Negociações coletivas e o poder normativo da Justiça do Trabalho
INTRODUÇÃO
Uma característica singular do sistema brasileiro de relações de trabalho é o
poder normativo da Justiça do Trabalho na solução dos conflitos coletivos. A
solução judicial desses conflitos insere-se entre as prerrogativas
constitucionais dos tribunais trabalhistas. Esses tribunais, no julgamento dos
dissídios coletivos, estabelecem uma solução, na forma de regras aplicáveis às
relações de trabalho em geral, mediante o uso das normas legais existentes ou
da criação de novas normas. O único impedimento de caráter geral ao exercício
desse poder de criação de normas é que o objeto da decisão judicial pertença
aos campos da relação de emprego ou das relações entre sindicatos e empresas.
Portanto, quando os tribunais decidem sobre as disputas coletivas de trabalho,
estão legalmente autorizados a desempenhar uma função tipicamente legislativa.
A mera existência desse poder normativo é suficientemente relevante para
justificar uma análise de suas possíveis conseqüências sobre as negociações
coletivas de trabalho1.
A literatura brasileira sobre o poder normativo da Justiça do Trabalho tem
enfocado duas questões principais, a do escopo do seu exercício e a de sua
influência sobre as negociações coletivas. A primeira dessas questões, que se
tem mantido restrita quase que exclusivamente às discussões doutrinárias dos
juristas, aborda a amplitude com que tal competência normativa pode ser
legalmente exercida. Assim, opõem-se os partidários de um uso altamente
limitado do poder normativo (Saad, 1995; Goldschmidt, 1996), quiçá mesmo de sua
inconstitucionalidade (Romita, 1994), aos que propugnam que as restrições
legais ao seu exercício são bastante mais brandas (Pereira Leite, 1981; Martins
Filho, 1989, 1994; Teixeira, 1994). Já a tese central da segunda questão é que
a competência normativa da Justiça do Trabalho, como forma de solução dos
conflitos coletivos de trabalho, teria uma influência geral negativa sobre as
negociações diretas, sendo inclusive um dos motivos que explicaria o estágio
relativamente pouco desenvolvido das negociações coletivas no Brasil (Costa,
1984; Puech, 1984; Pastore e Zylberstajn, 1988; Maciel, 1990; Loguércio, 1994;
Romita, 1994; Siqueira Neto, 1996; Barros, 1999).
Ainda que o problema das conseqüências do poder normativo sobre as negociações
coletivas tenha despertado o interesse dos analistas do mundo do trabalho, não
dispomos de estudos abrangentes acerca do conteúdo das decisões judiciais na
solução dos dissídios coletivos. O argumento sobre a barreira ao
desenvolvimento das negociações coletivas, que supostamente se ergueria em
virtude do exercício do poder normativo, é construído exclusivamente com base
no próprio conceito de poder normativo e na descrição da maquinaria
institucional fabricada para sua aplicação. Embora as conseqüências hipotéticas
do poder normativo sobre as negociações coletivas possam ser perfeitamente
formuladas nesses termos, uma análise empírica do conteúdo das decisões
judiciais é necessária para que se consiga determinar a extensão em que os
tribunais trabalhistas efetivamente criaram novas normas de direito. Mais
ainda, uma análise do conteúdo das decisões judiciais poderá identificar a
ocorrência (ou a não-ocorrência) de mudança na conduta do Judiciário
Trabalhista no que tange à solução dos conflitos coletivos. E, uma vez que o
conteúdo dos acordos coletivos é, ao menos indiretamente, afetado pelo poder
normativo, uma análise dos padrões de mudança no exercício desse poder pelos
tribunais também poderá ajudar a explicar os resultados das negociações
coletivas de trabalho.
Neste artigo, procurei caracterizar o exercício do poder normativo na corte
superior do sistema judicial do trabalho no Brasil e examinei possíveis
conseqüências da conduta do Tribunal Superior do Trabalho ' TST sobre as
negociações coletivas nas décadas de 1980 e 1990. Para tanto, parti do conceito
de poder normativo e da maquinaria utilizada no seu exercício a fim de
estabelecer sua hipotética relevância para as negociações coletivas.
Analisarei, então, o conteúdo das decisões judiciais na solução dos conflitos
coletivos de trabalho. Ao fazê-lo, enfoquei as decisões consolidadas do TST
sobre os dissídios coletivos. Mais precisamente, minha atenção recai sobre o
instrumento-chave pelo qual o poder normativo se expressou a partir dos anos
1980, qual seja, os precedentes normativos do TST (PN/TST). Esses precedentes
são proposições normativas formais promulgadas pelo TST para utilização nas
decisões dos dissídios coletivos.
O artigo divide-se em quatro seções, além desta introdução e de um comentário
final. Na primeira seção, apresentei os instrumentos formais de jurisprudência
pelos quais se manifestou o poder normativo, com particular atenção aos
precedentes normativos do TST. Da segunda à quarta seções, analisei o conteúdo
das decisões judiciais consolidadas nos precedentes normativos e em outros
instrumentos formais: na segunda, abordei o escopo temático dos precedentes
normativos; na terceira, examinei as regras de procedimento que fixam os pré-
requisitos a serem satisfeitos pelos agentes da negociação quando submetem suas
disputas à solução judicial; e na quarta seção, analisei os resultados da
comparação entre os precedentes normativos e a legislação brasileira do
trabalho. Em conjunto, essas seções abordam a questão geral da conduta do TST
quanto ao exercício do poder normativo e suas hipotéticas conseqüências sobre
as negociações coletivas.
AS DECISÕES CONSOLIDADAS DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO: PRECEDENTES
NORMATIVOS E OUTROS INSTRUMENTOS FORMAIS
Ao decidir sobre as condições de trabalho aplicáveis no âmbito das categorias
profissionais e econômicas em processos de dissídio coletivo, a Justiça do
Trabalho exerce sua competência normativa. Conceitualmente, o poder normativo é
"a capacidade que tem o Judiciário Trabalhista de estabelecer normas ou
condições de trabalho, sempre que, havendo litígio a respeito entre as classes
econômicas e trabalhadoras envolvidas, a conciliação restar inviabilizada,
inclusive pela recusa à negociação" (Teixeira, 1994:10).
No Brasil, as origens históricas desse poder de decidir regras remontam à
Constituição Federal de 1946 (Pereira Leite, 1981; Puech, 1984)2. No art. 123,
§ 2º, fixava-se a competência da Justiça do Trabalho para criar normas, porém
expressamente sujeita à legislação complementar:
"Art. 123 ' Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os
dissídios individuais e coletivos entre empregados e empregadores, e
as demais controvérsias oriundas de relações do trabalho regidas por
legislação especial.
....................................................................................................
§ 2º ' A lei especificará os casos em que as decisões, nos dissídios
coletivos, poderão estabelecer normas e condições de trabalho".
Na Constituição de 1967, emanada do regime autoritário, o poder normativo da
Justiça do Trabalho manteve-se nos mesmos termos estipulados anteriormente
(art. 142, § 2º). Em 1988, a Constituição Federal que substituiu a carta do
regime autoritário reafirmou a competência normativa do Judiciário Trabalhista,
introduzindo uma alteração ao texto que tornou essa competência menos restrita.
Assim, no art. 114, § 2º, a Constituição estabelece:
"Art. 114 '
....................................................................................................
§ 2º ' Recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitragem,
é facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídios coletivos,
podendo a Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições,
respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção
ao trabalho"3.
A competência normativa da Justiça do Trabalho é efetivamente exercida no ato
de julgamento dos dissídios coletivos. Toda vez que um tribunal é chamado a
decidir sobre o mérito de determinado conflito coletivo de trabalho, pode
estabelecer um conjunto de regras aplicáveis à relação de emprego em uma ou
mais empresas. Na medida em que decisões semelhantes são repetidas no
julgamento de sucessivos dissídios, consolida-se um entendimento majoritário ou
consensual dos juízes quanto aos vários objetos de decisão. Em outras palavras,
são estabelecidas regras semelhantes, ou mesmo idênticas, para cada particular
aspecto da relação de emprego nos vários dissídios. Um exemplo dessa
reiteração, nos anos 1980, é a fixação do adicional de horas extraordinárias em
100% em diferentes sentenças normativas.
Uma tentativa do TST de formalizar suas decisões reiteradas em matéria de
direito coletivo, no período imediatamente anterior ao analisado aqui, ocorreu
em meados dos anos 1970. Assim, através do prejulgado nº 56, de 14/6/1976, esse
tribunal estabeleceu umas poucas regras sobre reajustamento salarial e
procedimentos que os agentes da negociação deveriam seguir ao submeter seus
pleitos à decisão judicial. Essas regras foram posteriormente revisadas na
instrução normativa nº 1, de 15/10/1982, que acrescentou novas normas àquelas
previstas no prejulgado nº 56.
Ainda nos anos 1980, todavia, um passo mais decisivo foi dado pelo TST.
Inúmeras deliberações recorrentes em julgamentos de dissídios coletivos foram
reunidas sob a forma de precedentes normativos. A partir dessa iniciativa,
esperava-se que os ministros desse tribunal passassem a decidir, nos processos
singulares, com base em precedentes formalizados. O escopo temático dos PN/TST
abrangia um conjunto de tópicos sobre a relação de emprego, as relações entre
os sindicatos e as empresas, e os pré-requisitos a serem satisfeitos na
submissão de demandas ao escrutínio da Justiça do Trabalho.
Embora as raízes dos precedentes normativos estejam nas decisões efetivamente
tomadas nos processos, eles mesmos não consistem em decisões a priori acerca
das disputas reais trazidas à colação do TST. Além disso, nenhum magistrado nas
cortes regionais estava obrigado a deliberar sobre as disputas coletivas com
base naqueles precedentes. Não obstante a ausência de vinculação, os PN/TST
constituíram um importante padrão de referência para o julgamento dos dissídios
coletivos em qualquer corte trabalhista. A fim de ilustrar esse ponto, tome-se
como exemplo o PN/TST nº 20, que obrigava a empresa a fornecer aos seus
empregados o comprovante de pagamento com discriminação das parcelas pagas e
dos descontos efetuados. Sempre que essa demanda fosse apresentada em processos
de dissídio, a expectativa era de que os juízes decidissem nos termos do
precedente, e isso em decorrência de uma razão singela: se uma das partes
recorresse de solução diferente adotada em tribunal regional, o mais provável
curso de ação do TST, nesse particular dissídio, seria o de reproduzir o
conteúdo do PN/TST nº 20.
O ponto anterior merece um comentário adicional. No sistema brasileiro, a
maioria das sentenças normativas origina-se de decisões tomadas nos tribunais
regionais e sujeitas à revisão no TST. Em caso de recurso, o agente pode
selecionar apenas aquelas cláusulas cuja solução não lhe agrada, não sendo
necessário recorrer da totalidade da sentença prolatada no órgão inferior.
Voltando ao exemplo dado por mim, o sindicato patronal poderia recorrer apenas
da decisão que obriga as empresas a discriminar as entradas dos comprovantes de
pagamento; em decorrência, o TST manifestar-se-ia somente em relação a esse
tópico, ocasião em que, muito provavelmente, manteria a decisão do tribunal
regional similar ao PN/TST nº 20. Sob condições tais que um agente singular
pode buscar a solução judicial do conflito sem necessitar da concordância do
outro agente (mecanismo semicompulsório para a solução judicial)4 e o
Judiciário efetivamente exercer sua competência normativa, uma conduta racional
dos sindicatos é a de incorporar as regras dos precedentes normativos na sua
pauta de reivindicações. Assim, se as negociações coletivas não lograrem êxito
e o conflito bater às portas dos tribunais, esses provavelmente tomarão
decisões favoráveis aos pleitos sindicais correspondentes aos PN/TST.
A promulgação dos precedentes normativos do TST nos anos 1980 estabeleceu um
padrão de referência para as negociações coletivas. Em qualquer processo de
negociação, os agentes estavam conscientes de que: a) qualquer agente singular
poderia submeter seus pleitos ao escrutínio do Judiciário Trabalhista,
independentemente da concordância do outro agente; b) a partir da decisão de
mérito de um tribunal regional, qualquer agente singular poderia recorrer de
cláusulas específicas da sentença normativa ao TST; e c) a decisão do TST muito
provavelmente ocorreria em conformidade aos precedentes normativos e demais
instrumentos formais de consolidação das decisões reiteradas.
Ao longo dos anos 1980, o TST editou 126 precedentes normativos, na sua maioria
amparados em decisões tomadas em processos de dissídio coletivo ajuizados entre
1983 e 1985, aos quais se somaram 15 ementas de jurisprudência também
aplicáveis ao julgamento dos dissídios. Essa diferença de rótulo entre
precedentes e ementas aparentemente não ocasionou qualquer variação substantiva
quanto ao seu uso no julgamento dos dissídios, e, por isso, me referi a essas
141 decisões consolidadas pelo título geral de precedentes normativos (a que
denominarei PN/TST 1980 daqui em diante). Sobre a adoção dos precedentes,
Pereira observa que:
"A adoção de precedentes normativos, pela Justiça do Trabalho
brasileira, teve origem em prática informal surgida, a partir de
abril de 1985, no Tribunal Superior do Trabalho. De fato: por
iniciativa do ministro Orlando Teixeira da Costa, aquela Corte, para
abreviar a fundamentação dos votos de seus integrantes e agilizar,
assim, o julgamento dos dissídios coletivos de sua competência
originária e daqueles que examinava em grau de recurso, passou a
invocar seus precedentes jurisprudenciais pertinentes, desde que
estes representassem o pensamento da maioria absoluta de tais
integrantes, vale dizer, da metade mais um deles, pelo menos" (1996:
41).
Em 1988, na esteira da promulgação da nova Constituição Federal, a Lei nº
7.701, de 21/12/1988, em seu art. 4º, alínea d, estabeleceu a competência do
Pleno do TST para "aprovar os precedentes de jurisprudência predominante em
dissídios coletivos". Essa mesma lei previa ainda, em seu art. 14, que os
regimentos internos dos Tribunais Regionais do Trabalho dispusessem sobre a
uniformização das normas coletivas, ou seja, sobre a criação de precedentes
normativos regionais.
Uns poucos anos se passaram até que, em 1992, por meio da resolução
administrativa nº 37, de 25/6/1992, o TST aprovou um conjunto de precedentes
normativos, os quais na verdade representavam uma sistematização da
jurisprudência iterativa até então praticada. Assim, revisaram-se os
precedentes que vinham sendo seguidos desde meados dos anos 1980, daí
resultando 118 precedentes normativos (PN/TST 1992 doravante). Comparando-se o
conteúdo dos precedentes de 1992 com os dos anos 1980, verifica-se que 111
precedentes normativos não se alteraram, quatro precedentes foram mantidos
quanto ao seu tema, porém com alteração no conteúdo da regra, 26 foram
simplesmente suprimidos, e 3 precedentes novos quanto ao tema e ao conteúdo
foram adicionados.
Em 1998, o TST empreendeu uma nova revisão dos precedentes normativos, que se
caracterizou essencialmente pelo cancelamento de algumas regras definidas em
1992. Assim, comparando-se os precedentes de 1998 com os de 1992, observa-se
que 90 precedentes normativos foram mantidos sem qualquer alteração, 1
precedente foi alterado quanto ao seu conteúdo, 26 foram cancelados e 1
consistia em regra nova (esse, na verdade, aprovado em 1996). Ainda em 1998, o
TST também aprovou um outro conjunto de regras aplicáveis aos dissídios
coletivos, às quais denominou precedentes jurisprudenciais (PJ/TST). Esses
estavam compostos de 32 regras, em sua maioria versando sobre requisitos para a
instauração de dissídios coletivos. Em seu conjunto, os precedentes normativos
e os precedentes jurisprudenciais reuniram 123 normas consolidadas (PN/TST
1998, daqui em diante).
Os dados da Tabela_1 sintetizam a evolução do número de precedentes normativos
entre a década de 1980 e o ano de 1998, distinguindo a abrangência de sua
aplicação quanto às categorias profissionais. Os precedentes agrupam todos os
tipos de decisões consolidadas que mencionei anteriormente, independentemente
das diferenças de rótulo entre si. A maioria dos precedentes normativos é de
aplicação geral a todas as categorias profissionais. Alguns precedentes,
contudo, são válidos no âmbito exclusivo de categorias específicas ' por
exemplo, trabalhadores rurais ou bancários. Não se observou mudança relevante
nas proporções desses tipos de precedentes ao longo do tempo.
Nesta seção, mostro que, com o intuito de amparar o exercício do poder
normativo nos julgamentos dos dissídios coletivos, o TST formalizou, a partir
dos anos 1980, decisões reiteradas em precedentes normativos. Dado o arranjo
institucional para a solução dos conflitos coletivos no Brasil, esses
precedentes normativos, juntamente com os demais instrumentos formais de
consolidação de decisões, tornaram-se logicamente uma forte referência para as
negociações coletivas de trabalho. Por esse motivo, investigarei, nas próximas
seções, o conteúdo das decisões consolidadas e discutirei a provável influência
da conduta do Judiciário Trabalhista, especialmente a mudança observada nessa
conduta, sobre as negociações coletivas nos anos 1980 e 1990.
O ESCOPO TEMÁTICO DOS PRECEDENTES NORMATIVOS
A análise do escopo temático dos precedentes normativos baseia-se em um sistema
de classificação de cláusulas desenvolvido em Horn (2003, cap. 4). Nele, agrupo
os precedentes segundo a dicotomia básica entre normas substantivas e normas de
procedimento5. O número de precedentes, de acordo com essa distinção e com os
temas que abordam, é apresentado na Tabela_2. As estatísticas mostram que
quatro em cada cinco PN/TST consistiam em normas substantivas quando esses
precedentes foram inicialmente formalizados nos anos 1980. A maioria das regras
tinha a remuneração (47,5%) e a segurança no emprego (14,9%) como seu objeto
temático. Os precedentes sobre remuneração enfocavam assuntos variados, como
descontos, comprovantes de pagamento, cálculo da remuneração em caso de
interrupção involuntária do serviço, auxílio ao acidentado e auxílio-educação.
Na revisão de 1992, a principal mudança promovida pelo TST foi a redução no
número total de precedentes de 141 para 119. O escopo temático, quando
observado com base na proporção de precedentes segundo o tema, permaneceu
virtualmente inalterado. Um crescimento marginal na porcentagem das regras
classificadas nos temas "férias e licenças remuneradas", "recrutamento e
contrato de trabalho", "condições de trabalho" e "relações sindicais" ocorreu
em contrapartida a reduções igualmente inexpressivas nas porcentagens dos temas
restantes. Esses resultados demonstram que a revisão de 1992 teria sido
orientada basicamente por um objetivo de redução no número de precedentes
normativos, sem maior preocupação quanto ao seu escopo temático.
Um quadro de mudanças de maior alcance, porém, é o que emerge da análise da
revisão ocorrida em 1998. Embora o montante total tenha sido acrescido de uns
poucos precedentes, em comparação com o ano de 1992, um perfil diferente da
distribuição desses precedentes segundo o escopo temático dá sinais de que uma
mudança mais significativa na orientação do TST teria tomado forma ao longo da
década. O número de regras sobre a relação de emprego reduziu-se de 97 para 81
PN/TST, ao passo que o número de regras de procedimento aumentou de 22 para 42
PN/TST. Isso indica que na revisão de 1998 o TST deu um passo a mais no sentido
de auto-restringir a regulação judicial da relação de emprego, não apenas por
meio do corte no número de precedentes substantivos ' uma decisão que reforçou
o tipo de conduta adotado na revisão de 1992 ', mas também ratificando antigas
e formalizando novas condições para que os agentes da negociação coletiva
submetessem seus pleitos à decisão judicial.
O decréscimo no número de precedentes substantivos em 1992 e 1998, e o
crescimento no número de regras que fixam requisitos formais para a instauração
da instância em 1998, evidenciam uma mudança crucial na conduta do TST ao longo
dos anos 1990. A corte trabalhista parece ter conscientemente abandonado uma
política favorável ao exercício efetivo de sua competência normativa, que viera
inclusive a determinar a consolidação de inúmeras decisões singulares em
precedentes normativos nos anos 1980, passando a praticar uma política de
construção de barreiras formais ao uso do Judiciário Trabalhista na solução dos
conflitos coletivos.
Uma segunda mudança decorrente das revisões acontecidas em 1992 e 1998 também é
de interesse. Desde sua primeira promulgação nos anos 1980, os precedentes
normativos foram classificados ou como "precedentes positivos", ou como
"precedentes negativos". Um precedente é dito positivo quando uma maioria de
ministros do TST concorda que seu conteúdo normativo deve ser deferido nos
julgamentos dos dissídios coletivos, ao passo que os precedentes negativos
compreendem os conteúdos que a maioria do tribunal está propensa a indeferir. A
importância dessa dicotomia reside na sinalização dada pelo TST aos agentes da
negociação coletiva. Nos processos de negociação que não chegam a bom termo, no
caso de o conflito ser submetido à arbitragem judicial, sabe-se de antemão que
as demandas por regras iguais às dos precedentes positivos provavelmente serão
acatadas pelo TST, ao passo que o contrário é mais provável de ocorrer quanto
às demandas por regras iguais às dos precedentes negativos.
A dicotomia entre precedentes positivos e negativos é especialmente relevante
no que se refere às normas substantivas. A formalização dos precedentes
normativos nos anos 1980 pode ser entendida como uma reação do TST ao fenômeno
da multiplicação das disputas coletivas que se observou com o ressurgimento do
ativismo sindical em fins dos anos 1970. Um certo número dessas disputas veio a
dar nas portas dos tribunais, avultando o montante de trabalho dos magistrados.
Ao se debruçarem sobre os processos, uma parte principal da matéria acerca da
qual deveriam elaborar consistia na pauta de reivindicações dos sindicatos e se
compunha, sobretudo, de questões sobre a relação de emprego. Assim, um
precedente positivo pode ser visto como um sinal formal de concordância dos
magistrados com a regra, normalmente derivada do exame das pautas de
reivindicação dos sindicatos, senão quanto ao conteúdo específico, ao menos
quanto ao assunto, enquanto um precedente negativo emite justamente o sinal
contrário.
As Tabelas_3 e 4 trazem o número e a porcentagem dos precedentes positivos e
negativos correspondentes às normas substantivas, conforme seu escopo temático.
Os dados mostram que a maior parte era composta de precedentes positivos. A
redução no número de PN/TST observada nas revisões de 1992 e 1998 manteve
virtualmente inalteradas as participações relativas de cada tipo de precedente.
Dado o maior número de precedentes positivos nos anos 1980, a estabilidade das
freqüências relativas resultou de uma redução absoluta maior desses precedentes
do que dos precedentes negativos. Em números absolutos, a supressão de 23 PN/
TST positivos e de nove PN/TST negativos acarretou uma redução líquida de 14
PN/TST positivos.
As principais conclusões que emergem das mudanças no escopo temático dos
precedentes normativos do TST entre os anos 1980 e o ano de 1998 são as
seguintes: a) o decréscimo no número de precedentes substantivos indica uma
redução na propensão do TST de exercer o poder normativo na regulação da
relação de emprego; b) a maior redução absoluta no número de precedentes
positivos, em comparação ao de precedentes negativos, pode sugerir um viés
contrário aos interesses daqueles sindicatos que buscam resolver os conflitos
coletivos através da arbitragem judicial; c) o considerável acréscimo no número
de precedentes referentes a normas de procedimento em 1998 ' uma boa parte dos
quais consistindo em requisitos a serem observados no ajuizamento de ações '
evidencia uma política para barrar as pretensões dos agentes da negociação
coletiva interessados em resolver as disputas no Judiciário.
RESTRINGINDO O ACESSO À SOLUÇÃO JUDICIAL DOS CONFLITOS
Quando o TST empreendeu uma nova revisão dos precedentes normativos em 1998,
metade das normas de procedimento então formalizadas correspondia a requisitos
que os agentes da negociação coletiva precisavam satisfazer no caso de levarem
suas disputas ao exame do tribunal. A promulgação desses precedentes ratificou
as diretivas que o TST vinha observando, na prática, desde fins dos anos 1980.
Em 1993, inclusive, o tribunal já havia substituído a instrução normativa nº 1,
de 1982, pela instrução normativa nº 4, por meio da qual ampliou a lista dos
requisitos de procedimento para ajuizamento de ações. Essas mudanças evidenciam
a disposição da corte superior de restringir o acesso dos sindicatos e das
empresas à solução judicial dos conflitos coletivos de trabalho.
No Quadro_1, detalho os vários procedimentos a serem seguidos pelos agentes da
negociação quando do ajuizamento das ações de dissídio coletivo, segundo a
Consolidação das Leis do Trabalho ' CLT e diferentes instrumentos normativos
emanados do TST nas décadas de 1970 a 1990. O quadro mostra que alguns dos
requisitos estipulados na instrução normativa nº 4 e nos precedentes normativos
já se encontravam presentes no corpo da CLT. Os requisitos fixados nesta,
entretanto, costumavam ser apenas parcialmente observados pelos tribunais
trabalhistas nos anos 1980. A maior parte das disputas trazidas à colação dos
tribunais não satisfazia aqueles requisitos em sua completude e, mesmo assim,
tinha seu mérito julgado6. Não era, pois, a ausência de regras, mas a conduta
relativamente mais permissiva dos tribunais até os anos 1990 que autorizava os
agentes da negociação a buscar uma solução judicial sem realizar rigorosa
preparação.
A conduta dos tribunais trabalhistas no que tange à observação dos requisitos
processuais começou a se modificar ao final dos anos 1980. Dado que a
Constituição Federal de 1988, em seus arts. 7º e 8º, conferiu certa
proeminência às negociações coletivas de trabalho como forma de ajuste entre as
partes, uma interpretação que se tornou então corrente foi a de que esse
alargamento da relevância constitucional das negociações coletivas teria como
conseqüência um estreitamento do escopo de uso do poder normativo. Essa
interpretação da norma constitucional veio a ser amplamente aceita no TST, o
qual passou a agir com rigor maior quanto à observância dos requisitos formais
para a arbitragem judicial dos conflitos coletivos. Na prática, a mudança de
conduta resultou em um número crescente de disputas que permaneceram sem
solução, uma vez que os tribunais se recusaram a lhes avaliar o mérito.
Conforme relatado no diário Gazeta Mercantil, em sua edição de 20/8/1996: "nos
últimos anos, o Tribunal tem sido rigoroso na condução dos dissídios. Dos 707
julgados entre janeiro e junho deste ano, 202 foram extintos por
irregularidades na documentação ou apresentação ' quórum insuficiente nas
assembléias deliberativas, ata defeituosa ou ausência de negociação no
processo" (Nascimento, 1996:A-6).
Portanto, na revisão dos precedentes normativos levada a cabo em 1998, o TST
nada mais fez do que reforçar sua disposição de restringir o acesso à
arbitragem judicial como forma de solução dos conflitos coletivos de trabalho.
Um montante de nove novos PN/TST com requerimentos processuais foram somados ao
único precedente desse tipo existente na lista de 1992 ' o qual, diga-se de
passagem, repetia regra já encontrada na CLT. Além disso, dois precedentes
consistiam em regra efetivamente nova, não fixada previamente na legislação do
trabalho.
O maior número de precedentes processuais e, sobretudo, a mudança na conduta
dos juízes quanto à aplicação dessas normas de procedimento indicam que uma
notável alteração no padrão de comportamento do TST quanto à solução das
disputas coletivas tomou corpo nos anos 1990. Pouco tempo antes, nos anos 1980,
esse tribunal havia consolidado seu entendimento sobre inúmeras normas
substantivas e de procedimento em precedentes normativos que o auxiliariam no
exame do mérito das ações de dissídio coletivo. Nos anos 1990, a conduta do TST
tomou um caminho completamente oposto, ao se impor uma lista ampliada de
requisitos processuais e exigir-lhes estrito cumprimento. Isso revela uma
restrição conscientemente auto-imposta ao exercício do poder normativo. O
Quadro_2 oferece uma síntese desses distintos padrões de conduta do TST.
De acordo com os traços mais evidentes da conduta do TST sintetizados no Quadro
2, os anos 1980 caracterizaram-se pela alta propensão de que esse tribunal
provesse uma solução dos conflitos coletivos com o julgamento de mérito das
ações. Mesmo que os litigantes não observassem com precisão os requisitos
processuais, os ministros do TST provavelmente decidiriam sobre o conteúdo
material da ação. Essa propensão a dar uma solução de mérito, em um contexto em
que há um número crescente de disputas em busca de solução judicial, explica
inclusive a consolidação das decisões recorrentes em precedentes normativos.
De modo contrário, nos anos 1990, o TST passou a exigir a estrita observância
das regras para o ajuizamento de ações, além de apregoar novos requisitos
processuais. Em decorrência, tornou-se crescentemente improvável a resolução
dos conflitos coletivos de trabalho pelos tribunais. Esse padrão de
comportamento foi reforçado, ademais, pela redução no número de precedentes
substantivos positivos nas revisões de 1992 e 1998. Uma questão complementar
sobre o conteúdo dos precedentes normativos diz respeito ao grau em que esses
precedentes estipularam regras adicionais àquelas já encontradas na legislação
trabalhista. A análise dessa questão, que farei na próxima seção, envolve uma
comparação entre o conteúdo normativo dos precedentes e a legislação
trabalhista correspondente.
PRECEDENTES NORMATIVOS SUBSTANTIVOS E LEGISLAÇÃO ESTATAL
O poder normativo da Justiça do Trabalho permite aos magistrados desempenharem
uma função tipicamente legislativa de criação de normas legais. Nesta seção,
examino se os precedentes normativos com regras que regulam diretamente a
relação de emprego (regras substantivas) efetivamente originaram normas
inexistentes na legislação brasileira do trabalho. Para tanto, utilizei o
esquema de classificação de cláusulas desenvolvido em Horn (2003, cap. 5),
adaptando-o à comparação entre precedentes normativos e normas estatutárias. O
esquema de classificação é formado por cinco categorias, a saber:
a) Categoria "sem norma estatal comparável" (ou, simplesmente, categoria "sem
norma estatal"), que na comparação em questão agrupa os precedentes normativos
cujo objeto temático não é regulado na legislação estatal.
b) Categoria "norma mais ampla" (categoria "mais ampla"), que se aplica aos
precedentes normativos que, do ponto de vista dos empregados, estipulam normas
mais favoráveis do que as previstas na legislação estatal.
c) Categoria "norma operacional" (categoria "operacional"). Esta refere-se aos
precedentes normativos relacionados a normas estatais que não são plenamente
operacionais e que requerem um complemento normativo para torná-las eficazes.
d) Categoria "norma que reproduz a norma estatal" (categoria "igual à lei"),
que reúne os precedentes cuja regra, em escopo temático e conteúdo normativo,
reproduz o conteúdo da legislação estatal.
e) Categoria "norma disputável" (categoria "disputável"), que agrupa os
precedentes cuja norma tem razoável probabilidade de originar dissídios
individuais, podendo ser considerada ilegal.
Os precedentes normativos classificados nas categorias "sem norma estatal",
"mais ampla" e "disputável" correspondem a regras que não são encontradas na
legislação estatal; portanto, esses precedentes compreendem regras adicionais à
lei. Há alguma ambigüidade quanto ao fato de as normas "operacionais"
pertencerem ou não ao domínio das regras adicionais, mas certamente não é esse
o caso da categoria "igual à lei". A Tabela_5 mostra o número e a porcentagem
dos precedentes normativos classificados de acordo com essas categorias.
As estatísticas da Tabela_5 mostram que a quase totalidade dos precedentes
substantivos refere-se a normas que beneficiam os empregados (média de 94,4% do
total de precedentes substantivos nos três anos de referência). Há que se
assinalar, todavia, que a interpretação de um precedente positivo (caso em que
o TST é favorável à norma) é diametralmente oposta à de um precedente negativo
(caso em que o TST não é favorável à norma). Tendo isso em vista, verifica-se
que os casos em que o TST se dispunha a decidir favoravelmente sobre normas que
beneficiavam os empregados abarcavam cerca de 3/4 do total de precedentes
normativos substantivos. Com as revisões de 1992 e 1998, o número absoluto
desses precedentes se reduziu, mas as porcentagens praticamente não se
alteraram.
Os dados da tabela mostram ainda que pouco mais de metade do total de
precedentes fixou normas adicionais que beneficiam os empregados (média de
54,1% nos três anos de referência). A maior parte desses precedentes positivos
compunha-se de regras "sem norma estatal", tendo inclusive sua participação no
total geral, oscilando dentro de uma estreita margem, de 31,9% nos anos 1980
para 34,6% em 1998. Já a porcentagem dos precedentes classificados como "mais
amplos" caiu de 23,0% para 18,5%. Eis, portanto, uma resposta geral à questão
sobre a criação de normas adicionais nos PN/TST: se levada ao exame do TST uma
pauta de reivindicações composta exclusivamente das normas de todos os
precedentes, o tribunal deferiria pouco mais de 50% dessa pauta na forma de
cláusulas que representassem direitos favoráveis aos empregados e que não eram
encontrados, em escopo temático e conteúdo normativo, na legislação do trabalho
à época. Quanto aos precedentes substantivos negativos, tanto o número quanto a
porcentagem daqueles cuja regra se classifica como adicional à legislação
estatal diminuíram entre os anos 1980 e 1990. Esses precedentes, que
correspondiam a 21,2% do total nos anos 1980, recuaram sua participação para
14,8% em 1998. As regras classificadas como "mais amplas" explicam a maior
parte do decréscimo, pois passaram de 7,1% para 2,5% do total.
As estatísticas da Tabela_5 reforçam as conclusões das seções anteriores acerca
da mudança no padrão de conduta do TST entre os anos 1980 e 1990. Na década de
1980, o TST mostrava-se propenso a julgar o mérito das disputas coletivas
submetidas à arbitragem judicial e, diante do aumento no seu número, reagiu
através da consolidação de suas decisões reiteradas em mais de uma centena de
precedentes normativos. Essa formalização dos precedentes trouxe consigo um
quadro de referência para as negociações coletivas em virtude da natureza
semicompulsória da arbitragem judicial no Brasil. Essa referência consistia em
uma alta probabilidade de julgamento do mérito dos dissídios coletivos, que se
faria com base em um total de 52 PN/TST com regras sobre a relação de emprego
que não eram encontradas na legislação e que seriam deferidas no TST (ou seja,
as cláusulas que os sindicatos ganhariam), e em um total de 24 PN/TST
substantivos negativos (ou seja, as cláusulas que os sindicatos não ganhariam).
O exame do conteúdo dos precedentes normativos, entretanto, não é suficiente
para que se possa indicar, sem ambigüidade, qual das partes da relação de
emprego seria a principal beneficiária nos casos singulares de arbitragem
judicial. Isso em face de pelo menos três razões.
A primeira razão corresponde ao fato de que o TST nunca chegou a formalizar um
precedente sobre o tópico central das negociações coletivas no período, qual
seja, o reajustamento dos salários nominais em um contexto de inflação alta e
crônica. A ausência de uma referência consolidada em precedentes impunha aos
agentes da negociação a necessidade de acompanharem, em cada momento, as
decisões correntes dos tribunais trabalhistas com o intuito de avaliar os prós
e contras de uma arbitragem judicial.
A segunda razão é que a existência de precedentes normativos positivos, mesmo
aqueles com regras inexistentes na legislação trabalhista, não significava
necessariamente uma vantagem para os empregados. Suponha-se, para fins de
raciocínio, um acordo coletivo em que certo número de cláusulas fossem "mais
amplas" do que as regras dos PN/TST. Ao termo do acordo, um dos possíveis
cursos de ação do sindicato patronal seria o da recusa a um novo ajuste
consensual, fazendo que o impasse viesse a dar às portas da corte trabalhista,
na qual provavelmente os PN/TST seriam tomados como uma referência para a
decisão. Como conseqüência, aquelas cláusulas que não se alinhassem aos
precedentes normativos poderiam ser simplesmente suprimidas ou ter seu conteúdo
rebaixado ao que dispunham os PN/TST.
Uma terceira razão está na própria existência dos precedentes negativos. O
conhecimento de que um certo conjunto de normas substantivas seria indeferido
em arbitragem judicial no TST reforçava a posição das empresas no sentido de se
negarem a negociá-las com os sindicatos.
Nos anos 1990, como destacado anteriormente, o padrão de conduta do TST foi
crescentemente marcado pela recusa em analisar o mérito dos dissídios
coletivos. Além disso, a redução na porcentagem dos precedentes positivos
classificados como "mais amplos" e o aumento na porcentagem dos precedentes
"iguais à lei", como se observou na Tabela_5, sugere uma outra faceta do
comportamento do TST nessa década. Os dados indicam uma certa propensão do TST,
quando do exame do mérito dos dissídios, para evitar a criação de novas regras
sobre tópicos já regulados na legislação estatal. Tal fato completa o quadro
sobre a mudança no padrão de conduta do TST nos anos 1990: primeiro, ocorre uma
crescente recusa a julgar o mérito dos conflitos; segundo, no caso do exame
desse mérito, há uma crescente disposição de seguir a legislação estatal de
modo mais aproximado, abdicando do poder de criar novas normas de direito.
COMENTÁRIO FINAL
Neste artigo, analiso o poder normativo da Justiça do Trabalho e sua relação
com as negociações coletivas. Esse poder normativo, previsto inicialmente na
Constituição Federal de 1946, consiste na competência legal dos tribunais
trabalhistas de criarem novas normas de direito nas decisões que proferem em
dissídios coletivos. A simples existência de um poder normativo em um sistema
caracterizado por arbitragem judicial semicompulsória das disputas coletivas7
faz as decisões dos tribunais trabalhistas transformarem-se em padrão de
referência decisivo nas negociações coletivas. Assim, quando o TST consolidou
várias de suas decisões em precedentes normativos nos anos 1980, magnificando o
número de normas consolidadas a serem aplicadas nos julgamentos dos casos
singulares, esses precedentes passaram a constituir uma referência para os
agentes da negociação. Isso porque, avaliados os custos e independentemente da
concordância do agente com quem negociava, qualquer agente singular poderia
abandonar as negociações voluntárias e submeter seu pleito ao exame do
tribunal, onde esperava obter uma sentença normativa que incorporasse ao menos
as regras dos precedentes.
A natureza semicompulsória da arbitragem judicial e o poder normativo fazem da
mudança no padrão de conduta do TST, entre os anos 1980 e 1990, um importante
elemento explicativo dos resultados das negociações coletivas. Nos anos 1980, a
expectativa predominante era de que o tribunal viesse a examinar o mérito dos
conflitos submetidos à sua arbitragem, sem exigir uma observância estrita dos
requisitos processuais formais. Além disso, ao decidir sobre os casos, o TST
passou a levar em conta as suas decisões consolidadas na forma de precedentes
normativos, o que poderia resultar na criação de normas novas aplicáveis na
esfera das categorias litigantes ' com base nos precedentes positivos ' e na
recusa a estipular regras sobre certos tópicos ' com base nos precedentes
negativos. Já na década de 1990, em giro de 180°, o TST tornou-se
consideravelmente mais rigoroso na exigência dos requisitos formais, ampliando
a probabilidade de uma ação ser extinta sem o julgamento do seu mérito. Esse
traço básico da nova conduta ' maior probabilidade de se recusar a solucionar
as disputas, deixando que os agentes sindicais resolvam sozinhos suas
divergências ' foi reforçado em 1992 e em 1998, com a supressão de inúmeras
regras sobre a relação de emprego da lista dos precedentes normativos. Nessa
década, o TST impôs a si mesmo consideráveis restrições ao exercício do poder
normativo.
É possível aventar, por fim, que tanto a adoção inicial dos precedentes
normativos e sua aplicação nos anos 1980 quanto à recusa ao exercício do poder
normativo nos anos 1990 guardam alguma relação com as condições mais gerais do
movimento sindical e das negociações coletivas em cada década. Uma relação em
que a conduta do Judiciário explica-se, de um lado, pelas mudanças havidas no
sindicalismo e no contexto das negociações coletivas de trabalho, e que virá a
desempenhar, de outro, funções de monta para os resultados das negociações.
Assim, na década de 1980, as funções disciplinadora e de extensão de normas que
os precedentes podem ter exercido em um momento de ascenso dos sindicatos foram
bem mais importantes do que o singelo motivo operacional para a adoção dos
precedentes normativos ' ou seja, conferir maior agilidade ao TST em vista do
crescente número de disputas coletivas. Por função disciplinadora, devemos
entender os efeitos de contenção sobre os sindicatos que lideraram o processo
de fortalecimento das negociações coletivas de trabalho a partir de fins dos
anos 1970. O surgimento dos precedentes normativos pode ter atuado como uma
ducha de água fria nas pretensões desses agentes. Os sindicatos de
trabalhadores assentavam a negociação em uma lógica de ganhos cumulativos de
normas que favorecessem sua base e também a própria instituição sindical, com a
busca, em cada ano, de novas regras ou da ampliação de direitos convencionados
nas negociações anteriores. Nesse contexto, a formalização das decisões
reiteradas do TST fortaleceu a posição negocial das empresas nos setores do
sindicalismo mais militante, uma vez que as empresas tiveram uma forte
justificativa externa para negar a concessão de determinadas reivindicações, a
saber, as que asseguravam direitos mais amplos do que os dos precedentes
positivos e as que se referiam a direitos negados pelo tribunal com base nos
precedentes negativos. Em síntese, a formalização dos precedentes pode ter
atuado como um freio ao processo de fortalecimento das negociações voluntárias
liderado por uma ala do sindicalismo brasileiro.
Além da função disciplinadora, a consolidação dos precedentes pode ter
ocasionado um fenômeno de extensão de direitos às bases dos sindicatos com
menor poder de barganha. Ainda que a lógica de comparações típica do mercado de
trabalho possa ter estado presente na extensão de cláusulas inovadoras,
ajustadas pelos sindicatos de vanguarda, a sindicatos que vieram a adotar uma
conduta pró-ativa nas negociações, não é provável que todas as negociações
tenham resultado efetivamente na extensão daquelas cláusulas ' isso sem falar
na massa de sindicatos que, em princípios dos anos 1980, ainda não havia
retirado as negociações coletivas da atrofia virtual em que se encontravam até
então8. Nestes casos, a extensão das normas obtidas nas negociações dos
sindicatos mais ativos e com maior poder de barganha pressupunha a arbitragem
judicial, porém no limite dado pelos precedentes normativos.
A função disciplinadora do poder normativo deixou de ter importância ao longo
dos anos 1990, quando o movimento sindical passou a enfrentar crescentes
restrições nas negociações coletivas de trabalho em face do baixo dinamismo da
economia. O enfraquecimento da posição negocial dos sindicatos tornou
desnecessário o papel disciplinador do Judiciário Trabalhista, substituído
agora pela realidade de um mercado de trabalho com alto e crescente desemprego.
Nesse contexto, poder-se-ia conceber que, na arbitragem das disputas coletivas,
os tribunais trabalhistas tomariam para si a função de manter as regras
coletivas existentes e mesmo de criar novas regras favoráveis aos
trabalhadores. Entretanto, como tratei de caracterizar ao longo deste artigo, o
TST adotou um curso de ação completamente diferente, sancionando a disciplina
do mercado através de sua crescente omissão no julgamento dos dissídios
coletivos.
NOTAS
1. A análise apresentada neste artigo circunscreve-se a práticas anteriores à
promulgação da emenda constitucional nº 45 (EC 45), de 8 de dezembro de 2004,
que introduziu modificações no instituto do poder normativo. Nas primeiras
análises jurídicas sobre o alcance dessas modificações, um autor chegou a
afirmar taxativamente que "o poder normativo da Justiça do Trabalho acabou"
(Garcia, 2005:396). Porém, como nada no mundo do direito transita sem que
interpretações divergentes se apresentem no palco dos debates, outro autor
declarou não integrar "a corrente que entende ter sido extinto o poder
normativo dos tribunais do Trabalho, pois a sentença poderá criar ou rever
regras e condições de trabalho, desde que o pedido integre a lide, respeitadas
as disposições mínimas de proteção ao trabalho previstas em lei ou instrumento
da negociação coletiva" (Süssekind, 2005:30). O curto período de tempo
transcorrido desde a promulgação da EC 45, bem como o estágio do debate
doutrinário sobre a nova norma inscrita no art. 114, § 2º da Constituição
Federal, impedem, por ora, uma conclusão mais segura sobre as conseqüências
efetivas da mudança introduzida. De uma perspectiva de análise empírica, como a
que realizei neste artigo, a abordagem do tema requer que se observe a conduta
dos agentes das negociações coletivas e, sobretudo, do Judiciário Trabalhista
por um período de tempo mais longo, com o que será possível estimar as
repercussões da nova norma sobre o mundo das relações sociais reais.
2. Garcia (2005:384-385) situa as origens do poder normativo em um período
anterior. Segundo esse autor, a primeira referência legal à solução de
conflitos de interesse pela Justiça do Trabalho estaria presente no Decreto-Lei
nº 1.237, de 1939.
3. Esse texto foi modificado, na emenda constitucional nº 45, de 8/12/2004, que
assim dispôs: "recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à
arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo
de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito,
respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as
convencionadas anteriormente".
4. A partir da emenda constitucional nº 45, esse mecanismo semicompulsório para
a solução judicial dos conflitos coletivos deixou de existir. Lembramos, uma
vez mais, o que diz a nova redação do art. 114, § 2º, da CF 1988: "recusando-se
qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às
mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica,
podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições
mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas
anteriormente" (ênfases do autor). Portanto, a concordância das partes passa a
valer como um pré-requisito da solução judicial. A forma efetiva que adquirirá
esse pré-requisito na relação cotidiana dos agentes das negociações coletivas
entre si e com a Justiça do Trabalho, todavia, é assunto ainda em aberto.
5. Trata-se de uma dicotomia consagrada na literatura sobre sistemas de
relações de trabalho. As regras resultantes da operação de um sistema qualquer
se classificam como substantivas ' quando regulam diretamente a relação de
emprego ', ou de procedimento ' quando regulam indiretamente a relação de
emprego, ao estipularem normas para a formulação, revisão e cumprimento das
regras em geral e sobre as relações que os agentes da negociação mantêm entre
si e com suas respectivas bases constituintes. Ver, a propósito, Dunlop (1993),
Flanders (1970) e Wood et alii (1975).
6. Como não poderia deixar de ser, o giro de 180° na conduta do Judiciário
Trabalhista quanto aos dissídios coletivos foi imediatamente percebido pelos
operadores do direito do trabalho. Nas diversas entrevistas realizadas durante
o trabalho de campo da tese que deu origem a este artigo, advogados de
sindicatos de trabalhadores confirmaram o enrijecimento dos tribunais do
Trabalho quanto à observância dos requisitos formais nos dissídios coletivos.
Por exemplo, Gisele P. Barreto Campos, do Sindicato dos Trabalhadores na
Indústria de Produtos Farmacêuticos e Defensivos Animais de Porto Alegre,
afirmou que "com relação ao processo em si, o Tribunal [Regional do Trabalho da
4ª Região] vem sendo cada vez mais rígido quanto a formalidades. Isto denota
que a tendência do Tribunal é a de não participar nas negociações, nos
dissídios coletivos" (entrevista concedida ao autor em 8/5/1996). E Antonio
Carlos Porto Jr., do Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de Novo Hamburgo,
destacou que "a partir dali [anos 1990] se teve um política dura de acabar com
os dissídios mesmo" (entrevista concedida ao autor em 13/5/1996). As motivações
do TST para essa mudança de comportamento nos anos 1990 é um dos objetos de
discussão de Silva (2004) em seu projeto de tese de doutoramento na PUC-RJ.
7. Arbitragem judicial semicompulsória era o caso do sistema brasileiro, convém
novamente assinalar, até a promulgação da emenda constitucional nº 45, de 8/12/
2004.
8. A expressão "atrofia virtual" foi tomada de empréstimo de Córdova (1989).
Este analista das relações de trabalho assinala que, a partir de fins dos anos
1970, as negociações coletivas no Brasil teriam começado a "to get over virtual
atrophy" (idem:263).