaram, de diferentes maneiras, no sentido de conformar uma comunidade
escrava que tinha o seu epicentro no Engenho Bom Intento. Se, por um lado, o
casamento legítimo acabava por reforçar lugares e dinamizar uma hierarquia
social interna na propriedade, por outro lado, as uniões não legitimadas pela
Igreja faziam com que a ideia de comunidade escrava transbordasse as fronteiras
do engenho, compreendendo cativos de outros senhores, libertos e parte da
população livre de Bujaru. Esta concepção certamente mais abrangente da noção
de comunidade escrava ajuda a superar a perspectiva de que a sua formação
estava relacionada apenas às bases institucionais da família no interior das
propriedades, onde as relações entre senhores e escravos efetivamente se
desenvolviam. Em verdade, como podemos apreender no caso em tela, o
delineamento das comunidades se dava no bojo de um universo social e de inter-
relações mais extenso, que não se restringia somente às relações de caráter
endógeno estabelecidas pelos escravos entre si, e entre eles e os seus
respectivos senhores.
Expandindo uma comunidade: o compadrio
Assim como o casamento, o compadrio representava uma peça-chave na composição
das comunidades escravas. O seu caráter simultaneamente social e religioso,34
por certo, bastante arraigado em grupos essencialmente crioulos como o do
Engenho Bom Intento, fazia, do parentesco espiritual materializado nos
batismos, um importante mecanismo de dinamização das ditas comunidades.35
A exemplo do que ocorria também em relação ao casamento, as práticas de
compadrio dos escravos do Engenho Bom Intento aproximavam-se das tendências
apresentadas pelas regiões mais afastadas de Belém, onde a alta concentração de
cativos ascendia à incidência da escolha de compadres e comadres de condição
escrava e, por conseguinte, à preferência pelo estabelecimento de vínculos
horizontais de compadrio.36 Entretanto, por mais que grande parte deles tenha
estabelecido laços de parentesco espiritual com os seus companheiros de
propriedade, havia uma maior flexibilidade nessas relações, pois,
diferentemente do que acontecia no matrimônio, os limites do engenho se
dispunham de maneira um pouco mais elástica no caso das relações de compadrio.
Por um lado, a predileção pelas relações endógenas à propriedade implicava o
fortalecimento do grupo e a possibilidade de se demarcar, com maior limpidez,
os lugares sociais ocupados pelos cativos e suas famílias na hierarquia interna
da comunidade. Por outro lado, abria-se possibilidade para que a interação
cotidiana que os escravos do Engenho Bom Intento mantinham com os cativos das
demais propriedades e a população livre da região de Bujaru se solidificasse na
forma de uma relação exógena permanente, instituída pela religião e com
inquestionável reconhecimento social no contexto do Brasil oitocentista.
Portanto, no caso em questão, o jogo entre diferentes estratégias atinentes à
escolha dos compadres acabava dilatando os próprios limites da comunidade
escrava constituída, que passava a abarcar, inclusive, indivíduos de condição
livre. Por trás da escolha dos compadres, havia todo um conjunto de inter-
relações, interesses e motivações que as norteava. Assim como, no que tange ao
casamento, os laços formados eram condicionados pelo lugar social dos
envolvidos. A trama de relações vivenciada pelos escravos, o grau de autonomia
angariado, as necessidades momentâneas e uma evidente preocupação com o futuro
das crianças batizadas eram aspectos que decerto influíam no delineamento dos
laços de compadrio.
No dia 22 de fevereiro de 1846, no oratório do Engenho Bom Intento, batizou-se
solenemente e recebeu os Santos Óleos a pequena Justina, filha natural da
escrava Cristina Maria. Ao contrário dos dias em que havia vários batizados e
matrimônios na propriedade, o batismo de Justina foi uma cerimônia isolada.
Ainda assim, representou um importante momento para a socialização dos cativos
diretamente envolvidos no evento: a mãe de Justina, Cristina Maria, o padrinho
Conrado e a madrinha Apolinária, todos eles escravos de Joaquim Antônio da
Silva.37 Quatro anos antes, no mesmo oratório, mas em meio a várias outras
cerimônias de batismo e de casamento, fora batizado Teodósio, filho também
natural de Luciana Maria, que teve como padrinho e madrinha dois companheiros
de cativeiro de sua mãe, de nomes Agostinho e Guilhermina do Carmo.38
Muito embora os registros dos batismos de Justina e Teodósio não sejam
elucidativos, por si só, dos tipos de relação que Cristina e Luciana Maria
mantinham com os padrinhos e as madrinhas de seus filhos, de uma leitura
preliminar deles emergem algumas questões que podem nos servir como ponto de
partida. Em primeiro lugar, podemos considerar que, em ambos os casos, a
escolha dos compadres e das comadres foi condicionada pelo interesse na criação
de vínculos de natureza eminentemente social, uma vez que nem Justina nem
Teodósio tiveram santos como padrinhos ou santas como madrinhas. Como um
desdobramento disso, devemos considerar, em segundo lugar, que foram escolhidos
para esses papéis quatro companheiros de cativeiro de Cristina e Luciana Maria,
o que evidencia não apenas o seu já aditado interesse em firmar relações
sociais, como o interesse específico em estabelecê-las em meio à comunidade
escrava à qual pertenciam. Estaríamos, nesse sentido, diante de duas
estratégias semelhantes?
O diálogo entre os registros de batismo e de casamento dos escravos do Engenho
Bom Intento e o inventário post-mortem de Joaquim Antônio da Silva abre, mais
uma vez, instigantes possibilidades de análise, na medida em que confere novas
dimensões às escolhas dos padrinhos e das madrinhas de Juliana e Teodósio.
Essas dimensões revelam que, por trás de duas estratégias à primeira vista
semelhantes, e que comungavam com as práticas de compadrio mais gerais dos
escravos do Engenho Bom Intento, havia aspectos centrais que diferenciavam uma
da outra.
A primeira possibilidade de análise diz respeito a uma questão geracional. A
partir daquele diálogo, verificamos que, na altura do batizado de Justina,
Conrado e Apolinária tinham, respectivamente, 15 e 25 anos. Agostinho, por sua
vez, foi padrinho de Teodósio aos 50 anos de idade. Não conseguimos averiguar a
idade de Guilhermina do Carmo; muito possivelmente, ela faleceu, ou foi
vendida, entre o batizado de Teodósio e o arrolamento dos cativos do Engenho
Bom Intento, por ocasião do inventário de Joaquim Antônio da Silva. No caso do
batismo de Justina, foram selecionados um padrinho e uma madrinha jovens. No
batismo de Teodósio, a escolha recaiu sobre um padrinho com maior idade, já
velho. As distintas perspectivas geracionais que permearam a escolha dos
padrinhos de Justina e Teodósio indicam que, em última instância, foram
estratégias aparentemente semelhantes, mas, em verdade, norteadas por
diferentes interesses e motivações.
Ao escolher Conrado e Apolinária como padrinhos de sua primeira filha, Cristina
Maria manifestou uma preocupação em assegurar proteção e amparo a Justina, no
decorrer de sua vida. A menor idade dos padrinhos permitir-lhes-ia, em tese,
acompanhar a sua criação por um longo período de tempo, inclusive cuidando de
Justina numa eventual ausência da mãe. Conrado foi escolhido padrinho ainda
muito jovem, próximo da idade mínima arrogada pela legislação canônica.39
Exceto se pertencesse a uma família já bem situada na hierarquia da comunidade,
é muito provável que haja vista a sua pouca idade, Conrado ainda não tivesse
estabelecido o seu lugar na mesma. Inclusive, o fato de ser padrinho de Justina
pode ter representado, para ele, um primeiro passo no estabelecimento de sua
trama de inter-relações e, consequentemente, da sua posição na comunidade.
Apolinária, ao contrário de Conrado, tinha a sua rede de relações mais bem
consolidada. No batismo de sua filha Sabina, por exemplo, ela se tornou comadre
do escravo Clementino, um dos que por mais vezes foi escolhido para padrinho ou
testemunha de casamento na comunidade.
Por outro lado, a escolha de Agostinho como padrinho de Teodósio pode ser
sugestiva de um interesse mais imediato, por parte de Luciana Maria, em
estabelecer uma aliança com alguém de prestígio em meio à hierarquia social da
comunidade. Além de uma maior idade e do fato de ele pertencer, muito
possivelmente, a uma família já plantada há tempos na propriedade, Agostinho
era oficial de pedreiro, ofício que provavelmente lhe conferia, adicionalmente
aos outros dois aspectos, um status diferenciado em meio à comunidade cativa do
Engenho Bom Intento.
Ainda que tragam à tona interesses e motivações diferentes, os batismos de
Justina e de Teodósio são exemplos das duas formas pelas quais a perspectiva
geracional condicionava a escolha dos padrinhos e das madrinhas na comunidade
escrava do Engenho Bom Intento. Poucos foram os escravos na casa dos 30 ou dos
40 anos escolhidos como padrinhos.40 Geralmente, eram selecionados para esses
papéis cativos que haviam acabado de entrar na idade adulta, tal qual Conrado e
Apolinária, ou que já se enquadravam no grupo etário dos velhos, como
Agostinho. Posto que o Gráfico_1 advirta para uma baixa mortalidade na
propriedade, a idade dos padrinhos, por certo, não deixou de ser uma
preocupação. Entendemos que a escolha de padrinhos jovens, ainda entrando em
idade adulta, espelhava a preocupação dos cativos com o futuro de sua prole,
garantindo amparo e proteção até que os seus filhos pudessem estabelecer o seu
lugar social por meio de inter-relações próprias. Por sua vez, a seleção de
padrinhos mais velhos pode ser tomada como um indicativo de uma necessidade
mais premente de consolidação das relações entre os futuros compadres.
Essas duas estratégias de escolha dos padrinhos e madrinhas de acordo com a
perspectiva geracional, muito embora evidenciassem dois usos sociais distintos
do compadrio naquela comunidade, não eram necessariamente opostas, podendo ser,
ao contrário disso, complementares uma à outra, mesmo em relação a uma família
específica. Essa interação entre as estratégias norteou os laços de compadrio
conformados pela família dos escravos Antônio e Francisca, por meio dos
batismos das três filhas desse casal.
Entre 1842 e 1848, Antônio e Francisca batizaram pelo menos três dos seus
filhos: em 1842, Geralda; em 1844, Susana; e, em 1848, Luísa. Mesmo em condição
escrava, Antônio era intendente, um dos responsáveis por supervisionar a
organização produtiva da propriedade. À altura do batismo de Geralda, em 1842,
ele tinha em torno de 50 anos de idade. A sua mulher, Francisca, destoando do
padrão de concepção daquela comunidade, deu à luz suas três filhas entre os 30
e os 40 e poucos anos de idade. As elevadas idades do casal, sobretudo a de
Antônio, certamente condicionaram a escolha dos padrinhos das suas três
meninas, no que concerne à idade dos padrinhos. Não obstante, face à posição de
prestígio em que o intendente se encontrava,41 ainda era necessário estabelecer
relações de compadrio com indivíduos bem situados na hierarquia social da
comunidade, de modo a corroborar as marcas distintivas da sua posição social.
Luís e Apolinária Maria, a mesma que havia sido madrinha da pequena Justina.42
Não encontramos outras referências em relação a Luís, mas sabemos que
Apolinária possuía 20 anos de idade quando do batizado de Geralda. A segunda
filha do casal, Susana, foi apadrinhada por Felipe Nery e Inácia Maria.43 Não
dispomos de informações mais precisas a respeito da madrinha, porém,
descobrimos que Felipe Nery também veio a ser padrinho de Umbelina, a primeira
filha do já citado Alberto Germano com a escrava Esperança, batizada no
oratório do Engenho Bom Intento em 24 de abril de 1847.44 A terceira filha de
Antônio e Francisca, Luísa, teve Carlos como padrinho e Nossa Senhora45 das
Dores como madrinha.46 Assim como Guilhermina do Carmo, madrinha de Teodósio,
Carlos muito provavelmente veio a ser vendido ou a falecer nos anos
subsequentes, pois não marcou presença na lista dos cativos do Engenho Bom
Intento elaborada por ocasião do inventário de Joaquim Antônio da Silva.
Cada um dos batismos das três filhas de Antônio e Francisca apresentou
características específicas. No batismo da primogênita, Geralda, o casal
priorizou a consolidação de vínculos com indivíduos mais jovens, que pudessem
dar amparo a sua filha, caso porventura Antônio e Francisca viessem a falecer.
No batismo de Susana, o casal provavelmente tencionou estabelecer laços com
escravos bem relacionados em meio à comunidade, como Felipe Nery. Por sua vez,
a escolha de Nossa Senhora das Dores como a madrinha de Luísa (não podemos
tecer muitas considerações a respeito de Carlos) evidencia uma escolha
assentada muito mais numa questão religiosa do que na concepção de vínculos de
natureza social.
Nesse sentido, podemos observar claramente a partir dos laços de parentesco
espiritual estabelecidos nos batismos das três filhas de Antônio e Francisca,
ser o compadrio regido por estratégia eminentemente familiar, cuja
historicidade, nos meandros da história de uma determinada família, deve
considerar as distintas demandas e conjunturas sociais que abalizaram a sua
trajetória ao longo do tempo.
A construção dessa e de outras trajetórias familiares em meio ao Engenho Bom
Intento revela o possível grau de estabilidade familiar ensejado aos cativos
dessa propriedade. Se a longevidade senhorial, a dimensão da posse e a eventual
inflexão proporcionada pela morte do senhor eram três dos elementos que atuavam
no sentido de conceber uma maior ou menor estabilidade às famílias escravas, o
engenho constituiria, pelo menos em tese, um lócus ideal para a manutenção dos
laços familiares dos cativos por longo período de tempo.47 Explicamos melhor.
Joaquim Antônio da Silva faleceu aos 80 anos de idade deixando praticamente
todos os seus bens (exceto aqueles legados por terça testamental) a um único
herdeiro: o seu irmão, Januário Antônio da Silva. Somente o fato de a
propriedade não ter sido partilhada provavelmente contribuiria para essa
estabilidade.
Mas, não se tratava apenas disso. Januário já administrava a propriedade (e,
consequentemente, os seus cativos) desde 1834, quando seu irmão deixou em
definitivo a Amazônia rumo a Portugal. Portanto, quando se tornou de fato o
proprietário do Engenho Bom Intento, Januário Antônio da Silva já o geria há
quase três décadas. Nesses termos, é possível que o impacto da morte do senhor
tenha sido minimizado, ou mesmo, quem sabe, inexistente. Entretanto, se, por um
lado, esse provável contexto de estabilidade não apenas permitia como também
dinamizava a construção de extensas e duradouras redes sociais no seio da
comunidade, por outro lado, isso não significa dizer que a consolidação dessas
redes por meio do compadrio não passasse pela influência de Januário Antônio da
Silva.
Decerto, o controle senhorial sobre os escravos do Engenho Bom Intento incidia
muito mais em relação ao matrimônio do que em relação à formação dos laços de
parentesco espiritual. Se, no que toca ao casamento legítimo, fazia-se
respeitar, incondicionalmente, os limites da propriedade, no caso do compadrio
esse controle se efetivava de maneira menos incisiva. A procura por compadres
fora do engenho evidencia que o parentesco espiritual era supostamente mais
"independente" da ingerência senhorial do que o matrimônio, por mais que as
sociabilidades dos escravos certamente não deixassem de ser controladas.48
Grande parte da historiografia que se dedica ao compadrio de escravos indica
que a presença senhorial fazia-se sentir pelo menos enquanto um limitante.49 No
caso do Engenho Bom Intento, onde os batismos ocorriam em cerimônias coletivas
que envolviam, para além dos escravos do próprio Bom Intento, os de outras
propriedades e a população livre da região, é difícil imaginarmos um Januário
totalmente alheio a essa movimentação nas terras que administrava.
Os assentos de batismo não são claros no sentido de sugerir a interferência de
Januário nos laços de compadrio formados entre os escravos do Engenho Bom
Intento. Evidentemente, isso não implica a inexistência de intervenção
senhorial nessas relações. As sociabilidades dos escravos formalizadas pelos
laços de compadrio eram sem dúvida acompanhadas de perto por Januário Antônio
da Silva ou por alguém da sua mais inteira confiança, como tudo o que era
importante para os seus cativos. Por mais que pudesse não se tratar, como no
caso dos matrimônios, de uma ingerência direta, essa injunção fazia-se presente
ainda que de maneira tácita, mesmo sobre as situações aparentemente mais
"independentes".
Por outro lado, a ingerência senhorial torna-se bem mais manifesta nos casos em
que a escolha dos compadres extrapolava os limites da propriedade,
configurando-se o estabelecimento, ou ainda, a ritualização de relações
exógenas ao seu ambiente, seja com cativos das propriedades vizinhas ou com a
população livre de Bujaru. Essa escolha exógena perpassava, assim como o
matrimônio, pelo imbricamento entre a esfera dos escravos e a esfera senhorial.
A nosso ver, é pertinente considerarmos que os cativos tivessem plena
consciência dos indivíduos com quem poderiam estabelecer laços de compadrio,
sem que a escolha tivesse que acabar sendo, por assim dizermos, vetada por
Januário Antônio da Silva.
Dois aspectos são sugestivos dessa consciência. Em primeiro lugar, é provável
que os escravos soubessem que, no oratório do Engenho Bom Intento, apenas
seriam realizados batismos e casamentos com a autorização de Januário Antônio
da Silva, isto é, com pessoas cuja presença sua ou de seus proprietários não
desgostasse Januário. Sendo, essas cerimônias coletivas, importantes espaços de
socialização dos escravos do Bom Intento com os sujeitos externos ao ambiente
da propriedade, ampliava-se o leque de possibilidades para a seleção dos
compadres. Em segundo lugar, também é razoável pensarmos que os escravos
tivessem ciência, mesmo que superficialmente, das relações entre Januário e os
demais escravistas de Bujaru. Afinal, não esqueçamos que, no próprio oratório
do Bom Intento, ele costumava apadrinhar os filhos e os netos dos proprietários
das terras vizinhas.50
A utilização do testamento e do inventário post-mortem de Joaquim Antônio da
Silva, em complementaridade aos registros batismais e de casamento dos seus
escravos, potencializa o mapeamento dos vínculos que foram, de fato, exógenos
àquele ambiente. Nesse sentido, por meio do diálogo entre os diferentes tipos
de fonte, suprimos parte das limitações relacionadas com os assentos de batismo
de Belém no que concerne à condição sociojurídica dos padrinhos. Uma
investigação calcada apenas nos assentos paroquiais poderia nos levar a
conclusões precipitadas sobre alguns dos laços formados pelos escravos do
Engenho Bom Intento. Caso interessante é o do forro Veríssimo.
Durante os anos de 1860, Veríssimo foi responsável por testemunhar e servir de
padrinho em algumas cerimônias de casamento e batismo de escravos do Bom
Intento. O testamento e o inventário de Joaquim Antônio permitiu-nos ter
ciência de que o forro havia sido, na verdade, escravo dessa propriedade, tendo
sido libertado pelas disposições testamentárias do antigo senhor. A recorrência
ao seu nome nos registros paroquiais sugere que, mesmo após a concessão de sua
alforria, Veríssimo não se distanciou da comunidade. Considerando-se tão
somente os assentos paroquiais, ele seria fatalmente tomado como um sujeito
que, haja vista a sua (nova) condição social, não pertencia ao ambiente da
propriedade; quando, diferentemente disso, tratava-se de um membro da
comunidade, onde há tempos exercia o ofício de carpinteiro.
Para Veríssimo, Alberto Germano e outros tantos egressos do Engenho Bom
Intento, a experiência da liberdade e a nova condição social que lhes foi
adjudicada por meio da alforria não implicaram o seu afastamento da comunidade
cativa da propriedade. A recursiva presença desses indivíduos no papel de
testemunhas de casamento e de padrinhos de batismo pode insinuar, inclusive,
que eles tenham permanecido como agregados no engenho. Muitas hipóteses podem
ser elencadas para explicar o porquê dessa possível permanência. A nosso ver, a
principal hipótese é atinente aos vínculos familiares que os forros
estabeleceram no ambiente da propriedade. Embora Alberto, por exemplo, tenha
sido alforriado, a sua família não o foi. Tanto a sua esposa Esperança quanto a
sua filha Umbelina permaneceram no cativeiro, como indica o inventário de
Joaquim Antônio da Silva.51
Não encontramos muitas referências ao compadrio exógeno na experiência
analisada. Como já destacamos, ao contrário do que ocorria no núcleo urbano de
Belém, a maior dimensão da propriedade proporcionou que a maioria dos laços de
compadrio estabelecidos pelos escravos do Bom Intento se remetesse a
companheiros de cativeiro. A dimensão da posse ofertava aos escravos um rol
maior de possibilidades de escolha de padrinhos e compadres em seu próprio
meio, distintamente do que ocorria na região central de Belém, marcada por
pequenas posses e pelo inevitável convívio cotidiano entre escravos e a
população livre.
Um dos únicos casos concretos, nesse sentido, foi o batizado de Miguel, filho
da cativa Lúcia, ocorrido no oratório do Engenho Bom Intento em 4 de junho de
1848. Miguel teve como padrinho ninguém menos que Manoel Joaquim Pinto de
Paiva.52 Proprietário das terras vizinhas ao Bom Intento, Manoel era também
compadre de Januário Antônio da Silva. Não sabemos ao certo o que motivou a
firmação desse laço; porém, parece-nos claro que o mesmo ocorreu sob a evidente
anuência de Januário. Como já frisou Carlos Bacellar em relação a um caso
semelhante: "não seria de todo irreal supor que seus senhores interferiam, até
para facilitar as coisas, abrindo as portas, fazendo de seu compadre um
compadre de seu cativo, implementando redes de solidariedade mais complexas".53
Lúcia mantinha, provavelmente, uma relação estreita com Januário Antônio da
Silva, pois, além de ser comadre de um compadre seu, esteve entre os 15
escravos por ele alforriados. Somos levados a crer, inclusive, que Januário
Antônio da Silva lançou mão do batismo de Miguel para estreitar ainda mais os
laços que mantinha com Manoel Joaquim Pinto de Paiva.
A escolha de padrinhos mais bem posicionados socialmente, como Manoel Joaquim
Pinto de Paiva, acabava por constituir um importante mecanismo de reprodução
social, em termos diferentes do que foi o casamento legítimo naquela
comunidade. A assimetria social entre as partes, responsável por atribuir um
caráter verticalizado às relações estabelecidas, contribuía para reiterar a
posição social dos envolvidos e suas famílias, ainda que suprimindo a pretensa
ideia de igualdade existente entre os compadres.54
Ao lado do casamento, o compadrio consubstanciava a ideia de uma comunidade
cativa em meio aos escravos do Engenho Bom Intento, cujos limites transcendiam
as fronteiras da propriedade e do próprio cativeiro. Servia, portanto, como um
importante elemento de constituição e dinamização de redes sociais dentro e
fora da própria comunidade.
Considerações finais
O Engenho Bom Intento serviu-nos, nas últimas páginas, como um pano de fundo
para o empreendimento de um novo esforço de investigação das relações e das
experiências familiares dos escravos no Grão-Pará oitocentista. Afastando-nos
do enfoque serial que delimitou as pesquisas anteriores sobre a família escrava
no contexto historiográfico paraense, optamos por percorrer o caminho da
microanálise das práticas de casamento e compadrio dos cativos dessa
propriedade. A redução da escala de observação ensejou-nos adentrar mais amiúde
no universo daquelas relações e experiências, ajudando a matizar sua
compreensão na direção de aspectos que, muito provavelmente, acabariam
invisibilizados numa abordagem de caráter quantitativo. Mais do que números e
padrões de comportamento, objetivamos delinear práticas sociais e as lógicas de
ação daquela comunidade, no que diz respeito ao casamento e ao compadrio.
Na primeira seção do artigo, voltamo-nos a apresentar o perfil e parte dos
mecanismos de reprodução dos escravos do Engenho Bom Intento, assim como a
estrutura física e econômica dessa propriedade. Em síntese, buscamos tracejar
as características gerais da vida social e material desses cativos, de maneira
a possibilitar o entendimento das formas pelas quais as famílias se
constituíam, arranjavam e reproduziam naquela comunidade. Se, por um lado, a
vida material ocupava lugar de proeminência na sua organização (demarcando os
períodos em que ocorriam os batizados e os casamentos, a posição dos cativos na
hierarquia social da comunidade, etc.), por outro lado, a vida social dos
escravos, dinamizada pela permanente interação com pessoas livres e com os
escravos de outras propriedades, fazia das relações familiares dos cativos do
Engenho Bom Intento experiências multifacetadas.
Na segunda seção, articulando casos particulares às práticas de casamento da
propriedade e às tendências de casamento de escravos na cidade de Belém,
verificamos que os escravos que legitimaram suas uniões nessa propriedade
apresentavam algumas especificidades. Os homens eram, em geral, maiores de 40
anos e especialistas em um ofício; já as mulheres casavam-se em idades
variadas. Verificamos também que parte dos noivos era de condição legítima e
pertencia a famílias muito provavelmente estabelecidas na comunidade há algum
tempo. Todos esses elementos, analisados conjuntamente, levaram-nos a apreender
que o acesso ao casamento passava, na experiência analisada, pelos escravos e
suas famílias numa hierarquia social endógena à comunidade, que se plasmava
tanto pelas relações que os cativos mantinham entre si, como pelas que
mantinham com o senhor de fato do Engenho Bom Intento, Januário Antônio da
Silva.
Na terceira seção, observamos que assim como o casamento, o compadrio era
enviesado por uma clara perspectiva geracional, não apresentando diferenciações
quanto ao sexo ou à condição de legitimidade dos batizandos. Algumas vezes,
buscavam-se como padrinhos indivíduos com uma menor idade, que poderiam
acompanhar os escravos em um mundo marcado por uma alta mortalidade. Em outras,
procurava-se por compadres com maior idade, especializados em algum ofício e
bem situados na hierarquia interna da comunidade. Menos passíveis de ingerência
senhorial do que o matrimônio, entretanto ainda limitados pelas vontades e
pelas relações mantidas pelos escravos com Januário, os laços de compadrio
constituíram um elemento-chave para a compreensão de uma comunidade escrava
nessa propriedade, que extrapolava os próprios limites do plantel, abarcando
livres, forros e cativos de outras posses.
Fossem esporádica, consensual ou legítima as formas pelas quais se constituía e
reproduzia, a família escrava era uma realidade presente em meio à comunidade
cativa do Engenho Bom Intento. É muito provável, ademais, que tenha sido uma
realidade fortemente presente na região de Bujaru, bem como no restante da
província do Grão-Pará. O grau de incidência, os modos de organização,
reprodução e sua estabilidade possível na região ainda carecem de novos estudos
que tenham nela, a família escrava, o seu eixo central de análise.
* Este artigo representa uma versão revisada e ampliada de parte do terceiro
capítulo da dissertação de mestrado: "Casamento e compadrio em Belém nos meados
do Oitocentos", defendida em abril de 2012, junto ao Programa de Pós-Graduação
em História Social da Amazônia do IFCH-UFPA. O autor agradece ao professor
Antonio Otaviano Vieira Junior pela orientação da pesquisa, bem como aos
professores Carlos Bacellar e Cristina Cancela pelos comentários feitos por
ocasião do Exame de Qualificação e de Defesa. Os agradecimentos se redobram ao
parecerista da Afro-Ásia e aos professores José Flávio Motta, Cacilda Machado e
Maria Luiza Andreazza pelas críticas tecidas a uma versão embrionária deste
estudo, apresentada no IV Simpósio Nacional de História da População, realizado
em Belém, entre 18 e 21 de outubro de 2011
1Sobre as linhas gerais desse debate, ver: Rafael Chambouleyron, "Escravos do
Atlântico Equatorial: tráfico negreiro para o Estado do Maranhão e Pará (século
XVII e início do século XVIII)", Revista Brasileira de História, v.26, n.52
(2006), pp.79-114.
2José Maia Bezerra Neto, Escravidão negra no Grão-Pará (séculos XVII-XIX),
Belém: Paka-Tatu, 2001.
3Luciana Marinho Batista, "Demografia, família e resistência escrava no Grão-
Pará (1850-1855)", in José Maia Bezerra Neto e Décio de Alencar Guzmán (orgs.),
Terra Matura: historiografia e história social na Amazônia (Belém: Paka-Tatu,
2002), pp.207-30.
4Andréa da Silva Pastana, "Em nome de Deus, Amém! Mulheres, escravos, famílias
e heranças através dos testamentos em Belém do Grão-Pará na primeira metade do
século XIX" (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Pará, 2008).
5Walter Hawthorne, From Africa to Brazil: Culture, Identity, and an Atlantic
Slave Trade, 1600-1830, Cambridge: Cambridge University Press, 2010.
6Daniel Souza Barroso, "Casamento e compadrio em Belém nos meados do
Oitocentos" (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Pará, 2012);
Antonio Otaviano Vieira Junior e Daniel Souza Barroso, "Histórias de
'movimentos': embarcações e população portuguesas na Amazônia joanina", Revista
Brasileira de Estudos de População, v.27, n.1 (2010), pp.193-210.
7Para um balanço da produção sobre a História da Família e a História da
População no Pará, ver: Daniel Souza Barroso, "A historiografia das formas
familiares e o desenvolvimento da Demografia Histórica no estado do Pará,
Brasil (1970-2012)", in Anais do X Congresso da Associação de Demografia
Histórica(Madrid: ADEH/CCHS-CSIC, 2013).
8Centro de Memória da Amazônia (CMA/UFPA). Cartório Fabiliano Lobato (11ª Vara
Cível). Inventários post-mortem, 1862, cx. 139. Autos cíveis de inventáriopost-
mortemem que é inventariado Joaquim Antônio da Silva e inventariante, Januário
Antônio da Silva. O inventário do proprietário do Engenho Bom Intento, onde
também consta o traslado do seu testamento, apresenta a descrição das posses de
Joaquim Antônio da Silva no Brasil. A sua propriedade escrava, tal como nos
demais inventários paraenses da década de 1860, foi arrolada pelo sexo
(primeiro os homens e depois as mulheres), em ordem alfabética e de acordo com
a geração (primeiros os escravos adultos e velhos, depois as crianças cativas).
Ao não arrolar os escravos em associação com as suas respectivas famílias, o
inventário inviabiliza o avanço na discussão de determinados aspectos a elas
atinentes. De agora em diante, não citaremos mais o inventário em questão em
notas de rodapé. Todas as citações indicadas no corpo do texto remetem à
aludida referência.
9Sobre a importância econômica local do Engenho Bom Intento, ver: Edna Maria
Ramos de Castro, "Terras de preto entre igarapés e rios", in Anais do II
Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ambiente e
Sociedade (São Paulo: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Ambiente e Sociedade, 2004). Acerca das características da colonização
portuguesa na região do Baixo Tocantins, cf.: Maria de Nazaré Ângelo-Menezes,
"Une histoire sociale des systèmes agraires dans la vallé du Tocantins, État du
Pará, Brésil: colonisation européenne dans la deuxième moitié du XVIIIè. siècle
et la première moitié du XIXè.siècle" (Tese de Doutorado, École des Hautes
Études en Sciences Sociales, 1998).
10Na Colônia, as capelas tiveram um papel importante no processo de ocupação de
determinadas regiões. Em São Paulo, por exemplo, cada bairro desenvolveu-se a
partir da construção de uma capela, prática que criava uma base de poder
clientelista para quem as edificava. Elizabeth Kuznesof. "A família na
sociedade brasileira: parentesco, clientelismo e estrutura social (São Paulo,
1700-1880)", Revista Brasileira de História, v.9, n.18 (1988/1989), p.41.
11Fernando Luiz Tavares Marques, "Modelo da agroindústria canavieira colonial
no estuário amazônico: estudo arqueológico de engenhos dos séculos XVIII e XIX"
(Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
2004).
12Castro, "Terras de preto", p.11.
13Rosa Elizabeth Acevedo Marin, "Camponeses, donos de engenhos e escravos na
região do Acará nos séculos XVIII e XIX", Papers do NAEA, v.153 (2000), pp.1-
26.
14O Recenseamento de 1872 indica, para a população escrava de Santana de
Bujaru, uma razão de sexo na casa dos 90. Além disso, evidencia também uma
representativa quantidade de escravos jovens, sendo a aglutinação de velhos uma
particularidade do Engenho Bom Intento. Aparentemente, esse perfil com um maior
número de mulheres em idade adulta pode ter sido a tônica das posses de
escravos do Grão-Pará nos meados do século XIX, como pôde verificar Luciana
Marinho em sua pesquisa. Se, de fato, isso estiver correto, o perfil dos
plantéis da província diferia-se dos seus correspondentes, por exemplo, no
agreste e no sertão de Pernambuco ou na zona rural da cidade de São Paulo, no
mesmo período. A respeito dessas realidades, ver: Luciana Marinho Batista,
"Muito além dos seringais: elites, fortunas e hierarquias no Grão-Pará, c.1850-
c.1870" (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
2004); Zélia Cardoso de Mello, "Os escravos nos inventários paulistanos da
segunda metade do século XIX", in Antônio Emílio Muniz Barreto (org.), História
Econômica: ensaios (São Paulo: IPE/USP, 1983), pp.59-104; Flávio Rabelo
Versiani e José Raimundo Oliveira Vergolino, "Posse de escravos e estrutura da
riqueza no agreste e sertão de Pernambuco: 1777-1887", Estudos Econômicos,
v.33, n.2 (2003), pp.353-93.
15A classificação dos escravos acima dos 50 anos como velhos foi proposta por
José Flávio Motta para o caso da província de São Paulo. Em termos produtivos e
tendo em vista as características particulares da escravidão na Amazônia, é
possível que esse patamar tenda a ser majorado. De toda forma, neste trabalho,
adotamos como parâmetro a classificação proposta pelo autor. Ver: José Flávio
Motta, "O tráfico de escravos velhos (Província de São Paulo, 1861-1887)",
História: Questões & Debates, v.52 (2010), pp.41-73.
16A razão crianças/mulheres é tomada como um indicativo da fecundidade, sendo
bastante utilizada em trabalhos sobre a escravidão que tenham como fonte as
listas nominativas ou os inventários post-mortem. A razão remete-se ao número
de mulheres em idade reprodutiva (15-49 anos) existente para o número de
crianças (0-9 anos), vezes 1.000. As faixas etárias das mulheres em idade
reprodutiva e das crianças variam de pesquisa para pesquisa. Em seu estudo
sobre Mariana, Heloísa Maria Teixeira verificou um aumento na razão crianças/
mulheres entre o final da década de 1850 e o início dos anos 1860,
provavelmente decorrente da proibição definitiva do tráfico atlântico. Nesse
período, os planteis com mais de 20 escravos apresentavam também uma alta razão
crianças-mulheres, na casa dos 1.300, o mesmo patamar verificado em relação ao
sul dos Estados Unidos. Heloísa Maria Teixeira, "Família escrava, sua
estabilidade e reprodução em Mariana, 1850-1888", Afro-Ásia, v.28 (2002)
pp.179-220.
17Cf.: Robert W. Slenes, "The Demography and Economics of Brazilian Slavery,
1850-1888" (PhD. Dissertation in History, Stanford University, 1976). Acerca do
debate historiográfico em torno do tráfico interprovincial de escravos, ver:
José Flávio Motta, "Historiografia e tráfico interno de escravos no Brasil", in
Escravos daqui, dali e de mais além: o tráfico interno de cativos na expansão
cafeeira paulista (São Paulo: Alameda, 2012), pp.61-101.
18Ver: Jaime Rodrigues, O infame comércio: propostas e experiências no final do
tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850), Campinas: Editora da Unicamp/
CECULT, 2000.
19De acordo com Vicente Salles, o último navio negreiro aportou no Pará em
1834, rompendo com o comércio direto com as praças da África. Nos anos
seguintes, ainda segundo o autor, a importação de cativos de outras províncias
brasileiras continuou, estimulada pela isenção de direitos fiscais, até as
vésperas da assinatura da Lei Áurea. Vicente Salles, O negro no Pará sob o
regime da escravidão, Belém: Instituto de Artes do Pará, 2005 [1971], p.76.
20Para um aprofundamento na discussão sobre a relação entre os ciclos de vida
dos escravos e dos seus senhores, ver: Iraci del Nero da Costa, "Nota sobre
ciclo de vida e posse de escravos", in Francisco Vidal Luna et al. (orgs.), O
escravismo em São Paulo e Minas Gerais (São Paulo: EDUSP/ Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2010), pp.441-7.
21Os registros de batismo de Joaquim e Januário Antônio da Silva, constantes no
acervo do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal, nos foram
gentilmente cedidos pelo Prof. Dr. João dos Santos Ramalho Cosme, a quem
agradecemos de antemão. Por meio deles sabemos que os irmãos, filhos legítimos
de José Joaquim Figueiredo e Maria Teodora, foram batizados na freguesia do
Castelo, Sertã, na cidade de Lisboa. O primeiro no dia 04 de março de 1785 e o
segundo, no dia 02 de abril de 1797. No mesmo acervo, consta também o registro
de óbito de Joaquim. "Proprietário" e viúvo de d. Maria da Assunção, ele
faleceu aos 77 anos de idade no dia 02 de julho de 1861, recebendo todos os
sacramentos. Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) Paroquiais do Distrito
de Castelo Branco, Freguesia do Castelo, Sertã, Baptismos, Livro 05, fl. 104
(v); Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) Paroquiais do Distrito de
Castelo Branco, Freguesia do Castelo, Sertã, Baptismos, Livro 06, fl. 64;
Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) Paroquiais, Freguesia Nossa Senhora
da Lapa, Óbitos, Livro 04, fl. 264(v), Reg. v.59.
22Robert W. Slenes verificou que, em situações semelhantes à de Joaquim Antônio
da Silva, alguns proprietários não apenas deixavam de renovar as suas
propriedades, como também acabavam libertando os seus cativos ao final da vida.
Robert W. Slenes, "Senhores e subalternos no oeste paulista", in Luiz Felipe de
Alencastro (org.), História da vida privada no Brasil: Império, a corte e a
modernidade nacional (São Paulo: Companhia das Letras, 2010 [1997]), pp.266-7.
23A taxa bruta de nupcialidade da população cativa de Belém apresentou um
expressivo crescimento entre o final da década de 1840 e o limiar dos anos
1850, com uma tendência à estabilização a partir do início dos anos 1860. Em
1848, essa taxa foi de 0,93; em 1854, 3; em 1862, 1,66; em 1872, 1,72. Barroso,
"Casamento e compadrio em Belém", p.49.
24Barroso, "Casamento e compadrio em Belém", pp.59-66.
25Há um consenso na historiografia sobre a influência da dimensão dos plantéis
Há um consenso na historiografia sobre a influência da dimensão dos plantéis no
comportamento matrimonial dos escravos. Em linhas gerais, tem-se verificado que
ao passo em que nas menores propriedades a ocorrência de casamentos
interplantéis era mais frequente, nas maiores propriedades acontecia justamente
o inverso. Entende-se que os maiores plantéis ofertavam aos escravos um maior
rol de opções de nubentes em seu próprio ambiente, sublinhando a maior
efetividade dos casamentos intraplantéis. Evidentemente, o debate acerca do
casamento de cativos compreende ainda diversas outras condicionantes, que em
alguma medida buscamos considerar ao longo do presente artigo. Para uma visão
mais geral a respeito dessa historiografia, cf. dentre outros: José Flávio
Motta, "A família escrava na historiografia brasileira: os últimos 25 anos", in
Eni de Mesquita Samara (org.), Historiografia brasileira em debate: olhares,
recortes e tendências (São Paulo: Humanitas, 2002), pp.235-54.
26(CMB) Cúria Metropolitana de Belém. Livro I de Registros de Casamento do
Curato da Sé, p.05(v).
27As escravas do Engenho Bom Intento davam à luz em idades que variavam,
geralmente, dos 15 aos 30 anos. A ausência de registros de óbito e a possível
ocorrência de sub-registros de batismo, não nos autorizam a medir com precisão
os intervalos genésicos dessas mulheres. Feitas as devidas ressalvas,
encontramos um intervalo de dois a três anos entre cada nascimento. Ainda que
pesem outros fatores, o intervalo encontrado provavelmente estava relacionado a
um maior ou menor tempo de lactância, e, igualmente, às idades das mães;
observamos que quanto mais velhas as mulheres, maior o intervalo apresentado
entre um nascimento e o outro. Cabe-nos ressaltar, ainda, que a estimativa
encontrada em relação àquela escravaria assemelha-se aos intervalos genésicos
verificados para as populações escravas de outras regiões da América Latina.
Aisnara Diaz e María Fuentes se depararam com um intervalo médio de dois anos
entre as cativas de Santiago de Cuba. Por sua vez, Manolo Florentino e José
Roberto Góes encontraram um intervalo médio de três anos entre as crioulas do
plantel de Manoel de Aguiar, em Bananal, São Paulo. Acerca dessas diferentes
realidades, cf.: Aisnara Perera Díaz e María Fuentes, "Esclavitud, familia y
parroquia en Cuba. Otra mirada desde la microhistoria", Revista Mexicana de
Sociología, v.68, n.1 (2006), pp.137-80; Manolo Garcia Florentino e José
Roberto Góes, "A reconstituição de famílias escravas: parentesco e família
entre os cativos de Manoel de Aguiar Vallim (1872)", Anales del II Congreso de
la Asociación Latinoamericana de Población (Guadalajara, ALAP, 2006).
28Os critérios de avaliação dos escravos dessa propriedade foram praticamente
os mesmos adotados nos inventários paulistanos da segunda metade do século XIX,
pesquisados por Zélia Cardoso de Mello. Notamos que havia uma relação entre o
preço dos escravos e, em primeira instância, o gênero e a geração; e, em
segunda instância, a aptidão ao trabalho (em particular o especializado) e a
possibilidade de reprodução (no caso das mulheres). Eram mais valorizados os
escravos homens especializados em ofícios e em idade adulta e as mulheres
adultas em idade fértil. Quanto mais novos ou velhos os cativos, menor a sua
avaliação. Ademais, alguns outros aspectos, como as doenças ou os problemas
físicos, também diminuíam o seu valor econômico. Para uma discussão mais
sofisticada a respeito da questão, ver: Mello, "Os escravos nos inventários
paulistanos", pp.83 e ss.; Juliana Garavazo, "Riqueza e escravidão no nordeste
paulista: Batatais, 1851-1887" (Dissertação de Mestrado, Universidade de São
Paulo, 2006), pp.173-92.
29Daina Ramey Berry, Swing the Sickle for the Harvest is Ripe: Gender and
Slavery in Antebellum Georgia, Urbana and Chicago: University of Illinois
Press, 2007, p.17.
30Sílvia Hunold Lara, Campos da violência: escravos e senhores na capitania do
Rio de Janeiro (1750-1808), Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.351.
31ACMB. Livro I de Registros de Casamento do Curato da Sé de Belém, p.226(v)
32Como testamenteiro e herdeiro universal de seu irmão, foi Januário Antônio da
Silva quem, por certo, determinou quais escravos seriam alforriados. Parece-nos
claro que foram libertados os cativos que mantinham relações mais próximas a
ele e/ou que eram mais influentes na comunidade escrava do engenho.
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