Federalismo e relações intergovernamentais no Brasil: a reforma de programas
sociais
A literatura comparada contemporânea considera que as características
institucionais dos estados federativos operam no sentido de restringir as
possibilidades de mudança do status quo. A afirmação central é que a natureza
das relações vertical e horizontal em estados federativos dispersa a autoridade
política e potencializa o poder de veto das minorias.
No plano das relações verticais, Lijphart afirma que o federalismo
"[...] pode ser considerado o mais típico e drástico método de
divisão do poder [pois] divide o poder entre níveis inteiros de
governo. [...] Em todas as democracias, o poder é necessariamente
dividido em alguma extensão entre governos centrais e não centrais,
mas esta divisão é inteiramente unilateral nas democracias
majoritárias. Para manter a regra majoritária no modelo majoritário
puro, o governo central deve controlar não apenas o aparato do
governo central mas também todos os governos não centrais,
potencialmente competitivos. O governo majoritário é, portanto, ao
mesmo tempo unitário (não federal) e centralizado. O modelo
consensual é inspirado no objetivo oposto. Seus métodos são
federalismo e descentralização ' isto é, não apenas uma divisão
garantida de poder entre os níveis de governo central e não central,
mas também, na prática, fortes governos não centrais que exercem uma
porção substancial do total do poder disponível em ambos os
níveis" (1999:185-186).
A baixa integração vertical implicaria limites à capacidade de coordenação do
governo central, pois
"[...] governos provinciais e federais podem ter autoridade para
intervir em uma área de política sem permissão do outro nível de
governo. [...] este tipo de federalismo [...] corre o risco de os
diferentes níveis de governo tenderem a impor conflitos entre
programas, a elevar os custos da implementação e a tornar o problema
da coordenação de objetivos ainda mais difícil." (Weaver e
Rockman, 1993:459)
No plano das relações horizontais, a representação dos estados em uma Câmara
Federal, juntamente com as restrições para emendar a Constituição e os poderes
da Suprema Corte, operam no sentido de assegurar a divisão federal de poder
(Lijphart, 1999:187-188), reiterando, assim, a dispersão da autoridade
política. O poder de veto das minorias pode variar de acordo com os poderes
constitucionais da Câmara Alta e com o grau de super-representação dos estados
menores (Lijphart, 1984), mas, de qualquer modo, a presença de um maior número
de veto playersinstitucionalizadosnas arenas decisórias aumenta o potencial de
estabilidade das políticas existentes (Tsebelis, 1997).
A dispersão da autoridade afeta também o conteúdo das decisões tomadas, na
medida em que as garantias institucionais dos Estados-membros no processo
decisório tendem a produzir deliberações políticas com base no "mínimo
denominador comum" (Pierson e Leibfried, 1995)1.
Comparado com outras federações contemporâneas, o Brasil estaria ' juntamente
com os EUA ' no extremo da escala de demos-constraining, isto é,um tipo de
federalismo cujas instituições políticas conformariam processos decisórios
fortemente restritivos à manifestação da vontade da maioria (expressa na
escolha do presidente). Em primeiro lugar, a super-representação dos estados
menores na Câmara dos Deputados, combinada aos excessivos poderes legislativos
do Senado, exponenciariam o poder de veto dos estados menores2. Além disso, o
poder residual dos estados nos casos de omissão constitucional, o excessivo
detalhamento da Constituição de 1988 e a exigência de supermaiorias para as
emendas constitucionais ofereceriam aos estados oportunidades adicionais de
veto às iniciativas de reforma da Presidência (Stepan, 1999)3. A conseqüência
dessa engenharia institucional é que
"[...] mesmo ao se defrontar com a oposição da sociedade, os
presidentes [brasileiros] puderam implementar as políticas de sua
preferência quando encontraram baixa resistência institucional, mas
não foram capazes de fazê-lo quando o Congresso e/ou os governos
foram jogadores decisivos" (Mainwaring, 1997:102).
Os presidentes brasileiros ficariam imobilizados nas áreas de política em que o
Congresso e os governadores são veto playersdecisivos (idem; Abrucio, 1998;
Stepan, 1999; Samuels, 2000; Ames, 2001). Seriam, assim, duas as situações mais
prováveis nas iniciativas de reforma que afetariam os interesses dos estados no
Brasil: (a) impasse ou paralisia decisória e/ou (b) subordinação das
preferências do governo federal àquelas dos governos estaduais e/ou municipais.
Essas previsões não são confirmadas pelas evidências apresentadas aqui. Em
quatro áreas de política social ' educação fundamental, saúde, habitação e
saneamento ', o governo federal encontrou resultados diversos na implementação
da agenda de reformas que afetavam diretamente os interesses de estados e
municípios. Entretanto, nem o impasse nem a subordinação do governo federal às
preferências dos governos locais caracterizaram os casos examinados. Em outras
palavras, diferentemente das previsões da literatura que enfatiza o poder de
veto dos governos subnacionais no federalismo brasileiro, estes últimos não
representaram um ponto de veto intransponível à implementação da agenda de
reformas do governo federal nessas políticas particulares.
Este artigo pretende demonstrar que, (i) na ausência de imposições
constitucionais, a autonomia política dos governos locais ' inerente aos
estados federativos ', de fato, potencializa o poder de veto desses governos à
implementação de políticas propostas pelo Executivo federal. Isto implica que,
para obter a adesão dos governos locais, o Executivo federal deve incorporar
suas demandas às políticas que envolvam relações intergovernamentais. A
incorporação de pelo menos uma parte dessas demandas, somada ao compromisso
crível de cumpri-las, permite ao Executivo federal contornar o poder de veto
dos governos locais no plano das relações verticais.
No plano das relações horizontais, (ii) a literatura que enfatiza o poder de
veto dos governos locais na arena congressual brasileira minimiza a importância
dos recursos de poder do Executivo federal, tais como os poderes de agenda e de
veto, assim como o controle sobre recursos necessários à sobrevivência política
dos parlamentares (Figueiredo e Limongi, 1999; 2002). Além disso, ao contrário
do que afirma Stepan (1999), (iii) no Brasil, a aprovação de emendas
constitucionais é muito mais fácil do que nos Estados Unidos, porque, como
nossas regras não incluem a necessidade de ratificação das assembléias
estaduais, a autoridade constitucional dos estados brasileiros é muito mais
reduzida do que a dos estados norte-americanos. Nos Estados Unidos, emendas à
Constituição, mesmo que não afetem a distribuição federal de poderes, exigem a
ratificação de três quartos dos Estados-membros, e há mesmo tipos de emendas
que não podem ser aprovadas sem a ratificação de 49 dos 50 estados (Duchacek,
1970:231)4.
Entretanto, (iv) a categoria "federalismo" é insuficiente para
definir o potencial de estabilidade de políticas particulares. Este é
condicionado pela forma como estão estruturadas as relações intergovernamentais
nas políticas específicas5. Em outras palavras, o poder de veto dos governos
locais às iniciativas federais varia de acordo com as políticas. Mais
particularmente, (v) regras constitucionais, legados de políticas prévias e o
ciclo da política estruturam diferentemente as arenas decisórias, condicionando
as estratégias e as chances de sucesso dos atores federativos6.
AS REFORMAS NAS POLÍTICAS SOCIAIS BRASILEIRAS E SUAS ARENAS
Políticas de Habitação e Saneamento
Nas áreas de habitação e saneamento, a mudança do paradigma de política
pública7 do regime militar somente ocorreu no governo Fernando Henrique
Cardoso. Nenhum dos governos democráticos anteriores tinha uma agenda de
reformas que visasse modificar radicalmente o modelo de política anterior.
Quer para a política de habitação social quer para o saneamento básico, o
modelo do regime militar era simultaneamente estatal e centralizado. A oferta
de bens e serviços fazia-se via produção pública ' a habitação social e os
serviços de saneamento básico eram geridos por empresas estatais. No plano
federal, havia uma agência que centralizava a formulação das políticas e a
arrecadação da principal fonte de financiamento da política, o Fundo de
Garantia por Tempo de Serviço ' FGTS. Com base nesse modelo, constituiu-se no
país uma rede de 44 empresas públicas municipais e estaduais de habitação
social, assim como 27 companhias estaduais de saneamento8.
A agenda de reformas do governo Fernando Henrique Cardoso visou rever esse
paradigma: descentralizar a alocação dos recursos federais e introduzir
princípios de mercado na provisão de serviços, mais particularmente abrir
espaço para a participação do setor privado nessa área e introduzir uma
política de crédito para o mutuário final.
Esses objetivos de reforma decorriam de uma avaliação negativa dos resultados
do modelo anterior. O Executivo federal avaliava que a corrupção e ineficiência
administrativas das gestões civis precedentes foram possíveis graças à
centralização federal9; por conseguinte, era forte a concepção, derivada desta
primeira, que associava positivamente descentralização a formas mais ágeis,
democráticas e eficientes de gestão. A defesa da descentralização era ainda
reforçada pela avaliação de que a burocracia federal estava viciada nos padrões
administrativos prévios. Além disso, o Executivo federal considerava que o
modelo anterior gerava incentivos à ineficiência das prestadoras estaduais e
municipais. Políticas tarifárias voltadas a satisfazer o eleitorado,
renegociação sistemática das dívidas com o governo federal, empreguismo e uma
burocracia ativa na defesa de seus próprios interesses eram o resultado do
modelo anterior. A separação entre regulação (estatal) e provisão (privada ou
pública com padrões privados de eficiência) seria a alternativa mais adequada.
Por fim, na política social de habitação, o financiamento à produção do modelo
anterior implicava que o crédito hipotecário só podia ser obtido para imóveis
cuja produção tivesse sido financiada pelo sistema. Como nesse modelo não é o
mutuário quem tem o financiamento, e sim o imóvel que será objeto da compra, a
conseqüência direta é a reduzida margem de escolha do mutuário final no mercado
imobiliário, assim como a impossibilidade de ativar o mercado de imóveis
usados. A ausência de financiamento direto ao mutuário final, habilitando-o a
adquirir um imóvel diretamente no mercado, era uma das principais críticas '
inclusive de setores da esquerda ' ao modelo anterior.
Desestatização das empresas públicas de habitação e saneamento
Em 1995, já no primeiro ano da gestão do ministro José Serra no Ministério do
Planejamento e Orçamento, os governadores de estado foram contemplados com a
possibilidade de ter grande autoridade sobre a alocação de suas respectivas
parcelas do fundo público federal para o desenvolvimento urbano, o FGTS10. Para
aderir ao programa, os governadores deveriam constituir comissões estaduais,
com representação paritária entre governo do estado, governos municipais e
sociedade civil. Eles contavam com grande autonomia na composição dessas
comissões, o que permitiu um comportamento generalizado de montagem de
comissões passíveis de controle no processo decisório de seleção de projetos.
Na história das políticas públicas no Brasil, esse deve estar entre os
programas com maior velocidade de implantação: em apenas quatro meses, todos os
estados brasileiros haviam aderido a ele. Na base desse sucesso estão suas
regras de operação: a definição de uma estrutura de incentivos que tornou
extremamente atraente a adesão dos governadores ao programa federal.
A descentralização da autoridade para alocação desses recursos, entretanto, foi
combinada com um endurecimento das exigências para a obtenção dos empréstimos
federais. Mesmo que aprovada pela comissão estadual, por uma empresa pública
estadual ou municipal, ou mesmo um governo estadual ou municipal, somente
poderia receber um financiamento caso comprovasse capacidade de endividamento.
Assim, no quadro de endividamento generalizado de meados dos anos 90, somente
aquelas empresas públicas que tivessem sucesso nas medidas de saneamento de
suas finanças obteriam os empréstimos federais.
Essa medida dividia os governadores entre aqueles que "estavam fazendo a
sua lição de casa" e aqueles que resistiam a adotar medidas de contenção
do déficit público; bem como criava incentivos para a reestruturação das
empresas públicas de habitação e saneamento. Empresas públicas já
excessivamente endividadas com o governo federal ' que tinha sido de longe o
maior emprestador até então ' passaram a ser objeto de uma política de
desfinanciamento.
No debate público, o governo federal argumentava que o FGTS, baseado na folha
de salários e destinado também a indenizar trabalhadores demitidos sem justa
causa, sofria as conseqüências do desemprego e do baixo nível dos salários. Seu
caráter pró-cíclico erodia a possibilidade de realizar a universalização dos
serviços exclusivamente com base em recursos públicos. Para isto, seria
necessário atrair recursos do setor privado, abrindo as empresas estatais '
particularmente as de saneamento ' a formas de terceirização e privatização dos
serviços.
Entretanto, por causa do endurecimento das condições de empréstimo e da
política de desfinanciamento, acumulava-se um saldo muito elevado de recursos
não aplicados do FGTS. Em 1997, este saldo era de R$ 9,5 bilhões (Pinheiro,
1998), algo equivalente a mais da metade da arrecadação bruta anual do Fundo em
1996 e 1997.
Paralelamente, dois bancos federais de fomento abriram linhas de crédito para
financiar as privatizações na área de saneamento. O Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social ' BNDES financiou algumas das privatizações
municipais e adiantou recursos para a privatização de uma companhia estadual, e
a Caixa Econômica Federal ' CEF foi autorizada, em 1997, pelo Conselho Curador
do FGTS, a criar um programa por meio do qual os recursos do Fundo poderiam ser
utilizados para financiar as privatizações das companhias de saneamento.
A estratégia do desfinanciamento decorreu, simultaneamente, da impossibilidade
de interferência direta do Executivo federal nas empresas públicas de
saneamento e habitação e de sua função de principal financiador da política,
ambas herdadas do modelo anterior. Na fase de expansão e consolidação da rede
prestadora de serviços, ao longo dos anos 70, havia se constituído uma rede de
empresas de propriedade pública estadual e municipal. Dada a autonomia política
dos governos locais, qualquer política do governo federal nessa área teria de
contar com a adesão deles. Entretanto, a função de financiador do Executivo
federal permitiu-lhe adotar a estratégia do desfinanciamento, cujos efeitos
seriam indiretos e pouco visíveis ao debate público.
Na área de habitação, entre 1995 e 2000, doze das 44 Companhias de Habitação '
COHABS declararam falência ou diversificaram suas atividades, passando a operar
como institutos de desenvolvimento urbano e não mais como agências de promoção
pública de habitações para baixa renda11.
Na área de saneamento, a privatização das empresas estaduais era uma
alternativa atraente para certos governadores e prefeitos. Alguns
compartilhavam da mesma avaliação negativa do governo federal em relação à
prestação pública de serviços, especialmente do fato de essas empresas terem
gerado burocracias autônomas e politicamente ativas sobre as quais a autoridade
política tinha reduzido poder de controle. Outros, premidos por problemas
fiscais, viam na venda de suas empresas uma alternativa seja para reduzir o
déficit público seja para arrecadar recursos que poderiam ser empregados com
maior liberdade alocativa. Iniciou-se, assim, na segunda metade dos anos 90,
uma onda de tentativas de privatização de companhias municipais e estaduais de
saneamento12 nos estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Paraná e Ceará, bem
como em algumas cidades como Fortaleza (CE), Limeira (SP) e Cajamar (SP).
Nos municípios, o único ponto de veto à privatização das empresas municipais
seria a Câmara Municipal. O reduzido número de pontos de veto associado ao
interesse dos prefeitos nas privatizações permitiriam esperar uma significativa
taxa de sucesso dessas iniciativas. No entanto, Sanchez (2000) demonstra que,
no Estado de São Paulo, entre 1995 e 1998, a pressão ' da opinião pública e da
companhia estadual interessada em disputar esse mercado com as possíveis
prestadoras privadas ' sobre as Câmaras Municipais inviabilizou a maior parte
das tentativas municipais de privatização.
As tentativas de privatização das empresas estaduais, cuja iniciativa cabia aos
governadores, foram enormemente dificultadas pela configuração de arenas
decisórias caracterizadas por um elevado número de pontos de veto e baixa
coesão dos atores envolvidos. Grande parte dos obstáculos para a privatização
ou flexibilização dos serviços (isto é, a transferência de apenas parte dos
sistemas a um prestador privado) decorreu da pulverização de titularidade no
setor saneamento, a qual, por sua vez, é derivada de uma regra constitucional.
A interpretação dominante sobre o artigo 30 da Constituição Federal de 1988 é a
de que as atividades de saneamento básico são de responsabilidade
municipal13.As empresas estaduais de saneamento operam os serviços como
concessionárias, com base em contratos firmados ao longo dos anos 70 e 80.
Assim, ainda que uma companhia estadual possa vender seus ativos, este ato não
implicaria a autorização para um terceiro operar os serviços concedidos pelos
municípios às companhias estaduais. Neste caso, com base na interpretação
dominante sobre a regra constitucional, a privatização de uma companhia
estadual de saneamento (ou de um sistema ou subsistema de serviços) dependeria
da aprovação de todas as Câmaras Municipais onde a companhia é concessionária.
As tentativas de privatização das empresas estaduais foram marcadas pelas
dificuldades de os Executivos estaduais superarem o recurso ao princípio de
titularidade por parte de empregados das empresas estaduais, de prefeitos e de
vereadores das diversas Câmaras Municipais14.
Em 1996, o então senador José Serra encaminhou ao Senado um projeto de lei (PL
266/96) que, caso aprovado, dispensaria o governo do estado da autorização dos
municípios nas privatizações em conurbações e regiões metropolitanas.
Entretanto, este projeto foi considerado inconstitucional na Comissão de
Constituição e Justiça do Senado.
Nessas condições, caso a privatização na área de saneamento estivesse entre as
prioridades do Executivo federal, o passo seguinte deveria ser o encaminhamento
de uma proposta de emenda constitucional. Mas esta iniciativa não foi tomada.
A mudança do modelo de política social de habitação
Na área de habitação social, o Executivo federal criou duas linhas de
financiamento em 1995. A primeira, o Programa Pró-Moradia, pode ser considerada
uma continuação do modelo anterior. Voltado para a população de até três
salários-mínimos, este programa contaria com a intermediação de agentes
promotores públicos, prefeituras e órgãos da administração direta e indireta
para a construção ou melhoria de unidades habitacionais ou para a execução de
modalidades diversas de infra-estrutura urbana. O desenho institucional da
segunda linha de financiamento, o Programa Carta de Crédito Individual,
entretanto, rompia com o paradigma do modelo anterior. Dirigido à população de
até doze salários-mínimos, deveria conceder financiamentos diretamente ao
mutuário final para que este pudesse adquirir uma moradia nova ou usada, ou
mesmo construir ou reformar a sua. Trata-se de um programa de financiamento à
demanda habitacional, cuja principal característica é permitir ao mutuário
adquirir um imóvel diretamente no mercado imobiliário.
Entre 1995 e 1998, a rede de empresas públicas de habitação recebeu 11,5% dos
recursos do FGTS, via Programa Pró-Moradia, e 28% dos recursos destinados ao
Programa Carta de Crédito Associativo. O Programa de Carta de Crédito
Individual, por sua vez, recebeu 76% desses recursos, utilizados
majoritariamente para a aquisição de imóveis usados (Tabelas_1, 2 e 3).
Portanto, via gestão seletiva das linhas de crédito, ocorreu uma inflexão
significativa na política habitacional: de um modelo centrado no financiamento
à produção de habitações novas, e assentado em uma rede de prestadoras
públicas, para um modelo centrado no financiamento ao mutuário final e,
particularmente, destinado à aquisição de imóveis usados.
A alteração radical do modelo de financiamento à aquisição da casa própria
contou com o apoio dos mutuários, pois a nova modalidade ' uma antiga
reivindicação de diversos críticos do modelo anterior ' amplia
significativamente a liberdade de escolha do pretendente no mercado
imobiliário. Desse modo, a estratégia de desfinanciamento das empresas
públicas, via gestão seletiva dos financiamentos habitacionais, encontrava
suporte político entre os beneficiários da política habitacional.
A gestão seletiva das linhas de financiamento não foi um resultado não
intencional, derivado da exigência de adimplência junto ao governo federal para
obtenção de recursos do FGTS, isto é, o desfinanciamento das empresas públicas
não foi resultado apenas das taxas de inadimplência das prestadoras públicas. A
meta de prioridade de aplicação de recursos no Programa de Carta de Crédito em
detrimento do Programa Pró-Moradia foi objeto de uma resolução do Conselho
Curador do FGTS (nº 246) já em 1996. Assim, o desfinanciamento das empresas
públicas fez parte de uma estratégia cujo objetivo central era introduzir
mecanismos de mercado na gestão das políticas de desenvolvimento urbano.
A principal arena para aprovação das medidas necessárias à implementação dessa
estratégia foi o Conselho Curador do FGTS. Conforme legislação aprovada no
final dos anos 8015, este Conselho é o órgão encarregado de estabelecer as
diretrizes e os programas de alocação de recursos do Fundo. Ele conta com uma
representação de empregados e empregadores, mas não possui representação de
estados e municípios. Em outras palavras, ainda que suas decisões sejam
fundamentais para o financiamento das políticas de desenvolvimento urbano dos
governos locais, o Conselho não é uma arena com representação federativa16, o
que significa que estados e municípios não têm poder de veto nessa arena
decisória. Na verdade, esta é uma arena cujos custos de negociação são bastante
reduzidos para o governo federal17.
Reforma Constitucional para o Ensino Fundamental
Entre 1997 e 2000, ocorreu no Brasil uma significativa redistribuição das
matrículas no nível fundamental de ensino. A matrícula total do setor público
cresceu 6,7% no período, ao passo que as matrículas oferecidas pelos municípios
aumentaram 34,5% e as estaduais tiveram crescimento negativo (-12,4%) (ver
Tabela_4). Isto significa que ocorreu uma expressiva transferência das
matrículas até então oferecidas pelos governos estaduais para os governos
municipais. Os governos locais também alteraram seu comportamento para com os
docentes: no período, ocorreu um crescimento global de 10% no número de
professores e um aumento médio de 29,5% em sua remuneração. Na região Nordeste,
esta elevação média foi de 59,7% e, na região Norte, de 35% (Semeghini, s/d).
O súbito interesse dos municípios em oferecer matrículas no ensino fundamental
e em aumentar os salários dos professores deveu-se a uma minirreforma
tributária de âmbito estadual, produzida pela aprovação da emenda
constitucional que criou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
Fundamental e de Valorização do Magistério ' FUNDEF. A Constituição Federal de
1988 havia estabelecido que a oferta de matrículas no nível fundamental deveria
ser universal e oferecida preferencialmente pelos governos municipais. Além
disso, obrigava governos estaduais e municipais a gastar 25% de suas receitas
de impostos e transferências em ensino. Essa regra de vinculação de gastos deu
origem a uma expansão generalizada ' por parte de governos estaduais e
municipais ' da oferta de matrículas em todos os níveis de ensino ' infantil,
fundamental, médio e, até mesmo, superior. Além disso, a flexibilidade da regra
constitucional permitiu que a expansão desse gasto se direcionasse para outras
atividades afins, tais como financiamento de bolsas de estudo, transporte
escolar etc. Particularmente nas regiões Sul e Sudeste, onde os governos
estaduais já tinham uma participação importante na oferta de matrículas no
ensino fundamental, a expansão de gastos dos municípios voltou-se vigorosamente
para o ensino infantil.
Para promover a municipalização e a valorização salarial dos professores (vale
dizer, aqueles que exercem diretamente atividades em sala de aula nesse nível
de ensino), técnicos do Ministério da Educação ' sem consulta ou negociação com
estados e municípios ' elaboraram um projeto de emenda constitucional que
previa que, pelo prazo de dez anos, estados e municípios deveriam aplicar, no
mínimo, 15% de todas as suas receitas exclusivamente no ensino fundamental.
Além disso, 60% desses recursos deveriam ser aplicados exclusivamente no
pagamento de professores no efetivo exercício do magistério. Para garantir
padrões mínimos de gasto em educação, a emenda constitucional também
determinava que deveria ser estabelecido a cada ano um valor mínimo nacional de
gasto por aluno, sendo este complementado pelo governo federal nos estados onde
o valor mínimo nacional não fosse alcançado.
Na prática, a implementação dessa emenda constitucional implicava uma
minirreforma tributária de âmbito estadual, na medida em que, a cada ano, 15%
das receitas de impostos de estados e municípios seriam automaticamente retidas
e contabilizadas em um fundo estadual, o FUNDEF18, e redistribuídas, no
interior de cada estado, entre governos estaduais e municipais
proporcionalmente ao número de matrículas oferecidas anualmente19.
A proposta de emenda constitucional penalizava diretamente os nove estados da
região Nordeste e o Rio de Janeiro, uma vez que neles a matrícula já era
predominantemente municipal (ver Tabela_4). Entretanto, favorecia outros
estados que ou receberiam receitas adicionais ou obteriam adesão de seus
respectivos municípios para a municipalização da matrícula. Por conseqüência, a
proposta do Executivo federal dividia os governadores entre
"perdedores" e "ganhadores".
A estratégia formulada por técnicos do Ministério da Educação além de obter a
aprovação da Presidência fez com que o Executivo federal mobilizasse sua
coalizão de apoio para aprovar a emenda constitucional no Congresso. As perdas
fiscais dos estados do Nordeste ' que provocaram a resistência de suas bancadas
à aprovação da emenda ' foram compensadas com a inclusão do auxílio federal ao
ensino médio nos estados da região por um período de cinco anos no Projeto
Alvorada.
Adicionalmente, a ausência da regra de ratificação dos estados para a aprovação
de emendas à Constituição, mesmo em decisões que afetam diretamente as receitas
de estados e municípios, limitou significativamente o potencial de veto dos
estados e municípios diretamente penalizados pela reforma. A emenda foi
aprovada e regulamentada em 1996 e implementada a partir de 199820.
Para o Executivo federal, a estratégia de emendar a Constituição decorreu do
fato de a oferta de ensino fundamental estar distribuída entre governos
estaduais e municipais, em decorrência de diferentes trajetórias estaduais de
expansão dessa oferta, ocorrida particularmente entre os anos 70 e 90. À
exceção de um programa no Paraná entre meados dos anos 80 e 90, e de alguns
poucos esforços no Nordeste durante o regime militar, as tentativas de
municipalização por parte de governos estaduais tinham sido em geral
fracassadas. Elas defrontavam-se com as resistências dos governos municipais a
assumir novas atribuições. Além disso, nessa política particular,
diferentemente das políticas de desenvolvimento urbano e de saúde, o governo
federal não detinha a função de principal financiador, o que limitava muito
seus recursos para induzir o comportamento dos governos locais.
O acelerado processo de alteração dos padrões prévios de distribuição das
matrículas no âmbito dos estados, assim como de elevação dos salários docentes,
explica-se em grande parte pelo interesse dos governos locais em aumentar suas
receitas. Isto é, uma vez aprovada a emenda constitucional, aumentar a oferta
de matrículas na rede de ensino fundamental passou a ser uma estratégia
racional para obter receitas adicionais. Trata-se, assim, do resultado da
estrutura de incentivos da nova legislação sobre a decisão dos governos
subnacionais. A oferta de matrículas no ensino fundamental permitiu combinar
ganhos de receita com a ampliação da oferta de serviços à população, bem como a
elevação dos salários dos professores.
Descentralização da Política de Saúde
Ao longo da década de 90, o governo federal foi muito bem-sucedido em
transferir para os municípios brasileiros a responsabilidade pela gestão dos
serviços públicos de saúde.
A descentralização e a universalização da política federal de saúde e a
conseqüente construção do Sistema Único de Saúde ' SUS passaram a ser normas
constitucionais na Constituição Federal de 1988. Embora o princípio do direito
universal de acesso aos serviços públicos de saúde passasse a ter validade
imediatamente após a promulgação da Constituição, a municipalização destes
implicava um processo de reestruturação do arcabouço nacional dos serviços,
cuja principal conseqüência seria a transferência de atividades até então
desempenhadas no âmbito federal para os municípios21. Esse novo modelo estaria
assentado na separação entre financiamento e provisão dos serviços (Costa et
alii, 1999), ficando o financiamento a cargo das três esferas de governo e a
provisão dos serviços sob a responsabilidade dos municípios.
A municipalização da gestão dos serviços de saúde foi o elemento central da
agenda de reformas do governo federal ao longo da década de 90, e pode-se
afirmar que, deste ponto de vista, a reforma foi um sucesso. Em 2000, 99% dos
municípios estavam habilitados junto ao SUS, aceitando, assim, as normas da
política de descentralização do governo federal (ver Tabela_5).
A agenda da reforma tinha como objetivos universalizar o acesso aos serviços e
descentralizar sua gestão, isto é, a reforma visou, simultaneamente, romper com
o modelo prévio assentado sobre o princípio contributivo e transferir aos
municípios responsabilidades de gestão da prestação de serviços, mantendo a
participação federal no financiamento da política. Tratava-se, portanto, de uma
reforma que envolvia o princípio ordenador do direito à saúde e o modelo
centralizado de prestação de serviços.
A universalização dos serviços implicava a ampliação da abrangência de direitos
dos cidadãos, uma vez que o princípio contributivo do modelo anterior excluía
do acesso aos serviços camada significativa da população com baixos rendimentos
ou com formas precárias de inserção no mercado de trabalho. Esse objetivo da
reforma ' elevar o número de beneficiários da política ', seguramente,
representou um forte estímulo para a adesão dos municípios ao SUS. Os créditos
políticos derivados do aumento da oferta de serviços de saúde criaram nas
administrações locais incentivos para assumir sua gestão22.
No entanto, essa variável ' o interesse das elites locais na visibilidade
política da universalização dos serviços de saúde ' não é suficiente para
explicar a adesão dos municípios à política federal nem o ritmo em que esta
ocorreu. O objetivo da universalização, a norma constitucional da
municipalização dos serviços, a competição eleitoral e as condições
institucionais para a barganha federativa já estavam presentes no cenário
político brasileiro em 1988. Estes fatores explicam, por exemplo, por que o
número de estabelecimentos municipais de saúde cresceu de 2.961 para 18.662
entre 1981 e 1992, passando de um percentual de 22% para 69% do total de
estabelecimentos do setor público no mesmo período (Costa et alii, 1999:37).
Todavia, eles não explicam por que os municípios aceitaram a transferência da
responsabilidade pela gestão dos serviços, tarefa razoavelmente mais complexa
do que a sua simples oferta. Observe-se que a instalação de capacidades de
gestão envolvia custos elevados, tendo em vista a quase ausência destas nas
administrações municipais, resultado da centralização das funções no Executivo
federal desde a era Vargas. Aquelas variáveis também não são suficientes para
explicar por que esse processo de aceitação da transferência de
responsabilidades se acelerou apenas na segunda metade dos anos 90 (ver Gráfico
1).
A adesão dos municípios ao SUS e, particularmente, o seu ritmo no plano
nacional são explicados pela estratégia de descentralização do governo federal
consubstanciada em portarias editadas pelo Ministério da Saúde. Os
"arrancos" de adesão estão diretamente associados à edição das Normas
Operacionais Básicas. A NOB/91 introduziu o princípio da habilitação ao SUS,
mecanismo mediante o qual os estados e municípios poderiam aderir à política
federal de descentralização, subordinando-se às regras federais e capacitando-
se a receber as transferências oriundas dessa esfera de governo. Entre 1991 e
1992, sob o governo Collor, ocorreu um primeiro impulso de adesão sob as NOB/91
e NOB/92, que regulamentavam a sistemática de transferência de recursos para os
estados e municípios. No governo Collor, entretanto, essas portarias
ministeriais estabeleciam regras de transferência de recursos que conferiam um
caráter incerto e politizado às mesmas, razão pela qual a adesão municipal ao
SUS, nesse período, permaneceu em 22% (ver Tabela_5). Essas NOBs foram
fortemente combatidas pelo movimento sanitarista e foram "mais conhecidas
pelo que não avançaram do que pelo que implantaram"(Guimarães, 2001:49).
O segundo grande arranco, entre 1993 e 1995, ocorreu sob a vigência da NOB/93,
durante o governo Itamar Franco. Resultado de um amplo processo de consulta,
esta Portaria do ministro da Saúde abria um leque de escolhas aos municípios,
que poderiam optar entre três modalidades distintas de habilitação de acordo
com suas capacidades administrativas, vindo a receber recursos federais
diretamente vinculados às funções de gestão assumidas. Nesse segundo momento,
ainda marcado pela incerteza quanto à capacidade de o Ministério da Saúde
efetivamente realizar a totalidade das transferências por causa da escassez de
recursos, 63% dos municípios brasileiros aderiram ao SUS23.
O processo de municipalização completou-se sob a NOB/96, cuja implantação
ocorreu somente a partir de 1998. A adesão dos municípios foi superior às metas
do próprio Ministério da Saúde. Duas são as principais razões para este
resultado. Em primeiro lugar, as novas regras de transferência federais
acrescentavam recursos aos cofres de 66% dos municípios brasileiros e eram
fiscalmente neutras para 22% deles (Costa et alii, 1999:45). Em segundo, o
Ministério da Saúde fez crer que as transferências seriam efetivamente
realizadas.
No caso da política de saúde, a passagem da fase de definição dos objetivos da
reforma para a etapa de implementação implicou um deslocamento da principal
arena decisória: do Parlamento para o Executivo, transferindo poder decisório
para as burocracias deste último. As determinações constitucionais já haviam
sido estabelecidas em 1988, cabendo ao Ministério da Saúde a edição de normas
operacionais para colocar em prática o processo de transferência de funções a
estados e municípios.
Entretanto, os conflitos com o Executivo federal durante o governo Collor
tornaram visível ao movimento sanitarista ' principal articulador do processo
de descentralização ' que a concentração de recursos de autoridade no
Ministério da Saúde ' via funções de financiamento e de coordenação das
relações intergovernamentais ' limitava a representação de interesses de
estados e municípios na arena decisória de formulação e implementação da
reforma. No governo Itamar Franco, a oportunidade institucional oferecida por
um ministro com fortes ligações com o movimento sanitarista, Jamil Haddad,
permitiu a institucionalização de uma arena federativa para a formulação da
política de saúde: todas as medidas da descentralização deveriam ser aprovadas
por uma Comissão Intergestores Tripartite, composta por representantes dos
Executivos federal, estaduais e municipais. A constituição dessa arena
federativa permitiu a incorporação parcial das demandas dos governos locais às
regras da política federal. Assim, as portarias editadas pelo Ministério da
Saúde adaptaram sucessivamente as regras de operação da política para obter a
adesão dos municípios.
O conteúdo das sucessivas normas operacionais expressa um processo de
aprendizagem (policy-learning) no âmbito das burocracias do Ministério da
Saúde. Por seu intermédio, foram alteradas, no prazo de menos de uma década, as
regras da política federal de descentralização, sem que fossem modificados seus
instrumentos e nem sequer seus objetivos. Neste processo, a burocracia do
Ministério da Saúde incorporou não só demandas dos atores com potencial
capacidade de veto à política federal (particularmente estados e municípios),
como também a participação institucionalizada desses atores na formulação das
regras federais.
CONCLUSÕES
Nos quatro casos de política social aqui analisados, o governo federal alcançou
diferentes graus de sucesso, mas, à exceção da privatização das empresas
estaduais de saneamento, não encontrou obstáculos intransponíveis para
implementar sua agenda de reformas.
Os casos apresentados revelam, em primeiro lugar, que não existe relação
necessária entre a radicalidade das reformas pretendidas pelo Executivo federal
e a arena decisória em que são aprovadas as medidas indispensáveis à sua
implementação. Reformas radicais e profundas no modelo de uma política pública
não implicam, obrigatoriamente, que as decisões que lhe são correlatas devam
ser tomadas em uma arena decisória cujos custos de aprovação sejam mais
elevados para o Executivo federal ' como, por exemplo, a aprovação de reformas
constitucionais no Congresso. Das quatro políticas em tela, em apenas uma ' a
municipalização da educação básica ' a aprovação de uma emenda constitucional
foi a estratégia adotada pelo governo federal.
Os quatro casos têm em comum o fato de o sucesso das reformas depender da
capacidade do Executivo federal para superar o poder de veto à implementação de
políticas decorrente da baixa integração vertical de estados federativos. Em
razão da sua autonomia política e fiscal, os governos subnacionais adotam as
políticas federais apenas por adesão voluntária ou obrigação constitucional.
Nas quatro políticas, verifica-se que o governo federal excluiu a possibilidade
de atribuir competências exclusivas ou obrigações constitucionais aos governos
subnacionais, buscando a aprovação de medidas cuja estrutura de incentivos
tornasse atraente a subordinação de estados e/ou municípios a seus objetivos de
reforma.
A estratégia do Executivo federal, em cada política particular, foi
condicionada pelos objetivos da reforma e pelo modo como estavam estruturadas
as relações intergovernamentais, que, por sua vez, são condicionadas por regras
constitucionais, legado de políticas anteriores e o ciclo da política.
No caso da educação fundamental, o objetivo da reforma envolvia a intervenção
em distintas configurações estaduais de distribuição de matrículas e nos
sistemas de pagamento de professores. Dado que a oferta de serviços era, e
ainda é, inteiramente controlada por estados e municípios e o Executivo federal
estava insuficientemente dotado de recursos para influir nas escolhas dos
governos locais ' tais como o papel de financiador nas políticas de saúde e
desenvolvimento urbano ', a realização de uma minirreforma tributária de âmbito
estadual, via aprovação de uma emenda constitucional, foi a estratégia adotada.
Esta minirreforma afetava diretamente as receitas fiscais dos estados da região
Nordeste, o que não impediu, todavia, sua aprovação, tendo esta sido
viabilizada graças ao poder de agenda e ao uso de recursos à disposição do
presidente, à coalizão de apoio parlamentar do Executivo federal e à ausência
da regra de ratificação dos estados para emendas constitucionais no Brasil.
Tais características do presidencialismo e do federalismo brasileiros
deslocaram para a arena do Poder Executivo a parte mais importante do processo
de formulação da reforma, tal como previsto por Immergutt (1996) para os
Estados unitários e parlamentaristas. Uma vez aprovada a emenda, a adesão dos
governos locais foi um resultado direto dos incentivos fiscais embutidos nas
regras de operação da nova política.
A descentralização da atenção à saúde não envolvia uma reforma constitucional,
mas a obtenção da adesão dos municípios a normas constitucionais já aprovadas
em 1988. Neste caso, a estratégia passou pela edição de um conjunto sucessivo
de portarias ministeriais, a partir das quais a burocracia do Ministério da
Saúde foi progressivamente organizando uma estrutura de incentivos destinada a
obter a adesão dos municípios aos objetivos da reforma. A estratégia foi em
grande parte condicionada pelas possibilidades de veto dos municípios à
implementação das medidas pretendidas. A fase de implementação, combinada às
funções do Ministério da Saúde, transformou o Executivo federal na principal
arena decisória, muito embora tenha sido institucionalizada uma arena
federativa, através da qual os interesses e a representação de estados e
municípios foram incorporados ao processo de formulação das regras federais.
Finalmente, a desestatização progressiva das empresas públicas de habitação,
assim como a modificação radical da política federal de habitação, foram
resultado de uma estratégia de desfinanciamento ' via mudança das exigências
legais para obtenção de financiamentos federais ' bem como da gestão seletiva
da liberação de recursos federais. No que se refere às políticas de habitação e
saneamento, a arena decisória para a aprovação das medidas de reforma não
incluía a representação de estados e municípios, o que favoreceu a aprovação
dos objetivos de reforma do Executivo federal. Formulada a estratégia pela
burocracia do Ministério do Planejamento e Orçamento, os obstáculos
institucionais seriam praticamente irrelevantes.
Conforme vimos, a aprovação de medidas no Congresso é uma das etapas de um
processo de reformas. Uma vez aprovada uma legislação reformadora na arena
parlamentar, sua implementação envolve a adoção de medidas que deslocam para a
arena do poder Executivo federal a autoridade decisória sobre o conteúdo das
políticas a serem efetivamente concretizadas. Isto significa que as burocracias
encarregadas da implementação das reformas aprovadas passaram a dispor de
inúmeras oportunidades institucionais para tomar decisões independentemente de
autorização legislativa. Posteriormente à aprovação legislativa, essas
burocracias têm autoridade para traduzir leis em políticas efetivas,
simplesmente pela definição das regras de implementação das políticas.
NOTAS
1. Weir et alii (1988) demonstram o papel da estrutura federativa dos EUA na
emergência do sistema de proteção social norte-americano. Pierson (1994) mostra
como as instituições federais foram um obstáculo às reformas descentralizadoras
de Reagan.
2. Além do poder para aprovar todas as leis e emendar a Constituição, a Câmara
Alta dispõe de doze áreas de exclusividade legislativa (Stepan, 1999).
3. O controle dos governos locais sobre a sobrevivência eleitoral dos
candidatos ao Legislativo federal seria o mecanismo através do qual os governos
subnacionais controlariam o comportamento parlamentar no Congresso (Abrucio,
1998; Stepan, 1999; Samuels, 2000; Ames, 2001).
4. Para um exemplo, ver Mansbridge (1986), que analisa as razões pelas quais o
Equal Rights Movement ' ERA fracassou em aprovar a emenda constitucional que
garantiria direitos iguais a homens e mulheres. Embora tenha sido aprovada no
Senado dos Estados Unidos com uma votação de 84 contra 9, e diversas pesquisas
de opinião tenham revelado forte apoio da opinião pública à emenda
constitucional, esta não foi aprovada porque em apenas 35 estados as Casas
Legislativas a aprovaram, quando seria necessário que 38 estados o tivessem
feito.
5. Agradeço a compreensão da importância da distinção entre federalismo e
estruturação das relações intergovernamentais à insistência de Celina Souza.
Para uma discussão sobre o tema, ver Souza (2002).
6. Para uma análise sobre as reformas constitucionais recentes no Brasil, com
base em estudos de caso que consideram as variáveis específicas das arenas
decisórias, ver Melo (2002).
7. O conceito de paradigma de política é de Peter Hall (1993), que compreende
simultaneamente a hierarquia de objetivos de uma política, bem como seus
instrumentos de operação.
8. Por efeito não desejado da política anterior, existem ainda centenas de
companhias municipais de saneamento.
9. O emprego de recursos do FGTS para obter apoio no Congresso pelo presidente
Sarney na Constituinte e pelo presidente Collor no episódio do impeachment são
os exemplos mais citados.
10. Segundo decisões anteriores do Conselho Curador do FGTS, instância
colegiada federal, os recursos do Fundo deveriam ser aplicados de modo a
destinar 60% para habitação popular e 40% para as áreas de saneamento básico e
infra-estrutura urbana. Cada unidade da federação deveria ter um orçamento
anual, calculado com base na arrecadação líquida do Fundo e em critérios de
distribuição entre os estados que atribuem pesos distintos às variáveis
arrecadação do FGTS, população urbana e déficit habitacional e de água e
esgoto. Este orçamento estabelece o valor máximo que pode ser emprestado para
cada estado anualmente.
11. Entrevista com dirigente da Associação Brasileira de COHABS ' ABC. As
COHABS do Ceará, Alagoas, Rondônia, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Espírito
Santo, Mato Grosso e Goiás foram fechadas. A COHAB do Rio Grande do Sul havia
declarado falência antes de 1995. As empresas estaduais da Bahia, Distrito
Federal e Rio de Janeiro transformaram-se em agências de desenvolvimento
urbano.
12. Na verdade, a natureza das relações entre os governadores e as burocracias
das empresas estaduais de saneamento foi um fator determinante na definição das
estratégias estaduais de privatização ou preservação das empresas estaduais de
saneamento. Ver, a este respeito, Arretche (1999).
13. "Artigo 30 ' Compete aos Municípios: [ ] V ' Organizar e prestar,
diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de
interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter
essencial".
14. No Rio de Janeiro, após uma longa batalha jurídica e política que consumiu
quase a totalidade do governo Marcelo Alencar, o consórcio privado interessado
na compra da empresa desistiu da operação por causa das incertezas quanto à
possibilidade de poder vir a operar efetivamente a companhia.
15. Leis 7.839/89, 88.036/90 e Decreto 99.684/90.
16. Agradeço a Fernando Limongi e Eduardo Marques a sugestão para a importância
do caráter não federativo dessa arena decisória.
17. Na verdade, o Conselho Curador em diversas situações aprovou ad hocmedidas
de aplicação de recursos já implementadas pela Caixa Econômica Federal, as
quais contrariavam regulamentações prévias do próprio Conselho (USP/EESC/FIPAI,
2000). Além disso, a própria representação da Central Única dos Trabalhadores '
CUT aderiu à estratégia de reforma da burocracia do Ministério do Planejamento
e Orçamento.
18. As receitas do Fundo de Participação dos Municípios ' FPM, Imposto sobre
Circulação de Mercadorias ' ICMS e Imposto sobre Produtos Industrializados
Proporcional às Exportações ' IPI/Exp são automaticamente bloqueadas quando da
realização dos créditos.
19. O número de matrículas oferecidas é calculado anualmente através do Censo
Escolar.
20. É por essa razão que seu impacto se inicia depois de 1997.
21. O artigo 30 da Constituição de 1988 estabelece que o município é o único
ente federado a quem é atribuída a missão constitucional de prestar serviço de
atendimento à saúde da população.
22. Pesquisas de opinião revelam ser significativa a satisfação dos brasileiros
com relação a esses serviços (Costa et alii, 1999:50). A literatura comparada
aponta que o interesse dos governos na visibilidade da responsabilidade pela
oferta de benefícios sociais foi historicamente uma das razões de sua expansão.
Pierson (1994) demonstra que, no contexto de expansão do welfare state,a
concentração da autoridade política implica a concentração da
accountabilitypela ampliação de benefícios. Banting (1995) demonstra que, no
Canadá, a disputa entre governo federal e províncias pelos créditos políticos
derivados da ampliação de serviços sociais contribuiu para a expansão do
welfare statecanadense.
23. Em 1994, o ministro Antonio Britto (do Ministério da Previdência e
Assistência Social) suspendeu as transferências constitucionais de 30% dos
recursos do Fundo da Previdência e Assistência Social para o Ministério da
Saúde, abrindo uma crise de desfinanciamento no setor.