Congresso e política de reforma do estado no Brasil
INTRODUÇÃO
Os projetos do Executivo que visam implementar reformas estruturais enfrentam
interesses cristalizados no status quo, não só por parte da oposição, como
também de segmentos da sua base de coalizão. O objetivo deste artigo é entender
como estes interesses são superados por meio de negociações que evitam a
rejeição ou a transfiguração dos projetos. A metodologia utilizada para
fundamentar as explicações sobre a implementação destas reformas e delas
extrair conclusões mais gerais privilegia a análise das negociações entre o
Executivo e o Legislativo, tomando por base o estudo de dois casos selecionados
do primeiro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso: a implementação da
desestatização da Companhia Vale do Rio Doce ' CVRD e a produção legislativa
que permitiu a desestatização do setor de telecomunicações.
Argumenta-se que as privatizações ocorreram em um período em que o Executivo
detinha, no que se refere a este tipo de política, graus de liberdade para
impor estrategicamente sua preferência perante aquela correspondente à
tendência central do Congresso Nacional, em um momento em que parte das tensões
da negociação política do presidencialismo de coalizão se transferia para a
atividade de fiscalização. Essas condições são tidas como necessárias ' mas não
necessariamente suficientes ' à implementação destas políticas. Uma vez
existentes tais condições, aos casos selecionados foi aplicado um modelo
analítico de coordenação de interesses cuja construção se sustenta em duas
arenas de negociação, partidária e distributiva, que interagem entre si.
Durante as negociações, o Executivo foi tratado, analiticamente, como
interdependente de sua base de coalizão, razão pela qual o termo Governoserá
utilizado para expressar o conjunto Executivo e sua base de coalizão
parlamentar.
A forma de abordagem dos casos seguiu o caminho de uma narrativa analítica, em
que são combinadas a história e a produção das políticas com a teoria da
escolha racional, em consonância com o trabalho de Bates et alii (1998). A
adoção da narrativa analítica para abordar os casos selecionados revelou-se
consistente com o previsto pelos autores que a defendem, no sentido de que, na
análise dos casos, ocorre uma contínua interação entre o material pesquisado e
o modelo analítico assumido, o caráter dedutivo do modelo sendo informado pelo
caráter indutivo da pesquisa dos casos.
Nos casos analisados, o Governo, embora tendo o apoio da maioria dos
congressistas para a aprovação dos seus projetos, necessita negociar
internamente, em sua base de coalizão. Isto ocorre porque a oposição não se
propõe à cooperação na arena partidária, com a busca de políticas alternativas
que pudessem ser julgadas viáveis pelo Governo. Internalizada a negociação
dentro da coalizão, verifica-se a existência do parlamentar pivô da coalizão,
aquele que mais provavelmente poderia votar contra os projetos do Governo. O
parlamentar pivô será o objeto de maior atenção do Governo na arena
distributiva. As negociações nesta arena permitem modificar o ganho deste
parlamentar, levando-o a votar em sintonia com o projeto do Governo.
Embora reconhecendo a limitação das conclusões que possam ser extraídas da
análise de somente dois casos, entende-se que o modelo analítico baseado na
coordenação de interesses em duas arenas de negociação revela-se adequado para
a compreensão da produção de reformas conduzidas no âmbito do presidencialismo
de coalizão brasileiro. Uma vez satisfeitas as condições necessárias de
exeqüibilidade, nos termos argumentados, o sucesso na implementação das
políticas é explicável pelas negociações desenvolvidas nas arenas partidária e
distributiva.
ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO
Inicialmente, apresenta-se uma síntese da literatura recente aplicável ao
presidencialismo de coalizão brasileiro, em especial a que enfatiza os pontos
institucionais de veto, com implicações negativas para a produção de políticas
públicas no país, e a que privilegia a coordenação dos atores, com implicações
positivas. Da análise sobre a política pública de privatizações no período pós-
1985, constrói-se o argumento sobre as condições prévias de viabilidade das
privatizações.
Na seqüência, são discutidas as condições de suficiência para o sucesso da
implementação das reformas, por meio da proposição do modelo de análise baseado
na coordenação de interesses dos atores envolvidos em duas arenas de
negociação, uma partidária e outra distributiva. Tendo como referencial o
modelo analítico proposto, para cada caso selecionado são destacadas as
principais conclusões extraídas das respectivas narrativas analíticas1. Como
consideração final, é apresentada uma implicação teórica julgada passível de
avaliação empírica em outros casos.
AS POLÍTICAS PÚBLICAS E O PRESIDENCIALISMO BRASILEIRO
O objetivo desta seção é apresentar, resumidamente, a literatura recente
aplicável ao presidencialismo de coalizão brasileiro, em especial: (1) a que
enfatiza os pontos institucionais de veto para a produção de políticas públicas
no país, com implicações negativas; e (2) a que privilegia a coordenação dos
atores, com implicações positivas.
Um postulado geral da primeira vertente da literatura é o de que, quanto maior
o número de vetos, menor a capacidade decisória, maior a estabilidade das
políticas adotadas ' leia-se maior a dificuldade de alteração do status quo ' e
maior a produção de políticas de caráter privado, por conta das negociações
envolvendo pagamentos colaterais em
políticas distributivas
2, associados à superação dos vetos. É neste sentido que as implicações da
configuração e do funcionamento das instituições políticas brasileiras para a
produção de políticas de caráter nacional têm sido objeto de sistemática
análise por parte desta literatura (Cox e McCubbins, 2001; Shugart e Haggard,
2001, entre outros).
O sistema partidário e eleitoral brasileiro induziria a uma maior produção de
políticas de caráter privado, em razão da grande quantidade de partidos, de
facções partidárias e de parlamentares que atuam de forma independente do
partido. A fragmentação partidária ' definida pela grande quantidade de
partidos em competição no Legislativo ' teria como decorrência um efeito
perverso para a governabilidade, uma vez que, quanto maior a fragmentação
legislativa, menor tende a ser o tamanho do partido do presidente. Gabinetes
formados por coalizões partidárias são também vistos como possíveis causadores
de mau desempenho econômico (Roubini e Sachs, 1989; Alesina, Roubini e Cohen,
1997).
Ademais, a estrutura política fragmentada e descentralizada do Brasil seria uma
facilitadora da atuação de grupos de interesse ' organizações empresariais e
trabalhistas, em especial ' na oposição às reformas econômicas (Haggard e
Kaufman, 1995). A ausência de sindicatos abrangentes também funcionaria como
impeditivo para o sucesso de políticas de ajustes de caráter estrutural, por
não induzir à participação institucionalizada de grupos de interesse, como em
alguns países da Europa (idem).
À separação de poderes ' própria do presidencialismo ' juntam-se, assim, outros
aspectos institucionais que são, recorrentemente, considerados como entraves a
que políticas de caráter reformista sejam implementadas no Brasil, em função do
que representariam em termos de pontos de veto à produção de políticas
nacionais que implicam a alteração do status quo: ausência de sindicatos
abrangentes, estrutura federativa, governos de coalizão e fragmentação
partidária.
Em síntese, para parte expressiva desta literatura, a configuração
institucional brasileira tem sido vista, no mínimo, como geradora de
dificuldades para a produção de políticas nacionais, o que significa dizer que,
deste ponto de vista, os casos analisados neste artigo ' a desestatização da
CVRD e a reforma do setor de telecomunicações ' seriam autênticos exemplos de
políticas públicas no país errado.
Tomando-se por base a outra vertente da literatura, o debate transfere-se de
uma visão centrada na não-governabilidade da democracia brasileira, em uma
linha de indicação normativa de uma configuração institucional que leva à
paralisia decisória, para uma análise dos mecanismos efetivos de funcionamento
dessa democracia, ou seja, como se governa o Brasil à luz da sua configuração
institucional (Palermo, 2000). Nesta linha, é enfatizada a capacidade de
coordenação dos interesses dos diversos atores relevantes envolvidos no
processo decisório político, condição para que as políticas de governo sejam
implementadas. Essa outra vertente da literatura confere poder explicativo à
análise das políticas que são produzidas no Brasil, a despeito dos pontos de
veto. Isso não significa dizer que a configuração institucional de cada país
não importa, mas, sim, que importa no sentido de implicar diferentes
estratégias de coordenação por parte do Governo para atingir seus objetivos.
No caso dos regimes presidencialistas, as diferenças em suas configurações
resultam em distintos padrões de cooperação ou de concorrência entre os poderes
Executivo e Legislativo para a produção das leis (Shugart e Carey, 1992).
Seguindo esse caminho, Figueiredo e Limongi (1999) analisaram o processo
decisório do sistema político brasileiro sob a Constituição de 1988. Em
oposição às teses que privilegiam as conseqüências danosas dos excessivos
pontos de veto do sistema político brasileiro, estes autores sustentam que há
mecanismos de governabilidade no presidencialismo de coalizão que se tem
verificado no Brasil. Esta governabilidade estaria associada aos poderes
constitucionais do presidente ' legislativos, administrativos ou distributivos
', garantindo ao Executivo a capacidade de concentrar o processo decisório e de
impor sua agenda. De outro lado, apesar da fragmentação partidária e do sistema
eleitoral com lista aberta, Figueiredo e Limongi demonstram que, em face da
existência de uma forte centralização dos trabalhos do Legislativo nos líderes
partidários, não há a indisciplina partidária apregoada por parte da
literatura. Em poucas palavras: partidos políticos importam no presidencialismo
brasileiro.
Em trabalho posterior, entretanto, Ames (2001) reiteraria a percepção de
ineficácia do sistema político brasileiro, com base na grande quantidade de
atores com poder de veto, inerente à sua estrutura institucional, a ineficácia
sendo fundamentalmente definida em função da manutenção do status quo.
As visões de Figueiredo e Limongi e de Ames não são necessariamente
conflitantes quando pensadas em termos da dificuldade associada ao processo de
negociação decisória, uma vez que Ames chama a atenção para o que não é
produzido. A concentração de poderes no presidencialismo brasileiro de coalizão
não resolveria, assim, por si só, a questão da incerteza do Executivo quanto a
formular uma política que suponha tratamento legislativo. Neste sentido, não
seria suficiente a verificação das disciplinas partidárias nas votações
nominais de uma dada matéria que vai a plenário. Isto porque a disciplina
partidária não significa, necessariamente, que os partidos da coalizão
respondam disciplinadamente às iniciativas do Executivo, mas, sim, que a
disciplina concede previsibilidade a acordos quando esses são firmados
(Palermo, 2000).
Independentemente da abordagem das literaturas, não se pode negar que políticas
públicas reformistas de caráter nacional não deixam de ser produzidas no país,
e que existe no presidencialismo brasileiro um intenso processo de negociação
entre os poderes Legislativo e Executivo, não totalmente captado quando são
analisadas apenas as legislações aprovadas e as respectivas votações.
AS PRIVATIZAÇÕES NO PERÍODO PÓS-1985 E O PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO
BRASILEIRO
Nesta seção, visa-se, inicialmente, justificar a escolha da privatização como a
política reformista a ser objeto de análise para se extrair conclusões sobre o
processo decisório do presidencialismo de coalizão brasileiro, para, em
seguida, analisar-se o contexto que permitiu ao Executivo buscar sua
implementação.
A escolha decorre, primeiro, das características desta política pública. As
privatizações enquadram-se como reformas econômicas que envolvem custos
concentrados no curto e médio prazos e benefícios difusos no longo prazo, em
que a ação coletiva dos perdedores é facilitada pela clareza da perda com as
reformas, as quais, de outro lado, projetam resultados incertos para a
sociedade e seus mais diretos beneficiários. Privatizações não são as
legislações de preferência dos parlamentares ' aquelas que envolvem
transferência concentrada de recursos (Santos, 1995)3 ', sendo, portanto,
políticas públicas em relação às quais se espera que haja negociação entre os
dois poderes.
Segundo, porque a privatização, entre as mudanças que têm composto a agenda da
reforma do Estado no Brasil, apesar dos benefícios difusos e da imposição de
custos concentrados, foi uma das que mais avançou no período recente no país, o
Estado tendo se retirado de setores que gerenciou com exclusividade por várias
décadas (Pinheiro, 1999).
Foram selecionadas, como objeto de pesquisa, a desestatização da CVRD e a
reforma do setor de telecomunicações, ambas levadas a efeito no primeiro
mandato do governo Fernando Henrique Cardoso, por sua contemporaneidade e
importância relativa. A CVRD foi escolhida por ser uma empresa estatal
emblemática cuja privatização foi realizada em meio a expressivas manifestações
de rejeição da sociedade. A reforma do setor de telecomunicações, em função de
se tratar de um serviço público e pela profundidade da reestruturação do setor
associada a esta desestatização. Por outro lado, apesar de situadas em uma
mesma categoria, essas duas desestatizações são, na verdade, políticas públicas
bastante distintas, que implicaram diferentes processos de negociação entre os
poderes Executivo e Legislativo. Essa diferenciação é sintetizada no Quadro_1,
ao final desta seção. Feitas essas observações, cabe expor, brevemente, o
contexto geral de implementação das referidas reformas econômicas no país.
As reformas econômicas ocorridas nos países em desenvolvimento nas décadas de
1980 e 1990 têm sido amplamente discutidas na literatura, tendo em vista a
compreensão sobre a transformação das idéias e das políticas que vigoravam nos
anos 1970, baseadas no desenvolvimento calcado no Estado. Nesta literatura, o
Brasil é situado entre aqueles países que só se moveram na direção de reformas
estruturais ao final da década (Stallings, 1992, entre outros).
A despeito das privatizações realizadas no governo Sarney, elas só se tornam,
de fato, parte da agenda pública no governo Collor, mais precisamente, a partir
de 15 de março de 1990, quando é instituído o Programa Nacional de
Desestatização ' PND, por meio de medida provisória ' MP, conferindo à
privatização status de prioridade dentre as políticas de governo.
O fato de as privatizações se tornarem política de governo neste período não
elimina a questão de como se forjaram as condições para sua implementação.
Afinal, não só não havia consenso sobre a prioridade de reformas estruturais no
período imediatamente anterior, como também Collor havia assumido o governo sem
base partidária de apoio e sem o suporte de segmentos organizados da sociedade
civil. As condições para a transformação de um sentimento difuso antiestatista,
presente em sua campanha eleitoral, em uma política de privatizações não
estavam dadas (Schneider, 1990).
Com base em estudos realizados pelo Instituto de Desenvolvimento Econômico e
Social do Planalto ' IDESP em 1991 e 1995, com uma amostra das duas Casas,
Tavares de Almeida e Moya (1997) avaliaram a posição do Congresso sobre as
privatizações, revelando que a posição de absoluta adesão ao intervencionismo
estatal prevalecente ' definido como sendo o status quo ' era minoritária no
Legislativo pelo menos desde 1991. A maioria dos seus membros era, portanto,
favorável a alguma mudança na forma de atuação do Estado. Mais ainda: dos sete
maiores partidos com assento no Congresso, apenas em dois, somando cerca de 15%
das cadeiras na Câmara e 6% no Senado, a maioria ou a totalidade dos
parlamentares era a favor do status quo. De forma análoga, estudo realizado por
Soares de Lima e Boschi em 1995 mostra que a posição totalmente favorável à
intervenção do Estado representava, então, apenas 22,4% dos congressistas.
Desses estudos foram extraídas apenas as posições extremadas a favor do status
quo, isso não significando dizer que a posição dominante fosse o seu oposto.
Muito pelo contrário, as conclusões dos dois trabalhos indicam a prevalência de
um reformismo moderado, quer por parte dos congressistas, quer por parte das
elites em geral, não sendo crível que reformas estruturais pudessem ser
implementadas sem a formação de coalizões que viessem a garantir a continuidade
das mesmas.
Esta exposição é suficiente para inferir-se que à época em que as privatizações
ganharam a prioridade do Executivo, no início dos anos 1990, a preferência do
congressista mediano sobre o nível de intervenção do Estado na economia estava
distante do status quo.
O'Halloran (1994), pesquisando sobre a área de comércio exterior dos Estados
Unidos, em levantamento de dados que remonta ao século XIX, mostra como a
ausência de interferência do Congresso não significa, necessariamente,
aquiescência, podendo denotar, de outra forma, que o presidente é capaz de agir
de modo a evitar a ação contrária do Congresso. Pode-se ter uma aparência
enganosa de grande poder discricionário do presidente quando o status quo se
encontra distante da preferência do congressista mediano. Nesse sentido,
O'Halloran conclui que, quanto mais longe o status quo se coloca dessa
preferência mediana, maior a liberdade do presidente para alterá-lo de acordo
com as suas preferências, o inverso sendo também verdadeiro ' quanto mais
próximo o status quo se encontra do congressista mediano, menor a liberdade do
presidente em aprovar uma nova política do seu interesse.
De outro lado, Santos e Patrício (2001), avaliando as bases da autonomia
concedida ao Banco Central brasileiro, a partir da Constituição de 1988,
argumentam que tensões do presidencialismo de coalizão no Brasil se transferem
para a atividade de fiscalização do Executivo por parte do Legislativo. Sem
negar que a perspectiva de transferência de responsabilidade4 e a complexidade
dos assuntos que envolvem a atuação do Banco Central sejam fatores de delegação
ao Executivo, concluem os autores que o Legislativo transfere sua atenção e
poder de interferência para a atividade de fiscalização, na qual as
divergências dos partidos da coalizão ocorrem e são superadas por meio de
acordos que envolvem o presidente e seu partido. A negociação política desloca-
se, assim, para a atividade de fiscalização, que passa a ser o locus de
rearranjos das bases de cooperação nos gabinetes.
Embora seja razoável supor que a transferência de parte das tensões do
presidencialismo de coalizão para a atividade de fiscalização tenda a ocorrer
mais fortemente nas políticas de natureza econômica que induzam a uma
estratégia de transferência de responsabilidade, por força dos seus resultados
imediatos, a exemplo da política monetária, isto não significa que este
argumento não tenha validade, em algum nível, nas demais políticas públicas,
desestatizações incluídas.
Desta exposição extraem-se dois argumentos básicos que permitem entender como
foi possível ao Governo levar adiante a sua política de reformas. Esses
argumentos constituem-se no pano de fundo sobre o qual ocorreram as negociações
entre o Executivo e o Legislativo que possibilitaram a desestatização da CVRD e
a reforma do setor de telecomunicações. São eles:
1) As privatizações, na década de 1990, ocorrem em um ambiente em que a
preferência do congressista mediano sobre o nível de intervenção do Estado na
economia encontrava-se distante do status quo. Nesse sentido, o Executivo tinha
graus de liberdade para impor estrategicamente sua preferência sobre esta
política, em relação àquela correspondente à tendência central do Congresso.
2) Parte das tensões do presidencialismo de coalizão transfere-se para a
atividade de fiscalização, a qual se torna um locusde negociação política, onde
partidos e parlamentares que competem eleitoralmente entre si buscam o
rearranjo das suas bases de cooperação após a produção das políticas,
independentemente do nível de cooperação da coalizão governamental para a
produção dessas políticas. A possibilidade deste segundo turno de
negociaçãofacilita a delegação da base governista para o Executivo, o que não
significa dizer que isto ocorra de forma absoluta e igual em todas as matérias.
Embora esses argumentos permitam compreender as condições que favoreceram a
implementação das reformas, não explicam, por si só, o resultado da produção
dessas políticas. Expressam condições de viabilidade prévia, necessárias, mas
não suficientes. Falta analisar as preferências dos diversos atores envolvidos,
como interagem entre si, e como se dá a coordenação destas preferências por
parte do Governo. Essas análises são feitas por meio das narrativas analíticas
aplicadas aos casos selecionados.
MODELO DE ANÁLISE DAS NEGOCIAÇÕES ENTRE O EXECUTIVO E O LEGISLATIVO
Apresentados os argumentos ' condições necessárias ' que fundamentam a
viabilidade da busca da implementação da privatização por parte do Executivo, é
proposto um modelo analítico que permite a compreensão das negociações dos
casos estudados. Trata-se de elucidar as condições de suficiência para o
sucesso da implementação das reformas por meio da proposição de um modelo de
análise baseado na coordenação de interesses dos atores envolvidos.
As ênfases no caráter particularista-distributivo ou partidário da produção de
políticas públicas ganharam corpo na década de 1990, com a formalização de
estudos e modelos sobre o funcionamento do Legislativo norte-americano. De um
lado, os que apregoavam que o sistema político americano implicaria a
subprodução de políticas nacionais, com os benefícios das políticas se
associando, geograficamente, aos distritos dos deputados. Neste sentido, o
Congresso organizar-se-ia, institucionalmente, para atender os objetivos
eleitorais dos parlamentares de forma individual, os partidos importando pouco
como entidades aglutinadoras de interesses (Mayhew, 1974; Shepsle, 1978;
Weingast e Marshall, 1983, entre outros). De outro lado, a vertente de pesquisa
que indicava uma visão oposta, de que os partidos importam para os interesses
individuais de reeleição dos parlamentares, a organização institucional do
Congresso, nesse caso, sendo vista como tendo um desenho capaz de atender os
desejos do partido majoritário e seus líderes (Kiewiet e McCubbins, 1991; Cox e
McCubbins, 1993).
Alguns trabalhos posteriores, na literatura americana, questionariam a suposta
incompatibilidade dos modelos distributivo e partidário. Shepsle e Weingast
(1995) propuseram que as pesquisas deveriam ser enriquecidas com modelos
híbridos que levassem em consideração, de forma simultânea, a premissa
distributiva das preferências e o papel de coordenação exercido pelas
instituições em proveito de uma produção legislativa mais coletiva. Epstein e
O'Halloran (1999), por sua vez, argumentaram que as abordagens deveriam ser
vistas como complementares e não excludentes entre si, uma vez que diferentes
legislações requerem estruturas diversas de processo decisório, nenhuma das
teorias sendo suficiente para abranger todos os casos e situações. Carvalho
(2003) segue uma linha similar para o estudo do comportamento legislativo no
Brasil, com base na premissa de que o Legislativo brasileiro demanda solução
teórica interativa que combine os modelos partidário e distributivo.
A construção do modelo analítico apresentado neste artigo parte da mesma
premissa utilizada por Carvalho. Na explicação das políticas públicas
produzidas, o caráter distributivo do sistema político-eleitoral brasileiro,
que levaria ao bloqueio da produção de políticas nacionais, de acordo com Ames
(2001), é aceito como parte integrante do processo decisório, bem como a visão
de Figueiredo e Limongi (1999) sobre o papel de coordenação exercido pelos
partidos.
Por fim, a questão indicada por Palermo (2000), abordada anteriormente, sobre o
real significado das votações, é automaticamente incorporada, uma vez que o que
se quer explicar é a produção de políticas públicas por parte do Governo,
entendido como o Executivo e sua base de coalizão parlamentar, o que abrange as
negociações desenvolvidas.
AS DUAS ARENAS DE NEGOCIAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Postula-se que a produção das políticas públicas brasileiras seja inteligível à
luz das negociações entre os poderes Executivo e Legislativo e que estas
negociações se desenvolvem em duas arenas, uma partidária e outra distributiva.
À arena partidária associam-se os interesses do Governo em relação à política
que se pretende aprovar ou implementar. À arena distributiva associam-se os
interesses subnacionais e eleitorais particulares dos parlamentares julgados
relevantes para a aprovação da política pública desejada. Estas arenas, na
situação mais geral, interagem entre si, podendo ou não ocorrer em um mesmo
locusde negociação.
Esta estrutura analítica não significa que ao Governo não interesse reduzir ao
máximo os custos distributivos, o que sugere que a arena distributiva se
desenvolve na medida em que há a percepção de que a arena partidária é
insuficiente para a aprovação da política desejada. Tão logo esta percepção
emerge, as negociações nas arenas partidária e distributiva tendem a se dar de
forma simultânea e interativa.
São utilizados conceitos da teoria da escolha racional para explicar as
configurações das políticas públicas engendradas interativamente pelas arenas
partidária e distributiva, o que se justifica na medida em que a identidade dos
diversos atores, seus objetivos e preferências podem ser estabelecidos e as
regras de interação são conhecidas pelos agentes (Tsebellis, 1990).
As análises dos casos selecionados, que amparam empiricamente o modelo de
análise proposto, seguiram o caminho de uma narrativa analítica. A narrativa
analítica é um conceito que combina a história e a produção das políticas com a
teoria da escolha racional. São identificados os agentes envolvidos ' atores
individuais ou coletivos ', suas preferências e os fundamentos de suas escolhas
e decisões em nível micro, os caminhos evitados e os efetivamente adotados, bem
como as formas pelas quais as escolhas resultam em fatos e se revertem em
decisões políticas, buscando-se uma interação permanente entre o modelo
analítico assumido e a pesquisa realizada, as idéias sendo confrontadas
continuamente com a realidade (Bates et alii, 1998). Por construção, a
narrativa analítica implica o cruzamento entre as literaturas sobre a
importância dos grupos de interesse para a produção de políticas públicas e
aquelas que analisam o comportamento do Legislativo por meio das votações.
As preferências dos agentes são, entretanto, passíveis de serem mediadas por
instituições capazes de coordená-las, no sentido de induzir a resultados
Pareto-Ótimo5 superior, em que todos fiquem em melhores condições. O conflito
entre as racionalidades individuais e coletivas é, assim, resolvido por meio de
instituições capazes de facilitar a comunicação entre os agentes, realçando e
tornando críveis os benefícios para os cooperadores e os custos para os
desertores (Tsebellis, 1990).
Como parte integrante da narrativa analítica, na busca do entendimento dos
resultados finais das negociações entre o Executivo e o Legislativo, são ainda
investigadas políticas simultâneas ou quase-simultâneas, também negociadas em
arenas partidárias e distributivas, as quais, dedutivamente, tenham exercido
influência naquela que está sendo objeto de apreciação, reforçando a
perspectiva de sua implementação. Assume-se que essa será uma análise
fundamentalmente contrafactual, significando dizer que, caso essas políticas
não tivessem existido, a probabilidade de implementação da política desejada se
reduziria até o limite do seu insucesso. A simultaneidade destas políticas é o
que permite um caráter dedutível consistente, na medida em que sejam eventos
próximos com mecanismos causais bem compreendidos, sujeitos a poucas
interferências de outros eventos externos (Fearon, 1996).
É fato que, na condução das políticas de natureza econômica do interesse do
Executivo, há predominância da preferência do presidente, ao qual, como
reconhecido na literatura, em função de possuir eleitorado nacional, é
concedida delegação objetivando a superação dos dilemas de ação coletiva
associados aos conflitos distributivos decorrentes dos interesses de reeleição
dos congressistas. No entanto, a extensão desta delegação dependerá da maior ou
menor proximidade entre as preferências do presidente e as do Congresso, como
visto anteriormente (O'Halloran, 1994; Epstein e O'Halloran, 1999), ou, mais
especificamente, entre as preferências do presidente e as de sua base de
coalizão. O exercício dessa delegação pelo presidente se faz, todavia, com
subdelegações para seus ministros e líderes partidários, para atuarem nas
arenas partidária e distributiva, com vista a garantir a aprovação da política.
As comissões congressuais funcionam como o locus natural da arena partidária,
ainda que não exclusivo, uma vez que a escolha de parlamentares para integrá-
las está centralizada nas mãos dos líderes partidários. As comissões reúnem os
parlamentares mais experientes e com expertise nas matérias que nelas tramitam,
além de propiciar maior participação individual, por conta da menor restrição
ao uso da palavra e à apresentação de emendas (Figueiredo e Limongi, 1999;
Santos, 2002). Uma vez a política tendo sido votada nas comissões, é submetida
ao plenário, onde a ação dos líderes e as negociações desenvolvidas buscam
permitir sua aprovação de acordo com os interesses do Executivo e sua coalizão.
Na coordenação dos diversos interesses, o Governo conta com atores-chave,
chamados por Arnold (1979; 1990) de líderes de coalizão, aqueles que
influenciam e conduzem a estruturação do processo decisório congressual, por
serem capazes de antecipar as decisões de voto dos parlamentares, seja nas
comissões, seja em plenário. Em princípio, mas não exclusivamente, os líderes
de coalizãonaturais são o presidente, o ministro a cujo Ministério esteja
vinculada a política proposta e os líderes partidários.
Nas comissões, o relator aparece como outro líder de coalizão fundamental. Cabe
a ele apresentar o projeto substitutivo ao original, incorporando propostas dos
parlamentares. Contudo, há uma enorme diferença entre o que os parlamentares
propõem e o que é incorporado ao projeto pelos relatores. A participação dos
congressistas é filtrada, limitando a participação individual no que se refere
a propostas próprias que atendam a seus interesses particulares (Figueiredo e
Limongi, 1999). Isso não significa que a proposta do relator não expresse
demandas de grupos de interesse. Ao contrário, a comissão é o locusapropriado
de expressão desses interesses, até por conta da identificação dos
parlamentares que nela atuam e da especialização em relação à matéria em
apreciação, o que, em alguma medida, os vincula a setores econômico-sociais e
grupos de interesse (Santos, 2002). Entretanto, esses interesses são mediados
pelos líderes partidários, os quais se encontram em condições de propor
alterações ao status quo, em conjunto com o relator, além ou aquém das
preferências dos grupos de interesse. Esta percepção se sintoniza com o caso
norte-americano, em acordo com a referida pesquisa de O'Halloran (1994) sobre a
área de comércio exterior dos Estados Unidos.
Ao relator cabe, portanto, a função de ajustar os projetos vindos do Executivo,
de forma a ampliar a perspectiva de cooperação por parte dos parlamentares,
aprovando uma proposta que busque unir a coalizão governamental na comissão,
antes de seguir para plenário, onde a maior pulverização de interesses será, em
algum nível, mediada pela arena distributiva. O Executivo, subsidiado pelos
líderes de coalizão no mapeamento de interesses particulares que possam colocar
em risco a aprovação da política desejada, detém recursos para garantir apoio à
sua proposta. Isto inclui os recursos de patronagem, expressão usualmente
utilizada para a concessão de postos em cargos no Executivo, e as denominadas
legislações
pork-barrel
6, que visam atender interesses eleitorais dos parlamentares, principalmente
aquelas que não necessitam de autorização do Legislativo (Santos, 1997; Amorim
Neto e Santos, 2001; Pereira e Mueller, 2002; Santos, Machado e Rocha, 1996).
Quando a coalizão governista é maioria, como no período de produção das
políticas que serão objeto de análise empírica, a previsão é que as negociações
se transfiram para o seu interior, ainda que informadas pela preferência da
oposição. Quando a coalizão governista não é maioria, a negociação se amplia em
termos de participantes, o que não altera a natureza do problema: trata-se de
buscar uma proposta que, ao mesmo tempo em que una a base governista, atraia
parte da oposição, até se atingir o quórum necessário para a aprovação da
matéria. Pode-se antever que, no presidencialismo de coalizão, a negociação
será totalmente internalizada na base governista quando a oposição tiver a
preservação do status quo como estratégia dominante7. Quando a oposição aceita
negociar alternativas, nada impede que ela seja encarada como mais um membro da
coalizão para aquela política específica, capaz de causar à política proposta
tantos embaraços ou benesses quanto a base governista.
Postula-se, ainda, que este modelo de análise tenha validade para a Câmara e o
Senado. Dependendo das características e especificidades das políticas, o
centro principal de tensão e negociação tende a ocorrer de forma mais evidente
em uma das duas casas legislativas. A diferença básica é que, no Senado, atores
estaduais ' governadores, políticos e grupos de interesse locais ' se farão
presentes como sinalizadores dos interesses subnacionais, na medida em que o
Senado, no Brasil, é desenhado para representar os estados. Tendo em vista que
senadores e deputados são eleitos no Brasil por sistemas eleitorais distintos '
sistemas majoritário e de representação proporcional, respectivamente ', o que
altera são as fontes dos interesses. Uma vez que as negociações entre o
Executivo e o Legislativo não ocorrem desvinculadas dos interesses outros da
sociedade, em especial aqueles dos grupos organizados, tanto o Executivo como o
Legislativo, durante a negociação, encontram-se informados sobre esses
interesses, vocalizados por meio do mecanismo denominado na literatura de
alarme de incêndio8 e mediados pelos líderes de coalizão do governo.
O MODELO DE DUAS ARENAS E OS CASOS ANALISADOS
O objetivo desta seção é apresentar a forma de aplicação do modelo aos casos
empíricos selecionados: a desestatização da CVRD e a produção legislativa que
permitiu a desestatização do setor de telecomunicações, ambos ocorridos no
primeiro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso.
O primeiro caso, o que parecia ser apenas a implementação de uma política em
relação à qual o Executivo detinha ampla delegação. O segundo, a produção de
três marcos regulatórios, um dos quais uma emenda constitucional, que
resultaria em profundas alterações no status quo. No caso da CVRD, o foco
principal de tensão e negociação ocorreu no Senado; no das telecomunicações, na
Câmara.
Os dois casos se dão em um contexto em que o Governo é representado por uma
coalizão que lhe fornece maioria para aprovar essas políticas e a oposição não
participa das negociações, uma vez que sua estratégia dominante é a preservação
do status quo. Ocorre, entretanto, que no interior da coalizão governamental
existem parlamentares que não estão completamente convencidos dos benefícios
das reformas pretendidas.
No caso da CVRD, estes parlamentares se encontram entre os senadores do Partido
do Movimento Democrático Brasileiro ' PMDB e os senadores da coalizão
vinculados às regiões de influência ' doravante denominadas como RIs ' desta
companhia: Minas Gerais, Espírito Santo, Maranhão, Sergipe, Bahia e Pará. Na
reforma do setor de telecomunicações, estes parlamentares são deputados do
PMDB.
Mais especificamente, em relação aos parlamentares do PMDB, estes representam o
parlamentar mediano, de tradição nacionalista, deste partido, conceito extraído
do "Teorema do Eleitor Mediano", apresentado por Hinich e Munger (1997),
relativo a quando se está diante de uma única dimensão política ' no caso, a
privatização ' e há preferência por uma escolha ' não privatizar ou privatizar
' em relação à outra. A existência deste parlamentar mediano nacionalista do
PMDB ' na desestatização da CVRD e na reforma do setor de telecomunicações ',
para o qual se dirige a oposição na busca de uma aliança para frustrar os
projetos do Governo, é objeto de demonstração empírica nas narrativas
analíticas dos dois casos selecionados.
Em seu conjunto, os parlamentares não completamente convencidospodem ser
considerados, para efeito de análise, como um ator unitário, visto como sendo o
pivô, cujo posicionamento pode ' com maior probabilidade do que qualquer outro
grupo de parlamentares ' causar transtornos aos objetivos do Governo.
O Governo não só sabe da existência destes parlamentares como também não
desconhece que a atitude racional de cada um, individualmente, é votar contra
as reformas pretendidas. Na medida em que a oposição não coopera, será,
principalmente, com o pivô que o Governo terá de estabelecer as bases de
negociação. Presumivelmente, a sua rejeição à política proposta poderia, ainda,
deflagrar votos contrários de outros parlamentares não-pivôs da coalizão do
Governo.
Utilizando a teoria dos jogos, Tsebellis (1990) mostra que existem jogos
secundários, que se desenvolvem enquanto se desenrolam os jogos principais, que
alteram os resultados ' payoffs' destes últimos. Como conseqüência, os payoffs
que são aceitos pelos participantes do jogo principal só fazem sentido quando
se consideram os de jogos secundários, jogados pelos mesmos participantes. Em
poucas palavras: os jogos secundários alteram os resultados dos principais,
tornando-os explicáveis e racionais.
No modelo de análise adotado, em analogia à visão de Tsebellis, o jogo
principal desenvolve-se na arena partidária, e o secundário, na distributiva. A
decisão do pivô em apoiar a reforma ' arena principal ' só é totalmente
compreendida caso também seja considerada a arena distributiva. O Governo e o
pivô ' tratados analiticamente como atores unitários ' são os jogadores que,
estrategicamente, buscam o melhor resultado para si, até se chegar à solução
Pareto-Ótimo para ambos, o que, em última instância, sintetiza a razão da
aprovação da política.
PRINCIPAIS CONCLUSÕES EXTRAÍDAS DA NARRATIVA ANALÍTICA SOBRE A IMPLEMENTAÇÃO DA
DESESTATIZAÇÃO DA CVRD
Um primeiro ponto a ser destacado é que a análise dos projetos do Governo
apenas com base no resultado final da sua implementação pode dizer pouco sobre
a extensão das negociações entre os poderes Executivo e Legislativo.
Na implementação da desestatização da CVRD, à primeira vista se estava diante
de um caso em que o Executivo, gozando de ampla delegação, por conta da Lei nº
8.031, de 12 de abril de 1990 ' lei que regula o Programa Nacional de
Desestatização, oriunda de MP ', simplesmente teria dado curso aos seus
desejos, não tomando conhecimento de demandas do Legislativo e de outros
segmentos da sociedade.
Todavia, a ausência de um processo explícito e institucionalizado de discussão
entre o Executivo e o Legislativo quando da produção de políticas públicas
legisladas com o auxílio de MPs não induz o Legislativo ao comprometimento com
estas políticas. O Legislativo passa a atuar na margem, acionado, na maior
parte das vezes, por meio de grupos de interesse organizados, quando das
reedições das MPs.
De fato, apesar da delegação ao Executivo por meio de lei, o assunto
desestatização da CVRDnão havia sido discutido no Legislativo. Essa discussão
terminaria por ocorrer quando a CVRD foi incluída no PND. As negociações que se
desenvolvem entre os dois Poderes demonstram que, para determinadas políticas
públicas, em especial aquelas que não provocam alteração instantânea do status
quo, mesmo a medida provisória permite a ação do Legislativo (Amorim Neto e
Tafner, 2001). E isto se evidencia não apenas nas alterações processadas na Lei
nº 8.031/90, mas, também, na própria implementação da desestatização da CVRD,
em que os interesses da sociedade, e mais particularmente os de um grupo de
estados da Federação, se encarregaram de acionar o mecanismo de alarme de
incêndio, provocando intervenções por parte do Legislativo, a despeito de o
Executivo dispor de ampla delegação, nos termos da Lei nº 8.031/90.
Um outro aspecto de caráter geral a ser destacado é que projetos apresentados
pelo Legislativo referentes às políticas do Executivo, mesmo que não sejam
sequer votados, podem dizer muito das negociações entre esses poderes, não se
tratando necessariamente ' ou apenas ' de uma estratégia de tomada de
posiçãopor parte de parlamentares que desejam se proteger perante seus
eleitores (Mayhew, 1974). Ou seja, a análise dos projetos vencidos ajuda a
entender o conteúdo do projeto vencedor. De fato, no caso da CVRD, estes
projetos são de fundamental importância para se compreender o processo de
construção do acordo entre o Executivo e sua coalizão parlamentar.
A coalizão que elegeu o presidente em 1994 era composta apenas pelo Partido da
Social Democracia Brasileira ' PSDB, o Partido da Frente Liberal ' PFL e o
Partido Trabalhista Brasileiro ' PTB. Esta coalizão se amplia rapidamente: de
janeiro de 1995 a abril de 1996, o gabinete do governo tinha representantes do
PSDB, PMDB, PFL e PTB, e de abril de 1996 a dezembro de 1998, do bloco PSDB-
PMDB-PFL-PTB-Partido Progressista Brasileiro ' PPB-Partido Popular Socialista '
PPS (Amorim Neto, 2000).
Tomando-se por base as eleições de 1994 e a coalizão ampliada de abril de 1996,
o governo detinha o apoio de cerca de 80% dos senadores, 62% dos deputados e
80% dos governadores. A partir de abril, com a adesão do PPB, o governo estava
numericamente preparado, inclusive, para alcançar os 3/5 de quórum nas duas
casas do Congresso, necessários para assegurar o seu programa de reformas
constitucionais (Nicolau, 1996; 2000). Importa notar que, no Senado, esta
posição não dependia das adesões do PPB e do PPS. Sem estes partidos, a
representação da coalizão nesta Casa situava-se em 74%. A posição amplamente
majoritária da coalizão governista, contudo, não permitiu, por si só, que a
implementação da desestatização da CVRD fosse pacífica.
Primeiro, porque o Legislativo detinha ' ou deteria durante o processo '
informações que diferenciavam a desestatização da CVRD de outras antes
realizadas, fossem estas informações de domínio público ou transmitidas por
grupos de interesse. Estas informações, no essencial, derivaram dos seguintes
fatos: (a) a CVRD era uma empresa emblemática e estatal desde sua criação,
ligada à Era Vargas; (b) o processo decisório do PND era, desde sua criação,
baseado em um sistema colegiado, permitindo a vocalização de divergências no
interior do próprio Executivo; (c) o modelo adotado para a venda da CVRD era
excludente quanto ao número de vencedores possíveis; e (d) a CVRD era uma
empresa com atividades econômicas e sociais concentradas em alguns estados da
federação, facilitando a ação coletiva por parte dos senadores dos estados
tidos como perdedorescom a privatização.
Segundo, porque, conforme discutido anteriormente, no presidencialismo de
coalizão brasileiro esta negociação pode se dar dentro da coalizão parlamentar
do Governo. Na medida em que a oposição tenha a manutenção do status quo como
estratégia dominante, essa negociação tende a ser integralmente internalizada
na base governista.
Na desestatização da CVRD, isto ocorre como previsto, tendo o Senado como
locuscentral de negociações entre o Governo e sua coalizão. As negociações
foram internalizadas na coalizão porque a posição do bloco de oposição era
única, qual seja, a de não alteração do status quo. A defesa do status quo por
parte da oposição é, entretanto, utilizada pela base governista na sua
negociação, a partir da apresentação do Projeto 161/95, do senador José Eduardo
Dutra (PT-SE), que objetivava restringir a delegação concedida ao Executivo,
com conseqüência imediata para o caso da CVRD.
Tendo o Governo decidido pela negociação, a disposição em negociar sobre a
forma de desestatização da CVRD torna-se crível quando é mediada pelo
Legislativo, por intermédio da Comissão de Infra-Estrutura.
Presentes as condições de viabilidade prévia mencionadas, o Governo teve êxito
em implementar a sua política porque foi capaz de coordenar os interesses da
sua base de coalizão, a despeito da forte pressão contrária de segmentos da
sociedade e dos parlamentares da oposição, esta entendida, essencialmente, como
o bloco PT-PDT-PSB-Partido Comunista do Brasil ' PCdoB.
Em consonância com o modelo analítico apresentado, esta coordenação de
interesses se baseou, fundamentalmente, na identificação dos senadores da
coalizão tidos como pivôs e na negociação por meio de arenas partidárias e
distributivas, tornando possível a implementação da desestatização da CVRD. São
resumidos, a seguir, os principais pontos que amparam esta afirmação:
1. A concentração das atividades da CVRD em determinados estados (Minas Gerais,
Espírito Santo, Maranhão, Sergipe, Bahia e Pará), denominados RIs, induziu, de
fato, a uma atuação mais ativa de parlamentares oriundos desses estados,
contrários ao projeto do Executivo. Todas as intervenções legislativas da
coalizão captadas na pesquisa realizada ' relativas a projetos que pretendiam
alterar, em algum nível, a delegação dada ao Executivo pela Lei nº 8.031 '
vieram de parlamentares vinculados às RIs.
2. Em relação aos pronunciamentos contrários ao projeto do Governo, foi notória
a concentração nos parlamentares das RIs, na Câmara do Deputados e no Senado,
sobressaindo, inclusive, os da coalizão governamental. Embora a Câmara não
tenha sido o locus central de negociação, exerceu o papel de vocalizar os
interesses subnacionais e os da sociedade, uma vez que, do ponto de vista dos
parlamentares da oposição, a reação da sociedade era uma grande arma. Este fato
permitia que estes parlamentares buscassem, em última instância, o bloqueio do
processo de desestatização da CVRD por intermédio do Poder Judiciário, o que
quase veio a ocorrer.
3. No Senado, o PMDB foi identificado como o partido que mais provavelmente
poderia se aliar à oposição para uma eventual tentativa de criar obstáculos à
privatização da CVRD. Era deste partido que se esperava uma maior resistência,
em face da existência de parlamentares de tradição nacionalista, permitindo
antever o seu parlamentar medianocomo sendo desta tradição. A análise das
transcrições das atas das reuniões no Senado permite afirmar que é a este
parlamentar que a oposição apela na defesa do status quo. Ademais, o PMDB
detinha não só 22 cadeiras no Senado, das quais 3 dos estados situados nas RIs,
como também posições estratégicas nas comissões de Constituição, Cidadania e
Justiça e de Assuntos Econômicos, comissões dominadas por senadores do PMDB de
posição contrária à privatização da CVRD.
4. Em conseqüência, existiam dois focos de parlamentares pivôs, entendidos como
aqueles cujo posicionamento poderia ser decisivo para o resultado de uma
eventual votação contra a privatização da CVRD ou em favor da retirada de
delegação ao Executivo: entre os vinculados às RIs e entre os senadores do
PMDB, em especial o parlamentar mediano nacionalista deste partido.
5. A negociação com estes parlamentares, nos termos do modelo analítico,
transcorre nas duas arenas: (a) na arena distributiva, principalmente com os
parlamentares vinculados às RIs, em face da defesa dos interesses subnacionais
associados ao próprio desenho do Senado, de representação dos estados; e (b) na
arena partidária, principalmente com os parlamentares medianos nacionalistas do
PMDB, em face da situação de desconforto com a desestatização da CVRD9.
No conjunto, estes parlamentares formavam um ator coletivo de 14 senadores da
coalizão nas RIs e 19 senadores do PMDB, excluídos os 3 desse partido nas
RIs10. Esses 34 senadores, agregados aos 13 da oposição (incluídos os que estão
dentro e fora das RIs), totalizavam 47, um bloco com potencial de resistência
superior ao de metade mais um dos 81 senadores.
6. As bases da negociação com os senadores pivôs são estabelecidas na Comissão
de Infra-Estrutura, ao ser avaliado substitutivo para projeto proposto pelo
senador José Eduardo Dutra. O senador Vilson Kleinübing (PFL-SC), na qualidade
de relator desta comissão, torna-se, na estruturação dessa negociação, um
crucial líder de coalizão do Governo.
7. As condições gerais de venda da companhia estabelecidas na Comissão de
Infra-Estrutura demonstraram-se passíveis de serem decompostas em condições
ligadas às duas arenas, partidária e distributiva, e foram incorporadas ao
edital de venda da CVRD, produzido pelo Executivo. Foram atendidos interesses
associados aos dois focos de parlamentares pivôs, citando-se, como exemplos:
(a) antecipação de recursos para investimentos sociais nas RIs que seriam
desembolsados ao longo do tempo pela CVRD, como empresa estatal (arena
distributiva); e (b) participação da União nos resultados das operações
associadas à exploração futura de novas descobertas em que a CVRD, na condição
de empresa privada, fosse titular de direitos de pesquisa antes da privatização
(arena partidária).
8. Havia uma outra arena partidária relevante que, dedutivamente, reforçava a
possibilidade de implementação da privatização da CVRD, induzindo os pivôs à
cooperação. Esta arena partidária ' desenvolvida em paralelo à privatização da
CVRD ' se associava ao objetivo do Governo de manter a estabilidade cambial,
base de sustentação do Plano Real, o que, em conseqüência, permitiria maior
capital político para a reeleição presidencial. A privatização da CVRD cumpre o
papel de sinalizar aos investidores externos o comprometimento do Governo com
as reformas de mercado, o que não só possibilitaria maior volume de captação
externa, como situaria o Governo em melhores condições para outros projetos, a
reforma do setor de telecomunicações sendo o mais evidente deles, já
expressamente presente na agenda pública. Esta arena partidária adicional
colocava o Ministério da Fazenda como um decisivo aliado das privatizações11.
9. Por fim, no Ministério da Fazenda estrutura-se outra arena com alcance
distributivo que, também dedutivamente, reforçava a possibilidade de
implementação da privatização da CVRD. Os recursos políticos detidos por este
ministério, que, à época, se encontrava envolvido no Programa de Reestruturação
e Ajuste Fiscal dos Estados12, permitiam ampla coordenação do Governo sobre os
interesses subnacionais dos senadores não ligados às RIs, em especial aqueles
objeto de maior preocupação, tidos como pivôs, do PMDB. Esta outra arena
distributiva tornava improvável que o conflito na implementação da privatização
da CVRD extrapolasse os seis estados situados nas RIs.
PRINCIPAIS CONCLUSÕES EXTRAÍDAS DA NARRATIVA ANALÍTICA SOBRE A PRODUÇÃO
LEGISLATIVA QUE PERMITIU A REFORMA DO SETOR DE TELECOMUNICAÇÕES
As conclusões mais gerais obtidas da análise da implementação da desestatização
da CVRD permanecem válidas:
1. A análise dos projetos do Executivo apenas com base no resultado final da
sua implementação pode dizer pouco sobre a extensão das negociações entre os
poderes Executivo e Legislativo. Embora o Governo tenha logrado aprovar as
legislações que permitiram a reforma pretendida, isto não se deu à revelia dos
interesses do Legislativo e de outros segmentos da sociedade, em particular do
setor de telequipamentos instalado no país.
2. O fato de a coalizão governista ser amplamente majoritária, em número
suficiente para a aprovação, inclusive, da emenda constitucional que
flexibilizou o monopólio estatal no setor de telecomunicações, não impediu, por
si só, que os projetos oriundos do Executivo viessem a sofrer alterações no
Congresso. As negociações que acarretaram estas alterações foram internalizadas
na coalizão, ainda que sinalizadas e influenciadas pela posição do bloco de
oposição. Assim como no caso da CVRD, a análise dos projetos vencidos ajuda a
entender o conteúdo dos projetos vencedores.
3. Na desestatização da CVRD, estando presentes as condições de viabilidade
prévia, o Governo teve êxito em implementar a sua política por ter sido também
capaz de coordenar os interesses da sua base de coalizão. Em consonância com o
modelo analítico apresentado, esta coordenação de interesses se baseou, no
fundamental, na identificação dos parlamentares da coalizão tidos como pivôs e
na negociação por meio de arenas partidárias e distributivas.
Se na desestatização da CVRD o Senado foi o locus central de negociação, na
reforma do setor de telecomunicações este locus foi a Câmara. Nos dois casos há
um pivô comum, o parlamentar mediano nacionalista do PMDB, senador no caso da
CVRD e deputado na reforma do setor de telecomunicações. A análise das atas das
reuniões das comissões parlamentares nas quais tramitaram os projetos da
reforma do setor de telecomunicações, bem como das discussões em plenário, não
deixa dúvida de que era, principalmente, este deputado pivô que a oposição
buscava atrair para apoiá-la na defesa do status quo.
Assim como os senadores pivôs no caso da CVRD, estes deputados formavam, no
conjunto, um ator coletivo cujo posicionamento poderia causar transtornos aos
objetivos do Governo, notadamente em relação ao projeto da Lei Geral das
Telecomunicações ' LGT. Utilizando o ano de 1995 como referência, este ator
coletivo seria constituído, no limite, por 107 deputados do PMDB (Nicolau,
1996). Em contraposição, o núcleo mais coeso do Governo era composto, à época,
por 62 deputados do PSDB e 89 do PFL ' total de 151 ', aos quais se
acrescentariam 52 deputados do PPB, partido que, em razão da suas posições
políticas históricas, não deveria apresentar dissidências significativas. Os 31
deputados do PTB também tenderiam a se alinhar, em sua maioria, ao Governo, em
que pese ter em seus quadros alguns parlamentares de viés nacionalista. De
outro lado, o bloco de oposição PT-PDT-PCdoB-PSB, partidos que sistematicamente
votavam em conjunto, era composto, à época, por 108 deputados. Em resumo,
abstraindo-se de eventuais dissidências no restante da coalizão (234 votos no
total), o bloco de oposição e o PMDB detinham um potencial de 215 votos,
tornando previsível que se desenvolvessem negociações entre o Governo e sua
base parlamentar de sustentação, em especial os pivôs, nas arenas partidária e
distributiva.
O foco principal da narrativa analítica sobre a reforma do setor de
telecomunicações recaiu no setor de telefonia, preocupação central dos
congressistas.
No contexto das negociações entre o Executivo e sua coalizão, os seguintes
aspectos se revelavam, previamente, favoráveis à reforma: (a) o antecedente
histórico dos serviços de telecomunicações, até a década de 1960, era de
atendimento à população de forma pulverizada e por operadoras privadas. Somente
a Embratel constituía-se, desde sua fundação, em uma empresa estatal com feição
monopolista, desempenhando funções que poderiam ser consideradas como
estratégicas para o país. A caracterização estatal dos serviços de
telecomunicações só se consolidaria na Constituição de 1988; (b) os serviços
prestados pelo Sistema Telebrás em todo país no início do governo Fernando
Henrique Cardoso eram notoriamente precários.
Durante a implementação das reformas, os seguintes aspectos favoreceram seu
êxito: (a) o processo decisório da reforma do setor foi fortemente concentrado
em uma única entidade do Executivo, o Ministério das Comunicações; (b) este
ministério foi capaz de exercer uma estreita e sistemática coordenação sobre a
corporação do Sistema Telebrás, facilitado pelo fato de a Embratel ser
dissonante em relação às demais empresas de telefonia distribuídas pelo país;
(c) o projeto de emenda constitucional que flexibilizava o monopólio estatal
implicava a imediata abertura do setor para novos investimentos no serviço de
telefonia celular Banda B. A implementação desta abertura se revestia de
característica totalmente atípica, uma vez que sinalizava uma reforma sem
perdedores. Esta perspectiva, viabilizada pela denominada Lei Mínima, viria
exercer um papel crucial na construção de apoio ao projeto de reforma do setor;
(d) a forma de implementação da licitação de outorgas de concessão do serviço
de telefonia móvel celular na Banda B sinalizava, desde cedo, em contraste com
as privatizações do setor ocorridas no México e na Argentina, que no Brasil
seria adotado um modelo que implicaria a existência de múltiplos vencedores; e
(e) o Governo, por meio do Ministério das Comunicações, mobilizou de forma
crível uma ampla rede de apoio de diferentes grupos beneficiários das reformas,
ao longo da tramitação no Congresso dos projetos da emenda constitucional ' EC
nº 08/95 ', da Lei Mínima e da Lei Geral das Telecomunicações.
De outro lado, conspiravam contra a aprovação da reforma: (a) o fato de o
Sistema Telebrás, como estatal, representar papel ímpar de locusde negociação
política; e (b) a existência de dois focos de tensão identificáveis na reforma
do setor, associados à possibilidade de serem excluídos dos seus benefícios: a
indústria de equipamentos de telecomunicações instalada no país e o Centro de
Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações ' CPqD, centro de capacitação
tecnológica da Telebrás.
Foi comentado que demandas dos grupos de interesse são mediadas pelos líderes
de coalizão do Governo que se encontram em condições de propor alterações ao
status quo, sejam além ou aquém das preferências dos grupos de interesse.
A mediação dos dois aspectos mencionados como problemáticos para a
implementação da reforma teria seus principais canais de negociação nas duas
arenas do modelo analítico. De um lado, o ministro das Comunicações ' líder de
coalizão natural do Executivo na reforma ' detinha recursos significativos para
compensar ou atenuar os impactos, nos políticos da coalizão, pela perda do
Sistema Telebrás como locus de negociação e de acomodação de interesses. De
outro, as demandas associadas à indústria de equipamentos de telecomunicações
instalada no país e à preservação do CPqD seriam objeto da arena partidária
durante a tramitação da LGT.
A arena partidária de negociação teve na Câmara o seu locus principal quando
das tramitações dos projetos de emenda constitucional, da Lei Mínima e da LGT.
Nos projetos de emenda constitucional e da LGT, as negociações foram
estruturadas em comissões especiais; no da Lei Mínima, na Comissão de Ciência e
Tecnologia, Comunicação e Informática ' CCTCI. Os relatores destas comissões
constituíram-se em importantes líderes de coalizãodo Governo.
Conforme mencionado, o projeto da Lei Mínima, que permitia a licitação das
outorgas de concessão da Banda B do serviço móvel celular, desempenhou um papel
crucial nas negociações das legislações que compuseram a reforma do setor de
telecomunicações. O serviço móvel celular Banda B apresentava-se como um bem
público gerador de empregos e que visava ao provimento adicional de um serviço
notoriamente prestado de forma insuficiente pelo Estado. Neste sentido, suas
conseqüências imediatas tinham apoio nos mais diversos segmentos da sociedade,
não sendo, conseqüentemente, uma legislação que pudesse ser caracterizada como
danosa aos objetivos eleitorais de nenhum parlamentar da coalizão. Neste
projeto, o poder de negociação do pivô era reduzido. Apesar de ter sido
considerado controverso em sua legalidade e constitucionalidade desde sua
origem, mesmo por parlamentares pertencentes ao eixo da coalizão governamental,
os líderes de coalizão do Governo, diante de um projeto que não feria
interesses dos parlamentares, foram capazes de forjar uma lei, estruturada na
CCTCI, que ampliava a liberdade do Executivo para implementá-lo, não obstante a
polêmica que seria travada no Congresso sobre seu escopo.
O conteúdo deste projeto teria reflexos nos dois outros projetos da reforma.
Primeiro, em relação ao da emenda constitucional. A justificativa principal
desta emenda, de flexibilização do monopólio estatal, era justamente permitir a
imediata licitação do serviço móvel Banda B, uma vez que, nesta época, a
desestatização do Sistema Telebrás ainda não era apresentada como projeto de
Governo, o que só ocorreria depois, por meio do projeto da LGT. Ou seja, a
emenda constitucional e a Lei Mínima faziam parte de um mesmo projeto, passível
de justificar a posição do pivô perante seus eleitores. Segundo, em relação ao
projeto da LGT. Por um lado, com a aprovação da Lei Mínima, o Governo conferia
credibilidade ao projeto de reforma do setor, consolidando sua rede de apoio e
intensificando a mobilização de interesses empresariais para o projeto maior da
LGT. Por outro, havia flancos nesta rede de apoio, relacionados à indústria de
telequipamentos, ao estímulo ao desenvolvimento tecnológico do setor e à
preservação do CPqD como centro de capacitação tecnológica.
Existindo estes flancos, o parlamentar pivô da coalizão, de tradição
nacionalista, que na Lei Mínima viu reduzido seu poder de negociação, retorna
fortalecido à arena partidária de negociação quando da tramitação do projeto da
LGT. Neste percurso, a oposição buscaria atrair o parlamentar pivô da coalizão
defendendo a tese de que a continuidade do Sistema Telebrás como estatal era
condição necessária para que pudessem ser preservados o parque industrial de
telequipamentos instalado no país e a tecnologia desenvolvida no CPqD. Para
evitar a adesão do pivô à tese da oposição, o substitutivo do relator da
comissão especial constituída para apreciar o projeto da LGT incorporaria
artigos que objetivavam atender os interesses não-contemplados no projeto vindo
do Executivo, relativos à indústria de telequipamentos, ao estímulo ao
desenvolvimento tecnológico do setor e à preservação do CPqD.
Caso o pivô ainda não se sentisse atendido pelas negociações nas arenas
partidárias, o ministro das Comunicações, por meio do seu ministério, detinha
recursos significativos na arena distributiva para induzi-lo ao apoio da
reforma, a exemplo das outorgas para a exploração dos serviços de radiodifusão
de sons e imagens, de serviços de RTV13 e de radiodifusão comunitária. Em
linguagem de teoria dos jogos, seguindo a linha discutida, esta arena
distributiva se encarregaria de modificar o payoff do pivô nas arenas
partidárias, de forma a obter sua cooperação.
Por fim, assim como na desestatização da CVRD, é deduzido que outras arenas
partidárias e distributivas, que ocorrem fora do âmbito da reforma pretendida,
reforçam a perspectiva de sua implementação. Estas arenas, em conjunto com as
anteriores, complementam os payoffs dos pivôs, sua totalização representando,
como construção analítica, o que seria o preço real da sua cooperação.
Na vertente principal da arena partidária situada fora do âmbito da reforma,
repete-se para o setor de telecomunicações o argumento apresentado no caso da
CVRD, sobre a sua importância para o projeto de reeleição do Governo, vinculada
à manutenção da estabilidade da relação cambial dólar-real, base do Plano Real.
A diferença é que as licitações das outorgas da Banda B e a desestatização do
Sistema Telebrás representavam não só uma sinalização para o investidor
externo, de comprometimento com reformas voltadas para o mercado, mas também
uma entrada efetiva e substantiva de recursos externos.
Na vertente principal da arena distributiva situada fora do âmbito da reforma
do setor de telecomunicações, esta arena se confunde com a anteriormente
apresentada, associada aos recursos detidos pelo Ministério das Comunicações
para atender os interesses eleitorais dos congressistas, os pivôs em especial,
por meio das legislações pork-barrel.
CONSIDERAÇÃO FINAL
As conclusões extraídas das narrativas analíticas dos casos selecionados
constituíram-se no objeto deste artigo. Todavia, destas conclusões decorre,
ainda, uma implicação teórica, julgada passível de avaliação empírica em outros
casos.
No desenvolvimento das negociações, quando a figura de um pivô é detectada
dentro da coalizão, tem-se a seguinte expectativa: caso a oposição decida
cooperar, no sentido de negociar alterações no âmbito da política proposta,
abandonando a posição única de preservação do status quo, a arena distributiva
torna-se menos crucial, com conseqüente redução dos custos associados à
governabilidade do presidencialismo de coalizão brasileiro. Isto porque, neste
caso, a importância do pivô da coalizão não só se reduz, como também o pivô,
como membro da coalizão, ver-se-á na situação de proteger a política proposta
de alterações na arena partidária que a transfigurem de forma substancial. O
parlamentar pivô, ao perder poder de negociação na arena distributiva, será
instado a atuar na arena partidária em maior sintonia com os demais membros da
coalizão, para que não seja percebido pelo Governo como estando fora desta
coalizão.
NOTAS
1.Na tese, as narrativas dos dois casos são apresentadas extensivamente e se
encerram com apêndices, nos quais é utilizado o ferramental da teoria dos jogos
para uma formalização simplificada das negociações, com o intuito de,
fundamentalmente, realçar a lógica destas negociações.
2.Políticas que geram benefícios concentrados e custos dispersos.
3.Como regra, estas são legislações que atendem redutos eleitorais dos
parlamentares, permitindo negociação entre eles de forma contínua:
parlamentares apóiam projetos em que possuem menor interesse em troca de apoio
futuro para projetos que desejam com mais intensidade.
4. Blame-shifting no original. A transferência de responsabilidade associa-se
aos custos político-eleitorais das legislações (Mayhew, 1974, entre outros).
5. Um resultado é dito como sendo Pareto-Ótimo quando não existe a
possibilidade de um agente melhorar sua condição sem reduzir as dos outros
agentes (Tsebellis, 1990).
6. Legislações de caráter distributivo, na medida em que concentram benefícios
nos distritos eleitorais dos parlamentares e repartem seus custos de forma
dispersa.
7. Reproduzindo a linguagem utilizada em teoria dos jogos, conceitua-se
estratégia dominante como sendo aquela que não se altera, independentemente da
ação do outro agente ou jogador (Dutta, 2000).
8. A expressão alarme de incêndio decorre da assimetria de informação dos
parlamentares em relação à burocracia. Os parlamentares são supridos de
informação por meio da reação e intervenção dos grupos interessados que se
sentem prejudicados (McCubbins e Schwartz, 1987).
9. A palavra principalmente é aqui realçada para chamar a atenção para o fato
de que esta separação é uma construção analítica, não significando dizer que
essas arenas não possam atender também aos demais parlamentares da coalizão.
Todavia, para efeito da análise, importa a preocupação do governo com os pivôs,
que são mais propensos à defecção. Essas arenas também não devem ser
consideradas como atendendo de forma excludente cada pivô. Ou seja, alguns
pivôs podem se considerar atendidos por negociações nas duas arenas.
10. Os 22 senadores do PMDB representavam 34% dos senadores da coalizão e 27%
do total.
11. Ver Hahm, Hawlet e Mowery (1996) para uma visão dos efeitos positivos para
a produção de políticas públicas decorrentes do papel de coordenação exercido
por burocracias fiscais fortes.
12. Ver Rigolon e Giambiagi (1999) para uma exposição detalhada sobre o
assunto.
13. Retransmissão dos sinais das estações geradoras de televisão para
localidades onde os sinais não chegam diretamente ou chegam em condições
precárias.