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BrBRHUHu0011-52582003000100001

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variedadeBr
ano2003
fonteScielo

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A promessa da inserção profissional instigante da sociedade em rede: a imposição de sentido e a sua sociologia

INTRODUÇÂO Na busca de sentido para as alterações recentes nas formas de inserção na vida econômica, podemos registrar uma polaridade de interpretações majoritariamente absorvidas pela opinião pública (tal como ela se expressa nos órgãos de comunicação). Do lado que chamaremos de "otimista", surge a idéia da chamada "sociedade em rede", termo popularizado por Manuel Castells (1999), que dirige a nossa atenção para novas formas de sociabilidade, mais diversificadas e enriquecedoras quando comparadas a períodos anteriores, que estão se desenvolvendo na esteira das dramáticas alterações tecnológicas, personificadas pela extensão da internet nos anos 90. Do lado que designaremos de "pessimista", as alterações são decifradas a partir da lente da economia política e é ressaltado um novo, e cada vez mais importante, papel da coordenação financeira na direção das organizações e das empresas em particular. Novo por causa da preponderância das considerações exaradas do mercado financeiro, em detrimento daquelas comprometidas com o desenvolvimento das empresas manufatureiras e demais não-financeiras, e pessimista porque registra a diminuição dos graus de liberdade para políticas sociais e de desenvolvimento dos governos e para estratégias de longo prazo das empresas, além de registrar negativamente as drásticas mudanças de expectativas profissionais para os indivíduos.

Diante desse fato marcante da realidade atual, a literatura sociológica tem registrado as evoluções de diversas maneiras, algumas das mais importantes de forma indireta. A partir do grupo de autores influenciados diretamente por Bourdieu, podemos encontrar uma grande variedade de tematizações suscitadas por esse aspecto dos tempos modernos. Nesse quadrante da produção recente, poderíamos destacar os textos reunidos em torno de La Misère du Monde(Bourdieu, 1995), que registra diversos tipos de exclusão social produzidos nos tempos atuais, lembrando que alguns deles, por representarem mais perdas de ligação social e de auto-estima do que privações econômicas absolutas, passam despercebidos, ainda que produzam enorme sofrimento.

No seio da corrente "bourdieusiana", Gollac e Volkoff (1996) analisam os agregados macrossociais para detectar as dificuldades que a população trabalhadora francesa encontra para "estar C altura" das exigências dos novos tempos, enquanto Balasz e Faguer (1996) e Beaud e Pialoux (1999) examinam detalhes no plano monográfico. A última dupla estuda os operários do tradicional setor automobilístico, os quais, antes considerados a vanguarda das estratégias de redenção social, sofreram nos últimos vinte anos uma dramática perda de importância na sociedade. Os reflexos desse processo implicam o quase aniquilamento da auto-estima dos militantes sindicais e a conseqüente perda de capacidade de mobilização da categoria. Para grande parte dos operários autóctones, a nova conjuntura leva ao refúgio mágico do passadismo racista e de extrema-direita. Quanto aos operários de origem imigrante, estes se tornam um verdadeiro viveiro para o radicalismo islâmico. E para todo o grupo operário, abre-se uma enorme crise de reprodução social, ligada também às transformações do sistema escolar e à dificuldade de filhos de operários encontrarem um lugar nessa nova paisagem, refletindo o processo nos atuais operários sob a forma de diminuição ainda maior do sentido de futuro (Beaud, 2002).

A segunda dupla, por sua vez, analisa os novos espaços do mundo do trabalho associados à informática, que prometia o final das fronteiras entre o proletariado e as classes médias, levando o primeiro a locações cada vez mais próximas do trabalho intelectual, redimindo, assim, o que foi considerado a principal chaga social das sociedades desenvolvidas. Os resultados encontrados mostram a enorme dificuldade de os empregados de origem social modesta ou com credenciais escolares pouco expressivas se sentirem à altura das exigências que lhes são colocadas e o sentimento de desespero que vai tomando conta dos agentes em uma situação do mercado de trabalho que tem o desemprego massivo como pano de fundo permanente (Balasz e Faguer, 1996).

Finalmente, Dezalay e Garth (2002) desenvolvem uma pesquisa igualmente de fôlego sobre a recomposição das elites nacionais, mais recentemente as latino- americanas, principalmente aquelas ligadas aos espaços legais, diante dos processos de internacionalização, examinando a produção do direito que, ao mesmo tempo, conduz e referenda as transformações sociais recentes. Aqui, a análise talvez se complete. Nela aparecem em carne e osso os agentes produtores do processo, além de também serem historiadas a formação do novo léxico e da nova legalidade que afirmam e confirmam o processo que estamos assistindo. E assim ganhamos reflexividade diante da "globalização", fenômeno que aparentemente não tem sujeito, que, assim como a chuva e o vento, viria da natureza sem que o homem pudesse fazer muita coisa para evitar ou suscitar.

Na produção do grupo de autores acima, os temas correlatos da "globalização", ou da "sociedade em rede", quase nunca são denominados, expressando desconfianças mais do que evidentes com o processo de rotulagem de que as ciências sociais recentes se fizeram produtoras ou, no mínimo, cúmplices. Antes de participar do processo de nomeação, considerado nesse quadrante da sociologia como uma ajuda na produção da "violência simbólica" opressora, esses autores preferem examinar as dinâmicas de atores que estão em curso e as conseqüências delas sobre a percepção dos dilemas sociais recentes e as possibilidades de sua superação. Metodologicamente, eles trabalham com a idéia de "violência simbólica": a capacidade diferencial e socialmente induzida de enunciar um sentido verossímil para o mundo e de sustentar esse ponto de vista, tanto na esfera pública quanto nos espaços privados, atribuindo a maior parte das diferenças às disposições pessoais adquiridas na socialização típica dos grupos.

Cabe ainda assinalar que, além dos estudos de Dezalay e Garth acima referidos, diferentes autores inspirados em Bourdieu se debruçam sobre outros segmentos das elites atuais, como a grande burguesia tradicional e a nobreza. Vendo a questão a partir desses diversos ângulos, a produção da corrente "bourdieusiana" acaba compondo um mosaico bastante rico e, creio eu, ainda não totalmente percebido e consolidado em uma visão geral, mas que, se lido em conjunto, nos permite assinalar que os atributos necessários para os indivíduos desfrutarem do advento de uma globalização e de uma sociedade "em rede" virtuosas seriam aqueles equivalentes à socialização típica das diversas elites transnacionais, implicitamente inalcançáveis para a enorme maioria da população francesa1.

A corrente acima é confrontada e, ouso dizer, complementada, pelo grupo construído em volta de Luc Boltanski e Laurent Thévenot, inicialmente saído da primeira (ver Boltanski e Thévenot, 1991)2. Nessa abordagem, a ênfase é na dinâmica das idéias e das possibilidades lógicas de construção de "ordens de justiça" ou, mais recentemente, de "mundos possíveis". A tensão intelectual entre as correntes se consubstancia justamente na recusa militante desta última em aceitar o conceito de habitus, categoria central na primeira abordagem para caracterizar o papel das disposições sociais, e dessa maneira, em recusar quaisquer limitações cognitivas nos agentes examinados, exceto aquelas advindas das lógicas argumentativas que são deflagradas nos processos dialógicos.

Para o grupo, as possibilidades de diálogo na sociedade capitalista tradicional combinariam recursos argumentativos oriundos de seis famílias de justificativas ou mundos possíveis (doméstico, cívico, renome, inspirado, comercial e industrial), e os tempos atuais estariam gerando um novo tipo de mundo, aquele chamado de "conexionista" - o equivalente do grupo para a "sociedade em rede" proclamada por Castells. O bebê anunciado ainda não está maduro, mas poderíamos adivinhar suas características - os contornos do novo mundo legítimo que pode e deve se firmar. O conexionismo seria um princípio de sociabilidade dotado de regras de legitimação que lhe são próprias e distintas das anteriores, refletindo uma nova fase da sociedade capitalista. Nele, a virtude dos atores residiria na sua capacidade de criar ou manter a fluidez dos arranjos de indivíduos e dispositivos e de incorporar o maior número possível de antigos parceiros nos novos projetos. A virtude, não necessariamente existente, mas construída principalmente a partir de uma derivação lógica dos argumentos coligidos pelos autores nos manuais de organização empresarial recentes, funcionaria também como um ponto de equilíbrio que tornaria a nova situação justa e, por causa disso, tolerável. Nesse diapasão, uma vez determinado o ponto de chegada, o esforço analítico da sociologia consistiria em examinar situações em que as velhas ordens de justificação estariam se desmontando e a nova emergindo. E socialmente, a sociologia se justificaria pelo esforço de esclarecimento relativo às novas potencialidades que estão surgindo, sinalizando à população os caminhos e comportamentos ao mesmo tempo desejáveis e exigíveis (Boltanski e Chiapello, 1999).

O esforço dos autores franceses registrado acima encontra paralelo, entret alii, nas digressões de W. Powell a partir da observação da cena norte- americana3. Estudando as articulações organizacionais que surgiram em torno do boom de empresas de alta tecnologia nos EUA e a aparente desarticulação das formas características das empresas "tradicionais", Powell constata a existência e robustez das redes, mas também um conjunto expressivo de promessas de felicidade não realizadas, como o aumento da desigualdade de renda e da insegurança no emprego, atribuindo estas últimas a uma possível "primeira fase" do conexionismo, ainda caracterizada mais pela destruição das formas anteriores do que pela clareza do alcance das novas. E, de maneira análoga até mesmo mais incisiva do que seus colegas otimistas franceses, esse festejado autor neo- institucionalista irá predicar uma marcha muito provável rumo a uma situação mais virtuosa, caracterizada por um mundo povoado por pessoas mais abertas, porque menos constrangidas pela famosa "gaiola de ferro" da burocracia denunciada por Weber.

A produção sociológica norte-americana aproxima-se metodologicamente do grupo francês de Bourdieu e tematicamente da economia política nos trabalhos de Neil Fligstein (1993; 2001). Olhando, pelo menos nos últimos dez anos, para as transformações que o enfoque financeiro tem produzido no universo organizacional norte-americano, Fligstein desenvolve um aparato analítico explicitamente calcado na noção de "campo" tomada de Bourdieu e, a partir daí, demonstra um ceticismo bem fundamentado relativamente ao conceito de rede, bem como algumas reticências ao alcance do chamado shareholder power, para ele não muito mais do que uma nova estratégia retórica necessária para a legitimidade das direções das grandes empresas, mas sem grande impacto real no sentido de alterar o rumo das suas decisões estratégicas4. Para Fligstein, historiador das formas organizacionais, a chamada "organização em rede" representaria apenas um momento de transição, um átimo a ser superado pela recuperação das formas burocráticas tradicionais5. Em uma provável atualização dos ciclos de inovação descritos por Schumpeter, uma vez selecionados pelo meio ambiente os novos produtos que irão vingar na atual vaga de novidades tecnológicas, as empresas que contribuem para a sua produção irão abandonar as formas organizacionais contingentes, próprias de situações indeterminadas, para reconformarem-se à previsível e controlável organização hierárquica - a única que garante a segurança das aplicações financeiras a longo prazo e uma vida mais tranqüila para as altas direções das empresas e os alinhamentos internos dos ramos industriais que custam tanto a se estabilizar (Fligstein, 2001:230).

Esquematizando, as análises que marcam o pessimismo ressaltam tudo que impede (dificulta) os indivíduos de conformarem-se aos padrões exigidos pelos novos tempos, enquanto os otimistas destacam os benefícios da promessa (se) cumprida.

Implicitamente, os pessimistas acusam os otimistas de ajudarem a construir a imagem de que a "sociedade em rede" é uma realidade inelutável em relação à qual se podem discutir as melhores formas de adaptação; enquanto os otimistas acusam os pessimistas de decretar a derrota antecipada dos leftoversna competição social e, assim, contribuir para impedir qualquer avanço social de membros das classes desfavorecidas. Desse modo, creio eu, uma vez que dificilmente as razões de um lado poderiam anular as do outro, o ponto essencial da análise passa a ser o estudo dos mecanismos e circunstâncias que tornam os diversos grupos de indivíduos e a sociedade como um todo mais sensíveis a cada uma das pregações.

Inicialmente, o lado otimista começa a disputa na frente, que salta aos olhos a constatação da existência e o aumento cada vez mais expressivo da importância do que podemos chamar de "indústria do otimismo": a difusão de uma enorme e variada panóplia de instrumentos de auto-ajuda, a partir dos mais diversos suportes físicos, destinados aos mais diversos grupos sociais, geracionais, de gênero, raciais e regionais. É difícil imaginar que o segmento "otimista" da produção sociológica não acabe entrelaçado com esse importante ramo da indústria cultural contemporânea, independentemente da vontade de seus autores, que, na busca de respeitabilidade para seus produtos, os produtores de otimismo tendem a capturar e absorver qualquer objeto cultural que possa lhes servir, inclusive e principalmente os mais legítimos6. a vertente "pessimista", quando abordada na esfera pública, tende a ser recebida como jeremiada, exceto talvez em manifestações diretamente políticas que dificilmente adquirem visibilidade pública, salvo em épocas eleitorais.

A crer na digressão acima, uma conseqüência importante é que a idéia conexionista, ao adquirir veracidade e positividade, acaba virando efetivamente um modelo dominante para o enquadramento e a busca de sentido das vivências pessoais e organizacionais observadas. O conexionismo, assim, vira uma espécie de profecia auto-realizante, produzindo a sua própria veracidade7.

Finalmente, um aspecto que pode parecer idiossincrático, mas talvez lance mais luz sobre a impossibilidade que virou necessidade imperiosa dos tempos atuais, é que os nossos dois autores de referência para o conexionismo lembram que a chamada "vida de artista" serve de padrão de comportamento esperado dos agentes. Em ambos os casos, assinalam-se a constante "reinvenção de si mesmo", o imperativo da construção de novos projetos, a incerteza em relação ao futuro sendo "positivada" como abertura de possibilidades e a liberdade em perspectiva. Essas características sempre estiveram presentes nas carreiras artísticas, nas quais os agentes têm de se recriar constantemente, na medida em que assumem novos papéis e passam a fazer parte de novas trupes. E, desde a invenção da "vida de artista", no decorrer do século XIX, o sistema de justificações que acompanha a profissão assinala o caráter positivo do processo, contrapondo a vida aventurosa, generosa e interessante do artista à vida previsível, mesquinha e desestimulante do burguês8. Talvez esse aspecto explique o sucesso estrondoso e mesmo a funcionalidade das publicações sobre a vida dos "colunáveis" que povoam a paisagem editorial recente. Mais do que simples curiosos, estaríamos perscrutando a vida daqueles artistas que a sociedade considera bem-sucedidos para tentar imitá-los, e isso não por capricho, mas por necessidade.

OS ESPAÇOS EMPÍRICOS Utilizo alguns trabalhos de meus orientandos e meus como uma espécie de "teste" empírico para ilustrar alguns pontos do debate e das posições que descrevi acima. Os estudos foram realizados a partir do desenvolvimento de projetos centrados na observação de diversas construções organizacionais e transformações profissionais recentes, abaixo discriminados: (i) da adoção do sistema de "minifábricas" em empresas metalúrgicas situadas no oeste paulista (Rotta, 2002); (ii) da criação e manutenção de redes de vendedores autônomos ligados a empresas "carismáticas"9; e (iii) das dificuldades de conjugar carreira com vida pessoal, reveladas por jovens engenheiras e informáticas (Dieguez, 2000).

A análise das entrevistas nos três espaços mostra a força prescritiva do modelo de rede como ideal a ser perseguido e a incapacidade de "estar a altura dele" - principalmente no que diz respeito ao imperativo da fluidez - torna-se escusa suficiente para justificar o descarte de indivíduos, inclusive, e principalmente, dos próprios depoentes. Inicialmente, pensávamos que o script funcionava apenas para portadores de diplomas de nível superior - afinal, mais diretamente atingidos pela pregação desse novo evangelho. Deparamo-nos com a sua forte influência mesmo sobre os trabalhadores manuais da indústria, que recebem os ecos do novo catecismo organizacional por caminhos ainda a serem elucidados. Imaginávamos que as conquistas feministas acumuladas a partir da década de 70 - não as legais, mas principalmente as simbólicas - tornassem as mulheres menos sujeitas a deslegitimações provenientes do credo. Também nesse subespaço social, observamos a solidificação de um discurso que se sobrepõe aos direitos que pareciam garantidos, relativizando-os sensivelmente (principalmente nas questões referentes ao respeito das diferenças e dos direitos reprodutivos). E, por fim, a mesma coisa ocorre com os chamados direitos de stakeholding - os trunfos acumulados pelos trabalhadores por causa da sua dedicação passada às empresas. A reverência a quem suou a camisa pela empresa e que representa a sua história viva, personificada no respeito aos trabalhadores mais velhos, também está esmaecendo, mesmo depois de ter voltado a florescer no movimento da Qualidade Total.

Os três grupos de atores têm de fazer frente às interpretações legítimas do sentido das suas inserções na vida econômica e lidam com muita dificuldade com essas contingências, que elas não se adaptam facilmente aos habitus construídos nas origens e trajetórias dos indivíduos. Mas os condicionantes sociológicos não os demovem. Eles ensaiam formas de recuperar suas inadequações, particularmente através do imenso trabalho sobre-si-mesmo que representam as experiências que estudamos10. Dessa maneira, nossos dois desafios analíticos (colocados na linguagem bourdieusiana, mas não limitados por ela) são de: (i) dar conta de como se processa essa imposição de sentido; e (ii) como os agentes manejam para resistir e/ou compor com a violência simbólica a que são submetidos e que, por sua vez, eles mesmos acabam submetendo seus colegas-concorrentes.

No plano das formas organizacionais, o período mais recente foi revolvido por um debate teórico intenso, em que os propugnadores da existência da novidade foram confrontados com dois tipos de críticas, que colocam em dúvida diversos pontos das suas proposições. Basicamente, existe a idéia do nosso "pessimismo", expressa principalmente pelos autores mais próximos da escola regulacionista e da economia política em geral, de que o assim chamado conexionismo não passaria da volta a uma ordem mercantil anterior ao advento do Welfare State e, portanto, da simples negação e revogação das regras de convivência social impostas a partir do pós-guerra nos países centrais do capitalismo (Tilly, 2001) (e que se difundiram parcialmente entre nós). As diversas nuanças dessa abordagem chamam os tempos atuais de "mundo das finanças", de "regulação patrimonial" ou de "capitalismo de dividendos", divergindo marginalmente sobre seu significado e estabilidade, mas sempre concedendo centralidade às articulações financeiras em detrimento de todas as outras formas possíveis de estruturação da sociabilidade econômica (Orléan, 1999; Boyer, 2000; Froud et alii, 2000). Assim, para esse grupo de tendências analíticas, estaríamos simplesmente diante da hegemonia do que alhures chamei de modelo 2 - o modelo de empresa predicado pelo mercado financeiro -, o feixe de contratos da nova teoria da firma (Grün, 1999).

Uma outra ordem de críticas mais próxima dos estudos organizacionais vem da sociologia econômica. E é justamente a partir da análise da evolução das formas empresariais mais recentes que vem a impugnação mais contundente (Fligstein, 2001:229). Para essa vertente, estaríamos simplesmente diante de uma renovação das formas organizacionais hierárquicas, que não podem mais se manter no seu formato e denominação tradicionais. Assim, a conceituação da sociedade em rede seria apenas a hipóstase de um ponto de inflexão, cronologicamente determinado e contingente, entre os pólos tradicionais de oscilação que são o mercado e a hierarquia.

De fato, no plano dos indivíduos, uma análise aprofundada de (i) e (ii) revelou a dificuldade dos profissionais em lidar com a "flexibilidade" exigida pelo maravilhoso mundo das redes, e também mostrou a profunda desconfiança que a network organization provocava nos aderentes ao comércio em rede, bem menos desconfiados quando montavam suas operações em uma lógica puramente mercantil, afastando-se da rede (estabelecendo-se efetivamente por conta própria, i.e, fazendo literalidade da metáfora que dizia serem os vendedores da rede empresários independentes) ou utilizando-a de maneira predatória. Na amostra de operários e gerentes levantada e trabalhada mais recentemente, tivemos o auge do encanto com a "nova fábrica", seguido de uma volta paulatina aos pressupostos da cadência hierárquica "tradicional". Nessa última amostra (Grün, 2000), ficou bem claro que a experiência de flexibilidade introduzida na gestão fabril foi interpretada pela maior parte dos agentes que dela participaram como uma espécie de fase heróica inicial, formadora de uma cadeia de reciprocidades, na qual eles "deram o sangue pela empresa" e, portanto, esta lhes deve alguma coisa. No contexto de retração econômica que se seguiu, justamente, ao auge da experiência examinada, anotamos um importante aumento inicial de produtividade dos fatores. Este foi imputado justa ou injustamente ao novo arranjo socioindustrial. E, por uma fina ironia do destino, essa mudança, ao não envolver um grande investimento em máquinas e equipamentos, foi considerada uma obra dos próprios trabalhadores. Estamos, assim, diante de um ricochete.

Afinal, depois de décadas de propagação do mito do determinismo tecnológico, o fato de a maior produção ter sido alcançada por um re-layout deflagrador, possibilitando uma enorme intensificação do trabalho, foi lido como uma obra dos homens, dos próprios trabalhadores - um ato de heroísmo industrial por excelência. Assim, a cronologia que constatamos conforma-se bastante à crítica sugerida por autores como Fligstein, que anotamos acima11.

Mas abordar exclusivamente a interpretação majoritária entre os agentes trai a lógica sociológica da situação. A implantação das minifábricas e a interpretação dos tempos atuais como o advento da sociedade em rede é a obra coletiva que agrega o subconjunto de agentes locais inovadores aos propugnadores dos nossos novos evangelhos. Os primeiros operam no âmbito local em sintonia com os ventos ideológicos mais gerais da sociedade e, em uma lógica muito próxima à do pregador e do prosélito, constroem uma força social específica no processo interativo que estabelecem com os segundos, responsáveis pela propaganda dos novos comportamentos, ao mesmo tempo existenciais, econômicos e organizacionais12.

Concretamente, no caso da nossa minifábrica, eis que no seio da fábrica tradicional, localizada em São Carlos, cidade dos engenheiros por excelência13, um grupo de agentes dotado de formações escolares e trajetórias consideradas, na linguagem local, como soft, ou light - administradores de empresas, psicólogas, pedagogas - encontra na idéia das "minifábricas" uma alavanca excepcional para desestabilizar o equilíbrio de forças tradicional, tanto no que diz respeito à questão do gênero, quanto entre as profissões da região, e assim viabilizar ou acelerar suas carreiras. Desse modo, a exemplo de outras alterações substanciais no equilíbrio em organizações, assistimos à deflagração de uma dinâmica social interna ao mundo organizacional, mas largamente sobredeterminada pela estrutura social, que é dotada de forte poder explicativo para desvendar a realidade empresarial que elegemos como tema14. Nesse caso, a idéia de rede e de inserção sempre provisória mas contínua na População Economicamente Ativa, que funciona como prescrição inalcançável para a maior parte dos membros das amostras que estamos trabalhando, adquire realidade justamente para esse pequeno grupo de "jovens turcos". Sartrianos sem o saber, ao pretenderem mudar o mundo, mudam os seus próprios lugares no mundo. E assim, ainda que a fábrica que eles prescreveram como a única que pode sobreviver no mundo globalizado não tenha durado muito tempo e esteja progressivamente voltando a uma estruturação mais próxima da tradição e dos equilíbrios profissionais15 que a ela correspondem, a sua fama como promotores das mudanças os alçou a vôos inimagináveis em tempos anteriores, viabilizando, no mínimo, a elevação de seu status na empresa ou em outras fábricas, e, no máximo, o tão sonhado estabelecimento por conta própria como consultores.

Assim, para explorar as ambigüidades entre as experiências do grupo majoritário, mas largamente passivo, e o grupo minoritário, mas ativo, creio que um bom enquadramento para os insights levantados poderia ser o dos critérios de justificação. Para o grupo estatisticamente majoritário, verificamos a tentativa de recuperação do sentido dos eventos em torno da adoção e evolução das minifábricas como uma seqüência cronológica de dom e reciprocidade, inserindo assim o histórico dos eventos na chave cognitiva do modelo tradicional de empresa paternalista, o nosso modelo 1. Para o grupo dos "jovens turcos", nada poderia ser mais distante do seu entendimento da situação. Numa boa ilustração da "sociodicéia" (teodicéia social) proposta por Bourdieu (1989:377), eles olham para suas próprias atuações e trajetórias, interpretadas como exemplos de ousadia e de persistência, ao mesmo tempo como justificativas para seus sucessos profissionais e como exemplos a serem seguidos pelos colegas ou ex-colegas deixados para trás. Uma vez que eles conseguiram "chegar ", eles tanto merecem as recompensas que estão recebendo, quanto o caminho está aberto para todos os que demonstrarem a fibra moral da qual eles são exemplo. E o corolário dessa montagem simbólica é sempre "darwinista": quem não consegue seguir esses passos "evidentemente possíveis" é culpado da sua própria desgraça.

É interessante notar que o enquadramento acima, que normalmente é proveniente da lógica financeira, aparece aqui em um envelope retórico conexionista, provavelmente porque esse é o único legítimo no tempo e local pesquisados. Na verdade, em termos de arena pública, o único espaço recentemente pesquisado onde o nosso modelo 2 apareceu de "cara limpa" foi no que chamei de versão 2 do significado do mercado de capitais, a idéia de um mundo financeiro como espaço arriscado onde os ganhos são altos, mas os riscos são elevados e os agentes têm clara noção dos trade-offs e não podem ser estigmatizados pelos seus possíveis lucros extraordinários, e tampouco reclamar dos seus eventuais prejuízos (Grün, no prelo). Estaríamos realmente diante da constatação da impossibilidade de sustentação do modelo 2 na arena pública, com exceção do mercado financeiro, afinal seu estrito espaço de vigência? Os filósofos da linguagem ensinam-nos que as metáforas são produzidas pela extensão dos significados originais, que se transformam em bons esquemas para enquadrar fatos observados (Putnam, 1992).

O que então dizer sobre a aparente impossibilidade de extensão do nosso modelo 2? Seria um fato permanente ou transitório? Creio que uma boa apropriação sociológica do conceito pode aceitar a possibilidade da transitoriedade das possíveis extensões de significado. Estando certa esta digressão, segue-se que provavelmente uma das razões para a rápida difusão atual da idéia de rede deva- se justamente à sua capacidade de eufemizar práticas injustificáveis quando expressas no linguajar oriundo da família de idéias que conota nosso modelo 2.

Voltando aos nossos dois autores de referência para o conceito de rede, verifica-se que ambos colocam requisitos bastante altos para afiançar a virtude dos agentes no mundo conexionista. Na lógica desse possível arquétipo de sociabilidade, os pontos postos em destaque são justamente aqueles que fazem as redes funcionarem de maneira desimpedida e que reiteram a excelência desse padrão de agrupamento: tudo que favorece diretamente a fluidez é valorizado, assim como tudo que nelas inclua os indivíduos. Seguindo a apreciação detalhada de Boltanski e Chiapello (1999), os indivíduos que seriam os "bons empreendedores" das redes seriam os mailleurs (construtores de redes e implicitamente produtores também de inclusão) e os "maus empreendedores" seriam os faiseurs (aproveitadores das redes desenvolvidas por outrem e exploradores da boa-fé dos outros agentes que a eles se associam).

Nossos entrevistados "empreendedores de rede" não parecem amoldar-se a tão exigente padrão de conduta. Os relatos de suas epopéias fazem-se na primeira pessoa do singular, a preocupação com os colegas que tiveram de se conformar e de se adaptar às novidades é vocalizada principal, e quase exclusivamente, através da idéia de que a necessidade e a lógica dos novos esquemas de funcionamento organizacional lhes foram explicadas, e correspondentemente lhes foram oferecidas diversas oportunidades de treinamento formal para a nova configuração. Esses atos seriam suficientes para encaminhar os colegas nos novos rumos. Dessa maneira, a incapacidade constatada de trabalhadores e gerentes no acompanhamento das novidades foi diagnosticada e justificada pelos "agentes de mudança" como falta de capacidade ou de vontade de aprender dos operários e como falta de "jogo de cintura" por parte dos seus supervisores. E, principalmente, ao indicar e disponibilizar os recursos, aos seus olhos necessários e suficientes para a "reconversão" dos colegas, nossos mudancistas consideraram-se desonerados no que diz respeito às suas obrigações morais e profissionais.

O registro desse comportamento dificilmente poderia ser associado à idéia da militância conexionista que os teóricos colocam como necessária ao aparecimento e funcionamento do novo modo de sociabilidade. A sua lógica remete-nos muito mais ao modo de justificação mais padronizado que pode ser extraído do espaço do mercado - o princípio da igualdade de chances - do que aos princípios de fluidez e de inclusão que deveriam alicerçar a nova ordem moral16.

INTRODUZINDO A HISTÓRIA Evidentemente que a constatação de que nossos entrevistados não operam integralmente na lógica conexionista não implica que ela não exista, muito menos que ela seja impossível. De um lado, devemos nos acautelar quanto ao sentido de pregação desse princípio de agregação e de justiça, que se reveste de características quase de catequese religiosa; mas, de outro, é importante deixar a porta aberta para percebermos as suas conseqüências sociais, sejam elas quais forem.

Tivemos exemplos análogos de fenômenos organizacionais anteriores, como o da "Qualidade Total" - QT. Transformada em evangelho, ela acabou tornando-se uma espécie de discurso básico, em torno do qual se ensejaram as mais diversas estratégias de reconversão social, ampliando a sua influência para espaços muitos mais amplos do que aquele da manufatura industrial seqüenciada, para o qual foi concebida. Nesses espaços distanciados da inspiração original, como no chamado "terceiro setor", na educação etc., os princípios da QT eram "aplicados" de maneira cada vez mais metafórica quanto ao seu conteúdo. Mas, aos meus olhos, seria um erro analítico nos atermos somente à "essência" organizacional daquele movimento. Mais correto seria lembrar a sua característica de discurso de mudança legitimado, mantendo e realçando a virtude de agrupar em sua volta a maioria dos agentes e dos impulsos mudancistas nas diversas esferas, nas quais a QT era chamada a servir de parâmetro (e uma espécie de "palavra de ordem") para atualizações e tentativas de alteração de status das atividades e de seus agentes. Assim, entret alii campos, o terceiro setor e a educação elementar, os nossos dois exemplos, ao associarem-se à idéia de QT tornaram-se modernos e legítimos e, principalmente, também se tornaram legítimos os agentes que iniciaram ou se agregaram ao movimento pela QT naqueles espaços, até então fortemente deslegitimados17.

Da mesma maneira, a partir do exemplo acima, podemos dizer que a relação entre discurso de mudança e comprometimento real com ela é bastante mais complexa do que poderia parecer a um observador desavisado. Assim, creio que é necessária alguma cautela antes de descartar o caráter "genuinamente mudancista" dos nossos agentes, bem como julgar apressadamente o movimento conexionista em termos de cumpre, ou não, o que promete 18. Dessa maneira, parece-me que o melhor posicionamento analítico é procurar saber justamente se o nosso "conexionismo" possui, ou não, essa capacidade agregadora que observamos para a QT e, em seguida, tentar seguir os desdobramentos lógicos produzidos pela sua mnemônica.

E, mesmo se o tempo ainda não nos instruiu suficientemente sobre o tema, podemos pelo menos constatar que a retórica do conexionismo opera uma dessensibilização importante, quando comparada às obrigações típicas que eram "óbvias" para os profetas da qualidade19. Estes, envolvidos em um critério de reciprocidade, eram obrigados moralmente a incluir e preservar todos os stakeholders das organizações que "vestiam a camisa" da qualidade. o novo credo, ignorando as exigências de seus teólogos mais rigorosos, parece tornar a consciência menos pesada para seus aderentes. As lealdades com as empresas, com os diversos espaços sociais de atuação e, inclusive, com os indivíduos parecem desvanecer-se em favor do imperativo da fluidez, o qual, no nosso caso, ao que os dados indicam, matiza e enfraquece a necessidade de inclusão. E, sempre é bom lembrar, fluidez sem inclusão é uma das características do nosso modelo 2, corroborando a percepção de que a idéia de rede tem servido para eufemizar práticas indizíveis oriundas daquela família argumentativa.

Mas, voltando ao âmago do argumento dos nossos teóricos do conexionismo, o fulcro da questão não são as práticas empiricamente observadas, mas antes o fato de que fluidez + inclusão é uma espécie de ponto de equilíbrio possível, em torno do qual a ordem conexionista far-se-ia justa, e por isso estável.

Resta-nos saber se dizer que o ponto de equilíbrio torna a situação justa e estável significa também dizer que atingi-lo é, implicitamente, uma situação provável, interpretação que daria uma tonalidade fortemente funcionalista à nova teoria. Essa associação fica muito fortemente sugerida, para o caso de Powell, co-autor do texto "fundador" do neo-institucionalismo, em sociologia das organizações (Powell e DiMaggio, 1991) e praticante da disciplina contígua do organizational behavior, bem mais comprometida com as práticas diretas de intervenção do desenvolvimento organizacional. para caracterizar seus colegas franceses, localizados no núcleo duro da sociologia, talvez seja necessário um pouco mais de recuo. De qualquer maneira, como nos lembra seguidamente Mary Douglas (1987), dificilmente poderíamos passar sem alguma dose de funcionalismo.

Outra analogia sugerida com o movimento da QT é aquela referente à relação entre retórica e aplicação efetiva dos princípios. Como temos algum recuo histórico para avaliar a QT, fica claro que aquele movimento teve seu início com uma intensa mobilização retórica, que propagou primeiro a sua linguagem e bem depois a aplicação mais direta das suas ferramentas e "filosofia". Essa seqüência temporal talvez tenha enganado os analistas que se debruçaram sobre o fenômeno no seu início. Investigando a QT apenas ao longo da década de 80, constatamos a existência de um movimento que parecia restringir-se ao estabelecimento de uma nova linguagem para exprimir as circunstâncias da vida organizacional, com muito pouco impacto direto sobre a substantividade desta última. Mas o passar do tempo mostrou-nos que aquela primeira fase correspondia a uma espécie de acumulação primitiva de legitimidade para a QT, que na década de 90 se difundiu por boa parte do tecido organizacional brasileiro com uma rapidez que surpreendeu a todos... que não perceberam a relação complexa entre retórica e aplicação direta das chamadas "ferramentas organizacionais". Da mesma maneira, podemos pensar que os dados empíricos que alinhavamos até o momento correspondam a uma também primeira fase do conexionismo, que equivaleria a uma acumulação inicial de reconhecimento dos seus princípios, os quais mais tarde poderiam redundar na sua efetiva aplicação.

Mas talvez seja também importante anotar uma diferença: o alcance proposto pelos teóricos conexionistas é muito mais amplo do que aquele ensaiado pela QT, mesmo nas suas derivações mais distantes do projeto original. A idéia do "mundo em rede" pretende abarcar as mais diversas formas de sociabilidade dos tempos atuais, sendo que o espaço de convivência econômica se constitui apenas em uma das esferas que estariam sendo transformadas pelo avanço da nova pregação, onde a difusão da internet parece dar suporte físico para as imensas transformações anunciadas (DiMaggio et alii, 2001). E possivelmente o encanto com a internet considerada como "a" maravilha tecnológica da atualidade a tenha constituído em fonte para a produção das metáforas que estamos usando para organizar o pensamento e exprimir a complexidade da vida social20. As conseqüências dessa utilização em termos das zonas da sociabilidade que se tornam obscuras quando empregamos esse artefato cognitivo provavelmente serão conhecidas no futuro, mas a história das idéias serve-nos, de novo, pelo menos como uma lembrança para a necessidade de adotarmos uma postura de cautela diante das interpretações pendulares que falam seja do total ineditismo da situação que estamos vivendo, seja da sua completa redução a algum momento do passado.

Um exame por outro ângulo das "sociodicéias" anotadas acima leva-nos de volta para a nutrida discussão sobre o âmago das teorias sociológicas. De maneira telegráfica, talvez injusta, mas rápida, podemos dizer que os autores que propugnam pelo conceito de "sociedade em rede" entendem que essa novidade está ao alcance da mão de todos os indivíduos que buscarem conformar-se ao novo padrão de sociabilidade. Mas, se estivermos mais atentos às limitações impostas pelos condicionantes sociais ao comportamento dos indivíduos, lembraremos que o comportamento esperado pelos conexionistas corresponde a vários aspectos das descrições das redes de sociabilidade das elites dos diversos (mas em grande parte interconectados) beaux mondes(Pinçon e Pinçon-Charlot, 1997).

As observações empíricas que realizamos mostram mesmo indivíduos dilacerados entre a necessidade de produzir e alimentar as redes de relacionamento que são consideradas condição sine qua non para o sucesso organizacional e a dificuldade real de encontrarem e se familiarizarem com as "boas relações" necessárias para deslanchar socialmente. Seria bastante interessante avaliar mais de perto as implicações cognitivas de os textos de divulgação chamarem o espaço da sociabilidade de "capital social", entendendo as amizades e demais relacionamentos, literalmente, como trunfos a serem conquistados e preservados.

Até que ponto esse espaço que até agora foi mais ou menos protegido do poder do mercado se transformaria? Até que ponto a capacidade da sociedade em resistir a essa "objetivação" acabaria se impondo? Essa questão aparece claramente na amostra da Amway, na qual, ainda que sob o manto onipresente da metáfora da organização como uma grande família, os indivíduos são instados diretamente a "capitalizar" as suas relações sociais e familiares e delas extrair duplamente os lucros esperados, seja na forma de compradores para os produtos, seja na forma de novos aderentes-vendedores da pirâmide, mas acabam batendo no muro do esgotamento das reciprocidades - e, provavelmente, também do esgotamento do valor analógico da idéia de "capital" para exprimir as circunstâncias do momento. É interessante notar que os indivíduos raramente permanecem na rede durante muito tempo, mas esta se refaz constantemente, indicando que a "utopia das relações precificadas" seja um mundo tentativo considerado factível por largas parcelas da população, em especial das nossas classes médias.

Na amostra feminina, o fenômeno aparece indiretamente quando as entrevistadas relatam as dificuldades para travar relações de trabalho reciprocamente proveitosas com os colegas masculinos e o desconforto diante da dificuldade de realizar matchings. Aqui, a idéia do mundo como uma selva onde não se pode confiar em ninguém aparece bem delineada, tornando a realização do mundo conexionista uma utopia muito distante. Nos relatos, o duro e fechado mundo do trabalho profissional, onde o lugar da mulher está longe de estar garantido, é confrontado com o prazeroso e aberto período anterior da vida universitária. Na comparação, a etapa atual vivida pelas depoentes aparece negativamente, e os colegas são vistos como sexistas e interesseiros. A análise dessa amostra nos sugere fortemente a necessidade de avançar a análise do "maravilhoso mundo das redes", introduzindo um matiz de gênero. As mulheres têm lugar nele? Seria este um espaço onde as nossas antigas e velhas conhecidas "panelinhas" poderiam se refazer, reescrevendo os seus princípios em uma linguagem mais adequada aos novos tempos e assim ganhando uma nova legitimidade e conseqüentemente uma sobrevida inesperada? Voltamos a um problema de legitimação que não me parece muito bem contemplado pela teoria. Desde o início da sociologia das organizações, seguimos a discussão de como encarar as formas de sociabilidade que se criam nas empresas ou que são importadas do mundo exterior. Apesar do dístico do "No acceptance except for business" destacado por Marx nos idos de 1860, as interferências continuaram existindo e foram tratadas seja como inimigo a destruir, como no caso do taylorismo inicial, seja como uma espécie de fatalidade com quem não outro remédio, exceto o de aprender a conviver e, se possível, extrair algum proveito da sua existência, como é o caso da teoria das relações humanas, desenvolvida em grande parte como reação ao taylorismo precedente. Talvez como resposta a esse padrão de divide et impera, a teoria social crítica tenha enfatizado mais o caráter positivo dos agrupamentos e o negativo das individualidades. Nossos teóricos falam bastante do oportunismo individual do faiseur, que se apropria do que poderia ser chamado de "capital social coletivo", mas muito menos da qualidade das relações das redes entre elas e com a sociedade que as abriga.

Para dar cores às minhas ressalvas, lanço mão da observação de um grupo de calçadistas de origem armênia em São Paulo, que realizei no início dos anos 90, portanto antes da imposição do enquadramento cognitivo que reza serem as redes uma evolução virtuosa. A denominação de cluster, que o grupo começava a ganhar dos analistas ligados à socioeconomia da época, dava-lhe cores positivas e, a partir dessa nova pintura, ele podia contrapor-se às críticas dos calçadistas e de fornecedores de outras origens, de que eles não passavam de uma "máfia armênia", agrupamento implicitamente ilegítimo que conduzia práticas de negócios que prejudicavam a concorrência porque privilegiavam os "patrícios" como parceiros em detrimento det alii possíveis empresários; e também prejudicava a comunidade, por talvez evitarem coletivamente a fiscalização e o pagamento de impostos.

Naquele momento, o agrupamento étnico parecia deslegitimado e, por isso, fadado à decadência. A cultura de cooperação étnica que havia se desenvolvido pari passu ao cluster enfraquecia-se no choque com a cultura legítima dos negócios que era aprendida nas escolas de administração pelos membros das novas gerações. As necessidades de cidadania patrícia tornavam a freqüência às escolas uma necessidade incontornável. Naquele ambiente, os ensinamentos, inspirados pela época do milagre econômico, apontavam para a necessidade de as Pequenas e Médias Empresas - PMEs espelharem as suas estruturas nas das grandes empresas. Naquele quadro de referências, as PMEs não passavam de grandes empresas ainda não crescidas e se viabilizariam se alcançassem dito patamar (Grün, 1999). Assim, nada de surpreendente na desqualificação da cultura econômica ancestral, vista naquele momento como o império dos pequenos expedientes improvisados - o contrário do conjunto de regras claras e universais que regeria a grande empresa idealizada. Posteriormente, em sintonia com uma nova inflexão internacional da cultura econômica legítima, surgiu ou robusteceu-se uma vasta constelação de agentes, capitaneada pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas - SEBRAE, interessada profissionalmente na promoção da Pequena e Média Empresa como uma virtuosidade a ser estimulada. Ressurge o small is beautiful naquele contexto favorável que louva as redes e outras articulações de agentes e contorna ou ultrapassa as mazelas das organizações burocráticas. Coordenação sim, mas hierarquia permanente, não. O exemplo da III Itália transforma-se em uma espécie de moderno paradigma organizacional, e os novos agentes da difusão de princípios organizacionais irão fazer espraiar rapidamente a "boa nova". De repente, nossos armênios voltaram ao "lado bom" da cerca e é uma importante questão de campo identificar as continuidades e rupturas no comportamento do grupo posteriores à mudança do quadro de referência. Estávamos nós diante de uma "máfia" que se transformou em um cluster? Grandes, pequenas ou inexistentes, essas transformações apontam para a necessidade de adotarmos uma postura analítica equivalente ao chamado "nominalismo dinâmico" de Ian Hacking (2002)21 - a pesquisa das interações entre os fenômenos de nomeação e o comportamento dos agentes, sob pena de rebaixar a teoria social a um mero instrumento de retórica para uso daqueles agentes suficientemente providos de capital cultural para utilizá-la.

Na amostra das minifábricas aparece outra circunstância que mereceria maior atenção. Creio que no enunciado da idéia de "capital social" está incluída uma tentativa de neutralização, mesmo de racionalização das paixões nos relacionamentos. Assim, a engenharia social que montou o esquema de cooperação intensa no seio da mesma equipe de trabalho ao lado da competição com outras equipes imaginava que a disputa entre os contendores se faria como em um "jogo de compadres", produzindo apenas parâmetros e benchmarkings e não jogos de soma negativa. Mas não é isso que assistimos: ao contrário, a metáfora ganha vida e as disputas entre as equipes de trabalho ficam cada vez mais ásperas, fugindo do controle da alta direção, tornando-se altamente disfuncionais. Entretanto, o recuo em direção à hierarquia tradicional não é fácil quando esta idéia está deslegitimada tanto interna quanto externamente. Feitiço poderoso não combina bem com feiticeiro inexperiente: a tecnologia do uso das renomeações como instrumento de controle social está longe de estar dominada e segura. Ou talvez estejamos esbarrando, mais uma vez, nos limites de uma analogia - chamar os processos que estamos analisando de "tecnologias sociais" ou de "ferramentas organizacionais" nos induz a pensá-las como instrumentos colocados à disposição de qualquer um que os encontre em um balcão e passe a utilizá-los. Mas essa visão, cada vez mais difundida, talvez oblitere os requisitos sociais mínimos para que os praticantes da nossa "engenharia social" consigam realizar sua magia.

A análise dos nossos casos aponta ressalvas importantes para a idéia de "mundo em rede". Os automatismos de nossa disciplina nos levariam a impugnar as novidades e a apontar os problemas produzidos pelas tentativas de implementá- las. Mas seguir nossos "instintos" talvez nos distancie do sentido da invenção social. As ciências sociais talvez não estejam suficientemente atentas às tentativas que despontam nos mais diversos quadrantes da estrutura social, propondo, vendendo e, principalmente, buscando as transformações pessoais que possibilitariam aos indivíduos irem mais acima na estrutura social do que poderia prever a estrutura de chances objetivas. Penso, primeiramente, no enorme e diversificado espaço da auto-ajuda nas sociedades contemporâneas, explorado parcialmente no estudo sobre a Amway. Do meu ponto de vista, o assunto vem sendo trabalhado de maneira excessivamente crítica pelas abordagens sociológicas, que, ao focarem suas lentes sobre os aspectos evidentemente manipulativos das diversas técnicas de desenvolvimento pessoal e na ganância de seus vendedores, deixam escapar os efeitos sociais importantes que elas produzem sobre os indivíduos que delas se servem. A vasta constelação que vai da neurolingüística do cirurgião Lair Ribeiro à teologia da prosperidade, construída e difundida recentemente por várias vertentes pentecostais, e à "cabala para negócios", passando pelas diversas versões do tradicional "método Silva" de se obter sucesso na vida e pela "cientologia" apreciada pelos astros de Hollywood, representa um enorme espaço que pede e merece uma fina exploração sociológica. Certamente, a enorme maioria dos métodos de trabalho-sobre-si- mesmo não chega nem perto de entregar o produto que prometem, mas alguma coisa eles entregam. Talvez, a ilusão escolástica de Bourdieu mais uma vez nos engane e nos leve a exagerarmos na receita de pesquisa "cumpre, ou não, o que promete", quando o mais proveitoso seria um design de pesquisa "antes-e-depois" da utilização da técnica.

A análise do caso Amway nuanças ao problema: em um primeiro momento, o decisivo da lógica social estudada parecia ser simplesmente a decepção com a promessa não cumprida de enriquecimento rápido e as técnicas refinadas de obliterar esses fracassos para os novos aderentes. Posteriormente, a análise mostrou que a passagem por aquela organização, que reconhecidamente emprega de maneira intensiva e sistemática os métodos de auto-ajuda no treinamento dos seus aderentes, tornou os agentes mais "autoconfiantes" e mais "abertos para as oportunidades da vida", vislumbrando novas alternativas de inserção econômica que anteriormente escapavam das suas percepções.

Nossos aderentes, em grande parte, portavam um estigma de fracasso econômico ou profissional. Um bom exemplo seriam alguns estudantes de pós-graduação que não chegaram a terminar a sua tese. No mundo acadêmico em que eles estavam inseridos, tal situação significava claramente o fracasso. Ao denominar o mundo acadêmico como "burocrático" e suas provas de grandeza como simples rituais "escolares" sem maiores relações com a "verdadeira vida", o espaço de sociabilidade e de inserção econômica da Amway representava para eles um fascínio facilmente explicável. Na reversão simbólica, eles deixam de ser estudantes fracassados, e passam a se considerar empreendedores tolhidos pela estreiteza dos professores-funcionários e da universidade-repartição. E a operação, que à primeira vista pode parecer o enunciado de um eufemismo banal, ganha robustez ao introduzir o aderente em um novo círculo da magia, o grupo dos aderentes anteriores, que passaram pelos rituais de reconversão e a partir dessa neófita irão acolher e reforçar a idéia de que uma vida nova e melhor se abre aos empreendedores em perspectiva.

A comparação da experiência comercial armênia no Brasil com os pontos levantados no estudo da organização carismática mostra outro aspecto da trama sociológica. Morfologicamente, muito pouco distingue a rede da Amway da rede de "patrícios" comerciantes. E não é difícil perceber que o chamado "marketing de rede" constrói a sua especificidade e faz-se atraente para diversas camadas das classes médias, em geral distantes da pequena burguesia tradicional, mediante um processo cultural de ressignificação de antigas práticas sociais e econômicas típicas deste último grupo, em especial os membros das chamadas "etnias comerciantes" (Grün, 1992).

Assim como o especialista em marketing se considera a antítese mesma do vendedor tradicional, que para ele as vendas são o resultado de um posicionamento no mercado cientificamente estudado, nada mais distante dos nossos aderentes ao marketing de rede, e também dos franqueados, do que o comerciante tradicional de origem étnica bem marcada, como o português da padaria, o turco do armarinho ou o italiano da cantina. Estas últimas figuras estão ainda bem presentes na paisagem comercial das cidades e representam um fantasma a exorcizar. Afinal, a epopéia mítica dos imigrantes que povoaram a região que estudamos fala do começo difícil na roça, da passagem eventual pelo trabalho manual urbano ou pelo pequeno comércio e, finalmente, de um ponto de chegada muito desejado, que é a instalação profissional a partir do diploma de nível superior, que assegura ao seu detentor status social e renda. Nesse quadro de referências, a adesão a uma "simples" experiência comercial poderia representar o arquivamento do sonho e, principalmente para o detentor de um título universitário, o retrocesso social. Daí a importância do "envelope organizacional" fornecido pelas empresas de marketing de rede e pelos franqueadores: um exame "substantivo" de seus conteúdos talvez revelasse um pequeno valor agregado em termos de facilitar a instalação e a continuidade do novo empreendimento, mas esse tipo de análise perde de vista o significado do "envelope retórico" que vem junto no pacote e que opera no nível identitário da auto-estima e da representação social. A retórica desse tipo de arranjo organizacional tenta unir a idéia de um mundo empresarial organizado, no qual os agentes operam na realidade através de instrumentos que se querem científicos - as chamadas "ferramentas" de pesquisa de mercado, de distribuição de produtos, de gestão do ciclo financeiro, entre outras, que estariam sendo postas à disposição dos franqueados ou dos aderentes ao marketing de rede -, com a idéia da liberdade de iniciativa e de movimentos que é atribuída aos empresários. E, dessa forma, o entendimento prevalecente é que nosso integrante do marketing de rede faz parte de uma organização moderna, ou mesmo pós-moderna ( que cultiva o discurso antiburocrático), que deve parecer a antítese mesma do comércio ou da prestação de serviços tradicionais. Ao olhar o mundo desse ponto do espaço simbólico, ele enxerga-se na dianteira, à frente do empregado de uma grande empresa e justamente o oposto da posição que atribui ao pequeno comerciante tradicional.

CONCLUSÂO Ao procurar conhecer o significado das promessas da "sociedade em rede", deparamo-nos com uma mecânica simbólica que opera mediante diversas formas de enxertos e ressignificações lingüísticas22 que contribuem para descrever, e ao mesmo tempo criar, as experiências de vida que buscamos compreender. Ao trilhar esse caminho analítico para avaliar o que aos meus olhos, erroneamente, parece ser um desenvolvimento que ocorre da mesma maneira nos mais diversos países, tínhamos o objetivo justamente de ressaltar as especificidades da cena brasileira e, indiretamente, chamar a atenção para configurações análogas que provavelmente possam ter surgido em outras latitudes e longitudes. certamente uma fôrma cultural de vigência internacional, expressa na adoção de léxicos verbais aparentemente idênticos, que parece tornar iguais os processos de adoção da "nova economia" que vêm acontecendo nas mais diversas regiões do globo. Entretanto, creio ter registrado, essa nomenclatura se impõe opondo, enxertando e ressignificando experiências bem específicas da nossa história que não são idênticas a outras configurações sociais. Logo, a terminologia que é usada internacionalmente para descrever a "nova economia", seus agentes e suas sociabilidades, que parece apontar para a homogeneização das práticas econômicas e dos seus significados culturais, está muito provavelmente encobrindo importantes diferenças, que podem ser postas em evidência através da busca das oposições de sentido locais. E nesse tópico é bom lembrar que os cognitivistas estão sempre nos alertando para o fato de que acertamos "evitando o erro" ou "sabemos muito mais o que queremos evitar do que o que queremos conseguir". Assim, sem a consideração dos opostos, a análise da nova nomenclatura, no seu sentido estrito de taxonomia, tem pequeno poder descritivo.

A avaliação da importância dos fenômenos de nomeação pode nos levar a entender a reação dos "bourdieusianos" às práticas de rotulagem de seus colegas/ concorrentes do mundo acadêmico, que sejam talvez irrefletidas, mas certamente são prenhes de conseqüências. Uma sociologia dos intelectuais mais ligeira apontaria a necessidade de diferenciação do grupo em relação às outras tendências sociológicas e encerraria a questão. Estou convicto de que estamos diante de uma configuração bem mais complexa. Por um lado, Bourdieu preveniu- nos diversas vezes contra a chamada "tentação da regalia" - a usurpação do direito, antigamente concedido aos reis, de definir as semelhanças e as diferenças entre os seres e objetos, enunciando assim, com a sua autoridade, como o mundo deve ser entendido e, finalmente, como o mundo é. Seus discípulos, não para preservar a cientificidade, mas também provavelmente por dever de modéstia, mantiveram a vigilância contra essa tentação de o sociólogo tornar-se um árbitro poderoso das tensões sociais. Mas, para o próprio Bourdieu (1980), o corolário da prevenção é a necessidade de tomar o processo de rotulagem como um importante ato produtor de realidades, não subjetivas, mas também objetivas.

Estamos, assim, mais do que diante da necessidade de manter a cautela de tentar fazer política através da sociologia, diante da necessidade de uma verdadeira sociologia da rotulagem, que generalizaria e faria sociológico o estudo da idéia de "assinalamento" proposta por Foucault e de quem Hacking, p. ex., é um dos fiéis seguidores.

As outras abordagens sociológicas que tentamos avaliar trabalham o problema diferentemente. Tentam entrar na disputa social pela definição correta do fenômeno e extrair as possíveis conseqüências positivas da nova configuração, se definida de acordo com suas visões. Nesse caminho, aparece justamente a construção do imperativo ético da inclusão como característica necessária do "conexionismo", um impulso ao mesmo tempo funcional e normativo no qual um dos autores retoma suas preocupações com o ato desinteressado caracterizado na figura grega e cristã da ágape e com a amizade em geral, ao mesmo tempo em que oferece uma sustentação "sócio-lógica" para a concretização não utópica de relações que seriam insustentáveis em outras ordens de justificação (Boltanski, 1990).

Na abordagem de Powell, autor influente nos estudos organizacionais, temos a retomada de uma preocupação basilar da sociologia crítica das organizações com o cerceamento da criatividade e com a desumanização em geral que é induzida pelo convívio nas burocracias. Nessa linha, o autor é herdeiro de uma tradição crítica que remonta a Weber e que passa fundamentalmente pela produção em solo norte-americano dos "frankfurtianos", Herbert Marcuse (1967) em especial.

Trata-se aqui de procurar no horizonte alternativas funcionais à organização burocrática que permitam melhores quadros vivenciais sem prejuízo das virtudes produtivas da organização "racional". Para essa busca, a networking organization parece ser uma das poucas, senão a única, boas respostas disponíveis. Afinal, ela parece dissolver as barras da gaiola de ferro burocrática, ao mesmo tempo pelo lado das empresas que são instadas a se tornarem mais leves e flexíveis, e pelo lado dos trabalhadores, que no início são obrigados a se "reinventarem" constantemente, para depois, em uma evolução positiva, tomarem gosto por uma vida mais movimentada e variada, menos constrangida pelas viseiras produzidas pelas instituições.

os membros de nossas amostras, estes, parafraseando ao mesmo tempo o dito popular e a analogia erudita, são os verdadeiros artistas do cotidiano. Eles estão vivendo compulsoriamente em um mundo diferente da promessa fundamental em que se engajaram quando iniciaram seus investimentos escolares e profissionais - momento também em que começaram a fazer seus cálculos subjetivos sobre o futuro. Fazem muito para se adaptarem, são fregueses compulsórios da indústria do otimismo e sempre acham que não fizeram o suficiente, e assim aprofundam a tendência a crer na naturalidade do espaço em que vivem e que o único caminho é seguir as receitas.

Para os cientistas sociais, fica o alerta de que essa visão do mundo social como uma natureza inelutável se sustenta em grande parte por conta da nossa cumplicidade ativa ou passiva. Em lugar de considerar a sociologia espontânea produzida nos manuais de auto-ajuda e nos demais interstícios do mundo econômico como uma espécie de "arte menor" que diminui quem dela se ocupa, é imperioso enfrentá-la, tanto na sua variante que puxa para o fatalismo do provável, definindo esse mundo "globalizado" sem sujeito, pré-construído e irresistível, quanto sua irmã siamesa que apela para a ilusão da indeterminação completa dos destinos individuais e que se apressa em vender sua receita de salvação.


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