O judiciário e as políticas públicas no Brasil
O Poder Judiciário possui um impacto significativo na elaboração das políticas
públicas: os tribunais influenciam o que Schattschneider (1960) chamava de
"definição das alternativas" pelo sistema político. No entanto, essa afirmação
simples é mais complicada do que parece, especialmente no contexto latino-
americano, em que especialistas levaram muitos anos após as transições dos
regimes militares para direcionar sua atenção para o papel dos tribunais nas
políticas públicas e na governabilidade. Cada vez mais, a visão clássica dos
tribunais como instâncias estritamente legais tem sido contestada pelas
crescentes evidências de seu papel político e de seu impacto diário nas
políticas públicas. Mas a despeito desses desenvolvimentos, o papel do
Judiciário na arena das políticas públicas permanece nebuloso tanto no Brasil
quanto no resto da América Latina1.
O propósito deste artigo é pensar sistematicamente o papel do Judiciário no
sistema político brasileiro e, em particular, na formulação de políticas
públicas. Com isso, não quero sugerir que os trabalhos que o antecedem não
sejam de grande valia nesse sentido. Uma crescente onda de importantes estudos
trata do Judiciário e da judicialização da política no Brasil, analisando como
e sob que condições os tribunais influenciam as decisões tomadas no âmbito dos
poderes Executivo e Legislativo. Apesar desses estudos sobre o papel político
do Judiciário, a ciência política tem demorado a incorporar o Judiciário à
análise da tomada de decisões governamentais pelo sistema político como um
todo. Fora um núcleo restrito de cientistas políticos, poucos integrantes do
mainstreamda ciência política brasileira incorporam o Judiciário às suas
análises com a mesma profundidade com que consideram o sistema partidário, o
Legislativo e o Executivo ou, até mesmo, os movimentos sociais, as burocracias
públicas ou as instituições econômicas.
Os tribunais agem em três dimensões de relevância para a ciência política, que
podem ser descritas como as dimensões hobbesiana, smithiana e madisoniana.
Estas dimensões têm impactos importantes, respectivamente, no monopólio da
violência pelo Estado, nas regras de funcionamento da economia e na relação
entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário2. Enfocarei aqui
principalmente a dimensão madisoniana da relação entre os três poderes e, em
particular, os impactos que os tribunais podem ter na formulação de políticas
públicas pelo Executivo e pelo Legislativo, na deliberação e na implementação
dessas políticas no plano federal. Não se trata de uma pesquisa empírica, mas,
sim, de uma tentativa de descrever o estado da literatura existente e propor
novas direções para pesquisas futuras, tendo como base as já existentes.
O texto está dividido em duas partes. Na primeira, procuro sumarizar
rapidamente a importância para a ciência política de integrar melhor a
intervenção judicial às nossas análises do processo de formação e adoção de
políticas públicas. Na segunda, procuro avaliar os principais fatores que
influenciam o impacto do Judiciário na formulação das políticas públicas.
O JUDICIÁRIO NO PROCESSO DE FORMAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
No Brasil, não existe o "persistent neglect of courts" (desprezo persistente
dos tribunais), que é motivo de fortes críticas em outras regiões do mundo
(Epstein, Knight e Shvetsova, 2001). Diversos livros, artigos e teses
publicados recentemente sobre o papel político do Judiciário enfatizam a
influência desse Poder no processo político e seu impacto na realidade política
resultante3. No entanto, apesar do vasto conjunto de trabalhos que tratam
especificamente dos tribunais, a maior parte dos estudos sobre o sistema
político brasileiro ignora o papel político deles na hora de descrever o
processo decisório no sistema político como um todo. Como conseqüência, no
sofisticado debate sobre instituições políticas brasileiras ' e, em especial,
sobre o presidencialismo de coalizão ', os tribunais mal aparecem e raras vezes
são usados para explicar os resultados da política. As conseqüências da não
consideração do Poder Judiciário para o entendimento do processo de formação de
políticas públicas podem ser graves, como mostro a seguir.
É lugar-comum o argumento de que um Judiciário que funciona bem serve de
contrapeso aos outros poderes governamentais, provendo garantias para a
separação entre os poderes e para a proteção das minorias (Madison, Hamilton e
Jay, 1961; Montesquieu, 1990). No entanto, o Judiciário é inerentemente passivo
e precisa ser acionado por atores externos para que tenha qualquer efeito. Por
isso, o grau com que o Judiciário é invocado para servir como árbitro nos
conflitos entre as forças ou instituições políticas depende não apenas da força
dos tribunais, mas também, de forma mais abrangente, dos padrões da disputa
política.
A análise da política brasileira tende a variar entre dois extremos4. De um
lado, há uma tendência que vê o sistema político como excessivamente
consensual, repleto de jogadores de veto, o que tornaria o processo decisório
intrinsecamente problemático. Em tal cenário, somente propostas que têm o apoio
de uma ampla maioria podem ser aprovadas. Nesse sistema político atomizado,
muitos fatores restringem o processo decisório: 1) um Congresso fraco, em que a
representação desproporcional fortalece os Estados pequenos, enquanto os
frágeis mecanismos de accountabilityeleitoral ' resultado do sistema de
representação proporcional com lista aberta ' favorecem grupos de interesse
organizados e facilitam a constante troca partidária; 2) um sistema partidário
fraco, que permite a existência de um grande número de partidos fragmentados,
instáveis e regionalizados; 3) a fraqueza do gabinete presidencial cujos
ministérios são utilizados em parte como um instrumento para assegurar a
manutenção das coalizões legislativas; 4) a natureza do Estado e,
especialmente, dos servidores públicos, que tendem a lutar veementemente pela
preservação de seus privilégios dentro da burocracia estatal; 5) um Senado com
poderes sem paralelo para interferir em muitas questões políticas; e 6) o
federalismo e, em particular, os poderosos governadores, especialmente o
impacto deles nas discussões sobre assuntos fiscais da federação5. Sob essa
ótica, potenciais entraves institucionais existem em abundância: como nota
Kinzo (2001:11), a representação política no Brasil "reproduz à enésima
potência o sistema de contrapesos do modelo madisoniano".
Do outro lado do debate, outra corrente de cientistas políticos sugere que o
sistema político pode ser mais majoritário do que se pensa (no sentido da
palavra majoritarismo pretendido por Lijphart, 1999) e que o processo decisório
e a mudança das políticas públicas não é tão difícil e custosa quanto os
primeiros apontam. Dentre os fatores citados por esse grupo estão: 1) o forte
controle do presidente sobre a agenda política, facilitado pela concentração
dos poderes orçamentários no Executivo, e os fortes poderes legislativos
exercidos pelo presidente; 2) mecanismos robustos de controle partidário na
arena legislativa (mas não na eleitoral); e 3) o poder do colégio de líderes na
Câmara dos Deputados, que permite um forte controle sobre a agenda legislativa,
geralmente por parte de aliados com estreita relação com o Poder Executivo6.
Como notam Figueiredo e Limongi (1999:24), apenas 0,026% das propostas do
Executivo votadas pelo Congresso foram rejeitadas no período posterior à
Constituição de 1988. Enfim, existe uma abundância de regras internas que
facilitam o controle do Congresso por aliados do governo e aumentam os
incentivos para a cooperação dos congressistas com o Poder Executivo.
Como em todo debate acadêmico bipolar, essas duas visões são menos dicotômicas
e mutuamente excludentes do que a perspectiva rígida e unidimensional oferecida
pelos mais ferrenhos defensores de cada lado. De fato, há um meio-termo
considerável, se não por outra razão, pelo fato de que a experiência política
pós-autoritária tem sido marcada por uma evolução constante tanto das regras
institucionais quanto dos atores envolvidos, o que sugere que ambos os lados
podem ter tido razão em distintos momentos. Pereira e Mueller (2003:737-738)
argumentam, por exemplo, que, de um lado, o processo decisório é
descentralizado pelas regras eleitorais (particularmente a representação
proporcional com lista aberta), pelo sistema multipartidário e pelo
federalismo, mas, por outro lado, eles notam que o processo decisório é
centralizado pelas regras internas do processo decisório dentro do Congresso e
pelos fortes poderes legislativos e orçamentários do Executivo. O resultado é
um delicado equilíbrio entre a centralização e a descentralização do processo
decisório. O sucesso deste depende da capacidade do presidente e do colégio de
líderes de prover os benefícios eleitorais e orçamentários para aglutinar
aliados em potencial. Sob uma liderança habilidosa, é possível criar o que
Amorim Neto, Cox e McCubbins (2003) denominam de "parliamentary agenda cartel"
(cartel de controle de agenda parlamentar), em que a agenda legislativa e as
propostas de lei podem ser negociadas entre o Poder Executivo e os líderes dos
partidos políticos aliados antes que qualquer proposta seja levada para
votação. Tal arranjo permite que potenciais jogadores de veto sejam barrados da
deliberação política, evitando-se a perda do controle da agenda. O cartel
limita a participação a um pequeno grupo de líderes partidários interessados em
atingir seus objetivos dentro da maioria e sem custosas negociações com a
oposição7.
Dada a coexistência, no período pós-constituinte, de fases de significativa
reforma e fases caracterizadas pelo rent-seekingcaótico e indisciplinado,
torna-se clara a presença de um delicado equilíbrio entre processos decisórios
centralizados e descentralizados no sistema político brasileiro. Esse
equilíbrio depende do assunto em pauta, da popularidade do Executivo, da
proximidade das eleições e de inúmeros outros fatores conjunturais.
Mas onde se encaixa o Judiciário diante dessas visões do sistema político
brasileiro?
Com exceção de Stepan (2000), que incorpora o Judiciário como um fator "demos-
constraining" (antimajoritário), poucos cientistas políticos consideram a
atuação do Judiciário ao estudarem a tomada de decisões pelo sistema político
brasileiro. Alguns comentam en passant a possível importância dos tribunais.
Ames, por exemplo, observa em nota de rodapé que, "embora a discussão sobre
jogadores de veto esteja centrada em presidente e partidos, a questão
claramente possui implicações para outros atores institucionais. Em sistemas
com muitos jogadores de veto, judiciários e burocracias tipicamente possuem
amplos papéis legislativos" (2001:17, tradução do autor).
Mesmo quando o Judiciário é incluído em estudos abrangentes sobre o sistema
político brasileiro, a análise geralmente restringe-se a enfatizar sua
implicação no campo hobbesiano da segurança pública (ver Pereira, 2000) ou no
campo smithiano, dando respaldo aos contratos essenciais à economia de mercado
moderna (ver Castelar Pinheiro, 2000). Pouca atenção se volta para sua dimensão
madisoniana de embate entre os três poderes,especialmente no tocante à
elaboração das políticas públicas. Em parte, diga-se de passagem, essa falha se
deve à dificuldade de traduzir o impacto do Judiciário em termos claros e
objetivos. Regras eleitorais, manobras parlamentares e a estrutura do Executivo
são temas de interesse comum entre os cientistas políticos. O Judiciário fica '
juntamente com a autoridade monetária e as agências reguladoras ' como um tema
marginal e tido como acessível somente a especialistas. Um tema cujo possível
impacto é reconhecido somente quando ocorre uma atuação inesperada.
Essa postura, no entanto, é um erro que afeta significativamente a relação
entre as análises dos cientistas políticos e o real funcionamento do sistema
político. Considerando apenas as políticas implementadas pelo governo federal,
pode-se observar que a localização do Brasil na dimensão majoritária-consensual
da democracia varia de acordo com o estágio do processo político, ou seja: o
sistema é altamente majoritário quando se trata do processo de deliberação de
políticas públicas, mas tende para a forma consensual durante o processo de
implementação das políticas. O Judiciário ' juntamente com os governadores,
prefeitos e burocracias estatais, que também podem ter um impacto significativo
na implementação das políticas públicas ' desempenha um papel extremamente
relevante para explicar essa dualidade. Os tribunais ampliam o leque de atores
que podem influenciar a implementação de políticas públicas, mesmo depois de
elas serem aprovadas por amplas maiorias legislativas.
Além dessa ampliação do leque de possíveis atores, existe um outro motivo que
torna essencial incorporar o Judiciário de forma mais objetiva: o crescente
reconhecimento pelos cientistas políticos de que os grupos de interesse
procuram o local institucional mais favorável para contestar as políticas
públicas ("venue-seeking"), seja esse local o Judiciário, as agências
reguladoras ou as burocracias específicas. O conceito de "venue-seeking" sugere
que os atores políticos procuram as instâncias institucionais que mais lhes
convêm. Por uma série de razões relacionadas à capacidade do Judiciário de
impor suas decisões (discutidas na próxima seção), não é de estranhar que ele
venha sendo usado crescentemente como um "venue" importante para a contestação
das políticas públicas.
Uma parte do debate sobre a atuação do Poder Judiciário, principalmente a
análise da prerrogativa de revisão de constitucionalidade, enfoca o impacto
dele sobre as políticas públicas. Por um lado, Arantes (2005:232) argumenta que
o Judiciário tem tido um papel significativo na tomada de decisões, "acentuando
ainda mais o modelo consensual da democracia brasileira". Do outro, Koerner
afirma que o Supremo Tribunal Federal ' STF tem agido cautelosamente. Segundo o
autor, no período pós-Constituinte, o STF "não funcionou como instituição
contra-majoritária, que permitia o veto às reformas políticas, nem foi causador
de incerteza e ingovernabilidade" (2005:24).
Adiante, argumentarei que o Judiciário federal ' como um todo, não me
restringindo tão-somente ao STF8 ' tem tido, e provavelmente continuará tendo,
um impacto nas políticas públicas adotadas pelo governo federal, permitindo que
algumas vozes minoritárias sejam incorporadas, ainda que minimamente ou de
forma marginal, na elaboração dessas políticas. Mesmo que não tivesse tido
nenhum impacto nas primeiras duas décadas da Nova República, a análise
apresentada aqui não seria em vão, da mesma forma que analisar um Congresso
subserviente ao Executivo não é um exercício meramente acadêmico, já que o
estudo dessa relação nos ajuda a entender suas conseqüências práticas e as
possíveis repercussões de eventuais mudanças institucionais.
Em relação ao impacto do Judiciário nas políticas públicas federais, as
evidências disponíveis sugerem que o Judiciário tem sido acionado
constantemente, tanto com base na Constituição quanto na legislação
infraconstitucional, para deliberar sobre políticas públicas contenciosas.
Estou de acordo com Koerner (2005) quando ele argumenta que o STF, em
particular, tem agido de forma muito cautelosa e até conservadora para evitar
alargar potenciais conflitos com o Executivo. Esse argumento é comum na
literatura mundial sobre os tribunais, já que eles não podem atuar sem correr o
risco de perder o seu poder para um Executivo cioso das próprias
prerrogativas9.
Vanberg (2001), utilizando um modelo baseado na teoria dos jogos para modelar
as relações entre Legislativo e Judiciário, demonstra que ' sob condições de
transparência ' quanto maior o apoio público dado à atuação do tribunal, menor
será a deferência dele ao Legislativo. Caso a legislação questionada seja de
suma importância para o Legislativo, no entanto, os tribunais serão menos
hostis a ela. As duas grandes dúvidas que surgem desse modelo são: por que o
Judiciário brasileiro não reage da mesma forma que os tribunais hipotéticos de
Vanberg à falta de apoio majoritário?; por que o Judiciário não aparenta se
preocupar em vetar projetos de grande importância para o Legislativo? Não
tentarei responder definitivamente essas duas perguntas neste espaço, mas elas
sugerem que a troca de informações entre os estudiosos do Judiciário e o
mainstreamda ciência política brasileira é um caminho de duas mãos, e que nós,
estudiosos do Judiciário, temos muito a aprender com os estudiosos da relação
entre Legislativo e Executivo.
Na análise do caso brasileiro, o modelo Vanberg parece estar fadado ao
fracasso. A combinação da fraqueza do Legislativo ' em termos de sua capacidade
de ação coletiva (independente do Executivo) ' e a dificuldade que a população
tem de cobrar ação de seus representantes ' fruto do sistema eleitoral ' fazem
com que o Judiciário tenha uma alta probabilidade de evitar punições do
Legislativo quando toma decisões que contrariam a maioria legislativa. Não é
tão fácil evitar punições oriundas do Executivo, e talvez seja por isso que o
Judiciário aja conservadoramente quando possível. Mas, como veremos a seguir, o
Judiciário nem sempre é submisso, mesmo quando tem a oportunidade de agir mais
timidamente. Como o jogo é interativo, e os atores podem aprender com os turnos
anteriores, em algum momento se espera que o Executivo reaja a essas
provocações ou que o Judiciário capitule. Talvez estejamos mais próximos da
segunda situação. No entanto, o conservadorismo do STF não se reflete em uma
timidez exagerada, o que deixa em aberto o questionamento sobre estes dois
fenômenos empíricos: a assertividade da Justiça e a aceitação (mesmo
acompanhada de altas reclamações) disso pelo Executivo e seus aliados no
Congresso.
Em termos comparados, a atuação do Judiciário brasileiro é significativa. Nos
15 anos entre 1988 e 2002, o STF ' somente através do instrumento da Ação
Direta de Inconstitucionalidade ' Adin ' concedeu decisões liminares ou de
mérito invalidando parcialmente mais de 200 leis federais. Em comparação, entre
1994 e 2002, a Suprema Corte mexicana julgou a constitucionalidade de um pouco
mais de 600 leis naquele país usando dois instrumentos parecidos com a Adin,
mas invalidou somente 21 leis federais; em toda sua história, a Suprema Corte
americana invalidou em torno de 135 leis federais apenas (Taylor, no prelo).
Mesmo no governo de Fernando Henrique Cardoso ' um presidente apoiado (pelo
menos inicialmente) por uma ampla coalizão reformista ', o Judiciário federal
como um todo foi convocado por atores externos para julgar todas as principais
políticas públicas adotadas pelo Executivo e seus aliados no Congresso. O
governo Fernando Henrique barganhou duramente para produzir maiorias
legislativas que o permitissem superar as rígidas regras para a aprovação de
emendas constitucionais ou leis complementares no Senado e na Câmara. Mas ao
final desse imenso esforço político, a contestação judicial da reforma foi um
acontecimento crônico, usado recorrentemente por grupos deixados de fora das
negociações entre membros do parliamentary agenda cartel. As mais
significativas e reais ameaças às reformas surgiram no Judiciário e não no
Legislativo: das 10 principais iniciativas políticas aprovadas durante o
governo Fernando Henrique, todas foram contestadas de alguma forma pelo
Judiciário, e sete das 10 foram alteradas ou atrasadas de alguma maneira no
STF10. Em outras palavras, nem toda proposta do governo foi contestada
judicialmente, mas as mais importantes e contenciosas certamente o foram, e com
algum sucesso.
No decorrer da última década, o Judiciário Federal revelou-se um importante
ator político: tribunais federais repetidamente interromperam imensos leilões
de privatização; a realização de uma delicada reforma no sistema de previdência
social foi subvertida; e o Judiciário anulou ou mudou a legislação referente à
reforma agrária, às reformas tributárias e a outras políticas públicas
significativas. O Judiciário continua exercendo uma influência importante hoje.
Durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, tribunais também participaram
da formulação de políticas governamentais de várias maneiras. Entre as mais
recentes ilustrações: em 2005, o Judiciário federal aprovou uma grande
aquisição empresarial pela Nestlé, revertendo decisão do Conselho
Administrativo de Defesa Econômica ' Cade, que havia rejeitado a operação; o
STF interrompeu as investigações de corrupção dentro do Congresso durante 2006;
juízes federais têm forçado governos estaduais a honrarem precatórios cujos
valores são estimados em até US$ 20 bilhões por ano; o STF negou,
retroativamente, um aumento do Programa de Integração Social ' PIS/Contribuição
para o Financiamento da Seguridade Social ' Cofins em uma decisão cujo custo,
em tese, poderia chegar a quase 11% do total de tributos federais arrecadados;
e assim por diante.
À luz desse papel manifesto e tão recorrente, torna-se claro que o Judiciário
precisa ser melhor incorporado às nossas análises do sistema político. De outra
maneira, o processo de decisão política será incorretamente compreendido e a
importância de atores relevantes para o debate das políticas públicas poderá
ser mal-entendido ou até mesmo ignorado. Em particular, os perdedores na
negociação entre Executivo e Legislativo ' precisamente os grupos mais
propensos a utilizar o Judiciário ' serão negligenciados ou ignorados em nosso
entendimento da negociação e da possibilidade de mudança nas políticas
públicas.
Para ilustrar as conseqüências de deixar o Judiciário fora da análise da tomada
de decisões pelo sistema político brasileiro, ofereço uma visão heurística e
simplificada da reforma agrária de 1999-2000. Nesse caso, o governo Fernando
Henrique tentou, com algum sucesso, achar um espaço de comum acordo entre os
donos de terra e o Movimento dos Sem-Terra ' MST. A legislação proposta pelo
governo federal estabelecia limites para compensações excessivas em
expropriações de terra, mas também criou importantes restrições às invasões
empreendidas pelos sem-terra. Para descrevê-lo em um gráfico de duas dimensões
euclidianas, reduzirei a uma única distribuição de preferências: 1) os donos de
terra preferiam um maior grau de restrição às invasões e um menor grau de
restrição às compensações; 2) os sem-terra preferiam o exato oposto; e 3) o
governo preferia um maior grau de restrições tanto às invasões quanto às
compensações que seriam pagas pelo erário (Figura_1). Em outras palavras, era
possível mudar a política pública existente para qualquer lugar dentro da
região escura entre o status quo 1 (SQ1) e o status quo 2 (SQ2), e, em
particular, era possível mudar do SQ1 para uma posição mais próxima do SQ2. Na
sua essência, essa foi a proposta do governo, que tentava mudar do SQ1 para o
SQ2por meio de medida provisória.
Faltou, no entanto, incorporar à proposta os interesses de um jogador de veto
em potencial, a Ordem dos Advogados do Brasil ' OAB. Embora não tivesse
representação direta no Congresso ' e se tivesse, mal poderia usá-la por se
tratar de uma medida provisória ', a OAB teve acesso ao ponto de veto oferecido
por ser um ator com legitimação ativa para apresentar Adins. Isso permitiu que
a OAB se inserisse no debate sobre a reforma através do STF. Quando a medida
provisória foi decretada, a OAB imediatamente contestou vários elementos da
nova política por meio de Adin. A OAB teve sucesso em um ponto de especial
interesse a seus membros: o STF deferiu em parte o pedido de liminar contra os
limites decretados pelo governo para os honorários advocatícios em casos de
expropriação11.
Como resultado, a OAB conseguiu mudar a política pública do SQ2para o status
quo 3 (SQ3) (Figura_2), transferindo o resultado de um ponto próximo às
preferências centrais do governo para um ponto mais próximo das preferências
dela, eliminando as novas limitações propostas pelo governo no tocante às
restrições aos honorários advocatícios. Sem o acesso ao STF e ao mecanismo da
Adin ou sem um Judiciário capaz de tomar decisões e tê-las respeitadas e
cumpridas pelo Executivo, esse resultado não teria sido possível. Do ponto de
vista analítico, o ponto de veto oferecido pelo Judiciário a um grupo
profissional oposto à redução dos próprios rendimentos teve um impacto muito
grande na capacidade do governo de ver suas primeiras preferências
implementadas. Não seria ' e de fato não foi ' diferente em outras ocasiões,
nas quais as propostas do governo foram implementadas não através de medida
provisória, mas após longo debate entre Executivo e Legislativo.
Com esse potencial impacto do Judiciário em mente, volto na próxima seção para
uma tentativa de sistematizar um pouco mais o papel do Judiciário nas políticas
públicas a fim de facilitar a inserção do Judiciário no mainstreamda ciência
política brasileira e, talvez mais importante, ajudar futuros pesquisadores a
explicar os resultados práticos dessa inserção em termos das políticas públicas
que são efetivamente implementadas.
PENSANDO A ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO NA FORMAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Naturalmente é impossível criar um modelo preditivo incorporando todos os
fatores que possam influenciar a atuação do Judiciário nas políticas públicas,
da mesma forma que não existe um modelo preditivo para a atuação do
Legislativo. No entanto, podemos apontar quatro dimensões centrais que ajudam a
analisar o efeito do Judiciário sobre as políticas públicas e a incorporá-lo ao
estudo mais amplo sobre policymaking:
1. Em que momento e de que maneira o Judiciário pode influenciar as políticas
públicas?
2. Quais as motivações do Judiciário na hora de tentar resolver disputas sobre
políticas públicas?
3. Como os atores externos ao Judiciário usam-no para atingir seus objetivos
políticos?
4. Quais as conseqüências da intervenção do Judiciário nas políticas públicas?
Discuto essas quatro dimensões a seguir.
1. Em relação à primeira dimensão ' o timing da intervenção do Judiciário no
processo de formação de políticas públicas ', é comum supor que o Judiciário
somente atuará nas políticas públicas depois de elas serem aprovadas pelo
Legislativo (ver, por exemplo, Epstein, Knight e Shvetsova, 2001:123-124). Mas
tanto os juízes de tribunais inferiores quanto os ministros do STF podem ter um
impacto significativo e muito anterior na elaboração de políticas públicas.
Embora não tenham legitimidade para iniciar contestações judiciais sobre ações
do Legislativo e do Executivo, os integrantes do Judiciário brasileiro têm
capacidade de influenciar a discussão das políticas públicas antes de elas
serem aprovadas, sinalizando suas preferências e as fronteiras que as mudanças
provocadas por essas políticas podem atingir.
Os juízes sinalizam suas preferências publicamente muito antes da aprovação
final dos projetos, seja por meio de pronunciamentos públicos (caso do ministro
Carlos Velloso na segunda tentativa de reforma da Previdência durante o governo
Fernando Henrique) ou através de reuniões a portas fechadas entre Executivo e
Judiciário (caso das medidas contra o apagão, que foram discutidas de antemão
entre um representante do Executivo, Pedro Parente, e integrantes do STF). Esse
tipo de sinalização calculada tem efeitos que antecipam o resultado final,
inserindo os juízes no jogo e alterando a política pública resultante, muitas
vezes sem o Judiciário precisar utilizar seus poderes formais. Como Lax e
McCubbins (2006) observam sobre o caso norte-americano, o reconhecimento do
papel dos tribunais nesse momento de deliberação anterior à aprovação das
políticas públicas ajuda a derrubar o argumento de Rosenberg (1991) de que os
tribunais são inefetivos na construção de políticas públicas. Isto é, mesmo sem
usar seus poderes formais, como os de revisão constitucional, o Judiciário pode
ter um impacto no momento da deliberação, eliminando algumas alternativas e
constrangendo a liberdade de ação de outros atores políticos.
A isso somaríamos os instrumentos formais que o Judiciário pode utilizar para
influenciar as políticas públicas ainda em formação. O STF não tem os mesmos
poderes de revisão constitucional anteriores à implementação de lei que a
Suprema Corte chilena ou os tribunais superiores alemães ou italianos têm, que
lhes permite suspender uma lei antes de a mesma entrar em vigor. No entanto, o
STF tem mostrado uma crescente (e controvertida) tendência à interferência nos
trabalhos legislativos por meio de instrumentos legais. Um caso é o da liminar
proferida pelo ministro Marco Aurélio de Mello, que paralisou a votação da
primeira reforma da Previdência durante o governo Fernando Henrique. A votação
só foi retomada quando a liminar foi derrubada pelo colegiado do STF (em uma
votação de 10 a 1).
A possibilidade de o Judiciário agir na hora da implementação para mudar as
regras ou os resultados das políticas públicas é amplamente mais reconhecida.
Vários fatores podem ser considerados quanto à interferência das decisões dos
juízes na implementação das políticas públicas. O primeiro diz respeito ao
impacto das regras institucionais na possibilidade de grupos opostos à política
em questão recorrerem aos tribunais: o tipo de revisão constitucional
(abstrato, concreto ou, como no caso brasileiro, híbrido); quem tem
legitimidade ativa (standing) e em quais situações; o grau de independência dos
juízes tanto em relação ao Poder Executivo quanto em relação aos próprios
colegas; a celeridade do sistema legal; e assim por diante (Ríos-Figueroa e
Taylor, 2006). No entanto, como esses fatores são razoavelmente fixos no tempo
e bem estabelecidos no caso brasileiro, é melhor enfocar duas características
que dão alguma margem de manobra aos juízes: os instrumentos de decisão e o
timingdo uso deles.
No que diz respeito aos instrumentos, sabemos que alguns são mais robustos, por
assim dizer, que outros, do ponto de vista de seu impacto nas políticas
públicas. Uma Adin ou uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental '
ADPF, por exemplo, têm muito mais impacto e sobrevida do que uma decisão
recorrível de juiz federal de primeira instância. No entanto, mesmo no caso da
Adin, existe uma grande margem para mudar o timingdo impacto judicial na
implementação, seja acelerando uma decisão através de liminar, seja protelando
o processo por meio de pedidos de vista. Também existem inúmeras possibilidades
para arquivar ações por motivos processuais, evitando assim uma decisão do
mérito (Koerner, 2005; Pacheco, 2006). Há, portanto, uma capacidade
considerável dos ministros do STF de controlar o timinge as conseqüências de
seu impacto, seja sustentando políticas públicas que apóiam ou atrasando a
derrota daqueles que eles acreditam ser de constitucionalidade duvidosa, porém
preferíveis. O controle por juízes de instâncias inferiores é menos decisivo,
já que seus pareceres são passíveis de recurso. No entanto, a elaboração de
teses convincentes e o consenso entre juízes de instâncias inferiores podem ter
uma influência importante, bloqueando ex posta implementação de políticas
públicas ou tirando certas alternativas do leque de opções consideradas como
plausíveis ex antepelos formadores de políticas públicas.
Em suma, o Judiciário pode influenciar os resultados das políticas públicas
tanto no momento da deliberação quanto na hora da implementação com uma
variedade de possíveis estratégias: sinalizando as fronteiras permitidas para a
alteração da política pública, sustentando-a e legitimando-a diante da possível
oposição, atrasando uma decisão sobre uma determinada política e, assim,
controlando a agenda de deliberação da política pública ou, até mesmo,
alterando ou rejeitando a proposta após sua implementação.
2. A segunda dimensão diz respeito às motivações do Judiciário. Existe já uma
boa literatura sobre a cultura legal dos juízes, tanto no Brasil (Bonelli,
2002; Castelar Pinheiro, 2003; Nalini, 2000; Rosenn, 1984; Werneck Vianna et
alii, 1997) quanto no mundo afora (ver Pérez-Perdomo e Friedman, 2003). À
cultura interna atribui-se o fato de os juízes brasileiros, sob os preceitos
dos códigos civil e criminal, agirem de maneira formalista, focando mais em
princípios do que em conseqüências, muitas vezes com bastante ênfase na
proteção de direitos individuais, sejam quais forem as suas implicações mais
amplas. Na literatura legal e até nos jornais diários, é muito comum ver uma
defesa da neutralidade dos juízes, o que se reflete em um senso comum entre
juristas: o juiz correto não se desvincula da lei, quaisquer que sejam suas
preferências pessoais12 ' uma visão bonita e certamente imbuída de certa dose
de verdade, já que o juiz dificilmente pode tomar decisões que fujam muito da
lei vigente. Mas nem por isso é uma visão cem por cento precisa no que concerne
às políticas públicas, especialmente tendo em vista o grau de flexibilidade
mencionado anteriormente que permite ao juiz intervir de diversas formas e em
diversos momentos nas políticas públicas.
Nesse sentido, concordo com a conclusão de Gibson (1983) de que as decisões dos
juízes são uma função do que eles preferem fazer, moderadas pelo que acham que
devem fazer, mas constrangidas pelo que percebem que é viável fazer. Como já
foi dito, às vezes nem é preciso uma decisão formal para que o juiz tenha um
impacto no caminho da deliberação e, portanto, a adesão à lei nem sempre é o
principal fator determinante da atuação do juiz. Afinal, os juízes ' como
outros atores políticos ' podem agir estrategicamente, blefando ou criando
empecilhos legais que correspondam às suas preferências pessoais (vide a
quantidade de processos recentes contra as regras antinepotismo impostas pelo
Conselho Nacional de Justiça).
Diante dessa visão mais cética sobre as motivações dos juízes, a literatura da
ciência política internacional sobre os juízes e os constrangimentos à sua
atuação inclui três correntes principais: a institucional (ver Clayton e
Gillman, 1999; Smith, 1988); a estratégica (ver Baum, 1997; Vanberg, 2001); e a
atitudinal (ver Segal e Spaeth, 1993). No Brasil, somente a primeira parece ter
vingado. A corrente atitudinal é de difícil aplicação devido à complexidade de
se estudar as atitudes dos juízes ou ministros em um sistema multipartidário em
que as dimensões da disputa política dificilmente podem ser analisadas em um
espectro binário. A corrente estratégica refere-se à tentativa dos tribunais de
conquistar e de manter seu poder diante da força dos poderes eleitos. Essa
corrente já foi amplamente aplicada aos casos mexicano (ver Finkel, 2007) e
argentino (ver Helmke, 2002), por exemplo, suscitando a dúvida de por que não
teve a mesma popularidade entre os estudiosos do Judiciário brasileiro. Em
parte, a resposta se dá pela inversão do caminho comum no caso brasileiro: em
vez de ter tido que conquistar seu poder, os tribunais receberam uma abundância
de poderes na Constituição e somente depois tiveram que decidir como melhor os
utilizar sem provocar reações dos poderes eleitos. Com isso não pretendo
afirmar que as motivações estratégicas ou atitudinais inexistam no caso
brasileiro ou que essas abordagens não deveriam ser aplicadas a ele, mas
simplesmente enfatizar que a abordagem institucionalista parece ter sido a mais
útil e produtiva nesse primeiro momento dos estudos do Judiciário pós-1988 por
uma série de motivos tanto metodológicos quanto conjunturais.
A essas análises da atuação dos juízes, adicionaria mais dois fatores
relacionados às características das políticas públicas. O primeiro diz respeito
mais às políticas públicas sendo contestadas do que ao próprio Judiciário: a
importância delas (ou "salience"). A idéia de que a importância de um
determinado processo para os juízes motiva a atuação (ou a não-atuação) do
Judiciário e, portanto, também afeta os cálculos dos jogadores que acionam o
Judiciário, é facilmente comprovada empiricamente e faz parte do consenso geral
na literatura (ver Epstein, Knight e Shvetsova, 2001). A esse argumento
adiciono um segundo: as características das políticas públicas em si ajudam a
determinar sua judicialização, com ou sem a iniciativa dos juízes. Baseando-me
na obra de Lowi (1964; 1972) e Wilson (1995) ' sumarizada como "policy
determines politics" ', é possível afirmar que, da mesma forma que a
distribuição de custos e benefícios das políticas públicas (policy) determina
os percursos de seu andamento político (politics) no Executivo e no
Legislativo, essas características das políticas públicas também influenciam a
provável intensidade de utilização do Judiciário. Abusando da famosa frase de
Clausewitz sobre a guerra, a judicialização pode ser vista como uma extensão da
política por outros meios, tornando-se mais provável quando os custos de uma
determinada política são muito concentrados entre um pequeno grupo de
perdedores.
3. Assim sendo, o juiz dificilmente é o único ator relevante na deliberação das
políticas públicas no Judiciário. Especialmente depois de implementada, a
política pública pode ser contestada judicialmente por uma série de atores
tanto do mundo político quanto da sociedade civil. O fato de o Judiciário ter,
necessariamente, que lidar com essas contestações força-o ' mesmo contra sua
vontade ou protelando ao máximo ' a ouvir e a tratar de opiniões muitas vezes
minoritárias e contrárias aos interesses predominantes no eixo Executivo-
Legislativo. Na primeira seção, mencionei o conceito de "venue seeking" e o
fato de o Judiciário ser um dos "venues" mais poderosos para a ação opositora
às políticas públicas já implementadas. As regras institucionais, como
constatamos anteriormente, podem dar poder a grupos minoritários que não agem
no momento da deliberação entre Executivo e Legislativo, inserindo-os no debate
pós-hoc e permitindo que usem os tribunais como um ponto de veto no jogo
político.
Em termos gerais, a literatura já revelou mais ou menos quais são os grandes
atores que usam cada instrumento legal com maior sucesso: nas Ações Populares,
os dois principais grupos são parlamentares e advogados; nas Ações Civis
Públicas, é o Ministério Público na grande maioria das vezes (Werneck Viana e
Burgos, 2002); no caso das Adins, é o Ministério Público e a OAB (Arantes,
1997; Taylor, 2006b); e assim por diante. No entanto, o impacto dessa atuação
no sistema político depende tanto das regras que governam a legitimidade ativa
dos atores diante dos tribunais quanto da força dos argumentos legais à sua
disposição e também das regras vigentes de abrangência das decisões jurídicas.
Em termos simplistas, quanto mais abrangente e vinculante o instrumento
jurídico usado, maior o potencial de se criar um ponto de veto dentro do
Judiciário, como é o caso da Adin no STF. No entanto, a falta de resultados
abrangentes e vinculantes ' e o que Arantes (1997:33) descreve como a
"atomização da apreciação judicial difusa" ' tende a providenciar outro
mecanismo tático para os atores políticos: a incerteza gerada pela protelação
de uma decisão definitiva através do recorrente uso de diversas instâncias ou
recursos no Judiciário (Quadro_1).
Essa segunda tática não requer que os argumentos legais necessariamente estejam
a favor do grupo de oposição: na luta contra as privatizações nos anos 1990,
por exemplo, muitas vezes a oposição buscou encontrar um juiz que simpatizasse
o suficiente com a questão para emitir uma liminar contra os leilões, mesmo
sabendo que ela seria derrubada em seguida, diante das leis em vigor. Em outras
palavras, não tem sido raro a oposição política usar os tribunais mesmo sabendo
que não tem condições legais de vencer a briga: o Judiciário também serve para
as oposições mostrarem serviço, protelando a implementação de políticas
públicas contrárias aos interesses de seus seguidores e chamando a atenção
pública para sua oposição. Nessa linha, Werneck Vianna et alii explicam a
tendência dos partidos políticos de entrar com recurso no Judiciário "visando
apenas marcar uma posição de contraste com a maioria e demonstrar aos seus
aderentes e ao público em geral a sua disposição de esgotar, no terreno
institucional, todas as possibilidades abertas à sua intervenção" (1999:127).
4. Finalmente, é importante pensar quais as conseqüências do crescente papel do
Judiciário nas políticas públicas. Mesmo se argumentarmos que os tribunais têm
tido pouco efeito concreto nas políticas públicas, agindo tímida e
conservadoramente, de forma meramente reativa, é importante reconhecer que,
mesmo assim, o Judiciário pode ter um impacto significativo (embora meramente
reativo) na legitimação de propostas majoritárias. Esse tipo de atuação não é
ausente na história recente e pode ter tido um impacto forte, por exemplo, na
legitimação de alguns procedimentos questionáveis como o uso exagerado da
medida provisória ou de certas políticas públicas como o Plano Collor (Koerner,
2005; Vilhena Vieira, 2002).
Se partirmos ' ao contrário ' da suposição de que o Judiciário teve, sim, um
impacto proativo nas políticas públicas, a pergunta que se levanta é por quê?
Por que um Executivo poderoso, aliado a um parliamentary agenda
cartelmajoritário, cumpriria as decisões de um Judiciário que o contraria
proativamente? A questão de por que o Executivo segue as determinações de
juízes cujo poder individual é extremamente restrito é pouco estudada (mas vale
a pena ver Epstein, Knight e Shvetsova, 2001:126 e Staton, 2002; 2004) e, no
caso brasileiro, é um pouco misteriosa. Será que, apesar da sua força, existe
no Poder Executivo brasileiro certa preferência por atitudes que fortaleçam a
democracia, como seguir fielmente as decisões do Judiciário? Dado o ceticismo
profissional dos cientistas políticos, essa explicação ' por melhor e mais
acurada que seja ' provavelmente não terá sobrevida longa. Portanto, como
explicar a resolução do Executivo de cumprir decisões judiciais
contramajoritárias, mesmo quando elas são extremamente caras em termos de
recursos gastos, negociações desperdiçadas e preferências detonadas?
Uma explicação é a alternância no poder, que leva o Executivo de hoje a
obedecer ao Judiciário para resguardar o controle judicial para quando estiver
fora do poder (ver Ginsburg, 2003; Ramseyer, 1994). Uma outra explicação,
sugerida por Whittington (2005), é que mesmo os incumbentes se beneficiam de um
Judiciário independente: 1) o Judiciário pode alterar a legislação aprovada por
governos anteriores e, assim, mesmo agindo independentemente, melhorar as
condições para a implementação das preferências do atual governo. Talvez mais
importante, de acordo com Whittington; 2) um Judiciário que contraria o governo
em alguns pontos serve para legitimar as decisões desse governo em todas as
outras ocasiões nas quais não se manifesta negativamente. De acordo com a
análise de Weingast (1997), esse tipo de consideração por parte do Executivo
pode contribuir para um sistema "self-enforcing", ou auto-regulador, isto é,
sob condições favoráveis, existem incentivos para que o Executivo (e por
extensão o Legislativo) obedeça ao Judiciário, mesmo não precisando. Será que
essa lógica pode ajudar a explicar a relação entre Executivo e Judiciário no
Brasil? Falta uma análise mais profunda da causa desse fenômeno, da negociação
estratégica entre os três poderes e dos resultados concretos em termos da
negociação e da implementação de políticas públicas.
CONCLUSÃO
É amplamente reconhecido que, embora o Judiciário não possua "nem a bolsa nem a
espada"13 ', ou seja, nem os poderes orçamentários do Legislativo nem os
poderes coercitivos do Executivo ', ele tem um considerável poder político como
depositário da fé pública nas regras do jogo. O Judiciário desempenha um papel
central na determinação e aplicação de princípios tanto constitucionais quanto
ideais, tais como o Rechstaatou état de droit. Ele decide quais regras são
legítimas e estão em concordância com as leis locais ou a Constituição, assim
como quais ações (ou omissões) representam aberrações ou infrações. Como
resultado, os tribunais influenciam o curso das políticas públicas: tribunais e
juízes influenciam o tipo de políticas que são implementadas e julgam a
legalidade dessas políticas dentro da sua visão das regras legais existentes e
das normas e tradições vigentes.
A ciência política reconhece, há pelo menos meio século, que o Judiciário
preenche um papel político como uma instituição "para a tomada das decisões
sobre questões controversas da política nacional" (Dahl, 1957:279). É sabido
que muitas vezes os requerentes usam o Judiciário como mais uma oportunidade ou
instância política ' um "venue" ' e não como fonte de verdades constitucionais
e legais. E se reconhece que os juízes freqüentemente operam com base em
critérios outros que os unicamente legais quando julgam processos importantes.
Mesmo quando eles se mantêm constrangidos por critérios totalmente legais, pela
própria natureza da revisão judicial, eles acabam tomando decisões que
influenciam ou até criam políticas públicas (ver Ferejohn, 2002).
No entanto, freqüentemente existe uma percepção pública de que há algo errado
nessa atuação política dos tribunais no processo de formulação de políticas
públicas. Pode até ser que o Judiciário prefira ocultar sua atuação atrás de um
muro legalista, para tentar preservar sua legitimidade como o único poder não
escolhido através de procedimentos abertamente democráticos. Certamente, a
crescente judicialização e o conseqüente crescimento do impacto judicial em
quase todo o mundo trouxeram consigo uma mudança no discurso sobre a influência
judicial na política e, em especial, uma crítica muito forte, por parte dos
poderes eleitos, aos "legisladores não-eleitos". Mas é preciso reconhecer a
importância dessa função política judicial e mais, sua inevitabilidade. Embora
o conceito da separação dos poderes conduza a três instituições claramente
distintas, as funções judiciais, legislativas e executivas dessas instituições
não são caprichosamente separadas em nítidas caixas institucionais como às
vezes supomos. Existe uma sobreposição das funções das três instituições, como
o Quadro_2 ilustra, diante da qual não é de surpreender que o Judiciário tenha
algum efeito no processo de formação de políticas públicas. Afinal, como disse
Ehrmann: "A autoridade do Judiciário para declarar leis e atos oficiais
inconstitucionais é [...] um ato judicial que dá aos juízes uma participação
óbvia no processo político, [deixando pouco espaço] para a proposição de que os
juízes apenas apliquem a lei" (1976:138).
Analiticamente, então, é simples concluir que o Judiciário pode ser melhor
incorporado às nossas análises do sistema político brasileiro. Normativamente,
as coisas estão menos resolvidas e há uma certa ambigüidade que sempre cercará
a atuação do Judiciário na política, tanto em termos da teoria democrática
quanto na questão da formulação efetiva e eficaz das políticas públicas. É
muito comum em todo o mundo reclamar da interferência de juízes na política.
Mas é importante reconhecer, como o fazem Werneck Vianna e Burgos (2005:781-
782), o papel democratizante do Judiciário, agindo tanto como um "muro de
lamentações" quanto como "uma efetiva arena para o exercício da democracia", em
uma democracia na qual a relação entre Executivo e Legislativo foge do ideal.
Da mesma forma, quando pensamos o Judiciário do ponto de vista da formulação de
políticas públicas, existe certa tensão normativa. Há um reconhecimento de que
um Judiciário que pode contrariar o governo pode ser melhor tanto em termos
econômicos (ver Castelar Pinheiro, 2003:185) quanto em relação à durabilidade
dos resultados das políticas públicas. O Judiciário é fundamental para atingir
o equilíbrio entre duas características: decisiveness, a eficiência na tomada
de decisões pelo sistema político, e resoluteness, a capacidade do país de
seguir um percurso estável e pouco errático em termos da adoção e implementação
das políticas públicas14. Em um país onde o Judiciário não cria empecilhos à
atuação do Executivo, o sistema político pode ser muito eficiente na tomada de
decisões, mas pode sofrer fortes oscilações de políticas públicas entre
governos (vide Argentina na última década).
Este artigo enumerou alguns dos fatores que podem influenciar o impacto do
Judiciário no processo de formação de políticas públicas no Brasil e as formas
pelas quais o Judiciário pode ser incorporado a um modelo que não é preditivo,
mas que pelo menos tem pretensões causais. Talvez tenha conseguido mostrar
melhor o erro da exclusão analítica do Judiciário do que os caminhos para sua
inclusão futura na literatura mais abrangente sobre a tomada de decisões. Esse
desequilíbrio deve-se não à falta de interesse sobre o assunto na literatura,
em que existe uma riqueza de estudos sobre o papel do Judiciário. No entanto,
ainda é muito pouco desenvolvido o diálogo entre o estudo da relação Executivo-
Legislativo, o estudo do Judiciário e a análise das políticas públicas. Espero
ter dado um passo para a maior integração desses campos de pesquisa.
NOTAS
1. Este artigo faz parte da corrente de análise positiva sobre a função
política dos tribunais, distinguindo-se assim da literatura normativa produzida
por juristas e professores de Direito. Na visão normativa, procura-se definir
como os juízes devem decidir processos ou se relacionar com as outras
instituições no sistema político diante das regras legais vigentes. Na teoria
positiva, procura-se entender não como os juízes devem agir, mas por que eles
agem da forma que de fato agem, o que motiva os juízes a decidir da forma que
decidem e que forças podem influenciar essa atuação. Uma das melhores
discussões dessa distinção e de sua importância tanto para a ciência política
quanto para estudiosos de Direito é de Friedman (2005).
2. Para uma discussão mais ampla da dimensão hobbesiana e madisoniana, ver
Magaloni (2003). Adiciono aqui o que chamo da dimensão smithiana por achar que
o impacto do Judiciário na economia é uma terceira dimensão de suma importância
ao se pensar o impacto do Judiciário na governabilidade.
3. Entre muitos trabalhos nesse sentido, alguns servem de exemplo: livros como
os de Arantes (1997); Favetti (2003); Sadek (1995; 1999; 2000); Werneck Vianna
et alii (1999); e Werneck Vianna (2002); artigos e capítulos como os de Cunha
(2001); Faro de Castro (1997a; 1997b); Koerner (2005; 2006); Oliveira (2005);
Werneck Vianna e Burgos (2005); e recentes teses de doutorado como Carvalho
Neto (2005); Oliveira (2006); e Pacheco (2006).
4. A natureza dicotômica do debate sobre as instituições políticas brasileiras
é explicitada em Palermo (2000) e Pereira e Mueller (2003).
5. Por exemplo: Abrucio (1998); Ames (2001); Kinzo (1997; 1999); Mainwaring
(1995); Stepan (2000).
6. Por exemplo: Figueiredo (2001); Figueiredo e Limongi (1999; 2002).
7. No entanto, a troca de votos por cargos ou receitas (pork) continua, só que
melhor administrado por um grupo menor, com menos "free agents", parlamentares
agindo individualmente, fora do âmbito das negociações partidárias.
8. De acordo com a Constituição (art. 106), o STF e o Superior Tribunal de
Justiça ' STJ não fazem parte da Justiça Federal, que é composta apenas pelos
Tribunais Regionais Federais ' TRFs e pelos juízes federais de instâncias
inferiores. No entanto, como o STF e o STJ têm jurisdição nacional, como
instâncias recursais (art. 92, §2), eles têm controle sobre toda a legislação,
inclusive a federal. Quando uso aqui Judiciário ou Judiciário federal,
portanto, estou me referindo ao STF, ao STJ, aos TRFs e aos juízes federais de
primeira instância.
9. Sobre as experiências de outros países neste sentido, ver, por exemplo,
Chavez (2001; 2004); Scribner (2003); Shapiro (2004); e Uprimny (2004).
10. As 10 políticas mencionadas são o Fundo Social de Emergência, o Plano Real,
as reformas da ordem econômica, o Plano Nacional de Desestatização, o Fundo de
Estabilização Fiscal, a Contribuição Provisória sobre a Movimentação ou
Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira ' CPMF,
a reforma administrativa, a reforma previdenciária, a tributação da
aposentadoria de servidores públicos e o racionamento de energia elétrica
(Taylor, 2006a).
11. Como em muitos outros casos, nessa Adin, a liminar foi deferida, mas até
hoje o STF não se pronunciou sobre o mérito da Adin, já que a liminar criou um
fato novo.
12. Uma reflexão não muito incomum de um ministro do STF nesse sentido foi
auferida pelo ministro Moreira Alves na Adin nº 896: "Como é sabido, não só a
Corte está restrita a examinar os dispositivos ou expressões dele cuja
inconstitucionalidade for argüida, mas também não pode ela declarar
inconstitucionalidade parcial que mude o sentido e o alcance da norma impugnada
(quando isso ocorre, a declaração de inconstitucionalidade tem de alcançar todo
o dispositivo), porquanto, se assim não fosse, a Corte se transformaria em
'legislador positivo', uma vez que, com a supressão da expressão atacada,
estaria modificando o sentido e o alcance da norma impugnada. E o controle de
constitucionalidade dos atos normativos pelo Poder Judiciário só lhe permitem
agir como 'legislador negativo'."
13. "O Judiciário [...] não tem influência sobre a espada nem sobre a bolsa;
não pode dirigir nem a força nem a riqueza da sociedade; e não pode tomar
nenhuma iniciativa ativa [...]" (Hamilton, 1961, tradução do autor).
14. Os conceitos de decisiveness e resoluteness em relação à formulação de
políticas públicas originam-se no trabalho de Haggard e McCubbins (2001). No
entanto, os autores não discutem o papel do Judiciário no processo.