Sociabilidades e valores: um olhar sobre a família árabe muçulmana em São Paulo
"O homem provê, a mulher constrói.
Mil inimigos fora é melhor do que um em casa."
(Safadi e Basha, 1954)
INTRODUÇÃO
Ainda que a maioria dos descendentes de sírios e libaneses que imigraram para o
Brasil seja constituída por cristãos ' sobretudo católicos maronitas e
ortodoxos ', a partir da década de 1950, surge no cenário paulistano uma nova
leva migratória de árabes muçulmanos ' sunitas e xiitas ', já aqui presentes
desde as primeiras décadas do século XX, mas até então muito pouco expressivos
numericamente. Esse último movimento migratório é explicado pela conjuntura de
depressão econômica que atingiu regiões mais atrasadas do Líbano após a Segunda
Guerra Mundial (1939-1945). A falta de perspectivas para os jovens que residiam
em regiões preponderantemente rurais, onde os conflitos político-religiosos
eram mais presentes, impeliu os que ainda tinham alguma autonomia a decidir
pela emigração. Hoje, muçulmanos, em sua maioria sunitas, respondem por
contingentes apreciáveis de famílias libanesas, ainda que constituam um
contingente numericamente muito menos importante que a imigração anterior de
cristãos. Originários em sua maioria do vale do Bekaa ou de pequenas aldeias ao
sul do país, concentraram-se em áreas da Região Metropolitana de São Paulo,
como a região de Santo Amaro, na zona sul da capital, ou ainda a região do ABC
paulista (Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano). Esse movimento
migratório foi reforçado a partir de 1975, quando eclodiu a guerra civil
libanesa (Osman, 1998; Gattaz, 2001). Hoje, a comunidade muçulmana no Brasil é
estimada por suas lideranças como perfazendo entre meio e 1 milhão de
indivíduos (Hayek, s.d.; Folha de S. Paulo, 23/9/2001; O Globo, 23/9/2001).
Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos1, onde a comunidade muçulmana
provém, por assim dizer, de origens nacionais muito distintas, trazendo de cada
origem traços culturais próprios, no Brasil, a esmagadora maioria dos
muçulmanos é formada por famílias originárias do mundo árabe, especialmente do
Líbano e, particularmente, do sul desse país. São possíveis, e existem,
conversões de brasileiros não-descendentes de imigrantes muçulmanos, assim como
muçulmanos originários de outros países, mas em contingentes numericamente
pouco expressivos. Tais circunstâncias atuam como elemento de homogeneidade a
fim de fazer coincidir as identidades étnica e religiosa no grupo. O próprio
título da revista da comunidade muçulmana em São Paulo denuncia a origem comum:
Al Urubat,O Arabismo.
Esses fluxos migratórios de muçulmanos libaneses em certa medida atualizaram as
trajetórias sociais seguidas pelos antigos imigrantes: o começo como vendedores
ambulantes de artigos populares e, em seguida, o estabelecimento de um comércio
(Truzzi, 1992; 1997). A maior concentração ocorreu em São Paulo, onde os
imigrantes, sempre aglutinados ao redor de mesquitas nas regiões de Santo
Amaro, zona sul da capital, e do ABC, dedicam-se hoje primordialmente à
comercialização de móveis populares. Entre as famílias originárias do vale do
Bekaa e do sul do Líbano, um grupo considerável de muçulmanos passou também a
comercializar confecções (sobretudo em jeans), concentrados ao redor da rua
Oriente, no bairro do Brás. Muitos desses imigrantes emigraram provisoriamente,
fugindo dos combates de sua terra natal, alimentando inicialmente o sonho de
retornar. Alguns voltam efetivamente para rever familiares ou a passeio, mas
têm dificuldades em se estabelecer novamente no Líbano, em virtude das melhores
perspectivas econômicas que o Brasil oferece (Osman, 2006). A imensa maioria
estabeleceu-se no ramo comercial, mesmo que hoje mascatear seja pouco usual, em
virtude da violência nas grandes cidades.
Este artigo tem por objetivo explorar as configurações e os valores familiares
de árabes muçulmanos em São Paulo. No Brasil, os campos dos estudos étnicos e
de família têm se desenvolvido segundo orientações razoavelmente paralelas.
Assim, embora o estudo dos processos migratórios encontre, na caracterização
das unidades familiares, um ponto de partida essencial, "esse material não tem
feito eco junto ao campo preocupado em avaliar, no nosso país e, em particular,
na cidade de São Paulo, os arranjos familiares, os padrões de conjugalidade e o
mercado matrimonial, bem como o impacto das mudanças nas relações de parentesco
em função dos novos agenciamentos de gênero e de geração" (Gregori, 2006:1).
Não obstante tal distanciamento, ressalte-se que, desde os anos 1980 do século
passado, estudiosos vêm advogando a tese de que a família no Brasil não pode
ser compreendida segundo traços homogêneos acomodados em um padrão singular que
evoluiu da família patriarcal à família conjugal moderna, mas sim a partir de
arranjos diferenciados, segundo especificidades de classe, gênero, idade e,
acrescento eu, etnia e religião (Corrêa, 1994; Fukui, 1980; Fonseca, 1989;
Durham, 1983; Sarti, 1996; Ardaillon, 1997; Figueira, 1987; Peixoto, Singly e
Cicchelli, 2000; Heilborn, 2004).
Nesse último sentido, importa também analisar o grupo sob a ótica das
confluências entre ethos religioso e ethos familiar. Tais ordens de
relacionalidade primordiais ' uma mais cosmológica, outra mais societária '
definem as condições básicas da presença desses indivíduos no mundo, aquelas
que os sustentarão como elementos da vida pública e que pautarão suas condutas
e seus desafios. Conforme observou Duarte, "qualquer iniciativa que tenda a
influir na vida social contemporânea de modo a viabilizar sua adequação aos
valores modernos por excelência [...] enfrenta a necessidade de indagar como se
articulam família e religião, de que modo conformam representações e
experiências de subjetividade mais ou menos sensíveis à pregação modernizante"
(2006:8).
Para o presente estudo, foi realizada uma dezena de entrevistas em
profundidade, envolvendo propositalmente indivíduos de religião muçulmana de
diferentes faixas etárias (entre 20 e 66 anos), situações socioeconômicas (3
comerciantes, 2 líderes comunitários, 3 donas de casa e 2 estudantes
universitários) e gêneros (5 mulheres e 5 homens). As entrevistas registradas
(algumas gravadas, outras anotadas) duraram de 90 a 180 minutos e foram
realizadas em locais de trabalho (3 em escritórios junto a lojas, 1 em uma
escola), residências (3), associações da comunidade (2) e café (1). Elas se
constituíram na principal fonte primária de dados para o presente artigo,
embora tenham sido também realizadas observações decorrentes de visitas a duas
mesquitas, em uma das quais fui convidado para almoçar na respectiva sociedade
beneficente. Embora fosse estranho ao grupo, fui bem recebido, despertando
simpatias e certa curiosidade. Ali pude entrever o clima cultivado e os
assuntos abordados entre famílias no almoço de sexta-feira, quando a comunidade
normalmente se reúne. Além disso, procurei examinar, ainda que não
exaustivamente, a bibliografia atinente ao tema das famílias muçulmanas no
Brasil e nos Estados Unidos. No decorrer do texto, referências como L60m
significam que o indivíduo L, de 60 anos, do sexo masculino, forneceu o
depoimento citado.
TRADIÇÕES E SOCIABILIDADES
Entre famílias de origem cristã, os clubes representaram uma importante
alternativa de socialização para a primeira geração nascida no Brasil (Truzzi,
1997). Entre muçulmanos, as sociedades beneficentes cumprem o papel de reunir e
mobilizar a comunidade. Localizadas geralmente ao lado das mesquitas,
constituem um espaço privilegiado de reunião para o almoço de sexta-feira, a
organização de ações de benemerência e de ajuda mútua, e para que os jovens se
conheçam e cultivem sua fé, em uma sociedade considerada, em geral, bastante
permissiva pelas famílias de crença islâmica.
Se, para as famílias de origem árabe cristã, algumas já instaladas em São Paulo
há cinco gerações, o grosso da vida social já se secularizou, o mesmo não
ocorre com as famílias muçulmanas. Além de a imigração ter ocorrido há menos
tempo e, portanto, os costumes e as tradições da terra natal se mostrarem mais
presentes, a experiência religiosa particular e diferenciada do restante da
sociedade, nesse caso, é muito mais estruturante da conduta do grupo quando
comparada à de sírios e libaneses de origem cristã. Nesse sentido, graças ao
estranhamento comum diante da sociedade mais abrangente, a experiência de grupo
minoritário religioso aproxima os muçulmanos da experiência outrora vivenciada
pelos primeiros grupos de judeus em São Paulo, guardando, desse ponto de vista,
relativa semelhança, não obviamente quanto às práticas religiosas, mas quanto à
singularidade da experiência de inserção em um contexto de catolicismo
hegemônico.
Sendo a imigração mais recente, entre os entrevistados, muitos ainda desfrutam
(ou desfrutaram até pouco tempo) do convívio com pais, familiares ou amigos
imigrantes. Os vínculos mantidos com a terra de origem, em função da maior
facilidade de deslocamento (menor custo e menor tempo), conferiram à empreitada
migratória, outrora longa e custosa, um caráter transnacional (Schiller et
alii, 1995). Tal situação impõe, na maior parte das vezes, o domínio da língua
árabe no cotidiano familiar. Como relatou um dos entrevistados, tão resoluto em
sua fé quanto em outros assuntos, as coisas são muito claras: "português é na
escola, em casa é árabe e na loja é misturado" (L60m). O árabe foi aprendido no
convívio familiar, pois a maior parte dos entrevistados não freqüentou escolas
da colônia. Mesmo assim, de uma geração para outra, a fluência e mesmo a
capacidade de comunicação vão diminuindo, pois a sobrevivência do árabe como
língua praticada no seio das famílias depende em boa medida da presença de
imigrantes na própria família e da densidade dos vínculos mantidos com a terra
de origem.
Outra esfera do cotidiano em que o peso da tradição familiar se mostra presente
é obviamente a alimentação. De fato, os entrevistados foram unânimes em apontar
a comida árabe como um referencial importante, ainda que longe de se mostrar
absoluto, já que o insinuante arroz com feijão (este muitas vezes substituído
pela lentilha) acaba aos poucos constituindo a base das refeições em muitos
lares. Naqueles que contam com mulheres imigrantes, o vigor da comida árabe é
normalmente mais presente. É perceptível a valorização, não da comida árabe de
modo geral, abstratamente falando, mas, sobretudo, daquela preparada em casa,
conforme os costumes herdados, distinguindo-se assim da culinária árabe
tipicamente comercial. No fundo, a comida valorizada está intimamente associada
a seu preparo, que, por sua vez, está associado à condição feminina.
A alimentação compreendida nesses termos e a comunicação em árabe ' ao menos
entre os mais idosos ' reforçam assim uma sociabilidade própria, endógena às
famílias muçulmanas em São Paulo. Pode-se dizer que ela se assenta sobre pelo
menos três níveis: em primeiro lugar, nas relações no interior da própria
família, em seguida, no grupo de famílias originárias da mesma aldeia, cidade
ou região, já que laços de conterraneidade constituem uma referência importante
para o grupo, e, por último, na comunidade islâmica mais ampla. Nesse último
sentido, é importante frisar a concepção de que ser muçulmano é pertencer a um
tipo de família universal, compartilhar de uma unidade que depende de
cooperações mútuas. Isso nos conduz ao tema das esferas de sociabilidade
prevalecentes tanto no trabalho quanto nas poucas horas de lazer disponíveis.
O relacionamento com membros de fora da comunidade islâmica é marcado,
sobretudo, pelos contatos exigidos pelos negócios na esfera dos relacionamentos
comerciais, tanto entre empresas quanto no interior da própria firma, quando
esta adquire certo porte e exige o recrutamento de funcionários além do
trabalho familiar. Nesse caso, é comum a convivência com moças de famílias
nordestinas, bastante abundantes tanto no Brás quanto em Santo Amaro,
empregadas como atendentes de lojas.
Como a concorrência é grande, trabalha-se muito na colônia de modo geral, em
períodos que muitas vezes extrapolam o horário dito comercial. A maioria dos
comerciantes só tem livre o domingo, quando a família ampliada se reúne para
almoçar, normalmente na casa do chefe (patriarca) da família ou de seu filho
mais velho, vez ou outra recebendo algum convidado. Há também os eventos da
comunidade, que geralmente ocorrem junto às mesquitas: casamentos, festas etc.
A freqüência ao clube da colônia, localizado no bairro do Riacho Grande, zona
sul de São Paulo, foi apontada por muitos como bastante episódica.
Sendo assim, a sociabilidade dos indivíduos é quase que exclusivamente
dependente do círculo familiar e das relações da família com a colônia
muçulmana, pois, como observou um entrevistado, "trabalha-se fundamentalmente
em família" (Q28m). Fora da família não há nada muito além das atividades
propostas pelas mesquitas e respectivas sociedades beneficentes associadas a
cada uma delas. Isso se reflete mesmo em termos espaciais, pois se observa que
as famílias procuram se aglutinar próximas tanto do trabalho (em geral, da
loja) quanto da mesquita que freqüentam. Há uma expectativa implícita de que os
membros de uma família permaneçam o máximo possível juntos, seja em casa, no
trabalho, seja em outras atividades. Espera-se assim manter as crianças sempre
envolvidas no seio da família, a fim de que se lhes possa transmitir os valores
da vida familiar em um ambiente islâmico. Esse aspecto também pode gerar
incompreensões junto a estratos sociais não-muçulmanos que valorizam cada vez
mais a privacidade individual. É significativo, por exemplo, que, dos
indivíduos entrevistados, cinco tenham sido acompanhados por familiares2. Mais
que isso, por familiares do mesmo sexo do(a) entrevistado(a), já que papéis
muito contrastantes segundo o gênero parecem conformar também sociabilidades
distintas de acordo com o gênero.
No âmbito das sociedades beneficentes, cujas sedes são normalmente construídas
em áreas anexas às mesquitas, ocorre um conjunto expressivo de atividades
sociais, culturais e de apoio à comunidade. Elkholy refere-se à importância das
mesquitas para as comunidades muçulmanas americanas nos seguintes termos: "A
instituição da mesquita desempenha um papel crucial à vida de toda a
comunidade, já que nela as funções psicológicas vitais da religião integram a
personalidade do indivíduo à da sociedade em seu entorno" (1966:134, tradução
do autor). No Brasil, ali é o lugar no qual a comunidade se reconhece, onde as
informações circulam, as pessoas se encontram, as relações são revigoradas, os
matrimônios tecidos, as visitas de autoridades recebidas, as comemorações
celebradas, os negócios discutidos etc. O almoço de sexta-feira, que ocorre
após os serviços na mesquita, é, semanalmente, o momento mais importante de
reunião social da comunidade.
Os mecanismos de entreajuda, por exemplo, são favorecidos por uma espécie de
dízimo (mas que, na verdade ' explicou-me um entrevistado ', corresponde a 2,5%
do que se ganha), preconizado pela doutrina islâmica, o
zakat
3, encaminhado à sociedade beneficente ou diretamente aos pobres. "Às vezes a
gente empresta, mas na verdade dá, porque quem recebe não precisa devolver,
porque nossa religião exige essa parcela de doação" (L60m). Em outras ocasiões,
cada vez mais raras, os empréstimos são realizados na base da confiança,
avalizados pela rede de relações da colônia.
Aqueles habituados a laços pessoais de confiança, reciprocidade, generosidade,
hospitalidade, compromisso etc. acabam estranhando uma ordem social cada vez
mais individualista e impessoal. "Hoje as coisas estão ficando mais difíceis,
os problemas de São Paulo, o jeito de viver em São Paulo está cortando muito
essa relação entre as pessoas. As relações com os seres humanos estão deixando
você com o coração duro, entendeu?" (N52m).
Entre os muçulmanos entrevistados, em qualquer faixa etária, impressiona assim
a circunstância de a sociabilidade das famílias estar ancorada em boa medida na
vida sociorreligiosa da comunidade, em um padrão muito distinto dos árabes
cristãos, entre os quais é relativamente comum encontrar famílias que não
colocam o pé em uma igreja há meses. Para os muçulmanos, a religião parece
revelar-se assim muito mais presente. Além disso, parece estruturar mais o
cotidiano vivido. Segundo Hayek (s.d.), "os cinco pilares do Islã são a
estrutura de vida dos muçulmanos": a fé (chahada4), a oração (salat5), o
interesse pelo necessitado (zakat), a autopurificação pelo jejum6 e a
peregrinação anual à Meca (hajj), para quem tiver posses para tal".
Inúmeras vezes, em meio às entrevistas, foram feitas alusões aos preceitos do
islamismo para justificar atitudes, comportamentos e juízos de valor. A própria
brochura impressa sob os auspícios da Assembléia Mundial da Juventude Islâmica,
destinada a apresentar o Islã e os muçulmanos, reconhece que ambos podem
parecer exóticos ou mesmo extremistas no mundo moderno. Explica, contudo, que
talvez isso aconteça porque a religião não domina a vida do dia-a-dia
no Ocidente de hoje, enquanto os muçulmanos têm a religião sempre
presente em suas mentes e não fazem distinção entre o secular e o
sagrado. Acreditam que a Lei Divina, chari'a, deve ser tomada
seriamente. Por isso, assuntos relacionados com a religião continuam
tão importantes (Hayek, s.d.).
Desse modo, a religião tem, para os muçulmanos, uma influência ao mesmo tempo
profunda e abrangente sobre suas atitudes e condutas. Para os muçulmanos, todos
os atos necessários à vida humana encerram um sentido e um significado
religioso, contido na chari'a, conjunto de preceitos religiosos islâmicos. A
chari'aestabelece regras para as práticas religiosas, para as famílias e os
casamentos, para a conduta e interação social, para a ingestão de alimentos e
para o próprio asseio pessoal7.
"Religião é uma coisa que prende a pessoa. Fé é igual a um termômetro: quando é
baixa, a pessoa faz coisa errada", disse-me L60m, que se desculpou por ter de
interromper a entrevista por meia hora para rezar, junto com seus três filhos,
todos eles ajoelhados, realizando abluções e voltados para Meca. Explicou-me
depois que diariamente vai à mesquita às 5 horas da manhã e, por me julgar
incrédulo, desafiou-me a permanecer apenas três dias com ele, ao cabo dos quais
eu estaria convertido ao islamismo.
A busca pela observância de preceitos religiosos na vida diária não parece ser
característica exclusiva, entre os entrevistados, das gerações mais idosas.
R20m, por exemplo, afirma que sua vida social, mesmo freqüentando uma
universidade, é condicionada pela religião: não bebe álcool, não come carne de
porco8, pratica o ramadã todo ano e, no mínimo, às sextas-feiras freqüenta a
mesquita. "É Deus quem faz cair uma folha", observa, explicando-me Sua
onipresença. Critica o descuido com a educação religiosa que recebeu de seus
pais, ligados mais a "preocupações materiais", e conta que se reaproximou da
religião há cerca de seis anos, na adolescência. Aí começou a se questionar e
sentiu a necessidade de afinar sua prática com o discurso religioso.
Diretora do Centro da Juventude Islâmica e formada em Ciências Sociais pela
Universidade de São Paulo ' USP, S27f apresenta uma história similar. Ela diz
que teve uma educação na qual seus pais "passaram a cultura, a língua, nossos
costumes, a tradição enquanto árabes, não enquanto religião islâmica. A
religião foi uma busca pessoal".
Feitas essas primeiras observações quanto ao uso mais comum da língua natal,
quanto ao cultivo de uma tradição alimentar própria, à vivência religiosa
relativamente mais intensa e quanto ao caráter da sociabilidade das famílias na
colônia, marcado fundamentalmente pelo trabalho e pela freqüência às sociedades
beneficentes, é conveniente aproximarmo-nos do elemento mais essencial para
compreender as configurações familiares entre as famílias muçulmanas, hoje, em
São Paulo.
UMA CULTURA PATRIARCAL
Na literatura socioantropológica brasileira, unidades patriarcais ' clãs
formados por parentelas legítima e ilegítima em grandes estabelecimentos rurais
' como modelo de formação da família brasileira encontram sua maior expressão
em Gilberto Freyre (1933). Segundo Antonio Candido (1951), tal padrão original
teria perdido sua vigência em decorrência dos processos de urbanização e de
industrialização, emergindo daí o modelo de família conjugal moderna. Corrêa,
em artigo originalmente publicado no início dos anos 1980, criticou a fixidez
de ambos os modelos, alertando para "a ilusão de que o estudo da forma de
organização familiar [...] de um grupo dominante numa determinada época e lugar
possa substituir-se à história das formas de organização familiar da sociedade
brasileira" (1994:19), sugerindo assim "a existência de um panorama mais rico,
a coexistência, dentro do mesmo espaço social, de várias formas de organização
familiar" (ibidem:37).
Seria por demais ingênuo advogar aqui uma aderência do modelo patriarcal, tal
qual descrito por Freyre, aos árabes muçulmanos instalados hoje em São Paulo,
ainda que esse autor tenha destacado a presença, não esporádica, porém farta,
de descendentes de moçárabes entre os povoadores e primeiros colonizadores do
Brasil, através dos quais tantos traços de cultura moura e mourisca se
transmitiram (Freyre, 1933:286-320). No entanto, tratando-se sobretudo de
famílias de imigração relativamente recente, que se inseriram em contextos
urbanos, como o da metrópole paulistana, como comerciantes de classe média, a
família árabe muçulmana guarda mais semelhanças com o modelo patriarcal no
tocante a valores do que em relação à sua constituição propriamente dita (no
sentido, entre outros exemplos, de incorporar parentelas ilegítimas).
De fato, trata-se então de ressaltar o caráter eminentemente patriarcal dos
valores presentes na tradição familiar, expresso em múltiplas manifestações,
algumas das quais explorarei aqui. Essa característica importante, herdada da
tradição familiar, atribui papéis muito diferenciados ao homem e à mulher.
O homem é entendido como o responsável pela sobrevivência econômica, pelo
destino e encaminhamento dos filhos, pelos assuntos de natureza social ou
política. É a pessoa que decide em última instância, em se tratando de assuntos
externos ao lar. Justifica-se esse papel graças à sua maior experiência e
exposição à vida pública. Isso não exclui a possibilidade de consultas e de
discussão com a esposa, mas a autoridade e a responsabilidade final sobre os
destinos familiares recaem sobre ele, concebido como aquele que tem
experiência, conhecimento e autoridade em seu papel. É o provedor, sua honra e
seu orgulho próprio derivam de ele saber cuidar de sua família. Desse modo, é
para ele uma vergonha admitir alguma necessidade.
Os filhos, sobretudo os homens, são entendidos como responsáveis pela
continuação da família e normalmente observam uma grande, se não absoluta,
obediência aos pais.
Quando vou me referir a ela, é Dona A; quando vou me referir ao meu
pai, é Senhor B, sempre é senhor, senhora, ou dona. Mesmo em árabe.
Em árabe, nós temos uma maneira de focar um respeito: sempre é chamar
a mãe e o pai pelo nome do filho homem mais velho, por exemplo, meu
irmão mais velho, por isso eu te falei, a seqüência da geração é o
homem, o nome do meu irmão é X, então, meu pai é chamado por respeito
de Abu-X' (Pai de X') e a mãe, Um-X' (mãe de X'), então é um
respeito. A referência é o filho mais velho. Entendeu? Se você fosse
um patrício, eu os apresentava por esse nome (P46f).
A nítida preferência por filhos homens associa-se à circunstância de eles
representarem a continuação da família, do sobrenome, admite P46f, com certo
pesar: "existe, não vou mentir, existe". Isso ocorre porque, quando a filha
casa, ela muda de família, passa a pertencer à família de seu marido. Os filhos
gerados também "pertencem" ao marido (e não à mãe, como notaremos
oportunamente), em uma concepção francamente patrilinear.
Por outro lado, de forma geral, o papel da mulher é o de procriar e educar os
filhos. Poderíamos acrescentar: para o homem. O casamento é o meio pelo qual a
mulher se transforma em um ser estável e socialmente maduro. A maternidade
completa a obra, tida como valor muito importante, chegando mesmo a justificar,
em alguns casos, o abandono da esposa, caso esta seja incapaz de gerar filhos.
Assim, mulheres solteiras e sem filhos são freqüentemente marginalizadas
socialmente (Bowen e Early, 1993:77). "Homem quer filho, não ter é problema"
(L60m). Nesse mesmo sentido, o celibato do homem é encarado de forma negativa.
O bom encaminhamento dos filhos e das filhas pressupõe assim o casamento
desses.
O problema complica-se e toma uma dimensão mais aguda porque a religião
islâmica não prevê a adoção de filhos, tal como no mundo ocidental. Vejamos
dois relatos:
Nossa religião não permite adoção, por quê? Porque você não sabe quem
você está adotando, pode ser que você esteja adotando uma criança que
mais tarde vai gostar da própria irmã sem eles saberem, então, nos
países árabes não é permitida a adoção; é permitido, sim, você criar
e educar uma criança, mas você tem que saber a origem e a raça, de
onde ela veio, a procedência dela, se ela tem irmão ou não tem. Ela
vai continuar a ter a família dela, a origem dela é a mesma, ela não
pode mudar [...] (P46f). [L60m é peremptório:] não pode adotar, pode
criar. Pai é de sangue.
Uma vez que constituir família e ter uma prole numerosa, contribuindo assim
para o incremento do número de fiéis, constitui um valor tradicional da
comunidade, o aborto é interditado, a menos nos casos em que a mãe corra um
real risco de vida. Já o controle da natalidade é sujeito a uma apreciação mais
ambígua. Em geral, métodos contraceptivos são tolerados, desde que não sejam
permanentes, como, por exemplo, a ligação de trompas.
No que tange à questão da homossexualidade, do ponto de vista da comunidade, o
problema não existe porque, na hipótese pouco provável de algum caso ocorrer, a
pessoa é simplesmente banida pela comunidade. M57f e L60m afirmam que não
conhecem nenhum caso. "Se existir, a comunidade isola, o cara se mata, se joga
de cima da montanha" (L60m). N52m informa que "a pessoa é rejeitada e, se
possível, vai ser banida. A pessoa é tida como desconhecida, ela não tem
espaço. Não tem liberdade, ela necessita de ter limite".
Ainda que o homem seja o responsável, em última análise, pela família, a mulher
domina o cotidiano familiar, sobretudo no que se refere à criação dos filhos
até uma determinada idade. "A prioridade da mulher é cuidar dos filhos" (R20m).
"Quem é a pessoa mais próxima? Três vezes a mãe e depois o pai. Está no
Alcorão" (L60m).
Tendo por obrigação primeira educar os filhos, as oportunidades de
profissionalização para a mulher muçulmana são, ainda hoje, encaradas com muito
receio, ainda que seja crescente a inserção delas no mercado de trabalho. "A
maior parte, hoje, trabalha. Nós temos algumas executivas muito bem-sucedidas,
mulheres que conquistaram [...], médicas, eu tenho uma na família que é
promotora do Estado de São Paulo" (P46f). Ao longo das entrevistas, tornaram-se
claras, no entanto, as inúmeras resistências, advindas não apenas em
decorrência da obrigação de educar os filhos mas também de não se expor diante
dos homens fora do círculo familiar. "Quanto à mulher ser educada, freqüentar
escolas, tudo bem. Mas, no trabalho, o ambiente importa. De preferência dentro
de casa. Se for um trabalho, por exemplo, em que um homem e a mulher ficam sós,
não pode" (R20m). L60m explica que, em primeiro lugar, a mulher deve cuidar do
lar, incluindo aí a educação dos filhos; depois, se necessário, ela pode
trabalhar no negócio da família; por último, torna-se muito mais complicado "se
trabalha misturado, se tem contato com outros homens".
É provável que as resistências à profissionalização feminina encontrem-se,
portanto, vinculadas ao mesmo tempo às obrigações domésticas, ao desejo de
"resguardá-la" dos outros homens e também associadas a uma compreensão
arraigada do homem como provedor. Ao se profissionalizar a mulher, essa
concepção subverte-se, e é provável que, em muitos casos, o homem se sinta
ameaçado, envergonhado9. De modo geral, pode-se afirmar que, quanto mais
conservadora a família e quanto menor o tempo no Brasil, maiores as
resistências à mulher se profissionalizar fora do ambiente familiar, a menos em
casos de necessidades econômicas incontornáveis. O mesmo se aplica aos trajes.
Em conexão com a questão da profissionalização feminina, vale a pena explorar a
noção de resguardo feminino, pois é ela que justifica o uso de vestimentas
características, entre as quais o hijab(véu).
Doutrinariamente, no islamismo, a mulher, quando em público, deve cobrir todas
as partes do corpo para resguardar-se. Toda a sensualidade, disse-me um
entrevistado, deve ser assim guardada para o marido, para dentro de casa. No
islamismo, explicou-me Q28m, "a mulher é bastante respeitada, é como um
tesouro, uma pedra preciosa, precisa ser guardada. Se você tiver um grande
diamante, vai querer ficar mostrando, expondo a todo mundo? Vão querer tocá-lo.
[...]. Então o resguardo, a vestimenta, as maneiras são decorrência desse
grande valor da mulher". N52m compartilha da tese:
É claro, a mulher tem que ser reservada. Ela tem que estar arrumada
na casa dela, pra família dela, você entende isso? E aqui é o
contrário, quando ela se arruma, ela vai pra fora, e quando tá dentro
de casa, tá uma desgraça. Depois ela fala, por que o cara vai ter uma
amante aqui e amante ali? Porque a senhora tava lá bem arrumada e
aqui tá a maior tristeza. Então o cara acaba rejeitando a própria
mulher dele. [...]. Na colônia, tem separação, mas é menos. Porque
lá, a maioria, claro, reserva mais a família. Dá mais valor à
família.
Entrevistada, M57f reconhece que boa parte da colônia acha "que eu deveria usar
véu, como presidente da Liga das Senhoras Muçulmanas. Mas aprenderam a ver mais
os meus atos, concluindo que sou mais muçulmana de coração. Nos costumes, o
importante é sentir o que quer, fazer tudo pela vontade própria". P46f também
não usa véu e encara isso como uma prerrogativa própria, fruto da adaptação a
uma sociedade ocidentalizada. Quando vai ao Líbano, ela passa a usá-lo.
Indagada se, como presidente da sociedade, era cobrada por não usá-lo aqui no
Brasil, disse-me que não,
[...] porque a entidade é mais aberta. É bem mais aberta. Os
fundadores, desde a fundação em 1929, são de pessoas que se adaptaram
a São Paulo, vamos chamar assim, ao local onde eles viviam, mas de
não abandonar a religião, de tentar trazer a comunidade para a
religião, para a mesquita. Então, eu acho que a cobrança disso não
existe muito não. Porque isso daí é de mulher para Deus, porque eu
sei minha obrigação, com eu tenho outras várias obrigações que eu
tento mantê-las e que essa daqui, realmente, ela está em falta, né?
Mas isso é de cada mulher (P46f).
É possível também se observar, tal como relataram Haddad e Smith (1996)
referindo-se ao caso americano, um duplo padrão de vestimenta para mulheres
muçulmanas mais aculturadas, dependendo do local onde estejam: na mesquita, na
própria casa, no trabalho ou simplesmente nas ruas. Todavia, essas são
prerrogativas, ambigüidades e, em certo sentido, dilemas de uma geração já
nascida no Brasil, que exerce um papel importante na transição entre a velha e
a nova cultura, freqüentemente sendo vítima de ambas. Conforme admitiu P46f,
"eu acho que nossa primeira geração sempre foi a mais difícil, porque ela tem
que lidar, de um lado, com a cultura do país onde ela vive, do lugar onde ela
vive, de outro, com tudo o que vem da tradição". Nesse sentido, ao menos
teoricamente, a geração dos netos dos imigrantes provavelmente enfrentará
obstáculos menores no que diz respeito a uma identidade desintegrada entre os
valores étnico-religiosos do grupo e os da sociedade mais abrangente.
No tocante à castidade, embora supostamente o casamento constitua, na doutrina
islâmica, uma precondição às relações sexuais para ambos os sexos (Dahl, 1997),
sua observância é muito mais cobrada para as mulheres. N52m explica:
Ele [Deus] colocou ela [a virgindade] pra ser preservada. Não consigo
entender, tá tudo ficando complicado no mundo, tudo pode, tudo pode.
Lá vai produzir um ser humano. Se a gente tem uma fábrica que vai
lançar um carro, fica segredo guardado no cofre, 1.000 quilos com uma
porta, agora em porta' de ser humano, todo mundo pode entrar e sair.
Em porta de Volkswagen, ele é trancado e só é dado pra pessoas de
confiança. Pra ninguém roubar projeto de carro que vai ser feito
amanhã. E veja bem, tudo tá errado, o cavalo, se ele não tem
documento, não sabe quem é pai dele, mãe dele, ele não tem mais
valor. E o homem, hoje? Não tem mais origem.
Questionado sobre se o mesmo valia para os homens, ele observa que "Deus não
colocou nele a virgindade", isto é, a "prova" de que não é mais virgem, após o
ato sexual. Contudo, explica por que também se justifica a castidade no homem,
sob seu ponto de vista:
Será que todas as mulheres têm todas as qualidades boas? Não. As
qualidades boas de uma mulher não se encontram todas em uma só. Então
ele sai com uma mulher e depois com outra e com outra, cada uma tem
uma qualidade. E pra ele ficar com uma, não consegue mais, porque ele
conhece dez mulheres e cada uma tem uma qualidade, no relacionamento.
Então ele não consegue ficar com uma só. E começa aquele mal-estar
familiar. Agora, quando ele conhece só ela e ela só ele, a relação
dura muito mais. Começa a não existir a preferência. Agora quando
você experimentou dez, o casamento [...]" (N52m).
Na prática, é provável que muito mais homens do que mulheres transgridam a
doutrina islâmica nesse ponto. L60m afirmou ser a virgindade muito importante,
"para não comprar gato por lebre". Conhece casos em que a noiva foi rejeitada
porque o noivo desconfiava de sua virgindade, conduta com a qual está de
acordo: "Se o marido fica quieto, quando acontece a primeira briga do casal,
ele joga na cara da mulher que ela não casou virgem". Indagados em separado,
seus filhos, na faixa dos 20 anos, logo observam que a perda da castidade antes
do casamento é mais complicada para a mulher, pois, no homem, "ninguém fica
sabendo". L60m observa também que a castidade entre homens depende da fé. R20m,
aparentemente empenhado em seguir a doutrina nesse ponto, apesar de seus
fogosos 20 anos, comentou ser a vida terrena uma prisão, ao ser inquirido sobre
o tema.
Indagado sobre como a colônia trata a questão de filhos fora do casamento, N52m
explica que "aceitam melhor do que se ficar fora. Rejeitam num primeiro
momento, mas depois que nasceu, eles vão buscar, em 99% dos casos ele é
querido. Eles fazem questão de trazer o filho pra dentro da casa, fazem tudo
pra cuidar dele desde pequeno, junto com os outros filhos. Não tem como". Faz,
entretanto, uma ressalva reveladora: "Isso tudo quando têm a chance, porque às
vezes a menina some". Provavelmente para não envergonhar a família, pois o
status familiar e, em particular, o de seu chefe, não raro se relaciona à
habilidade de controlar a sexualidade das mulheres da família (Mernissi, 1975:
161; Donnan, 1988:99).
Dote
A instituição do dote no casamento é outro aspecto revelador dos papéis
diferenciados atribuídos ao homem e à mulher, e que também se relaciona à
questão da perda da virgindade. M57f observa que "o islamismo dá mais direitos
à mulher. Para protegê-la, Deus deu o dote". N52m entende ser o dote
obrigatório, pois "serve para reprimir. Mulher precisa ter garantia, porque
homem tirou a virgindade dela. O que machuca o homem é o dinheiro. Tem um valor
simbólico. Dinheiro não materializado, mas escrito. Hoje com dólar (moeda
estável), antes camelo, carneiro. Quando o homem tem moral, paga. Se não,
quatro ou cinco pessoas vão pressionar".
P46f explica:
[...] a nossa religião, o islamismo, eu acho que, nessa questão do
casamento, ele é perfeito, porque ele dá todas as condições e
garantias da mulher caso o homem venha a abandoná-la, tenha outro
problema. O dote seria uma garantia para a mulher no futuro [...].
Por quê? Porque ela casou. No próximo casamento, é mais difícil. Fica
mais difícil. Hoje existem casamentos rompidos e voltam a se casar
normalmente. Hoje mudou muito a visão nessa parte. Mas esse dote
seria exatamente isso, ela ter uma garantia, ela poder tá
sobrevivendo, até arrumar um trabalho ou até ela virar [...],
resolver a vida dela.
O dote funciona como uma espécie de seguro para a mulher, caso seu casamento
não sobreviva. Ele pode ser simbólico no sentido de ela não receber nada na
hora do casamento, mas ele é estipulado e, se necessário, mais tarde será
cobrado pelo xeique e por outros da comunidade. L60m lembra que "mulher fala
que perdoa (o valor do dote), mas na briga cobra". Assim, se o homem for
"honrado" e desejar manter uma boa imagem na comunidade, ele necessariamente
paga o dote. O dote também é pago pelos filhos à mãe, quando esta se torna
viúva, "para que ela possa se casar de novo" (L60m).
Desse ponto de vista, representa certo capital para que a mulher possa começar
uma nova vida. Por que uma nova vida? Porque, como a cultura é patriarcal, se
ela quiser se casar de novo, ela vai se agregar a outra família, a de seu novo
marido. A unidade familiar é, assim, definida pelo homem. Isso explica seus
privilégios no sistema de herança. "Pra casa do homem é, por exemplo, duas
vezes para o homem e uma para a mulher" (P46f). "É dividido, a mulher
normalmente leva um terço. Por exemplo, o casal que tem uma filha e um filho.
Pela religião, o filho leva dois terços e a filha um terço" (N52m). "Homem dois
terços, mulher um terço. Mas o homem cuida dos pais e irmãs em caso de
necessidade" (M57f). Assim, o homem leva mais sob a justificativa de que tem
mais responsabilidades, precisará cuidar de toda a família: dos pais idosos,
dos irmãos e das irmãs, além de sua própria família, compreendendo aí esposa e
filhos:
O filho tem por obrigação amparar os pais e a mulher dele; a mulher
dele tem que ser amparada por ele também. Ele tem que ter condição de
sustentar ela, então ele, no caso dos pais ficarem doentes, [...]
pela lógica, eles têm que ficar com o filho homem. Ou aquele que
preferirem, mas a lógica manda ficar com o filho homem. O primogênito
ou qualquer um. Aí vai onde for mais espaçoso, onde o pai se sente
melhor. Acaba ficando onde ele se dá bem com a nora (N52m). [Indagado
se o irmão tem responsabilidade sobre suas irmãs, N52m não titubeia:
] Claro, se ela está em casa, ele tem toda responsabilidade de cuidar
dela, enquanto ela está em casa [isto é, enquanto ela não casar]. Dar
proteção, até casar, mesmo depois de casada, se ela for separada, ele
tem obrigação de dar proteção, acolher. A mulher sempre tem que ter
proteção de família. A natureza não fez ela que nem o homem, uns
falam que fez, mas não fez. Ela tem uma estrutura, um físico e ele
tem outro. É mais fácil falar que é tudo igual, mas tem limite pra
falar que é tudo igual. É mais fácil falar que é tudo igual do que
diferenciar.
L60m afirma claramente que "mulher não pode dormir sozinha: a viúva vai morar
com o filho ou o filho vem morar com ela". R20m declara que "normalmente o
filho mais velho assume os pais viúvos"; e acrescenta, indignado com "Dia dos
Pais, Dia das Mães: todo dia é dia deles. Isso é falta de conhecimento da
religião".
As entrevistas sugerem que, entre estratos mais altos, o tema é mais sujeito a
controvérsias. M57f, após observar que sua mãe viúva continuou a morar sozinha,
em sua casa, afirma que a sociedade de senhoras (de elite, beneméritas) que
preside tem, entre seus planos, "batalhar por um Centro Cultural que poderá
abrigar uma creche e um asilo". P46f indica, com cuidado, algo na mesma
direção: "Acho que nosso futuro aqui em São Paulo é abrir, eu não vou chamar
asilo, mas um hotelzinho quatro estrelas, porque nós temos várias [...]".
Preocupada em precisar que não são os filhos que estão "descartando" os pais,
P46f complementa:
[...] não por parte dos filhos, por parte deles (dos pais). Eles não
gostam de ser peso, tanto para o filho como para qualquer um da
família. Então, eu conheço muitas pessoas que têm a casa, convivem e
tudo mais, mas estão sós, por quê? Porque não gostam de morar com o
filho, com quem quer que seja da família, querem a privacidade deles,
não querem ser peso morto [...]. A gente percebe que é uma coisa mais
dolorida, né? Mas eu acho que esse é o nosso futuro, logo, logo
(P46f).
Separações
Mesmo que caiba à mulher, como vimos, educar os filhos, o homem é o
responsável, em última instância, por eles. Isso fica claro no processo de
separação previsto no islamismo. No islamismo, a separação é autorizada, mas
"de tudo o que é autorizado é o pior", disse-me um entrevistado. Os casos são
raros por várias razões: a família é tida como um valor essencial, a mulher
sujeita-se ao marido para permanecer junto aos filhos, em muitos casos, a
separação apenas não é oficializada, porque a sociedade vê com maus olhos.
"Quando há problemas entre marido e mulher e o casal não vai bem, procura-se um
mediador" (R20m). "Nas brigas de casal: traz parente dele e dela para conversar
e acertar", afirma L60m, ele próprio casado com uma prima 17 anos mais moça. No
entanto, após refletir um pouco na supremacia masculina, completa: "Eu não sei
como uma pessoa briga com mulher". De qualquer modo, se o(s) mediador(es) não
logram seu intento de unir o casal, a separação pode se consumar. Como ficam
então os filhos?
Na separação, a mulher não é obrigada a criar filho dele: porque o
filho é dele (Q28m). Se tiver filhos, a criação e a educação são do
pai. Quando um casal se separa, os filhos vão morar até a idade de 7
anos, com a mãe. O pai é obrigado a sustentar, mesmo que estejam com
a mãe, até os 7 anos. Depois dos 7 anos, passa para o pai, é
obrigação dele, os filhos são dele. Para mim, é duro, porque eu sou
nascida aqui, mas para a nossa cultura de lá, faz sentido. O pai que
tá gerando, né? É o principal interessado nos filhos, realmente é o
pai, e outra, ele (o pai) sempre se casa, sempre tem outra família,
então, eles têm que se adaptar aos outros irmãos, são todos irmãos,
são irmãos deles, enquanto a mãe, não. Porque o pai é diferente
(P46f).
Observe como a cultura patriarcal "naturaliza" os filhos como pertencentes ao
pai, a ponto de a entrevistada afirmar que ele é que "está gerando"; e como é
dado por certo que o homem vai se casar novamente (e ter outros filhos), ao
contrário da mãe.
O que acontece com a mãe separada? "Quando há separação, a tendência é (a
mulher) voltar para a casa dos pais. Porque, quando ela casa e vai para a casa
do marido, a casa é do marido, então ela volta, se tiver algum acordo e ela
tiver alguma residência, aí, sim, ela fica morando sozinha, mas, caso
contrário, não, a tendência é voltar para a casa dos pais" (P46f). O traço
patriarcal também se encontra presente no tema dos casamentos mistos. Todos os
entrevistados manifestaram a preferência por casamentos endogâmicos, com os
noivos pertencendo à mesma religião, embora muitos reconheçam que o número de
casamentos mistos na comunidade muçulmana venha aumentando significativamente.
É mais fácil para o homem muçulmano casar-se com uma mulher não-muçulmana do
que o contrário: "O filho pode; a filha, a religião não permite, pois quem
manda é o marido e, se casa fora, muda a religião" (L60m). A interdição da
mulher de casar fora do grupo religioso, ainda que não proibida pelo Alcorão,
vem daí, pois a religião da família é a religião do pai. Assim, implícito está
que, no casamento misto, a mulher é que deve se converter à religião do homem.
Mesmo nesses casos em que o noivo é muçulmano e a noiva, não, a situação do
casal, com o tempo, pode gerar tensões consideráveis, advindas das pressões da
comunidade. Um ponto importante, implícito ao tema, diz respeito, é claro, à
identidade religiosa dos filhos. O temor é que estes sejam criados longe da fé
islâmica. A comunidade vê ainda com reservas os raros casos em que o homem,
não-muçulmano, resolve se converter para se casar com uma muçulmana. De
qualquer modo, é uma opção menos grave do que a mulher simplesmente casar fora
do grupo, pois é comum, nesse caso, seu ostracismo perante a comunidade. Além
disso, a situação é embaraçosa para os pais e irmãos, que têm de se justificar
sobre o fracasso em educá-la de modo apropriado.
O casamento com noivos de outras religiões é tido assim como problemático: as
complicações derivam do relacionamento difícil entre famílias, "fica difícil
conciliar, surgem problemas na educação dos filhos. E mesmo na sociedade, os
amigos muçulmanos ficam com um certo pé atrás [...] ' preferiu uma de fora,
será que não tinha nenhuma aqui que servisse?" (R20m).
N52m, preocupado com o casamento de seus filhos, explica:
Quando você tinha 20 anos, você não queria saber do seu pai e da sua
mãe, nem casa onde nasceu teu pai nem onde ele morou. Quando você
chega aos 40 anos, vai querer saber de onde ele é e, indiretamente, e
sem você perceber, você acaba voltando às suas origens. Começa a
valorizar as suas origens, começa a voltar pra elas. E aquela menina
também vai acabar voltando pras suas origens. E na maioria das vezes
vai dar choque, muitas vezes. Porque ambos começam a voltar pras
origens e a distância começa a ficar maior entre eles.
P46f relata:
Quando esse meu irmão resolveu se casar, foi um drama na família. Foi
um choque muito grande, meu pai não aceitou o casamento dele, ficou
muitos anos sem falar com ele, com a minha irmã foi a mesma coisa,
com a minha irmã, quase sai uma coisa pior, porque ele não se
conformou, ficou um bom tempo realmente sem ter um relacionamento com
eles. Mas hoje... depois que nascem os filhos... Aí, tudo muda, tudo
vira filho, tudo vira normal. Eles estão em casa, almoçam, jantam nos
finais de semana, não tem diferença nenhuma, mas, sim, foi um choque,
no início, né? (P46f).
Essas e outras considerações deixam entrever que os casamentos mistos vêm
aumentando. Tal tendência se mostra como quase inevitável, pois, por mais forte
que seja a sociabilidade das famílias, interna à colônia, os filhos acabam
circulando por ambientes fora da comunidade, sobretudo ao freqüentarem escolas.
N52m explica por que, na sua opinião, não existem casamentos arranjados. Seus
argumentos, contudo, são mais uma prova inequívoca da grande influência da
família sobre as decisões matrimoniais:
Claro, porque sempre nas cidades pequenas há um tanto de casamentos
quase arranjados, pelo tamanho da cidade, não por imposição da
família. Pelo tamanho da cidade, as pessoas ficam mais perto, então
acaba acontecendo esse casamento arranjado, mas não tem imposição.
Não existe, a gente sempre ouviu falar que eles impõem [...].
Encontra um que a família ajeita e não aceitou, berrou e gritou, como
tem aqui também, mas é um em cada 10 mil. Claro, você tem um filho,
você mora numa cidade que tem 400 casas, 500 residências, então você
conhece mais as residências (pessoas), mais que seus filhos, tem uma
vivência maior, então sabe qual é a família mais decente, mais nobre.
Então você prefere que seu filho case naquela família, e às vezes ele
cai numa menina que você já sabe o passado dos pais dela, né, os
tios, os avós, porque lá a relação dos avós, de descendência, é muito
importante, em nosso costume é muito importante. Se tem uma família
lá meio engripada, meio torta, pois é, a família acaba ficando
rejeitada. Então, se os pais conhecem descendências mais do que os
próprios filhos, eles acabam falando, olha, aquela lá é boa, aquela
lá é não sei o quê. Acabam orientando, encaminhando dentro do
possível. Mas, se ele vai bater o pé, aí não tem como, né?! Agora,
quando se trata de uma aldeia pequena, então acaba se tornando quase
obrigatório. Não é que nem aqui, país muito grande. Lá são cem casas,
oitenta casas, duzentas casas. Normalmente se casa na aldeia. É
difícil casar entre aldeias. Tem, mas é raro, tem aquela pessoa que
tem ligação com outra cidade, acaba indo lá, acaba conhecendo alguém,
mas o normal é mais nas aldeias, mas, é claro, existe casar em outro
lugar, existe, mas em números reduzidos. Deve dar de 3% a 5%, eu acho
que não passa de 10% (N52m).
Preocupada com o futuro de seus sobrinhos adolescentes e com a percepção de que
é mais fácil a um menino muçulmano relacionar-se com alguém de fora da colônia,
P46f avalia que "os jovens, hoje, têm uma dificuldade imensa de se relacionar
com meninos e meninas muçulmanos. A colônia é grande, mas eles têm dificuldade,
por quê? Porque ainda nós temos algumas raízes, que a menina não pode namorar,
que a menina não pode fazer isso, aquilo". Muitos jovens encaram tais
restrições como muito severas, sobretudo as meninas, que reclamam da iniqüidade
de tratamento em relação a seus irmãos. P46f percebe então que o sistema
incentiva meninos muçulmanos a se relacionar com meninas não-muçulmanas, já que
as regras para um namoro com alguém da colônia são por demais estritas.
No centro das preocupações, como já observado, está o resguardo da pureza
feminina, no limite, a ameaça das relações sexuais pré-conjugais. Um
hadice
10 popular atribuído ao profeta Maomé, e freqüentemente citado, diz que "quando
um homem e uma mulher sentam juntos sozinhos, o terceiro que os acompanha é
Satã". Assim, o problema é o namoro à moda ocidental, sobretudo agora que a
prática do ficar vem ganhando terreno. O namoro, compreendido como uma
oportunidade para que um casal se conheça, pode ser visto como interessante
desde que seja absolutamente tutelado, supervisionado. É nesse sentido que as
atividades centradas nas sociedades beneficentes anexas às mesquitas podem
mitigar as compulsões da juventude, oferecendo uma alternativa de socialização
entre jovens vista como conveniente, sob os olhares zelosos dos pais.
Q28m, que atualmente é noivo de uma moça da colônia, explica que seu pai veio
solteiro, mas já namorava antes sua mãe. "Foi o primeiro namoro dele, ela era
meio prima. Se largasse, era feio pra ele e feio pra ela", sugerindo que só se
pode desistir de um namoro por um motivo muito grave. Questionado sobre a
influência do amor no casamento, Q28m expõe seu ponto de vista: "Amor, não tem
isso de achar uma cara-metade. Tem que ser um processo, uma relação construída.
Assim, não vai ter traição. Como já quer amor se não conhece a futura esposa? O
amor vem depois". De fato, é provável que o amor, no sentido romântico e
ocidental do termo, não faça parte, ao menos inicialmente, das expectativas de
um casamento. Em parte essa circunstância é compensada, fora do casamento,
pelos laços afetivos muito próximos com a família e, para as mulheres, com
amigas do mesmo sexo, com as quais trocam confidências.
Na condição de noivo, Q28m explica como se dá o processo:
[...] a família é que se preocupa em casar o filho. Então ela faz
propaganda para a outra família, a da moça. Ressalta seu caráter,
dignidade, trabalho. Diz que tem intenção séria. Começa a convidar a
família para vir jantar. A outra família retribui. Então aí os
pretendentes trocam pequenos olhares, têm curiosidade [...]. Às
vezes, o não vem dela, se ela não quer, mas, às vezes, vem com o
estudo (análise) dos pais.
Longe estamos, portanto, de apreender o casamento "como uma via privilegiada de
afirmação de uma vida independente, permitindo concretizar estratégias de vida
desvinculadas da família de origem", conforme observou Oliveira (1985:114) ao
analisar famílias de trabalhadores camponeses no interior paulista. Ao
contrário, o conhecimento e a avaliação da família do cônjuge, de sua condição
econômica e social, pela família, são pontos fundamentais na consideração dos
casamentos. Sendo o casamento tão importante, cabe à família tomar a iniciativa
para tratar de assunto tão crucial.
Em alguma medida, isso explica as proporções relativamente altas de casamentos
entre primos de primeiro e segundo graus, historicamente observáveis, tanto na
comunidade muçulmana quanto anteriormente na cristã. O fenômeno ocorre também
na própria terra de origem, bem como em outros países que receberam imigrantes
árabes. Já que, para casar, a família deve proceder a uma avaliação a respeito
de como a outra educou o pretendente, eleger um cônjuge no interior da própria
família representa, desse ponto de vista, alguma segurança. Há, portanto, no
horizonte das famílias, conforme observaram Kaufman e Naim, analisando a
trajetória de uma família muçulmana internacionalizada, sempre um estoque de
"sobrinhas, sobrinhos, primas e primos, sobre os quais se trocam informações a
respeito daqueles disponíveis" (1996:176, tradução do autor).
De modo geral, reconhece-se hoje a importância dos estudos, de uma educação
formal, e os muçulmanos orgulham-se de terem abrigado historicamente grandes
civilizações, em territórios sob seus domínios, exercendo inclusive tolerância
religiosa em relação a minorias não-muçulmanas. O próprio profeta Maomé pregava
ser uma obrigação para todo muçulmano e muçulmana procurar o conhecimento
(Hayek, s.d.). Contudo, observa-se que a importância com que a educação formal
é encarada pelas famílias que do Líbano vieram ao Brasil normalmente varia
conforme o gênero da criança. P46f explica que "as mulheres sempre foram mais
restringidas [...]. Não gostava muito que fosse à escola, aprender a ler e a
escrever era o suficiente". Hoje, a comunidade organizou-se e mantém uma escola
islâmica na Vila Carrão, zona leste de São Paulo, que atende crianças
matriculadas desde o jardim de infância até o ensino médio. Essa, porém, é uma
iniciativa relativamente recente e, obviamente, nem toda a comunidade tem seus
filhos nessa escola. É provável também que muitas famílias prefiram matricular
seus filhos em escolas privadas confessionais a matriculá-los em escolas
públicas, buscando garantir certa qualidade de ensino. Q28m lembra que também
estudou em escola católica, em um colégio de padres ao lado da paróquia de
Santo Antônio do Pari, próximo à rua Oriente. Ele conta que suas sobrinhas, que
usam véu, estudam hoje lá. "Tive que falar com o frei para matricular, mas eles
não restringiram".
Refletindo sobre sua trajetória, P46f avalia as tensões a que foi submetida:
"Acho que, como qualquer outra família, nós tivemos, assim, um problema, não um
problema, mas um convívio de aprender a conviver entre a cultura brasileira e a
nossa cultura, que é muito diferente. Então, existe uma rigidez, condutas '
como é que eu vou chamar? ' hábitos que, no dia-a-dia, fincam raízes. E você
não descola delas". Ao longo de seu depoimento, é perceptível uma espécie de
dupla jornada em sua educação: a da escola formal, exterior, não-muçulmana,
importante para obter um diploma capaz de lhe assegurar algum futuro; e a de
sua casa, interior, em que os valores mais tradicionais da comunidade eram
instilados. São dois mundos em tensão e que de alguma forma tiveram de ser
acomodados na trajetória da maioria das famílias. R20m freqüenta hoje tanto o
curso de Administração na Universidade Paulista ' Unip quanto a "universidade
islâmica", onde tem aulas com o xeique. Preocupa-se com a possibilidade de
perder suas raízes e, por causa disso, em 1995, esteve por quinze dias no
Líbano.
L60m tem quatro filhos homens no Brasil, além de mais dois e uma caçula, de 8
anos, no Líbano. Em 1988, mudou-se para o Líbano para melhor educar seus filhos
"na religião". P46f julga que a educação dos filhos muçulmanos hoje está se
tornando cada vez mais difícil: "Hoje, a criança tem outras informações, tem
outra visão, [...] pelo sistema, pelo ambiente que nós estamos vivendo, a
televisão hoje informa as crianças, educa as crianças, de maneira que você não
tinha há trinta, quarenta anos, hoje a criança tem o computador na frente dela,
ela manuseia aquilo lá como se fosse um brinquedo". Mesmo assim, reconhece que
muito se tem avançado, em termos de novas posturas, na comunidade: "A tendência
é se abrir, esse leque já abriu e vai continuar abrindo. Eu vejo que, ao longo
desses anos, esses últimos vinte anos, eu vejo que as famílias se adaptaram
mais à cidade, aos costumes [...]. Houve uma mudança grande, tem muitas coisas,
por exemplo, que a nossa religião não permite e que você vê hoje normalmente,
entendeu? Houve uma adaptação". R20m, ele próprio um jovem universitário de 20
anos, preocupado em cultivar suas origens islâmicas, avalia que, hoje, o maior
desafio para sua geração é o relacionamento sexual. "É uma verdadeira
jihad
11 interna, muito sacrifício. É muito mais fácil fazer o jejum no ramadã. Por
causa disso", conclui, "muitos jovens têm tendência a casar mais cedo. Aí
resolve, mas, por outro lado, perdem a juventude" (R20m). Em casos extremos, é
provável também que os pais imigrantes incentivem um casamento precoce de seus
filhos, quando defrontados com uma cultura que lhes é estranha. Eisenlohr cita
o depoimento de uma jovem entrevistada, referindo-se ao casamento, aos 14 anos
de idade, de sua irmã mais velha:
Quando meus pais vieram à América, conterrâneos árabes começaram a
dizer: Apresse o casamento de sua filha, porque ela vai se tornar
americanizada.Ela vai começar a fumar',mostrando-lhes assim o lado
ruim da cultura americana. Então meus pais acreditaram, porque não
sabiam o que se passava na América. E enviaram-na de volta ao Líbano,
casaram-na e trouxeram-na de volta. Ela não foi mais à escola, não se
educou e tudo o mais, e tornou-se uma dona de casa com quatro filhos"
(1996:258, ênfases no original, tradução do autor).
De modo geral, pode-se assim concluir que um foco de preocupações constante
para muitas famílias muçulmanas, no que diz respeito à educação de seus filhos,
é o de como permitir e regular uma interação com a sociedade inclusiva, não-
islâmica. Muitos avaliam e perseguem um tipo de integração capaz de preservar
uma identidade islâmica para seus filhos, compreendida como a observância de
crenças, práticas e valores na educação destes.
Vivências Religiosas Distintas
A própria vivência prática do islamismo, longe de se apresentar uniforme,
encontra-se sujeita a muitas diferenciações. O reconhecimento desse
subjetivismo como dimensão da religiosidade moderna é instituinte da própria
sociologia da religião. Em trabalho recente sobre as articulações entre
família, reprodução e ethos religioso, Duarte et alii (2006:45) apontaram a
recorrente interação entre três vontades: a divina (decorrente da religião), a
natural (decorrente das leis da natureza) e a humana, subjetiva. Os dados
levantados nos permitem supor que as variações na vivência religiosa entre
muçulmanos árabes em São Paulo normalmente ocorrem segundo diferentes
categorias, associadas a cada indivíduo e sua família, tais como gênero, idade,
nível escolar, origem social, trajetória de vida, tempo de chegada ao Brasil,
densidade dos vínculos com a terra natal etc. Poderíamos ainda acrescentar,
embora aqui não tenhamos espaço para explorar esse outro aspecto, a influência
de diferentes líderes religiosos12.
Tais experiências de religiosidade diferenciadas respaldaram o surgimento do
termo "Islã individualizado", entendido primariamente como um Islã vivido na
esfera privada, um Islã onde o crente decide autonomamente quais elementos da
religião considera ou não obrigatórios (Cesari, 1994):
O termo individualização usado no estudo da religiosidade muçulmana
não é consensual, mas o argumento de Cesari segundo o qual haveria
uma transformação do Islã no Ocidente e um declínio do papel das
instituições religiosas tradicionais sobre as novas gerações dos
muçulmanos converge com os resultados gerais de muitos outros estudos
como os de Frégosi (2004), Khosrokhavar (1997), Martín Munõz et alii
(2003) e Mohsen-Finan (2003), apontados por Peter (2005) em seu
ensaio sobre a individualização do Islã na Europa (Castro, 2007:183).
A constatação da individualização da religiosidade muçulmana é quase uma
unanimidade na pesquisa social européia, ainda que mudanças e intervenções
internas, institucionais à tradição religiosa, obviamente possam ocorrer.
Contudo, ressaltem-se a importância e o impacto do papel do indivíduo na
negociação com a comunidade muçulmana mais ampla, quando sob influência de uma
cultura ocidental e, especificamente, do meio social brasileiro (a rigor,
paulistano). Tal perspectiva de análise se coaduna com a tendência já apontada
por Luckmann (apud Casanova, 1994), ainda que de forma exagerada, de que a
religiosidade tenderia a ser encontrada cada vez mais fora das instituições
religiosas, em um processo denominado privatização da religião. Desde logo,
porém, ressaltem-se o potencial conflito entre essa tendência de privatização
da religião, por um lado, e a religiosidade muçulmana vivida na esfera pública,
por outro13.
Tendo em vista tais considerações e os dados apresentados pela pesquisa, é
fácil constatar que o islamismo, tal qual qualquer outra religião, suscita
diferentes percepções no tocante à observância da religiosidade. O ponto de
ajuste da distância entre a doutrina enunciada e a prática religiosa concreta
vivida varia então segundo condições culturais e sociais. A identidade do grupo
em questão, alicerçada fortemente sobre a religião, aliada à forte cultura
patriarcal e patrilinear, gera constrangimentos decisivos na esfera do
relacionamento dos indivíduos em família. Entre os casos aqui analisados,
podemos mencionar as pressões familiares e da comunidade sobre os indivíduos
para que: a) se casem jovens e constituam família prontamente; b) realizem
casamentos endogâmicos, isto é, no seio da própria comunidade religiosa; c)
gerem uma prole numerosa; d) assumam papéis diferenciados segundo o gênero, que
normalmente implicam assimetrias no tocante a práticas, direitos e obrigações
familiares (namoro fora do grupo, início das atividades sexuais fora do
casamento, responsabilidade para com os pais etc). Além disso, as vivências
religiosas associadas à religião muçulmana variam ainda segundo determinados
atributos individuais: indivíduos com menos idade que freqüentaram escolas não-
muçulmanas, ou que apresentam maior tempo de permanência no Brasil (e poucos
laços familiares com o país de origem), tendem a negociar e a tomar como menos
absolutos os preceitos doutrinários religiosos e, conseqüentemente, a exercitar
de modo diferenciado suas práticas, direitos e deveres familiares.
ETNICIDADES EM TRANSIÇÃO
Focalizando agora sob o prisma étnico, no Brasil, o conceito de etnicidade
aplicado a processos migratórios veio substituir a antiga noção de assimilação,
encarada como um continuum entre um passado de tradições herdadas e um futuro
certo de integração ao novo país. No caso analisado, a cultura original é
transformada e certos valores, ideologias e instituições de caráter étnico
desaparecem ou são reelaborados; porém critérios de distintividade usados para
marcar a identidade étnica persistem, apesar da influência do novo meio social.
Etnicidade é então entendida como construção cultural historicamente
determinada e iterativamente renegociada por solicitações tanto internas ao
próprio grupo quanto externas da sociedade mais ampla (Seyferth, 1988:33,
Truzzi, 1997:229).
Internamente ao grupo, já se exploraram aqui extensamente os conflitos
intergeracionais e entre famílias diferenciadas segundo o tempo de chegada ao
Brasil e a freqüência de contatos com a terra de origem. Restaria também
acrescentar outro elemento de tensão, interno à comunidade, mesmo que não
explorado nas entrevistas, representado pelos brasileiros não-árabes
convertidos ao islamismo. Embora minoritários e, sobretudo, desprovidos de
ascendência étnica que lhes facilite o acesso ao árabe (considerado língua
sagrada para os muçulmanos), tais grupos também disputam, com maior ou menor
intensidade, segundo cada mesquita, a definição da identidade muçulmana local.
Assim, no campo religioso islâmico, os convertidos tendem a ser mais exigentes
no cumprimento da doutrina, reafirmando a todo instante, conforme observou
Castro (2007:226), "sua retidão e rigor na observância dos preceitos islâmicos,
em contraste com os árabes, como forma de angariar maior capital dentro do
campo, uma vez que o capital simbólico ligado à tradição de fundação da
religião não lhes é, nem nunca será acessível".
Do ponto de vista externo, a conformação identitária do grupo é pautada pelas
reações ao que alguns denominam processo de "demonização" do Islã, isto é, à
imagem estereotipada que a sociedade e, especialmente a mídia, alimenta em
relação ao grupo. Essa observação remete à preocupação dos líderes de zelarem
(assim como cada família) pela imagem própria da comunidade junto à sociedade
mais abrangente. É notória a preocupação em desfazer a imagem de extremismo
vulgarmente associada aos muçulmanos, sobretudo após o 11 de Setembro14. N52m
reclama do preconceito com que a grande imprensa trata o grupo: "Para ela, só
existe terrorista muçulmano, nunca um terrorista é qualificado como cristão ou
judeu. Nesses casos, ele é só terrorista. Por quê?". Ele duvida que Osama Bin
Laden fosse capaz de planejar algo tão complexo como os atentados: "Você
acredita que um cara barbudo, que anda de camelo pelo deserto, conseguiria
organizar tanta coisa? É com certeza armação americana, e de Israel".
Outro ponto sensível, conforme já se observou nas entrevistas, diz respeito à
afirmação de que os muçulmanos submetem, oprimem e exploram suas mulheres. O
discurso dominante dos entrevistados é que a religião muçulmana, ao contrário,
confere um papel de destaque às mulheres no ambiente familiar, ao valorizá-las
por seu caráter e virtude, e não por sua beleza e juventude, protegendo-as
assim muito mais que na cultura ocidental, na qual uma monogamia imposta e
hipócrita apenas acoberta traições e exime os homens de suas responsabilidades
no tocante a relacionamentos extraconjugais (Castro, 2007:216).
Conquanto tais preocupações em relação à imagem da comunidade se encontrem
sempre presentes, o Brasil é visto como um país excepcionalmente acolhedor. A
maioria julga ser o preconceito aqui mínimo, "o que existe é má informação". Ao
final, avaliaram também como muito positivo o papel da novela O Clone,da Rede
Globo, ainda que o seu desenrolar tenha sido motivo de tensões por parte da
comunidade:
É lógico que a maior parte das coisas foram passadas na novela com
autorização das sociedades beneficentes de São Paulo e do Rio de
Janeiro [...].Houve algumas coisas sim, que reclamaram [...]. O caso
da castração da mulher, não foi permitido, por quê? Porque isso não é
da religião, isso é da cultura do país. Eles achavam que era da
religião [...]. Então, houve algumas colocações que eram realmente
importantes, não pode confundir coisa de hábitos culturais com a
religião (P46f).
M57f, zelosa em resguardar a imagem da comunidade, complementa: "Houve má
informação com relação aos muçulmanos. Fui ao Rio falar com a Glória Perez.
Falei que estava sendo cobrada pela comunidade. Ela respondeu que na novela
tinha que ter um pouco de pimenta... Mas, "em geral", concede, "a novela foi
positiva para a imagem da comunidade".
Assim, do mesmo modo que as famílias, pode-se afirmar que também as lideranças
do grupo estão submetidas a tensões de mesmo caráter: como preservar a
identidade étnico-religiosa e ao mesmo tempo quebrar distâncias, atenuar
preconceitos e o particularismo nos costumes, aproximar, aparar arestas, enfim,
apresentar a comunidade como integrada à sociedade brasileira? É possível
construir uma escala de lideranças, entre pólos com maior ou menor disposição
de negociar uma imagem favorável perante o restante da sociedade, em detrimento
às vezes da afirmação de valores tradicionais.
Tendo em vista tais elementos, é nesse sentido que Charles Tilly (1990:92) se
referirá à face de Janus do conceito de etnicidade, em constante negociação com
sua capacidade de olhar ao mesmo tempo para as realidades cambiantes tanto
internas ao grupo quanto externas da sociedade inclusiva.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode-se afirmar sem dúvida que há um conjunto significativo de características
comuns, orientadoras das configurações familiares tanto de árabes de origem
cristã quanto de árabes de origem muçulmana em São Paulo. Não obstante, crenças
religiosas distintas, épocas de chegada também distintas, bem como a maior
proximidade religiosa das famílias de origem cristã com o catolicismo dominante
no Brasil, acabaram condicionando um conjunto de especificidades. O que é
possível concluir a respeito de valores e sociabilidades entre muçulmanos em
São Paulo?
Em primeiro lugar, é evidente, a exemplo dos descendentes de árabes de origem
cristã, a centralidade da família. Ela fornece a referência básica para
indivíduos, dificilmente reconhecíveis isoladamente enquanto tais, isto é, fora
de uma família. A família é o elo estruturante tanto da vida econômica ' já que
os negócios são maciçamente familiares ' quanto da vida social da comunidade,
pois as práticas religiosas e as correspondentes atividades exercidas no âmbito
das sociedades beneficentes, anexas às mesquitas, se alicerçam essencialmente
sobre a participação e o engajamento das famílias. É provável que as redes
familiares também atuem no sentido de proteger os indivíduos de trajetórias
acentuadas de descenso social.
Acredita-se ainda que "a paz e a segurança proporcionadas por uma unidade
familiar estável [são] essenciais para o desenvolvimento espiritual de seus
membros" (Hayek, s.d.). Conforme reiterado em inúmeros trabalhos antropológicos
sobre comunidades muçulmanas em diversos países do mundo árabe, o casamento e a
geração de filhos constituem condições essenciais ao próprio reconhecimento
social dos indivíduos na comunidade, ao mesmo tempo em que a própria
realização, tanto da feminilidade quanto da masculinidade, pressupõe o
casamento (Altorki, 1986; Delaney, 1991; Wikan, 1982).
Graças ao particularismo religioso de um grupo imerso em uma sociedade
preponderantemente cristã e também à existência de contingentes imigrados em
épocas relativamente recentes, circunstância que adensa os vínculos sociais,
econômicos e religiosos com a terra de origem, desenvolveu-se em São Paulo uma
sociabilidade própria e endógena ao grupo, marcada pela negociação permanente
de fronteiras entre o secular e o sagrado. Nesse sentido, o islamismo pretende,
e em alguma medida logra, entre seus praticantes, ser não apenas uma religião
mas um "sistema completo de vida" (Hayek, s.d.).
Inevitável é que, dessa negociação permanente, surjam tensões. Talvez mais
agudas para os jovens e para a primeira geração nascida no Brasil, esgarçada
entre o passado e o futuro, tendo que desempenhar papéis pouco conciliáveis nas
esferas do privado e do público. Nesse contexto, os casamentos mistos, ainda
que cada vez mais freqüentes, são encarados como uma ameaça à sobrevivência da
comunidade (sobretudo quando o homem não é muçulmano) ou, no mínimo, como
geradores de turbulências desnecessárias e que devem ser, sempre que possível,
evitadas, pois é no momento do casamento que os pais demandam um compromisso
tangível com as tradições étnico-religiosas.
É evidente também, como se procurou aqui demonstrar, o caráter fortemente
patriarcal e patrilinear dos valores presentes nas famílias muçulmanas,
expresso em múltiplas manifestações: os papéis distintos atribuídos ao homem e
à mulher (em duas palavras, prover e procriar), a preferência por filhos
homens, a instituição do dote, os privilégios masculinos de herança, as
práticas associadas ao resguardo feminino etc. Isso não significa menosprezar o
papel muito ativo das mulheres na organização do cotidiano familiar, na
tessitura de relações de vizinhança e entre famílias de mesmo credo, relações
estas sempre vincadas segundo a perspectiva de gênero. Incumbidas de acompanhar
mais de perto a educação dos filhos desde a primeira infância, é provável
também que elas se mostrem mais sensíveis a acolher e a administrar tensões
geracionais, funcionando como intermediárias entre a autoridade paterna e as
demandas filiais.
Por outro lado, tendo agora por contraste a comunidade de origem árabe cristã,
de modo geral mais aculturada à sociedade brasileira, é possível discernir a
maior importância da vivência religiosa ' e tudo o que ela significa em termos
sociais ' para o grupo muçulmano. Pode-se afirmar, a esse respeito, que no
grupo muçulmano a identidade religiosa prevalece sobre a identidade étnica, ao
contrário do que parece ocorrer entre árabes cristãos. De fato, caso a
identidade étnica fosse preponderante para ambos os grupos, o número de
casamentos entre árabes cristãos e árabes muçulmanos supostamente seria muito
maior. Entretanto, o que se observa é que são muito raros, de modo que as duas
comunidades podem ser compreendidas como dois grupos relativamente distintos,
que pouco se misturam. Há interesses comerciais que se concatenam, há um
coincidente antagonismo em relação à política sionista, há muitos traços
culturais em comum, mas que não se traduzem em ligações familiares, graças ao
distanciamento imposto por tradições religiosas distintas e pela herança amarga
de conflitos históricos na terra de origem.
É difícil prever o futuro da comunidade muçulmana em São Paulo, além da certeza
de muitas tensões a serem enfrentadas pelo grupo. De um lado, a recente
(re)destruição do Líbano por Israel tende a incrementar o fluxo de novas
famílias imigrantes ao Brasil, assim como ocorreu quando da guerra civil
libanesa a partir de 1975. Sabemos que as migrações ocorrem, em grande medida,
apoiadas por redes de conterrâneos, e o Brasil (São Paulo em particular) já
abriga uma comunidade expressiva, com vínculos recentes, capaz de abrigar e
acolher novas famílias. Os já estabelecidos, muitos deles parentes e
conterrâneos dos novos imigrantes, fornecem aos primeiros não apenas apoio
psicológico mas também social e econômico, sob a forma de empréstimos, empregos
e moradia, facilitando a inserção dos recém-chegados. O aumento do fluxo de
imigrantes ao Brasil deve ocorrer, sobretudo quando se tem em vista o
recrudescimento da política migratória norte-americana em relação a árabes após
o 11 de Setembro, já que os Estados Unidos sempre representaram uma opção de
destino importante no cenário internacional. Avolumando-se a imigração de
muçulmanos a São Paulo15, a comunidade tende a robustecer-se numérica, social,
econômica e culturalmente.
Por outro lado, a tais fluxos se opõem as preocupações das famílias recém-
imigradas em criar seus filhos em um país não-muçulmano, mais sujeito ao que um
dos entrevistados designou como "lassidão moral do Ocidente". Essa tensão
permanente entre o ficar e o voltar regulou, até o recente conflito bélico, o
movimento de idas e vindas constantes de famílias do grupo à terra de origem.
São notórias as dificuldades de preservação do grupo, quando se pensa nas
gerações mais recentes, nascidas no Brasil. A sociedade brasileira, vista pelas
lideranças (e em boa medida também pelas famílias) como demasiadamente
permissiva, tende a solapar, junto aos mais jovens, os valores próprios, caros
ao grupo, provocando inevitáveis tensões intergeracionais. Elas se expressam de
inúmeras formas, desde as dificuldades de se preservar o uso do árabe no
cotidiano familiar, até complicações crescentes associadas à observância de
preceitos da chari'a, como vestimentas adequadas, jejum, interdição alimentar e
do álcool. Da mesma forma, a presença cada vez maior da mulher no trabalho, a
escolarização crescente dos filhos freqüentando escolas lado a lado com não-
muçulmanos, a crescente erotização da sociedade e a conseqüente ocorrência de
relações pré-conjugais, a maior ocorrência de casamentos mistos, a ruptura do
isolamento propiciada pela TV e pela internet, a adesão a valores mais
individualistas e menos solidários, tudo isso é encarado como pernicioso,
imoral e destrutivo, contribuindo para minar a cultura original do grupo e
exigindo necessariamente adaptações e maleabilidades nem sempre disponíveis à
primeira mão. O desafio é como construir uma solução, no interior das famílias
e da comunidade, que permita manter sua identidade étnico-religiosa,
selecionando, ao mesmo tempo, entre os direitos e deveres associados ao papel
de cada indivíduo, condutas e comportamentos capazes de apontar um futuro para
os mais jovens e um convívio enriquecedor com a sociedade mais ampla.
Muitas contradições tendem assim a aflorar e a exigir negociações tanto de
caráter intergeracional (pois é evidente que os valores patriarcais rígidos
serão cada vez mais questionados pelas novas gerações) quanto entre levas de
imigrantes mais antigas, já adaptadas ao Brasil, e levas mais recentes, que
trazem consigo uma cultura mais ortodoxa. Por causa da imigração mais próxima,
clivagens entre aculturados e recém-chegados fazem muitas vezes mais sentido do
que entre diferentes estratos sociais no interior da comunidade16.
De um ponto de vista sociológico, mais do que afirmações conclusivas, o
importante é reconhecer que os traços culturais do grupo estão sujeitos a muda
nças, adaptações e releituras, fruto da interação do grupo com a sociedade mais
ampla, provocadora de reinterpretações das próprias tradições étnico-
religiosas. Assim, etnicidade e religiosidade tendem a reconfigurar-se
continuamente à medida que o grupo cresce (inclusive com convertidos) e se
reproduz na sociedade paulista, reage aos estereótipos que lhe são imputados e
interage com essa mesma sociedade de modo mais denso, através das novas
gerações nascidas em São Paulo, transformando assim sua própria identidade. De
qualquer modo, diferentes parcelas da comunidade deverão conviver, não sem
conflitos, em esferas religiosas, sociais e econômicas comuns, abrindo margem
para compromissos variados entre a tradição e a contemporaneidade.
NOTAS
1. Nesse país, estima-se que os muçulmanos perfaçam um contingente de 5 milhões
de indivíduos, enquanto a população muçulmana do planeta é avaliada em mais de
1 bilhão de fiéis, 18% dos quais habitando o mundo árabe. A Indonésia é o país
que abriga o maior contingente.
2. Mary Sengstock (1996:293, tradução do autor) reporta uma situação
semelhante: "Essa comunidade apresenta uma característica extremamente social.
Todos se preocupam com as atividades do outro e esperam ser envolvidos nelas.
Mesmo realizar entrevistas com fins de pesquisa na comunidade raramente se
constitui como uma atividade individual. Visitas são quase constantes, de modo
que o entrevistador quase nunca surpreende o entrevistado sozinho. Nos poucos
momentos em que se encontra só, este raramente permanece nessa condição. Os
vizinhos notam a presença de alguém novo e aparecem para ver o que está
acontecendo". Na maioria dos casos, reporta ainda essa autora, os intrusos
acabam também participando da entrevista.
3. A palavra zakatsignifica tanto purificação quanto crescimento. Segundo Hayek
(s.d.): "Nossas posses são purificadas com a separação de uma parte delas para
os necessitados e, a exemplo da poda das plantas, o corte equilibra e estimula
novos crescimentos. Cada muçulmano calcula individualmente o seu próprio
zakat.Na maioria dos casos, isso envolve o pagamento de dois e meio por cento
do capital da pessoa".
4. Declaração de fé que afirma não haver outra divindade além de Deus e ser
Maomé seu mensageiro.
5. Refere-se às orações obrigatórias (em árabe, contendo versículos do
Alcorão), praticadas cinco vezes ao dia (na alvorada, ao meio-dia, no meio da
tarde, no crepúsculo e à noite) pelos muçulmanos. Apesar da preferência por
praticá-las coletivamente, em uma mesquita, o fiel pode orar em qualquer lugar.
6. "Além de o jejum ser muito benéfico para a saúde, é considerado um método de
purificação pessoal. Ao privar-se dos confortos mundanos, mesmo por um período
curto, o jejuador adquire verdadeira simpatia por aqueles que sofrem fome e ao
mesmo tempo desenvolve a sua vida espiritual" (Hayek, s.d.).
7. Devem, por exemplo, antes das orações (salat), lavar a face, os braços e
pernas até a altura dos joelhos.
8. A doutrina islâmica condena a ingestão de álcool ou de "qualquer espécie de
inebriantes que causem dependência", bem como de carne de porco e de produtos
feitos com sangue. As carnes devem ser preparadas segundo método específico
capaz de eliminá-lo. "O Profeta Maomé ensinou que seu corpo tem direito sobre
você', e o consumo de comidas saudáveis e o levar um estilo de vida saudável
são vistos como obrigações religiosas" (Hayek, s.d.).
9. Kulwicki (1996:191) constata, por exemplo, haver resistências entre homens
da comunidade em aceitar assistência social pública nos Estados Unidos, porque
esta é percebida como um traço negativo à condição de provedores econômicos.
10. Narração fidedigna do que o profeta Maomé disse, fez ou aprovou.
11. O termo jihadsignifica, literalmente, esforço e é utilizado normalmente em
dois sentidos distintos: o de guerra santa, mais explorado pela imprensa quando
se refere aos conflitos no Oriente Médio, e o de uma luta interior que cada um
trava contra os desejos egoísticos para conseguir a paz interior.
12. Líderes mais ou menos conservadores influenciam as práticas religiosas
efetivamente seguidas e, por decorrência, interferem na percepção de práticas,
direitos e obrigações familiares dos fiéis. No Brasil, comunidades sunitas
apresentam vínculos maiores com a Arábia Saudita, enquanto comunidades xiitas
se relacionam primordialmente com o Irã. Tais vínculos podem significar tanto a
importação de lideranças religiosas financiadas por esses países quanto a
própria formação de lideranças brasileiras nesses países (Castro, 2007:218).
13. É nesse sentido, por exemplo, que o uso público do véu pelas mulheres
muçulmanas incomoda os não-muçulmanos (consultar Castro, 2007:229).
14. Tal preocupação se mostra transparente, por exemplo, na brochura que
apresenta o Islã e os muçulmanos a interessados (vide Hayek, s.d.).
15. Ainda é significativa a presença de muçulmanos em algumas regiões do sul do
Brasil, como em Foz do Iguaçu, no Paraná, na área da chamada Tríplice
Fronteira. Nessa região, observa-se uma presença significativa de xiitas,
originários do sul do Líbano, motivada também pela fuga de conflitos na terra
natal.
16. Certamente fazem muito mais sentido no caso de árabes muçulmanos do que
entre árabes cristãos.