Crime e estratégias de policiamento em espaços urbanos
INTRODUÇÃO
A agenda de prioridades brasileira para a segurança pública, nos últimos anos,
tem circulado em torno da confluência de três grandes temas: 1) criminalidade
urbana violenta, em todas as implicações em termos de desagregação e desordem
social; 2) espaço urbano, em seus aspectos de exclusão, marginalidade e
desorganização; 3) polícia, protagonista de múltiplas crises e provavelmente um
dos atores mais freqüentes em todas as áreas do espaço urbano.
As cifras relativas à criminalidade e à violência nos grandes centros urbanos
apontam para a emergência de crimes predatórios. Não obstante o fenômeno do
"crime organizado", o que parece estar ocorrendo é o crescimento do crime
desorganizado, manifesto nas mais variadas expressões da violência urbana. Esse
fenômeno é o pano de fundo da concentração dos crimes violentos nas grandes
regiões metropolitanas do país: apenas as regiões metropolitanas de São Paulo e
do Rio de Janeiro concentram 40% dos homicídios no Brasil, embora tenham 18% da
população (IBGE, 2004; DataSus, 2007). Inseparável desse fenômeno está o
contexto urbano no qual os crimes ocorrem e que, em boa medida, é responsável
por esse crescimento. Cerca de 20% das mortes violentas acontecem em menos de
2% da área geográfica dos centros urbanos (Crisp, 2000). Nesse sentido, a
violência tem se tornado um dos principais obstáculos ao planejamento e ao
desenvolvimento dos grandes centros.
A moderna literatura criminológica destaca fatores da ecologia urbana como um
dos elementos relacionados à distribuição espacial de determinados tipos de
crime. Em geral, sua distribuição no espaço urbano obedece à Zipf Law, em que
poucas regiões concentram grande número de crimes. Em Belo Horizonte, por
exemplo, apenas cerca de oito dos mais de 2.500 setores censitários que dividem
a cidade respondem por mais de 10% dos crimes violentos que ocorrem ali. O que
está relacionado a esses hot spots? Quais são os determinantes para a
ocorrência desses focos de criminalidade (Beato F. et alii, 2005)?
Finalmente, hoje predomina um consenso de que quaisquer que sejam os
determinantes socioeconômicos e ambientais, a polícia tem um papel central na
prevenção e no controle desses locais. Demandas sucessivas por reformas das
polícias que implicam intervenções de ordem constitucional, bem como
modernização gerencial, têm surgido nos últimos anos. O núcleo dessas
discussões se subdivide em dois argumentos. De um lado tem-se uma questão de
princípios acerca do papel da polícia nas sociedades democráticas que se traduz
na fórmula sucinta: "Não existe democracia sem uma polícia democrática". O
segundo argumento não é enunciado claramente, mas será explorado neste artigo:
qual é o impacto da polícia no controle da violência nos centros urbanos
brasileiros? A polícia é ator estratégico nas paisagens urbanas, e poucas
agências públicas têm penetração tão constante nos mais diversos ambientes de
uma cidade, mantendo contato freqüente com seus habitantes em variados
estratos.
Cada vez mais as sociedades democráticas demandam organizações policiais
transparentes, controladas e eficientes. Nesse sentido, a literatura tem
apontado para a importância da adoção de estratégias proativas de prevenção e
de controle da criminalidade em sociedades democráticas (Goldstein, 1990), em
que a gestão de informações que permite alocação focalizada e pontual parece
exercer significativo impacto sobre as taxas de criminalidade (Sherman, Gartin
e Buerger, 1989; Beato F., 2004a; Beato F., Viegas e Peixoto, 2004).
As imbricações entre polícia, crime e espaço urbano constituirão o cerne da
discussão empreendida neste artigo. Busca-se explorar aqui interconexões entre
fatores relacionados a essas três dimensões. A pesquisa de hipóteses sobre como
esses fatores se relacionam, bem como a maneira como interagem, parece crucial
no atual cenário das políticas públicas na área de segurança nos grandes
centros urbanos brasileiros.
CRIMINALIDADE E VIOLÊNCIA EM ESPAÇOS URBANOS
Em sua concepção clássica, as cidades foram criadas justamente para a segurança
de seus habitantes, que encontraram ali um espaço de proteção e de liberdade
fora dos laços do sistema feudal. O desenvolvimento da cidadania, da
racionalidade econômica, de um sistema de leis universalistas e de novas formas
de associação entre indivíduos se deu com o crescimento das cidades (Weber,
1978; Durkheim, 1978). Contudo, modernamente, o desenvolvimento dos grandes
centros urbanos tornou-se sinônimo de medo e de crime, restringindo de diversas
formas a liberdade de seus habitantes e erodindo a sensação de segurança
(Davis, 1998). Alguns autores acreditam que cidades não são responsáveis pelos
crimes que ocorrem em seu interior, mas apenas palco de relações sociais,
estas, sim, responsáveis pela violência (Freitag, 2002). Trata-se de um
argumento que negligencia as diversas formas pelas quais essas relações se dão
no contexto urbano e as influências ambientais sobre diversos tipos de
violência que ali se manifestam. A conformação urbana é o elemento central na
desorganização social de comunidades e lugares (Shaw e McKay, 1942), na
estrutura de oportunidades para a ocorrência de delitos (Cohen e Felson, 1979)
e no mercado habitacional formal e informal como fator incentivador de diversas
formas de crime violento e capacidade de auto-regulação (Bottoms e Wiles,
1997). O exame das taxas de crime agregadas em áreas geográficas tem procurado
explicar a variação das taxas de crime violento entre várias cidades, áreas
metropolitanas, estados ou países (Bailey, 1984; Blau e Blau, 1982; Land,
McCall e Cohen, 1990; Schuerman e Kobrin, 1986; Fajnzylber, Lederman e Loayza,
1998). Os resultados têm mostrado que variáveis como índice de desigualdade
econômica, estrutura populacional, englobando total da população e densidade
populacional, e índice de desemprego estão associadas significativamente aos
homicídios (Beato F. e Reis, 1999).
Em contraste com essas abordagens que usam variáveis socioeconômicas e
individuais agregadas, a compreensão de fatores relacionados ao espaço urbano
tem se desenvolvido em virtude do avanço de novas técnicas de análise espacial
e da capacidade computacional de análise de grandes bancos de dados. Isso tem
permitido a busca de explicações no interior do espaço urbano em um nível de
detalhe que não era possível anteriormente. Mais recentemente, em uma retomada
da tradição da Escola de Chicago, a dinâmica contextual das comunidades urbanas
passa a ser o foco das análises para a compreensão da criminalidade e da
violência (Sampson, 2002; Abott, 1997; Beato F., 2001; Beato F. et alii, 1999;
Johnson et alii, 1990). A retomada dessa tradição se dá diante da constatação
da concentração ecológica de recursos socioeconômicos e de mecanismos de
segregação espacial e de concentração de crimes.
Esse modelo ecológico de geração do crime busca a compreensão da natureza
multifacetada da violência e a identificação dos fatores que influenciam o
comportamento do indivíduo aumentando o risco de que ele cometa violência ou de
que seja vítima dela. A análise ecológica das distribuições dos delitos
criminais em centros urbanos nos conduz a questões de natureza prática e
teórica. A questão é: por que alguns bairros e localidades de uma cidade têm
altas taxas de criminalidade? Muitas pessoas gostam de se referir ao fenômeno
da explosão da criminalidade em grandes centros urbanos. Mais correto seria
falar de implosão, pois ocorre em áreas específicas, no interior das
comunidades, onde vítimas e agressores são originários do mesmo espaço e nele
coabitam.
Teoricamente, a literatura que lida com a hipótese da desorganização social
debita essa maior incidência às características socioeconômicas das
comunidades, bairros e vizinhanças (Shaw e McKay, 1942; Park e Burgess, 1924;
Bursik Jr., 1986) ou à "eficácia coletiva" no controle do comportamento de seus
habitantes (Sampson, Raudenbush e Earls, 1997). Na realidade, esse mecanismo de
causação não se dá de forma direta, mas resulta do fato de que áreas com maior
privação relativa e absoluta provocam incrementos de mobilidade e de
heterogeneidade populacional, conduzindo assim a um enfraquecimento dos laços
tradicionais de controle social e, conseqüentemente, a um maior número de
crimes. Contudo, evidências empíricas mostram que existem lugares em uma cidade
com uma alta incidência de delitos cuja explicação não se dá apenas pelas
características agregadas de suas populações. Existe algo a mais, relacionado
às características ambientais, que pode estar favorecendo essa incidência de
atividades criminosas. O efeito das vizinhanças (neighborhoods) e locais vão
além das características tradicionais relativas à concentração da pobreza para
se debruçar sobre aspectos tais como mecanismos institucionais e processos
interacionais entre as pessoas. Laços sociais, confiança, recursos
institucionais, desordem e atividades rotineiras passam a ser destacados como
dimensões explicativas da concentração da violência e da criminalidade
(Sampson, Morenoff e Gannon-Rowley, 2002).
Como decorrência desse enfoque, e em contraposição às abordagens que lidam
apenas com as características individuais ou de grupos sociais, desenvolveram-
se estratégias de análise para lidar com a distribuição espacial de crimes, bem
como com contextos de oportunidade para a ação criminosa (Cohen e Felson,
1979). São as características da comunidade e dos espaços urbanos em que os
crimes ocorrem que devem ser examinadas. Existe uma produção acadêmica que
chama a atenção para o fato de que algumas comunidades mantêm altas taxas de
criminalidade apesar de mudanças substantivas nas características sociais e
culturais de seus residentes (Shaw e McKay, 1942; Reiss Jr. e Bordua, 1966).
Note-se que não se está negando a importância dos fatores de background
socioeconômico como elementos que podem predispor alguns indivíduos ao crime. O
que ocorre é que eles se tornam apenas um dos elementos na definição do
contexto da atividade criminosa. Os outros têm a ver com a disponibilidade de
alvos para a ação criminosa, a ausência de mecanismos de controle e de
vigilância, e mecanismos de ordem institucional e interativa (Cohen e Felson,
1979). A estratégia dominante privilegiou a análise sociodemográfica e as
características sociais de grupos de indivíduos nas cidades, com especial
atenção à concentração da pobreza (Wilson, 1987). A comparação entre
comunidades de diferentes estratos pode fornecer pistas acerca dos mecanismos e
recursos acionados para o controle sobre espaços geográficos e lugares.
Exercícios românticos acerca da "cultura cívica" ou do "capital social" são de
pouca valia se as condições pelas quais a coesão social das comunidades se
traduz efetivamente em controle social do local não forem explicitadas (Pate et
alii, 1985; Sampson, 2002). Paradoxalmente, nem sempre essa coesão se traduz em
mecanismos de controle e na mobilização de recursos em favor da comunidade
(Wilson, 1987). Comunidades pobres podem desenvolver mecanismos de interação na
vizinhança que não se traduzem necessariamente em eficácia coletiva e
conseqüente redução da criminalidade (Zaluar, 1984; Zilli, 2004; Silva, 2004).
Da mesma maneira que fatores ambientais atuam de modo regulatório sobre a
incidência espacial dos crimes, o papel da polícia como um ator estratégico no
cenário urbano não pode ser ignorado. Isso porque o controle da violência nos
espaços urbanos deteriorados dependerá em grande medida das formas pelas quais
se dá a atuação da polícia nesses locais.
A próxima seção tratará especificamente do papel da instituição policial no
controle da criminalidade, que, embora não sendo exclusividade das polícias,
consideramos um dos recursos institucionais de regulação das relações sociais
no espaço urbano. As formas pelas quais se dá essa atuação são cruciais para a
compreensão de mecanismos que possam auxiliar políticas públicas voltadas para
a redução da violência, sobretudo em espaços urbanos deteriorados. Ciente de
que o controle da criminalidade não esteja no âmbito exclusivo das polícias,
assumimos que a adoção de estratégias e de técnicas proativas e preventivas de
policiamento pode exercer um impacto significativo na redução da criminalidade
urbana.
O PROBLEMA DAS POLÍCIAS NO BRASIL
Um dos atores onipresentes nos mais diversos espaços urbanos é a polícia. O
grau de capilaridade dessas organizações e a natureza de grande parte de suas
atividades levaram-nas a ser definidas como o "serviço social secreto da
sociedade" (Muir, 1977). A despeito dos sentimentos ambíguos suscitados pela
polícia junto às comunidades pobres, poucas agências públicas têm sido tão
demandadas pela população dessas áreas, constituindo-se em serviço público de
primeira necessidade. A deterioração acarretada pela implosão da violência
nesses locais tem levado essas comunidades a um sentimento de desamparo e de
desalento que, associado à precariedade de outros serviços públicos, acaba
potencializando o ambiente de desorganização social.
Nesse sentido, surge uma questão crucial para a sociedade: qual é o impacto da
polícia sobre as taxas de criminalidade? A polícia pode funcionar como um
recurso institucional para as comunidades urbanas resgatarem sua capacidade de
autocontrole? Regiões degradadas pela violência podem ser recuperadas pelas
agências públicas de controle social? Não se trata apenas de aumentar o efetivo
policial nessas regiões ou o orçamento gasto com a polícia. Por questões
óbvias, o número de policiais não nos diz o que eles estão fazendo nas ruas, da
mesma maneira que o incremento no orçamento não significa que estejam
adequadamente alocados (Blumstein, Cohen e Nagin, 1978).
Nos Estados Unidos, durante os anos 1970 e 1980, a preocupação consistia em
avaliar estilos específicos de policiamento. Uma hipótese era que departamentos
de polícia que adotavam estilos mais legalistas tendiam a desenvolver
estratégias mais agressivas de policiamento e teriam maior impacto nas taxas de
criminalidade (Wilson, 1968; Wilson e Boland, 1982). Isso se daria de forma
indireta pelo incremento na probabilidade de prisões por meio de blitze e
operações de busca e apreensão. A conseqüência mais importante, entretanto,
estava na mensagem enviada pela polícia modificando a percepção acerca das
chances de prisão mediante o aumento do custo de se cometerem crimes. Essa
forma de comunicação direta minimizava a percepção de desordem e contribuía,
portanto, para o incremento dos mecanismos de controle social, em uma
antecipação do que viria a ser utilizado posteriormente em Nova York. De fato,
avaliações posteriores confirmaram a eficiência do trabalho proativo pela
polícia (Sampson e Cohen, 1988).
De qualquer modo, a experiência norte-americana mostrou como a gestão das
atividades policiais poderia ser um componente importante na regulação da vida
social e, conseqüentemente, no controle da criminalidade (Wilson e Kelling,
1982). Posteriormente, esse componente específico de definição e solução de
problemas foi isolado, dando origem a um novo paradigma de policiamento
(Goldstein, 1990). No Brasil, apenas recentemente o debate acerca de melhores
formas de gestão tem sido incorporado na agenda de reformas possíveis no âmbito
das polícias (Beato F., 2001).
Os limites desse impacto ainda não são claros. De um lado alguns autores
acreditam que não há muito que ser feito pela polícia em relação ao controle da
criminalidade, na medida em que os determinantes fundamentais não estão no
âmbito de sua atuação. Segundo alguns autores, utilizar a polícia para resolver
o problema do crime seria como lançar mão de "band-Aid para curar câncer"
(Bayley, 1994). Os determinantes mais importantes para a prevenção estão sob a
responsabilidade de outras agências e tipos de programa. De outro lado o
paradigma da polícia de Nova York, em relação aos crimes de qualidade de vida,
conferiu grande importância às estratégias gerenciais desenvolvidas pela
polícia (Kelling e Coles, 1996; Bratton, 1998). Existe uma grande margem de
atividades que pode ser desenvolvida pela própria polícia, desde que
adequadamente respaldada por informações e formas de gestão mediante
resultados.
Portanto, a principal hipótese a ser desenvolvida neste artigo é que, na
América Latina, a despeito da enorme magnitude de problemas sociais, a polícia
tem um papel central no estabelecimento de políticas preventivas e proativas de
controle da atividade criminal predatória nos centros urbanos. Uma política de
segurança pública deve lidar, a par das estratégias de desenvolvimento
socioeconômicas de âmbito local e focalizado, com mecanismos que incrementem a
eficiência e o controle da polícia. É a esse somatório de ações em várias
frentes, começando pelo desenvolvimento social até uma gestão do trabalho
policial, que se denominará gestão comunitária de problemas de segurança.
Trata-se de atividade policial que leve em conta a diversidade dos espaços
urbanos para o planejamento de ações, bem como o estabelecimento de metas,
conforme veremos a seguir.
GESTÃO COMUNITÁRIA DE PROBLEMAS DE SEGURANÇA PÚBLICA
Apesar do enorme apelo público por mais controle da criminalidade por
intermédio da polícia, não está muito claro qual é a parcela exata que lhe cabe
nessa tarefa. A complexidade dos fenômenos com os quais a polícia tem de lidar,
bem como a diversidade de contextos urbanos nos quais atua, tem reiterado o
descrédito reinante em relação às formas convencionais de atuação policial.
Recentemente, cada vez mais vêm se destacando as abordagens que buscam fazer
reengenharias institucionais para desenvolver uma gestão por resultados mais
consistentes com a atividade policial (Bratton, 1998). Nessa perspectiva, o
tratamento da informação e o conhecimento teórico passam a ocupar um papel
central nas atividades policiais, que, ao lado de estratégias de envolvimento
comunitário e de articulação com outras agências públicas, terminam por
delinear o que denominamos aqui gestão comunitária de problemas de segurança
pública.
De acordo com essa ótica, informação torna-se o insumo básico para o
desenvolvimento estratégico, dados a diversidade e o caráter multifacetado dos
espaços de atuação policial. Daí a necessidade de desenvolver modernos sistemas
de gestão das atividades de segurança pública, com a utilização intensiva de
informações para fins de planejamento e desenvolvimento de estratégias, além de
elaborar planos para monitoramento e avaliação de resultados. Isso envolve
aspectos tecnológicos para a organização de diversos níveis da atividade
policial e judiciária, com distintas concepções a respeito do armazenamento e
do manejo de dados. A tecnologia da informação, para fins de segurança pública,
é terreno amplo que se multiplica nas inúmeras aplicações nos âmbitos da
investigação, das evidências científicas ou no monitoramento e na vigilância
para atividades de inteligência (Manning, 1988; 1992; Skolnick, 1966; Reiss Jr.
e Bordua, 1966).
Em adição, o envolvimento comunitário e de outros atores que lidam com o
problema da segurança pública é componente essencial nesse tipo de gestão, pois
ela deve ser feita em rede e em parceria com essas outras agências (Goldstein,
1990). Em tempos de crise de legitimidade e interação rarefeita com o público,
essas parcerias exigem certa reengenharia na formação e no planejamento das
atividades policiais. As razões para o desenvolvimento desse tipo de estratégia
serão discutidas mais detalhadamente a seguir.
Estratégias Tradicionais de Policiamento
No caso brasileiro, essa mudança de paradigma implica obstáculos a serem
ultrapassados. O primeiro tem a ver com a ausência de uma cultura de
planejamento e gerenciamento de problemas de segurança pública, tornando os
desafios nessa área equivalentes aos de controlar catástrofes naturais nas
quais pouco da intervenção humana faz diferença. A ausência de uma cultura mais
arraigada de planejamento tem muito a ver com uma crença que termina
corroborada pela escassa formação em projetos sociais de controle e de
prevenção da criminalidade ou em políticas públicas de segurança. Do ponto de
vista estritamente policial, a crença é de que é possível gerenciar recursos
humanos e materiais, mas não o resultado desse processo. Assim, são utilizados
velhas técnicas de organização e métodos que possibilitam uma administração
interna de quartéis e delegacias, mas jamais de resultados em relação a crimes.
Uma das traduções desse tradicionalismo gerencial nas organizações policiais é
amplamente conhecida na literatura como "abordagem por incidentes". O professor
Goldstein (1990) vê isso como um dos entraves para uma abordagem por resultados
nas polícias, pois trata cada evento isoladamente, sem compreendê-lo em uma
estrutura de causalidade mais ampla. Sistemas de informação e gerenciamento de
viaturas que orientam os atendimentos das ocorrências policiais não estão aptos
a relacionar eventos que obedeçam a padrões temporais ou espaciais.
Conseqüentemente, o serviço é desarticulado e com pouca inteligência em termos
de relacionamento e identificação de padrões.
A ausência de esforço na compreensão de padrões e na análise de casos contribui
largamente para a ineficácia e a inércia das organizações de segurança pública
e para o conseqüente desalento entre os operadores do sistema. A abordagem
"orientada por incidentes" significa basicamente que o acionamento da polícia
se dá mediante as chamadas feitas ao teleatendimento emergencial (190) por
cidadãos, outras instituições governamentais ou, em menor número, pela própria
iniciativa da polícia. O procedimento adotado pelos policiais nesses casos é
exatamente o mesmo: tomam nota dos incidentes por meio dos boletins de
ocorrência, comunicam-se com a central de operações sobre o que fazer,
encaminham-nos aos canais competentes, encerram o incidente e vão embora. A
ineficiência nesse estilo de patrulhamento tem a ver com o fato de ele ser
alocado de acordo com uma lógica reativa, e não com a dinâmica espacial e
temporal dos delitos criminais, de forma preventiva, compreendendo a causa que
dá origem a inúmeros incidentes. Recursos são alocados em resposta ao número de
eventos já ocorridos nas áreas de policiamento. Uma análise mais detalhada a
respeito da incidência de delitos mostraria facilmente como existem dinâmicas
distintas para cada tipo de ocorrência, com características-padrão que podem
ser identificadas. Os delitos não ocorrem aleatoriamente ou de forma difusa
pela cidade.
A Experiência de uma "Polícia de Resultados" e o Controle da Criminalidade em
Espaços Urbanos
A Polícia Militar de Minas Gerais - PMMG é uma organização de tradição e de
grande prestígio junto às polícias brasileiras. É referência e pioneira na
abertura institucional em relação aos centros acadêmicos e às entidades civis
em atividades de formação desde os anos 1980. Essa abertura deu origem a uma
geração de oficiais que tornaram possível a introdução de inovações e de
experiências importantes nas formas de policiamento no Brasil.
No final dos anos 1990, um período de grave deterioração das condições de
segurança pública no estado brasileiro de Minas Gerais, precedido por uma crise
institucional no âmbito das polícias, culminou em uma greve dos policiais e
levou a Polícia Militar a iniciar um profundo processo de introdução de
inovações no campo gerencial e no relacionamento com a população e outras
entidades civis. Parcerias com a sociedade civil e instituições externas
fizeram parte de um conjunto de modificações e inovações introduzidas para
fazer frente a esse contexto de crise. Um dos componentes foi a assinatura de
convênios com universidades, resultando em um processo inédito de parceria no
âmbito operacional das atividades policiais. Iniciou-se uma colaboração entre
uma organização policial e um centro de pesquisas em políticas públicas. O
objetivo era desenvolver tecnologias, análises, bem como incrementar mecanismos
de assessorias, desenvolvimento de programas específicos e avaliações das
atividades policiais. Para a implementação das inovações pretendidas, um dos
componentes principais foi a organização de dados que estivessem disponíveis de
forma rápida para o planejamento operacional por meio de estatísticas e de
mapeamento1. Foi também conferida forte ênfase ao relacionamento da polícia com
a comunidade mediante a criação de conselhos comunitários em 25 regiões da
cidade. Esses conselhos passaram a ser parceiros ativos na busca de soluções
junto à polícia; alguns deles foram capazes de desenvolver parcerias em
projetos específicos muito bem-sucedidos, e outros nem tanto2.
O projeto Polícia de Resultados foi estruturado em torno de alguns eixos
centrais:
a) Descentralização e autonomia de planejamento. A cidade de Belo Horizonte foi
dividida em 25 regiões de policiamento (Companhias de Policiamento Militar),
que passaram a ser de responsabilidade de gerentes de segurança pública, na
figura dos capitães encarregados de cada companhia. Eles eram os encarregados
pelos resultados na área sob sua responsabilidade e, para isso, poderiam adotar
as medidas que julgassem necessárias. Adotando algumas das técnicas de
gerenciamento policial consagradas pela polícia de Nova York, eram realizadas
reuniões periódicas nas quais participavam os oficiais encarregados de cada
unidade, bem como, eventualmente, algumas lideranças das comunidades. Era
solicitado um plano de emprego operacional cuja realização seria objeto de
avaliação posterior por parte dos comandantes. A ênfase na gestão por
resultados, portanto, constitui-se em uma tônica das modificações efetuadas,
podendo inclusive levar a uma troca de comandantes de área quando necessário.
b) Uso intensivo de informações. Um dos componentes principais do projeto foi a
utilização intensiva de informações oriundas das ocorrências registradas pela
PMMG para efeitos de planejamento operacional e desenvolvimento de programas e
projetos de controle da criminalidade. Ao contrário da elaboração de relatórios
insípidos no final do ano, com objetivos de uma prestação burocrática de
contas, buscou-se organizar um centro de análise de crimes que subsidiasse
permanentemente os comandantes com informações e análises.
A organização das informações desdobrou-se em duas etapas: a primeira consistiu
na organização de bases de dados a serem utilizadas de forma georreferenciada,
além do treinamento de analistas de crime. A segunda deveria expandir o
universo de usuários do sistema de estatística e de georreferenciamento,
alcançando o nível dos operadores de rua da polícia, mediante o treinamento de
pessoal para efetuar análises no âmbito das companhias de policiamento.
Para a organização da base de dados que compunha o geoarquivo, foram
utilizados: 1) dados do Centro de Operações Policiais Militares - Copom -
relativos à cidade de Belo Horizonte. Inicialmente alimentado pelo telefone 190
e, posteriormente, sofrendo atualizações fornecidas pelos patrulheiros
encarregados do atendimento da ocorrência3. 2) Dados de geoprocessamento
produzidos pela Empresa de Informática e Informação do município de Belo
Horizonte - Prodabel4, órgão da Prefeitura de Belo Horizonte com uma base de
dados geográfica com mais de cinco milhões de objetos cadastrados. São arquivos
gráficos com representação de informações que vão desde a malha viária até
dados físicos, como hidrografia, arborização e topografia da cidade. Para
efeitos do projeto, foram utilizados inicialmente os dados referentes aos
quarteirões, eixos de ruas, bairros, favelas, áreas verdes, áreas das
companhias de policiamento e batalhões, além de informações georreferenciadas
sobre alvos de delitos, como bancos, supermercados, mercearias, padarias, casas
lotéricas etc5 . 3) Dados do censo de 1991 e da contagem de 1996 para
informações socioeconômicas e demográficas relativas aos setores censitários.
4) Dados fornecidos pelas comunidades por meio dos Conselhos Comunitários de
Segurança Pública.
c) Formação e qualificação de recursos humanos. A fim de implementar e
institucionalizar o projeto, foram treinados, em Análises de Crimes, 23
policiais que ocupavam cargos em diretorias de planejamento e emprego
operacional no âmbito dos batalhões e do Comando de Policiamento da Capital6 -
CPC. As análises preliminares passaram a ser feitas pelo Departamento de
Estatística do CPC, que passou a funcionar, na prática, como uma unidade de
análise de crime. A cada seis meses era entregue aos gerentes de cada uma das
25 subáreas (companhias) de policiamento um diagnóstico estatístico das
ocorrências de crimes violentos indicando os delitos mais comuns em cada uma
das companhias, bem como sua distribuição espacial dentro daquele território. O
diagnóstico estatístico mostrava quais eram os delitos de maior incidência,
bairros em que estavam concentrados, horário, dia da semana e mês. Logo a
seguir, os delitos mais comuns em cada área foram representados pontualmente em
um mapa da região, permitindo a identificação de "eixos" e "manchas" de
criminalidade. Inicialmente essa identificação era feita apenas de forma
visual, por meio de uma técnica rudimentar de utilização de elipses.
Posteriormente foram fornecidas pela universidade diversas outras
possibilidades de análise e identificação de hot spots, que passaram a ser
denominados pela polícia "zonas quentes de criminalidade - ZQC".
Com base nessas informações, os capitães de cada companhia detalhavam um
planejamento de emprego operacional para os meses seguintes, estabelecendo
metas de desempenho a serem alcançadas nesse período. Na realidade, os dados
estatísticos e de mapeamento eram apenas a ferramenta inicial para a
compreensão do que estava ocorrendo nesses locais. Dados de natureza
qualitativa deveriam ser colhidos posteriormente junto aos serviços de
investigação e de inteligência das polícias com informações complementares a
respeito de grupos e pessoas envolvidos com delitos nessas áreas. Além disso,
era muito estimulada a solução em parcerias. Nos casos em que havia problemas
relacionados a assaltos a ônibus ou a táxis, por exemplo, eram feitas
negociações junto aos sindicatos e aos empresários do setor para que soluções
conjuntas fossem buscadas.
d) Parceria e gestão comunitária. Outro componente importante era o destino das
informações, compartilhadas com membros dos conselhos comunitários, que assim
poderiam visualizar mais claramente sua região. Era possível também agregar
informações que não chegavam ao conhecimento do sistema de chamadas da polícia.
Isso se traduziu no aumento da accountability da organização na medida em que
os oficiais tinham de fornecer e explicar as estatísticas à opinião pública por
meio da imprensa e em reuniões e seminários realizados com a sociedade. A
assimilação desse processo de compartilhamento de informações se deu de forma
bastante diferenciada entre diversos conselhos da cidade. Alguns fatores
contribuíram para o maior ou menor grau de sucesso das atividades de
policiamento comunitário, sobretudo em relação às informações utilizadas (Beato
F., 2004b). A qualidade das lideranças comunitárias, bem como a dos oficiais,
era uma variável de impacto e derivava especialmente da necessidade de formação
dos envolvidos no planejamento de policiamento comunitário.
As reuniões de avaliação eram denominadas Encontros de Avaliação e Desempenho
Operacional - EADO e ocorriam em uma sala especialmente preparada para esse
fim, com recursos de multimídia para a apresentação de mapas e tabelas. O
formato foi claramente inspirado no Comparative Statistics - CompStat
desenvolvido pela polícia de Nova York7. O modelo desenvolvido teve de ser
adaptado para a realidade local com importantes diferenças. O objetivo inicial
das reuniões teve um caráter mais didático, tratando de transmitir um processo
de gestão de atividade policial que era uma completa novidade para os padrões
latino-americanos usualmente pouco afeitos a cobranças com base em resultados.
A mudança de comandantes pouco produtivos também não é característica das
polícias militares brasileiras, com desempenho e mecanismos tradicionais de
avaliação que pouco têm a ver com atividades operacionais. Além disso, o
verdadeiro ritual de humilhação pública que caracterizou o CompStat de Nova
York durante certo período não seria bem-visto pela organização.
Fonte de Dados e Metodologia
A fim de verificar o impacto da introdução de uma forma de policiamento voltada
para a gestão da informação e a busca de resultados, este estudo utiliza uma
série mensal de crimes violentos fornecida pela PMMG. O período estudado possui
108 observações e compreende os meses de janeiro de 1995 a dezembro de 2003. Os
dados utilizados são os registros sobre crimes violentos contra a pessoa e
contra o patrimônio: homicídios, roubos, roubos à mão armada e violências
sexuais tentadas e consumadas.
Durante os meses de janeiro de 2001 e outubro de 2002, o CPC da PMMG, após um
período de adaptações, iniciou a experiência de gestão descrita anteriormente.
Nesse período, foram feitas observações das reuniões de avaliação operacional
entre os diversos níveis de comando regional na cidade de Belo Horizonte. Os
Planos de Emprego Operacional das unidades geográficas também foram objeto de
análise. Entrevistas e troca de opiniões com policiais de diversos níveis de
comando também se constituíram em fontes.
Após o mês de outubro de 2002, em virtude de mudanças no comando e de
orientações no interior da organização, as modificações descritas são
abandonadas, ou seja, o período denominado "Polícia de Resultados" perde sua
continuidade. Isso nos deu uma oportunidade única de avaliar os resultados de
um programa introduzido exclusivamente no âmbito policial, em uma espécie de
semi-experimento, permitindo avaliar o impacto da gestão do policiamento
adotada na cidade sobre a tendência de criminalidade verificada nos períodos
anterior e posterior.
Diante dessa realidade, adotou-se uma técnica de análise de séries temporais
com a definição de quebras estruturais para o período em que o programa esteve
vigente - "Polícia de Resultados". Divergências de ordem metodológica marcam o
debate sobre a efetividade da polícia no controle da criminalidade. Existem
estratégias distintas para avaliar esse tipo de intervenção. São estudos
longitudinais que avaliam o efeito tido pelo incremento ou decréscimo do número
de policiais por habitante sobre as taxas de crime ao longo de certo período de
tempo (Loftin e McDowall, 1982) ou análises cross-section comparando diferentes
regiões em sua razão de policiais por habitante e as taxas de criminalidade
(Kelling et alii, 1974). A utilização de indicadores agregados por análises
cross-sections pode dar origem a vieses distintos na análise de resultados.
Trabalhar com taxas agregadas em dado momento oculta o comportamento sobre
parcelas específicas da população (jovens ou pobres, por exemplo). Outro
problema seria a simultaneidade: quando há um incremento de certos tipos de
crime, haverá um maior número de ações em direção a ele, gerando a falsa
interpretação de uma paradoxal correlação positiva entre polícia e crime (Jacob
e Rich, 1980). Isso poderia ser solucionado por meio de análises temporais.
Wilson e Boland (1982) por sua vez, argumentam que estudos longitudinais são
inapropriados em virtude da limitação em isolar quais efeitos se devem a
mudanças político-estruturais. Polícias, ao contrário, tendem a manter certa
estabilidade em termos de atuação ao longo do tempo.
Essa controvérsia passa ao largo da possibilidade de fazer estudos semi-
experimentais como este, em que um período de intervenção é claramente
delimitado. Entretanto, diversos outros estudos sobre o impacto de formas
específicas de policiamento têm sido realizados com o intuito de mensurar o
papel que mudanças na gestão do policiamento teriam sobre os índices de
criminalidade em diversas cidades, como Newark (Sherman, 1983) e San Diego
(Boydstun, 1975).
No caso específico de Belo Horizonte, buscou-se identificar a existência de
mudança na tendência mensal de crimes violentos observada no período em que o
policiamento tradicional assume uma nova característica, bem como se as
alterações feitas na forma de policiamento tiveram impactos significativos nas
estatísticas de crimes violentos. O Gráfico_1 a seguir mostra a evolução mensal
dos crimes violentos, em Belo Horizonte, no período em estudo, janeiro de 1995
a dezembro de 2003.
Nesse gráfico, as duas linhas verticais internas compreendem o período de
intervenção, ou seja, os meses em que se adotou uma nova forma de gestão e de
administração. A primeira questão de pesquisa é saber se a mudança na
trajetória da série mensal de crimes apresentada no gráfico é estatisticamente
significativa para o período de intervenção. Os testes estatísticos mais
conhecidos (testes t, X2 ou F) são baseados na suposição de constância dos
parâmetros do modelo. Nesta análise, os pontos de mudança que intervieram no
comando da polícia são conhecidos: jan./2001 e out./2002. Dessa forma, no caso
de pontos de mudança conhecidos, Chow (1960) propôs um teste para averiguar a
instabilidade dos coeficientes de um modelo de regressão por meio de um teste F
(formulado para mudanças nos parâmetros) conhecido como teste de Chow8.
Foi utilizado o procedimento Autoreg do software SAS System© para executarmos o
teste de Chow na série de crimes violentos observada em Belo Horizonte. Os
resultados desse teste são apresentados na Tabela_1 a seguir:
O teste de Chow confirma que as alterações na forma de policiamento realmente
foram estatisticamente significativas e, portanto, as observações do período
estudado são pontos de quebra. Variáveis indicadoras foram definidas a partir
desses pontos de quebra. Para tanto, o procedimento Reg foi usado para ajustar
uma regressão múltipla incorporando as mudanças. O tempo e os períodos de
quebra estrutural foram utilizados como as covariáveis desse modelo, e os
resultados são apresentados na Tabela_2 a seguir.
Considerando o número de crimes esperados
em determinado tempo i, o modelo final pode ser visualizado a partir da
expressão seguinte:
em que Xi é a variável tempo e D2 e D3 são variáveis binárias, codificadas
como:
D2 e D3 são variáveis indicadoras;
Xi é a variável tempo.
Obs.: Lembrando-se de que <formula/> não faz previsão
para Y, mas sim para E(Y).
Resultados
Na série mensal de ocorrências de crimes violentos na cidade de Belo Horizonte,
consideraram-se três momentos distintos: período 1 (jan./1995 a dez./2000,
período de referência); período 2 (jan./2001 a set./2003, período de
intervenção); período 3 (out./2002 a dez./2003, período de retorno ao
policiamento tradicional executado no período 1). Ao se observar uma tendência
de crescimento das ocorrências quase-lineares, optou-se por estimar um modelo
de regressão linear com variáveis indicadoras para incorporar essas distintas
formas de policiamento em relação ao período de referência fixado no período 1.
Como se pode verificar a partir da Equação I, o modelo foi expresso
significativamente como uma função do tempo (variável X), do período de
retomada do policiamento tradicional (variável D3), da interação entre o
período de intervenção e o tempo (interação D2*X) e da interação entre o
período de retomada do policiamento tradicional e o tempo (interação D3*X).
Nesse caso, três possíveis situações podem ser verificadas: a) como se comporta
o ajuste do modelo no período 1, desconsiderando os momentos subseqüentes (D2 e
D3 iguais a zero); b) qual é o impacto que o programa teve em relação ao
período imediatamente anterior; c) o que ocorreu quando o programa foi
"abandonado", retornando à forma tradicional de policiamento.
O gráfico resultante após o ajuste do modelo é o seguinte:
Conforme a significância dos parâmetros do modelo apresentados na Tabela_2,
podem-se deduzir as seguintes explicações: em um primeiro momento (período 1),
percebe-se que ocorre um incremento de aproximadamente 32 crimes violentos para
cada unidade de tempo. No momento em que ocorre uma alteração da forma de
policiamento (período 2), o número de crimes violentos tende a reduzir, em
média, 3,4 crimes para cada unidade de tempo. Quando se retorna à forma
tradicional de policiamento (período 3), espera-se um aumento de 38 crimes, em
média, para cada unidade de tempo subtraído por uma constante de 3.476 crimes.
Isso equivale a dizer que, em relação à série de crimes, o período em que o
programa de policiamento estava implementado foi aquele em que se verificou
diminuição no número de crimes violentos na cidade de Belo Horizonte. Ao mesmo
tempo, verifica-se que o abandono do programa (período 3) fez com que a
tendência de crescimento se tornasse muito mais acelerada se comparada aos
períodos anteriores (períodos 1 e 2).
Quantos Crimes Foram Evitados pelo Projeto?
Se a afirmação anterior é verdadeira, pode-se então quantificar exatamente a
redução alcançada pelo programa calculando o número de crimes previstos, se não
houvesse nenhuma intervenção, menos o número de crimes efetivamente ocorridos.
A diferença entre os valores previstos pela projeção do modelo ajustado no
período 1 e os valores observados no período 2 nos fornece a dimensão exata do
número de crimes evitados pela introdução do projeto. Procedendo assim, chega-
se a uma cifra da ordem de cerca de 5.675 crimes violentos evitados,
correspondente à área destacada no Gráfico_3.
Adotando o mesmo procedimento, estima-se o número de crimes que poderiam ter
sido evitados posteriormente se o projeto tivesse continuado. Projetando a
tendência estimada e diminuindo o valor previsto pelo valor observado, tem-se
uma impressionante cifra de 11.073 crimes violentos que poderiam ter sido
evitados se o programa tivesse continuado nas mesmas condições em que foi
implementado. Esse é o número estimado a partir da área escura do Gráfico_4.
A discussão desse número, entretanto, não é conclusiva, porque não é possível
isolar esse resultado do contexto político no qual ocorre o abandono do
projeto. No caso brasileiro, esse é um período de campanhas eleitorais para
presidência e, especialmente, para governadores, que são os responsáveis
políticos das polícias. O efeito de ciclos eleitorais sobre a segurança pública
pode caminhar na direção oposta ao que tem sido observado em outros países
(Levitt, 2002). No caso do Brasil, em virtude da politização das polícias, este
pode ser um momento de desestruturação e desagregação das condições de
segurança em vez de controle maior sobre a criminalidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Analisou-se a evolução do número de crimes violentos na cidade de Belo
Horizonte em três períodos. O primeiro se refere a um crescimento vegetativo do
número de crimes de 1995 até dezembro de 2000. Durante esse ano teve início uma
série de transformações a fim de organizar as informações e implementar as
modificações pretendidas. Os efeitos dessa forma de gestão por resultados já se
fazem sentir nos primeiros meses de 2001, quando se inicia um período de
decréscimo e de estabilidade do ritmo de crescimento dos crimes violentos. Tal
estabilidade persiste até o começo do terceiro período, quando há a retomada de
formas tradicionais de policiamento. O resultado é que em pouco mais de oito
meses assistimos a um aumento de até 71% dos crimes violentos. Os homicídios
aumentaram a uma razão de mais de 50% em um ano. Isso levou a uma retomada dos
processos gerenciais anteriormente descritos dentro de uma articulação mais
ampla de organizações e agências envolvidas. Essa segunda fase não foi objeto
de análise, embora os resultados sejam ainda mais positivos e merecedores de
uma análise posterior.
Trata-se de números que merecem uma análise mais cuidadosa. Poderíamos estar
assistindo à concorrência de outros fatores intervenientes associados a essa
mudança da tendência temporal observada. Algumas hipóteses sugeridas pela
literatura para a explicação do crescimento da criminalidade violenta poderiam
ser representadas esquematicamente da seguinte maneira:
Fatores estruturais dizem respeito ao contexto macroeconômico, aumento de
desemprego, modificações na estrutura etária, desigualdade, industrialização
etc. Embora não tenha ocorrido um controle sistemático dessa ordem de fatores,
podemos afirmar que não houve nenhuma alteração significativa dessa magnitude
durante o período. Não foram observados surto extraordinário de
industrialização, desestruturação de laços comunitários eventualmente
existentes ou alguma mudança brusca na estrutura etária. O desemprego manteve-
se nos mesmos patamares. Nada parece indicar que tenha havido um aumento
significativo do consumo ou do comércio de drogas ilegais. As outras
organizações que compõem o sistema de justiça continuaram a funcionar de forma
tão lenta e ineficiente como sempre o fizeram. Prisões continuavam abarrotadas
e sem vagas como sempre. Os locais violentos seguiram mantendo os mesmos
padrões de violência prévia, mesmo que alguns até os tenham diminuído. O grande
fator que sofreu mudanças foi a gestão específica das formas de policiamento
ostensivo, que passou a ser orientada por dados, dentro de uma metodologia de
solução de problemas por meio de informações.
A controvérsia acerca do impacto que formas de policiamento têm sobre as taxas
de criminalidade incorporou, em anos recentes, a importância da reengenharia
gerencial como fator crucial para explicar o efeito da polícia sobre o crime.
Buscamos argumentar nessa direção ressaltando a importância do policiamento
orientado para problemas e guiado por dados e informações. Assim, a importância
da gestão de informações que incorporem elementos ambientais e de contexto
urbano é elemento essencial desse processo gerencial. A descentralização de
planejamento e organização de informações incorpora variáveis ambientais para o
desenvolvimento de soluções e resultados, conduzindo a uma simbiose importante
entre contexto urbano e organização policial. O conceito de "policiamento
orientado por dados" deve incorporar dimensões urbanas para o planejamento e a
alocação de recursos e para a definição de "áreas quentes" (hot spots) a fim de
compartilhar com outros setores da administração pública soluções e estratégias
de resolução de problemas.
Políticas e programas em segurança pública que não levem em conta aspectos de
contexto urbano e se atenham simplesmente às variáveis macroestruturais e
socioeconômicas tendem a criar grande grau de paralisia institucional. Daí a
necessidade de as organizações policiais passarem a atuar de forma articulada
entre si e outros órgãos da administração pública. Estratégias de redução de
oportunidades e de design ambiental requerem a análise de fatores ambientais e
urbanísticos para sua implementação.
Nessa fase da experiência narrada, os resultados alcançados poderiam ter sido
muito mais significativos se houvesse a participação de outros órgãos e
agências. A participação restrita à polícia militar determinou o pouco alcance
dos resultados obtidos, pois os mecanismos gerenciais limitavam-se apenas ao
âmbito do policiamento ostensivo, não alcançando a esfera da polícia judiciária
ou da justiça. Conseqüentemente, os resultados, embora fossem importantes e
significativos, poderiam ter sido muito mais impactantes do que os observados
nesse período.
Para reforçar esse argumento, deve-se adicionar o que ocorre posteriormente ao
estágio de deterioração da experiência inicial. Tão logo se percebe o que
estava ocorrendo, há uma retomada das estratégias de gestão por resultados,
agora em uma perspectiva mais ampla, por meio do projeto Integração da Gestão
de Segurança Pública - Igesp. Ali passam a compor o grupo outras agências e
organizações que compõem o sistema de defesa social, como a Polícia Civil e o
Ministério Público. Essa segunda fase do projeto não foi objeto de análise, mas
tenciona alcançar resultados mais positivos em virtude da introdução de
mecanismos gerenciais de gestão de informação e de alocação de recursos pela
análise dos contextos urbanos dos problemas que ocorrem (Beato F. et alii,
2007).
Dessa forma, buscou-se com este estudo mostrar o que técnicas de gerenciamento
com base em resultados, firmadas no uso sistemático de informações, são capazes
de produzir em termos de controle da criminalidade. As conclusões para policy
makers são óbvias e caminham na direção de se fortalecerem experiências de
policiamento preventivo em vez das ações repressivas tradicionais que têm
caracterizado a atuação policial no Brasil. Mesmo o que é tradicionalmente
concebido como estratégia preventiva - o policiamento ostensivo -, é pouco
eficaz e nada tem a ver com formas proativas de policiamento que lidam com a
solução de problemas. Conceitos como policiamento em áreas quentes, orientados
por problemas e guiados por dados, passam a ser centrais dentro dessa nova
perspectiva de policiamento (Weisburd e Braga, 2006).
Possivelmente o impacto desse modo de gestão do policiamento seja diferenciado
para tipos específicos de criminalidade. Em uma análise complementar, foi
observado um efeito maior sobre os crimes contra o patrimônio. Em parte isso
ocorreu porque muitas das estratégias específicas desenvolvidas eram de redução
de oportunidades. Entretanto, o mesmo tipo de mecanismo pode ser aplicado para
a solução de problemas de outra ordem, tais como o dos homicídios envolvendo
jovens9.
Outro mérito deste artigo é ser a primeira análise sistemática feita na América
Latina sobre o impacto da polícia e de formas de policiamento nas taxas de
criminalidade em contextos urbanos. A abordagem ecológica com a utilização de
informações mapeadas de crimes permitiu um exame detalhado das condições dessa
intervenção e de seu impacto em um grande centro urbano. São possibilidades
bastante alentadoras no desenvolvimento de políticas públicas e promissoras no
âmbito da investigação acadêmica.
NOTAS
1. Um dos projetos centrais foi o MAPA, de Belo Horizonte, que consistiu em uma
parceria do Crisp, da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, com o
Comando de Policiamento da Capital - CPC, da PMMG. Ele foi parte de um programa
mais amplo implementado pelo CPC: o Polícia de Resultados. Esse programa buscou
introduzir novas técnicas de gerenciamento das atividades policiais mediante a
descentralização do planejamento de operações e a introdução de mecanismos de
aferição e controle de resultados.
2. Para uma avaliação do programa de policiamento comunitário em Belo
Horizonte, ver Beato F. (2004b).
3. O software da base de dados foi desenvolvido pela Companhia de Tecnologia da
Informação do Estado de Minas Gerais - Prodemge. Os softwares para a tradução
desses dados para fins de visualização e análise espacial foram inicialmente
desenvolvidos pelo Crisp, da UFMG.
4. Em 1992, a Prodabel propiciou à Prefeitura de Belo Horizonte um dos
primeiros Sistemas de Informações Geográficas de dados municipais.
5. Mais recentemente, uma empresa privada passou a fornecer também bases de
dados de fotos aéreas georreferenciadas de toda a cidade de Belo Horizonte.
6. Esse curso totalizou 60 horas-aula e foi composto por dois módulos: um
relativo ao uso do software MapInfo© para geoprocessamento de eventos
criminosos e outro para o uso de algumas ferramentas de estatística descritiva
de dados criminais. Em outra etapa, o mesmo curso foi dado para cerca de
quarenta policiais oriundos das companhias de policiamento e envolvidos mais
diretamente em atividades de policiamento de ponta. Duas formas de utilização
foram desenvolvidas: geoprocessamento das ocorrências e análise estatística dos
delitos.
7. Alguns policiais da PMMG, patrocinados pela Fundação Ford, foram a Nova York
conhecer essa experiência.
8. Ver nota metodológica em Anexo.
9. Ver Beato F. (2000; 2004c).