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BrBRHUHu0011-52582008000400003

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variedadeBr
ano2008
fonteScielo

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Governança eleitoral: o modelo brasileiro de justiça eleitoral

INTRODUÇÃO Neste trabalho, parte-se do pressuposto de que as regras da competição político-partidária no Brasil foram alteradas significativamente por decisões judiciais. Defende-se que uma interpretação mais criativa sobre as regras do jogo competitivo resulta em uma judicialização da competição política no país.

O pressuposto decorre de algumas decisões do Tribunal Superior Eleitoral - TSE e do Supremo Tribunal Federal - STF que alteraram as práticas vigentes no jogo competitivo. As regras pelas quais se jogava foram alteradas por interpretações judiciais, e não pela via usual, no Parlamento. Exemplos dessas decisões são a obrigatoriedade das coligações eleitorais, a redução do número de vereadores e a fidelidade partidária.

O objetivo aqui não é detalhar a atuação do Judiciário nesses casos nem avaliar os impactos políticos dessas decisões judiciais. Tratamos do modelo de governança eleitoral adotado pelo Brasil, que, segundo é defendido, oferece um ambiente institucional favorável para a judicialização nos moldes em que tem ocorrido.

GOVERNANÇA ELEITORAL: DEFININDO O CONCEITO Os estudos sobre governança eleitoral são recentes na literatura política comparada. A electoral governance ganhou destaque a partir da preocupação com a credibilidade dos resultados eleitorais das democracias nascidas da terceira onda democrática (Huntington, 1994). A preocupação básica nesses novos regimes era garantir que os resultados das urnas fossem justos, transparentes e sobretudo aceitos pelos competidores políticos.

Na literatura norte-americana, após a decisão da Corte Suprema que definiu o resultado das eleições presidenciais de 20001, a forma de administrá-las tornou-se um tema em destaque. Mesmo em se tratando de uma democracia consolidada, a credibilidade dos resultados das eleições foi colocada sob suspeita. Para alguns autores (Mozaffar e Schedler, 2002; Pastor, 2004), grande parte dos questionamentos decorria do modelo de governança eleitoral adotado no país.

Essa recente literatura argumenta que a governança eleitoral - entendida como o conjunto de regras e instituições que organizam a competição político-eleitoral - foi uma variável negligenciada nos estudos sobre transição e consolidação democrática em função de um predomínio do foco nas questões normativas, como os sistemas de governo e as fórmulas eleitorais adotados (Elklit e Reynolds, 2000; Mozaffar e Schedler, 2002).

Para Pastor (1999), a literatura política que se dedica aos estudos dos sistemas eleitorais freqüentemente é conduzida pelos problemas dos "4Ps": politics, parties, polling and the proportional (competição política, partidos, voto e proporcionalidade). O autor ainda lembra que, mesmo em estudos comparados mais amplos sobre o perfil dos regimes democráticos, a questão da governança eleitoral foi negligenciada, como no caso de Lijphart (2003).

Alguns dos poucos pesquisadores que estudaram o tema tiveram suas pesquisas reunidas em um número da International Political Science Review dedicado exclusivamente ao assunto. Em sua introdução, Mozaffar e Schedler (2002:7) definem o conceito de governança eleitoral desta maneira: Governança eleitoral é um abrangente número de atividades que cria e mantém o vasto arcabouço institucional no qual se realizam o voto e a competição eleitoral. Opera em três diferentes níveis: 1) formulação das regras [rule making], aplicação das regras [rule application] e adjudicação das regras [rule adjudication] (tradução do autor).

O rule making seria a escolha e a definição das regras básicas do jogo eleitoral. Nesse nível da governança eleitoral é que são determinados, por exemplo, a fórmula eleitoral, os distritos eleitorais, a magnitude das eleições, as datas em que serão realizadas e outras questões legais que permitam aos concorrentes a segurança de como o jogo será jogado. Aqui também são definidas algumas regras que pouca atenção recebem da literatura política, como as regras da (in)elegibilidade e da organização dos órgãos responsáveis pela administração das eleições.

No rule application, temos a implementação e o gerenciamento do jogo eleitoral; por exemplo, o registro dos partidos, candidatos e eleitores, a distribuição das urnas, os procedimentos a serem adotados no dia das eleições e outras regras que garantam a transparência, a eficiência e a neutralidade na administração do jogo. Podemos dizer que é o nível da administração do jogo eleitoral.

Por fim, pelo rule adjudication temos a administração dos possíveis litígios entre os competidores, o contencioso eleitoral. Ao dirimir e administrar as controvérsias na disputa eleitoral, nesse nível se determinam os procedimentos, executa-se a contagem dos votos e publicam-se os resultados finais da disputa eleitoral.

Esses três diferentes níveis da governança eleitoral geralmente não são atribuições de um órgão apenas. Por exemplo, o rule making está definido quase sempre por normas constitucionais e pelo Código Eleitoral. Boa parte da governança eleitoral, porém, fica sob a responsabilidade de um órgão específico que trata, essencialmente, do rule application e do rule adjudication. Esse órgão é normalmente tratado como Electoral Management Board - EMB, definido aqui simplesmente como Organismo Eleitoral - OE. O esforço dessa recente literatura é criar critérios para avaliar o desenho dos OEs e seu impacto sobre o jogo eleitoral, incorporando-o como uma variável nas análises sobre a consolidação dos regimes democráticos.

Evidentemente que a governança eleitoral não garante boas eleições, isso por causa do complexo conjunto de variáveis sociais, econômicas e políticas que pode afetar o processo, a integridade e os resultados de eleições democráticas. Porém, boas eleições são impossíveis sem uma efetiva governança eleitoral (ibidem:6, tradução do autor).

O argumento dos autores é que, em democracias recentes, a depender do desenho e do perfil dos OEs, pode-se garantir maior ou menor estabilidade do regime. Uma boa governança eleitoral conduzida por um OE adequado pode garantir a credibilidade dos resultados eleitorais, estabilizando e pacificando as disputas pelo poder político (Pastor, 1999; Schedler, 2002; Hartlyn, McCoy e Mustillo, 2008).

Boa parte desses estudos teve a América Latina, o Leste Europeu e a África como foco, muito em razão do histórico de rupturas com as regras eleitorais e pela recente retomada de eleições em muitos desses países. Outros ganharam especial destaque exatamente por provarem a tese de que uma governança eleitoral adequada pode garantir a estabilidade democrática. É o caso de México e Costa Rica. Os dois países reformaram seus modelos de governança eleitoral visando a OEs mais independentes e transparentes, o que gerou, conseqüentemente, credibilidade aos resultados eleitorais (Lehoucq, 2002).

Observadores e instituições internacionais também têm demonstrado interesse sobre governança eleitoral. Um estudo de López-Pintor (2000), financiado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, levantou evidências empíricas em 148 países sobre o perfil de seus OEs. O trabalho detalha o funcionamento desses organismos em alguns países e sugere alguns elementos universais para o bom funcionamento dos OEs.

Outro estudo sobre o perfil dos OEs foi realizado pelo International Institute for Democracy and Electoral Assistance - Idea, uma organização intergovernamental que atua desde 1995 como observadora e centro de estudos de eleições realizadas por todo o mundo, sobretudo daquelas surgidas após o fim da Guerra Fria, com o desmembramento da União Soviética2.

O estudo de López-Pintor (2000) e os estudos do Idea visam definir critérios para a avaliação do perfil institucional dos OEs pelo mundo. Na próxima seção, são trabalhados os critérios desenvolvidos pelo Idea (2007) para traçarmos os diferentes modelos de OEs e, em seguida, compará-los com as peculiaridades do modelo brasileiro.

MODELOS COMPARADOS DE GOVERNANÇA ELEITORAL O estudo publicado pelo Idea (2007) traz uma análise do perfil dos OEs de 214 países; os dados coletados são referentes ao ano de 2006. Assim, é possível que alguns organismos tenham sido reformados, sofrendo alterações em seu perfil desde que o estudo foi publicado. É, porém, uma rica base de dados e, mais importante, uma rara base de dados sobre um tema ainda pouco explorado pela literatura política.

O critério básico para que o Idea incluísse um país em sua base de dados foi simplesmente a existência do organismo eleitoral; não qualquer outro filtro para a inclusão do país na amostra. Isso incluiu desde países pequenos, como São Cristóvão e Santa Lúcia, até países onde notoriamente não democracia, mesmo considerando conceitos minimalistas para defini-la, como Iraque, Cuba e Laos. Por essas razões, utilizamos um critério um pouco mais rigoroso para definir uma nova amostra: consideramos apenas os países independentes e democráticos e, para isso, utilizamos a classificação do Polity IV para os regimes políticos em vigência no mundo.

O primeiro passo foi selecionar, da base de dados do Idea, apenas os países classificados pelo Polity IV; dos 214 países apresentados, restaram 162, isso porque, como dissemos, o estudo incluiu Estados não-independentes e com qualquer dimensão populacional.

Feita essa primeira filtragem, selecionamos apenas os países que foram considerados democráticos pelo Polity IV no ano de 2006, mesmo ano em que o Idea coletou os dados para a classificação dos OEs. Dessa maneira, nossa amostra caiu para 93 países3. Utilizando os critérios do Polity IV, portanto, definimos uma amostra de OEs apenas de países democráticos nos quais a competição político-partidária é, de fato, relevante para a definição do governo em exercício.

O Idea e, antes dele, López-Pintor (2000) definiram alguns critérios comuns para que pudessem levar adiante um estudo comparado de OEs. Segundo eles, uma função comum a todos os OEs é a prerrogativa de administrar, operacionalizar, gerenciar e tomar decisões administrativas e logísticas para a realização das eleições.

Nesse esforço de produzir critérios para o estudo comparado, podemos resumir em dois os principais critérios utilizados para a classificação dos OEs: 1) posição institucional: governamental, independente, duplamente independente ou mista; 2) vínculo institucional: carreira, partidário, especializado ou combinado.

A posição institucional de um OE diz respeito a seu estatuto jurídico, seu posicionamento em relação às outras instituições do Estado. Um OE será governamental quando estiver vinculado ao Poder Executivo, geralmente ao Ministério do Interior ou da Justiça, como é, por exemplo, na Alemanha, na Áustria, nos Estados Unidos, na Itália, no Reino Unido, na Suécia e na Suíça.

Será independente quando não vinculado ao Executivo; por exemplo, Austrália, Canadá, Israel e quase todos os países latino-americanos analisados.

também aqueles duplamente independentes, ou seja, dois organismos eleitorais com prerrogativas próprias e específicas, mas ambos são independentes. A regra comum é que um OE seja o responsável por administrar e executar o processo eleitoral (rule application), e o outro tenha a prerrogativa de decidir sobre o contencioso eleitoral (rule adjudication).

Dessa forma, os diferentes níveis da governança eleitoral seriam realizados por diferentes organismos independentes. Esse é caso dos OEs de Peru, Jamaica, Romênia e Moçambique.

Por fim, será misto quando o modelo de governança eleitoral incluir dois organismos com funções distintas, sendo um deles governamental (com a prerrogativa de monitorar, supervisionar e tomar decisões sobre o processo eleitoral) e o outro independente (basicamente, atua na implementação do processo eleitoral, sendo o responsável por sua logística). Adotam esse modelo Espanha, França, Holanda, Japão, Portugal e Argentina.

O Quadro_2 a seguir resume as características dos diferentes modelos de governança eleitoral de acordo com a posição institucional dos organismos eleitorais.

O vínculo institucional diz respeito, basicamente, às origens e aos requisitos básicos adotados para ser membro de um OE. Será de carreira quando todos os seus membros forem, necessariamente, recrutados dentre os servidores vinculados ao Executivo, ou quando seus membros forem selecionados dentre aqueles que ocupam uma posição de chefia, ou cargo comissionado, no gabinete do Executivo; por exemplo, um ministro da Justiça. Quando o vínculo exigido para o recrutamento dos membros de um OE não estiver na esfera de um órgão do Executivo, seu perfil poderá ser partidário, especializado ou combinado.

Quando os membros do OE mantiverem vínculos com os partidos e somente forem indicados pela existência desse vínculo, será partidário. Os OEs com esse perfil funcionam sob a lógica de que a competição político-partidária é mais bem gerida pelo consenso produzido entre os principais atores envolvidos no jogo. Esse é caso dos modelos adotados na Colômbia, na Eslováquia e em Israel.

Será especializado quando seus membros forem escolhidos por critérios não- partidários, ou melhor, por critérios que vedam ao membro do OE qualquer vinculação partidária. Por esse perfil, a escolha deve ser feita pelos conhecimentos técnicos em matérias eleitorais, ou pelas qualificações profissionais do indicado. Com esse perfil, pretende-se afastar os principais atores envolvidos no jogo competitivo exatamente por estarem interessados em resultados favoráveis a si e desfavoráveis a seus opositores. Argumenta-se que a especialização dos membros do OE reforça o princípio da neutralidade do processo eleitoral.

Pode-se exigir que esses membros especializados possuam vínculos em organizações da sociedade civil ou em instituições especificadas pela lei, como na administração pública, no Judiciário ou nas universidades. O princípio condutor é não possuir vínculos partidários. Esse é o modelo majoritário em países que adotam OEs independentes, como Austrália, Canadá, Índia e Coréia do Sul.

Outra regra possível de vínculo institucional dos membros é o método combinado, quando o OE é composto tanto de membros indicados pelos partidos quanto de membros não-partidários. Seguem esse perfil os OEs de Bulgária, Equador, Rússia e Uruguai.

No Quadro_3 a seguir, os modelos de governança eleitoral de acordo com o vínculo institucional dos membros dos organismos eleitorais:

Considerando os 93 países selecionados, temos exatos 112 OEs, isso porque temos de considerar a existência de mais de um OE em alguns desses países. No modelo misto e no duplamente independente, por exemplo, temos no mínimo dois OEs em atividade. Assim, combinando os dados de acordo com a posição institucional e a origem dos membros dos OEs segundo os dados do Idea, temos o seguinte:

Entre os modelos de governança eleitoral selecionados do estudo do Idea, os OEs que adotam o modelo independente-especializado são maioria, 24,1%. Em segundo lugar, com 18,7%, vêm os de modelo independente-combinado. os modelos que são governamental-carreira representam 16% dos OEs selecionados.

Como os modelos mistos são a combinação de um OE independente com outro, governamental, era de se esperar que metade deles fosse misto-carreira. em relação à parte independente do modelo, prevaleceu o perfil misto- especializado.

Outra constatação dos dados comparados é que poucos OEs adotam a vinculação partidária para a composição de seus membros. Apenas 7,1% dos OEs identificados pelo estudo (5,3% independente-partidário e 1,8% misto-partidário) seguem esse modelo.

Recentemente, vários países promoveram reformas para garantir uma governança eleitoral baseada em OEs de modelo independente-especializado; muitos foram estimulados por organizações intergovernamentais, como o PNUD e o Idea. Segundo Lehoucq (2002), essa é uma tendência que rompe com os modelos de governança tradicionais, nos quais a gerência das eleições era prerrogativa do Executivo, permitindo uma forte influência dos partidos políticos. Para o autor, somente quando os partidos delegaram a governança eleitoral para um organismo autônomo é que os conflitos eleitorais deixaram de promover instabilidades políticas - fato claramente constatado na América Latina.

Na América Latina, o único país que adota o modelo misto é a Argentina. Todos os outros países possuem OEs independentes e nenhum adota o modelo governamental. Além disso, a maioria desses OEs possuem membros com perfil especializado. As exceções são Colômbia e Honduras, que adotam o perfil partidário, e Uruguai, Equador e El Salvador, que adotam o perfil combinado.

Podemos dizer, assim, que na América Latina predominam OEs de modelo independente-especializado. Afinal, como afirmou Sadek (1995:14), "a experiência latino-americana tem demonstrado que esses organismos conseguem garantir um mínimo de confiabilidade aos resultados eleitorais quando possuem autonomia frente aos conflitos partidários".

A classificação dos OEs pelos critérios da posição institucional e do vínculo institucional de seus membros nos revelam um perfil importante, mas insuficiente, para a compreensão que pretendemos dos modelos de governança eleitoral. Por exemplo, o perfil majoritário encontrado foi o independente- especializado, o que nos indica que o OE não possui vínculo com o Executivo e que seus membros não podem manter vínculos partidários. No entanto, pouco revela sobre quem são esses membros e por quais vias eles chegaram ao organismo eleitoral.

Para tanto, acreditamos que podemos ir adiante quanto ao perfil dos modelos de governança e de seus OEs conhecendo alguns métodos utilizados para a indicação e a seleção de seus membros. Seguindo o modelo governamental-carreira, é bastante provável que os métodos de indicação e seleção sejam prerrogativa exclusiva do ministro ao qual o OE está vinculado.

Quando o modelo adotado for independente-partidário, sabemos que seus membros representam seus partidos no OE, mas isso não significa que conhecemos o método de indicação e seleção desses membros. A indicação e a seleção podem ser feitas pela direção do partido ou apenas entre aqueles que receberam um mandato parlamentar.

Sabemos menos ainda quando o modelo adotado for independente-especializado.

Quem define o que é ser um especialista capaz de exercer a governança eleitoral? Quem o seleciona? uma pluralidade de regras em vigência nos diferentes países? Sabemos apenas que o selecionado não pode manter vínculos partidários.

Para desenvolver uma classificação mais detalhada, tornou-se imperativo um aprofundamento nas regras específicas de cada país. Dessa maneira, decidimos comparar os diferentes métodos de indicação e seleção dos membros de um OE apenas entre os países latino-americanos presentes no estudo. Para esse fim, consideramos os seguintes países: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela4 (Quadro_4).

Em primeiro lugar, devemos separar esses países pelos critérios da posição institucional dos OEs e do vínculo institucional de seus membros; afinal, por esse critério, é possível revelar algumas pistas sobre os distintos métodos de indicação e seleção.

Adotando o modelo independente-partidário, os membros dos OEs na Colômbia e em Honduras são indicados e eleitos sob a influência dos partidos políticos.

Geralmente, considera-se o tamanho das bancadas de cada partido no Parlamento para atribuir pesos distintos na votação que elege o membro do OE.

No modelo independente-combinado, a indicação e a seleção dos membros do OE seguem duas lógicas distintas. A primeira considera interesses e vínculos partidários, a segunda objetiva selecionar especialistas capazes de garantir a neutralidade para a atuação do OE.

Na Argentina, único país na América Latina que adota o modelo misto- especializado, uma parte da governança eleitoral é realizada por um OE vinculado ao Ministério do Interior e outra parte é prerrogativa de um órgão independente. Pela parte governamental funciona a Direção Nacional Eleitoral - DNE; suas funções restringem-se, basicamente, à administração e execução do processo eleitoral (rule application). Seu diretor geral é selecionado pelo ministro do Interior.

Pelo lado independente, funciona a Câmara Nacional Eleitoral - CNE, tratando do contencioso eleitoral (rule adjudication). Como suas prerrogativas envolvem questões jurídicas, seus membros são eleitos com base em seus conhecimentos jurídicos especializados. As regras para indicação e seleção de seus membros são bastante semelhantes às que regem a composição da Corte Suprema de Justiça.

Para cada vaga o Conselho de Magistratura oferece ao presidente da República uma lista com seis indicados; este seleciona um nome e o submete ao Senado.

Sendo aprovado, assume uma das três vagas de titular da CNE por cinco anos.

Dos dezoito países latino-americanos analisados aqui, doze seguem uma mesma natureza e perfil, independente-especializado. , porém, diferentes métodos para indicação e seleção desses especialistas. Avançando sobre esses diferentes métodos, pretendemos demonstrar como o modelo de governança eleitoral pode ser fortemente impactado pelas diferentes regras de composição de seu OE.

Três países seguem um modelo de dupla independência: Chile, Peru e México.

Nesses, a governança eleitoral é realizada por dois OEs independentes, um geralmente com funções administrativas e executivas (rule application) e outro, também independente, com a prerrogativa de julgar o contencioso eleitoral (rule adjudication).

No México, o Tribunal Eleitoral do Poder Judiciário julga os contenciosos eleitorais de todo o país. Seus sete membros são indicados pela Suprema Corte e selecionados pelo Senado Federal. A administração e a execução dos procedimentos eleitorais são de responsabilidade do Instituto Federal Eleitoral - IFE. Esse OE é composto de nove membros, sendo todos eleitos pela Câmara dos Deputados, não podendo manter vínculos partidários; membros com essa ligação possuem assentos no OE, mas não têm direito a voto; suas funções são consultivas.

no Peru, o Juizado Nacional de Eleições - JNE trata do contencioso eleitoral e serve de consultor para possíveis reformas na legislação eleitoral, tendo, inclusive, iniciativa legislativa sobre o tema. Outro órgão, o Escritório Nacional de Processo Eleitoral - ENPE, organiza e executa todo o processo eleitoral.

O JNE é composto de cinco membros eleitos por cinco instituições distintas. São elas a Corte Suprema, o Ministério Público, a entidade de representação dos advogados do país e as faculdades de direito privadas e públicas. Cada uma dessas instituições deve eleger um membro para ocupar uma vaga no JNE para um mandato de quatro anos.

Regra que merece destaque no Peru é a que determina que esses membros devem ser eleitos apenas dentre os próprios membros da instituição em questão, ou seja, se estivermos falando da vaga a que tem direito a Corte Suprema, ela poderá ser ocupada se o selecionado for um membro ou ex-membro dessa Corte. O mesmo vale para as outras instituições. A essa exigência, que denominamos "regra da interseção", um membro poderá ser selecionado para o OE se for membro de outra instituição específica.

O ENPE, o outro OE independente no Peru, é administrado por um único diretor, eleito para um período de quatro anos, que conta com um corpo fixo e estável de funcionários. A incumbência de selecionar esse diretor fica a cargo do Conselho Nacional de Magistratura.

Por fim, no Chile, o Tribunal Qualificador Eleitoral trata quase que exclusivamente do contencioso eleitoral. O Tribunal é composto de cinco membros, todos eleitos pela Corte Suprema, seguindo a "regra da interseção".

Três membros devem ser selecionados dentre os próprios membros da Corte Suprema, e, dos outros dois, um deve ser eleito dentre os ex-presidentes da Câmara ou do Senado, e o outro dentre os advogados do país. A execução e a administração do processo eleitoral ficam a cargo do Serviço Eleitoral, órgão independente cujo diretor geral é selecionado pelo presidente da República.

Os nove outros países que adotam o modelo independente-especializado contam com uma governança eleitoral que concentra em seus OEs as atividades administrativa/executiva e de solução do contencioso eleitoral.

Entre eles, países que permitem a participação de órgãos externos na indicação e na seleção dos membros do OE, como Conselhos de Magistratura e universidades de Direito, e países nos quais a indicação e a seleção são prerrogativas exclusivas de uma instituição apenas.

O único país que concentra as atividades da governança eleitoral em um único OE e que adota a "regra da interseção" é o Brasil, caso que analisamos adiante com mais detalhes.

Na Figura_1, podemos identificar as instituições que participam da indicação e da seleção dos membros de um OE nos países latino-americanos selecionados.

Argentina, Chile, Peru e México possuem mais de um OE para a governança eleitoral. Dessa maneira, indicamos com "1" o OE responsável pelo contencioso eleitoral e com "2" o responsável pela administração e pela execução do processo eleitoral.

Os países que adotam o perfil partidário foram colocados no espaço exclusivo do Legislativo porque em todos eles a indicação e a seleção são realizadas dentro do Parlamento e considerando o tamanho da bancada de cada partido. Além disso, quando o perfil é partidário, não significa que apenas os partidos selecionam os membros do OE, mas tão-somente que esses membros possuem vínculos partidários.

Podemos notar, na Figura_1, que o Legislativo é a instituição que mais participa da indicação e da seleção dos membros dos OEs entre os países latino- americanos analisados. O Legislativo não participa desse processo apenas em Costa Rica, Brasil, Chile e Peru. Na Argentina, o Legislativo não participa da indicação e da seleção apenas dos membros do OE vinculado ao Executivo. No OE responsável pelo contencioso eleitoral, participam o Legislativo, o Executivo e um órgão externo, nesse caso, o Conselho de Magistratura.

No Chile e no Peru, países duplamente independentes, o Legislativo não participa da indicação e seleção dos membros de nenhum OE. No Peru, órgãos externos aparecem com maior relevância na formação de seus OEs. Nesse país, a participação de universidades e do Conselho de Magistratura em ambos os OEs.

No Chile, a responsabilidade pela formação dos OEs é dividida: a que trata da administração e execução é de responsabilidade exclusiva do Executivo; a que decide sobre o contencioso eleitoral é de responsabilidade exclusiva do Judiciário.

Os únicos países que concentram as atividades da governança eleitoral em um único OE e que excluem o Legislativo da formação desses OEs são o Brasil e a Costa Rica.

Na Costa Rica, a responsabilidade pela indicação e seleção dos membros do OE é exclusiva da Corte Suprema de Justiça. O Tribunal Supremo de Eleições é composto de três membros, com um mandato de oito anos. O requisito mínimo para a seleção desses membros é que sejam bacharéis em Direito e possuam experiência profissional.

Dois fatores devem ser destacados no caso da Costa Rica. O primeiro é que no país não a "regra da interseção", ou seja, os membros do OE não são membros da Corte Suprema de Justiça. Outro destaque é sobre o perfil da Corte Suprema: todos os seus ministros são eleitos pelo Parlamento para um mandato de oito anos, contrariando o princípio republicano clássico, que não atribui mandato para os membros de Cortes constitucionais.

Sendo assim, no Brasil, a governança eleitoral possui uma combinação de elementos ímpar entre os países latino-americanos analisados: concentra as atividades da governança em um único OE (rule application e rule adjudication), possui a "regra da interseção" e exclui o Legislativo da indicação e da seleção dos membros do OE.

Segundo o que defendemos, essa combinação atípica contribui fortemente para que a judicialização da competição político-partidária seja possível. Para melhor tratarmos disso, a seguir traçamos o perfil mais detalhado sobre a governança eleitoral no Brasil e avançamos sobre a questão da judicialização.

O MODELO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA ELEITORAL A Justiça Eleitoral brasileira é produto da Revolução de 1930, e, como tal, sua fundação foi inspirada pelas bandeiras levantadas na época: críticas à oligarquia competitiva, que se havia instalado ao longo da Primeira República, e o evidente descrédito do processo eleitoral, marcado pelo poder dos coronéis e pelo "voto de cabresto".

A combinação desses elementos denunciados pelos revolucionários de 30 atentava contra a legitimidade da competição pelo poder político e a confiabilidade nos resultados das urnas: O movimento de 30 tinha entre suas bandeiras a moralização das eleições, sumarizada no binômio cunhado por Assis Brasil, "representação e justiça". Para isso parecia imprescindível afastar os poderes Executivo e Legislativo da administração e do controle do processo eleitoral, e retirar das Câmaras Legislativas a prerrogativa da verificação dos mandatos. Através dessas práticas a máquina majoritária assegurava sua perpetuação, manipulando todas as etapas do processo eleitoral, e chegando mesmo a decapitar mandatos oposicionistas (Sadek, 1995:30).

A governança eleitoral no Brasil nasceu com a missão de restringir a participação dos interesses políticos na administração e na execução do processo eleitoral. Lehoucq (2002) argumenta que esse modelo de governança ganhou fôlego mundo afora apenas a partir da terceira onda democrática. Até então, o modelo clássico de governança eleitoral seguia o modelo governamental, vinculando o OE ao Executivo e permitindo maior participação dos interesses político-partidários na organização do processo eleitoral. No Brasil, esse modelo clássico foi banido muito antes.

O fato de o modelo brasileiro contar, muito tempo, com um modelo que exclui os partidos e os interesses políticos da governança eleitoral revela a desconfiança em relação à política. Uma característica que merece destaque é que, desde a criação da Justiça Eleitoral, contamos com a "regra da interseção" para indicação e seleção dos membros do OE.

O Decreto 23.017, de 1933, e, posteriormente, a Constituição de 1934 determinaram que o Tribunal Superior da Justiça Eleitoral fosse composto de sete ministros, sendo que três seriam selecionados dentre os ministros do Supremo Tribunal Federal - STF, dois dentre os desembargadores do Distrito Federal e dois indicados pelo Supremo e selecionados pelo presidente da República dentre cidadãos com notório saber jurídico e reputação ilibada. A presidência do OE estava condicionada à vice-presidência do STF.

Dessa maneira, nossa instância máxima da governança eleitoral foi criada em interseção com o Judiciário, sobretudo com o Supremo Tribunal Federal. Além do maior número de membros, o STF detinha a garantia de sua presidência e a prerrogativa de indicar outros dois membros. A nosso ver, esse é mais um indicativo da marca da desconfiança em nosso modelo de governança. Afinal, em democracias como a nossa, o Judiciário é concebido para estar imune aos interesses político-partidários, moderando, assim, as forças majoritárias.

Outra característica que merece destaque é que, desde seu surgimento, esse modelo concentrou as atividades da governança eleitoral nesse OE judicializado.

Além das atividades administrativas e executivas do processo eleitoral, conferiu-lhe a prerrogativa de decidir sobre os contenciosos eleitorais.

A Justiça Eleitoral teve seu funcionamento interrompido em 1937, com o Estado Novo. A extinção do sistema partidário eliminou a competição política e tornou desnecessárias suas atividades; seu retorno aconteceu somente em 1945.

A Constituição de 1946 adotou o mesmo modelo de governança eleitoral: "regra da interseção" com o Judiciário, concentração das atividades da governança e blindagem da interferência política. Desde então esse modelo persiste. Passamos pelo período democrático de 1946 a 1964, pelo regime militar e pela redemocratização, culminando na Constituição de 1988, e pouco desse modelo foi alterado. Sadek (1995) argumenta que foi a manutenção desse modelo que permitiu que a longa transição do regime militar para a democracia seguisse um caminho menos tortuoso: A justiça eleitoral desempenhou um papel fundamental no processo de transição. Foi um ator mudo, porém decisivo, como fiador da lisura dos resultados eleitorais. Sem uma instituição dessa natureza, dificilmente haveria confiança na competição, ainda mais levando-se em conta as restrições políticas e legais da época. O caminho para a normalidade democrática teria sido muito mais tortuoso, para dizer o mínimo, sem o respeito aos resultados saídos das urnas (ibidem:41).

De fato, a neutralidade adquirida pelo nosso modelo de governança eleitoral em relação aos interesses políticos foi decisiva para os caminhos tomados pela transição. Estando ausente esse modelo, dificilmente haveria impactos políticos significativos em decorrência daquilo que Lamounier (1988) chamou de "bipartidarismo plebiscitário", quando o bipartidarismo forçado revelava o apoio ao regime, ou a falta dele, em função do desempenho eleitoral da Aliança Renovadora Nacional - Arena (situação) e do Movimento Democrático Brasileiro - MDB (oposição).

Entretanto, o que argumentamos aqui é que a persistência desse modelo ao longo da consolidação democrática vem produzindo a judicialização da competição político-partidária e, além disso, tem possibilitado o avanço do Judiciário em atividades da governança eleitoral típicas do Legislativo, como a produção das regras do jogo competitivo (rule making)5.

Como dito, o OE brasileiro muito pouco mudou desde que foi criado, em 1932. A Constituição de 1988 definiu, em seu art. 118, que os órgãos da Justiça Eleitoral são: 1) Tribunal Superior Eleitoral - TSE; 2) Tribunais Regionais Eleitorais - TREs; 3) Juízes Eleitorais; 4) Juntas Eleitorais.

O TSE é o órgão superior para decisões sobre a administração e a execução do processo eleitoral e a instância máxima para as atividades do rule application na governança eleitoral brasileira. Além disso, é a última instância de recurso do contencioso eleitoral (rule adjudication). É composto de sete membros: três entre os ministros do STF, dois entre os ministros do Superior Tribunal de Justiça - STJ e dois entre cidadãos com notório saber jurídico e idoneidade moral indicados pelo STF e selecionados pelo presidente da República. Esses membros externos são, majoritariamente, advogados que militam na área.

Os TREs têm sede na capital de todos os estados. Além de participar da administração e da execução do processo eleitoral, é a segunda instância para o contencioso eleitoral. Cada TRE é composto de sete membros: dois selecionados dentre os desembargadores dos Tribunais de Justiça estaduais, dois juízes de direito selecionados pelos Tribunais de Justiça estaduais, um dentre os juízes do Tribunal Regional Federal e dois cidadãos de notório saber jurídico e idoneidade moral indicados pelos Tribunais de Justiça e selecionados pelo presidente da República.

O juiz eleitoral é selecionado pelos TREs dentre os juízes de direito dos estados e sua jurisdição é a Zona Eleitoral. Participa também da administração e da execução do processo eleitoral e funciona como primeira instância para o contencioso eleitoral.

As Juntas Eleitorais são órgãos temporários e servem apenas para a execução do processo eleitoral. Sessenta dias antes das eleições, os TREs selecionam um juiz de direito e de dois a quatro cidadãos com notório saber jurídico e idoneidade moral. Assim, a Junta auxilia o juiz eleitoral a executar os procedimentos necessários para o processo eleitoral em determinada Zona.

Não , na governança eleitoral brasileira, um OE com um corpo de direção próprio e exclusivo. Apesar do TSE, dos TREs e dos Cartórios Eleitorais, em que atuam os juízes eleitorais, serem permanentes e, portanto, contarem com um corpo funcional próprio e estável, os juízes e ministros que se tornam membros da Justiça Eleitoral não são obrigados a se desligar das outras atividades que desempenham nos outros ramos da Justiça, nem mesmo os advogados selecionados são obrigados a interromper suas atividades profissionais6.

Tal perfil pode até criar dificuldades para que a Justiça Eleitoral atenda a todas as demandas das atividades que assume por lei. Exemplo disso são as auditorias que o corpo funcional da Justiça Eleitoral deve realizar sobre os gastos de campanha, uma possível deficiência estrutural que pode comprometer a qualidade do controle (Taylor, 2008).

Além do mais, todas as instâncias da governança eleitoral brasileira contam com a "regra da interseção" para a composição de seus membros, acompanhando a estrutura do Judiciário. A instância eleitoral máxima possui interseção com as últimas instâncias judiciais; as instâncias eleitorais inferiores possuem interseção com as instâncias judiciais inferiores. Aliás, podemos dizer que a instância eleitoral máxima possui mais do que uma interseção com as últimas instâncias judiciais, pois tem uma forte interseção com a Corte Constitucional (STF), e essa característica será fundamental para a sustentação de nossos argumentos. Antes de avançarmos nessa questão, vale uma rápida análise sobre o funcionamento institucional do TSE.

É possível afirmar que o TSE é um órgão do STF para matérias eleitorais - não de direito, mas de fato. Como vimos, são sete os membros do TSE: três deles têm origem no Supremo, outros dois são advogados indicados por ele, produzindo uma forte influência sobre esses membros. No mínimo, podemos dizer que esses advogados serão indicados de acordo com um perfil projetado e esperado pelos ministros da Corte Constitucional. Os dois outros ministros têm origem no STJ.

Entretanto, é preciso observar que esses ministros exercem menor influência sobre o perfil do TSE do que os ministros do STF. O que nos leva a essa afirmação? A questão do tempo do mandato. Todos os membros da Justiça Eleitoral possuem um mandato de dois anos, podendo ser prorrogado por mais dois. Uma regra interna no STJ, porém, eliminou a possibilidade de que seus membros pudessem ocupar o cargo de ministros do TSE por mais de um biênio. entre os ministros oriundos do STF e entre os advogados, o mandato de quatro anos transformou-se em prática comum.

A razão para que os ministros do STJ passem menos tempo no TSE decorre da quantidade de ministros que o compõem e pela intenção de que ocorra um rodízio entre eles. O STJ é composto de 33 ministros; para que todos os ministros tenham a oportunidade de serem membros do TSE, uma regra informal de que nenhum deles exerça as funções por um segundo biênio. os membros do STF são onze, e não regra interna que imponha ao ministro a necessidade de se tornar membro do TSE. Os procedimentos de escolha são bastante informais e dependem fundamentalmente da disposição manifesta do ministro para exercer essas funções.

Temos então que, do primeiro semestre de 1989 até o final do segundo semestre de 2007, passaram pelas vagas de membro titular do TSE 21 ministros do STJ, enquanto do STF foram 16 ministros diferentes. Outra observação importante é que nenhum ministro do STJ que tenha ocupado a vaga no TSE por um biênio voltou a ocupar essa vaga anos depois. entre os ministros do STF, não é incomum que um ministro ocupe uma vaga por dois biênios e retorne alguns anos depois para mais dois biênios. De 1989 até o final de 2007, esses foram os casos dos ministros Néri da Silveira, Carlos Velloso, Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio Mello.

É inegável que o tempo que um ministro passe no TSE lhe garanta experiência em relação à matéria, ainda mais quando falamos de um organismo que não possui um corpo exclusivo de ministros. Dessa maneira, podemos dizer que a capacidade de influenciar o perfil a ser adotado pelo TSE nos julgamentos dos litígios e nas decisões administrativas do processo eleitoral é maior quanto aos ministros do STF do que quanto aos do STJ.

É preciso considerar que treze dos 21 ministros do STJ que ocuparam vagas no TSE tinham passagens pela Justiça Eleitoral como ministros dos TREs ou como juízes eleitorais. Mesmo considerando essa experiência, o menor período que passam no TSE em relação aos ministros do STF reduz o poder de influência desses ministros no perfil da instituição.

Além desse predomínio do STF entre os membros que compõem o TSE, a presidência e a vice-presidência do organismo são cargos exclusivos dos ministros da Corte Constitucional; assim sendo, a pauta e a orientação para o funcionamento administrativo do próprio organismo são determinadas pelo perfil do ministro do STF que ocupe o cargo. É por isso que podemos afirmar que o TSE é um organismo do STF para matérias eleitorais. Afinal, o poder de influência dos ministros do STF sobre o OE é inegavelmente superior em relação a seus outros membros. Uma das possíveis implicações desse perfil é que as regras do jogo competitivo passem pela interpretação de um conjunto mais abrangente de normas, inclusive as normas constitucionais.

Essa característica adiciona mais um fator à atípica combinação de elementos da governança eleitoral no Brasil. Além das mencionadas combinações - concentração das atividades da governança em um único OE (rule application e rule adjudication), exclusão do Legislativo da indicação e da seleção dos membros do OE e "regra da interseção" -, elevamos a governança eleitoral ao nível constitucional. Comprovação disso é que, por vezes, o TSE, na publicação das regras do jogo eleitoral, as altera interpretando o texto constitucional.

Por outras vezes, o STF, na interpretação do texto constitucional, decide alterando as regras do jogo eleitoral; e não qualquer sinal de conflito interpretativo entre essas instituições. Ao contrário, não registro de nenhuma decisão do TSE que, ao ser levada ao STF, tenha sido reformada. Na maior parte das vezes, o Supremo nem mesmo conhece do recurso por entender que a interpretação do TSE é a última palavra em matéria eleitoral. Quando o STF decide sobre um tema acerca do qual recebeu interpretação do TSE, não divergência entre suas decisões; elas acabam se reforçando7.

O parágrafo único do art. 22 do Código Eleitoral diz que as decisões do TSE são irrecorríveis, salvo aquelas que declararem a invalidade de lei ou ato contrário à Constituição Federal e as denegatórias de habeas corpus ou mandado de segurança, quando está autorizado recurso ordinário para o STF. É verdade que essas três hipóteses abrem uma larga avenida entre o TSE e o STF, sobretudo quanto ao mandado de segurança.

Isso não representa, porém, um enfraquecimento do TSE como última palavra em matéria eleitoral. Se as regras eleitorais são elevadas ao nível constitucional (Taylor, 2008), isso tem mais a ver com o perfil de nosso OE do que com a possibilidade de recursos ao STF. Afinal, é esse perfil que abre a possibilidade para que o TSE decida sobre as regras do jogo eleitoral interpretando o texto constitucional.

Na medida em que a competição político-partidária se consolida e alguns temas desse jogo ganham maior destaque, o modelo de governança eleitoral adotado pelo país tem se tornado cada vez mais relevante. Uma comprovação da crescente importância desse modelo sobre o jogo competitivo está na evolução dos processos que chegaram ao TSE entre 1989 e 2006.

Ao longo da primeira metade dos anos 1990, os processos distribuídos e julgados não ultrapassavam as centenas. A partir da segunda metade dos anos 1990, esses processos passaram a ser milhares e, pelo que a tendência aponta, continuarão a crescer. Somente em 2006, ano de eleições para presidente, governadores, senadores, deputados federais e estaduais, foram cerca de sete mil processos distribuídos.

Interessante notar que a busca pelo TSE aumentou logo após a conclusão de um ciclo que reformou a base legal da competição político-partidária no Brasil. As principais modificações vieram com as leis da inelegibilidade (LC 94/90); dos partidos políticos (9.096/95) e das eleições (9.504/97), levando ao TSE, a partir da segunda metade da década de 1990, um maior número de litígios.

A despeito do aumento das ações que provocaram o TSE, o Tribunal demorou em conseguir atendê-las com a mesma velocidade com que cresciam. Somente a partir de 2000, ano de eleições municipais, o TSE entrou em sintonia com o aumento da demanda e tem sustentado seu fôlego para julgar o máximo de processos distribuídos a cada ano, evitando que muitos deles completem mais de um ano nas mãos do Tribunal. Boa parte dessa celeridade veio após uma reforma no processo eleitoral, em 2004, que permitiu um maior número de decisões monocráticas.

A maioria dos processos que chegam ao TSE diz respeito ao contencioso eleitoral, sejam os referentes a pedidos de cancelamento do registro de candidatos, sejam os que envolvam crimes eleitorais, como abuso de poder econômico e político durante a campanha. Entre esses processos distribuídos e julgados, porém, devemos chamar a atenção para um instrumento que não está relacionado ao contencioso eleitoral e que nem sequer representa a maioria dos julgamentos do TSE, mas certamente foram os que causaram maior impacto no jogo competitivo. Referimo-nos ao instrumento da consulta.

A consulta é prevista no art. 23 do Código Eleitoral, que detalha as competências privativas do TSE. Esse artigo é dedicado a detalhar algumas funções administrativas que cabem apenas ao Tribunal, como elaborar seu regimento interno; fixar as datas das eleições quando a legislação não o fizer; enviar lista tríplice ao presidente da República para seleção dos membros externos; aprovar a criação de Zonas Eleitorais; e expedir as instruções que julgar convenientes para o cumprimento do Código Eleitoral nas eleições.

O item XII desse artigo dita o seguinte: "responder, sobre matéria eleitoral, às consultas que lhe forem feitas em tese por autoridade com jurisdição federal ou órgão nacional de partido político". O objetivo deste item foi, claramente, a introdução de um instrumento que pudesse sanar qualquer dúvida entre os competidores políticos e seus administradores - como as instâncias inferiores da Justiça Eleitoral - sobre as regras do jogo antes mesmo que tivesse seu início. Aliás, o entendimento pacificado no TSE é que, com o início do processo eleitoral, não mais a possibilidade de que as consultas sejam respondidas, revelando seu caráter essencialmente instrutivo e preventivo. Instrutivo por aclarar aos participantes do processo eleitoral as possibilidades e vedações das regras eleitorais; preventivo por evitar que os competidores cometam irregularidades por desconhecimento ou por interpretação das normas.

A consulta é, portanto, um instrumento administrativo que visa sanar dúvidas sobre matéria eleitoral. Dessa forma, para que uma consulta seja proposta e aceita pelo TSE, não é necessária a existência de um litígio, nem mesmo partes distintas envolvidas. É preciso que exista apenas uma dúvida sobre a legislação e que ela seja formulada ao TSE por autoridade com jurisdição nacional ou por órgão nacional de partido político. Por essas características, a resposta dada pelo TSE é feita sempre em tese, afinal não existe nem sequer o caso concreto, mas apenas uma dúvida sobre como a legislação deve ser interpretada, caso ela venha a existir. A consulta pode servir de orientação ao juiz na decisão de um caso concreto que venha a ocorrer no futuro, mas não obrigatoriedade de vinculação da resposta dada em consulta com a decisão judicial. Em outras palavras, quando diante do caso concreto, a decisão pode ser diferente daquela indicada pela resposta à consulta (Respe  23.404/04).

Este instrumento, tão precário do ponto de vista jurídico, acabou ocupando uma posição central no cenário político-partidário brasileiro. Através dele o TSE promoveu (re)interpretações até mesmo do texto constitucional. Sublinhe-se que, por meio de um instrumento que possui funções administrativas e que juridicamente carece de força, o TSE alterou as regras do jogo político avançando até mesmo sobre o texto constitucional.

Na preparação do processo eleitoral, o TSE edita resoluções que, geralmente, reproduzem as leis em vigência e possíveis interpretações judiciais consolidadas na jurisprudência. Através dessa prerrogativa de produzir instruções para o processo eleitoral, o TSE acabou incorporando suas respostas proferidas em tese quando respondeu a consultas. O resultado foi que questões centrais do jogo competitivo foram alteradas pelo TSE sem que o caso concreto nem ao menos existisse. A resposta em tese pôde ser transformada em regra a partir de sua incorporação nas instruções eleitorais que edita. Mais do que isso, a resposta que foi transformada em regra eleitoral pôde fundar-se em interpretações do texto constitucional. A nosso ver, tal fato é conseqüência do modelo de governança eleitoral adotado, que tornou possível a nosso OE decidir sobre as regras do jogo competitivo interpretando o texto constitucional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Podemos concluir que a judicialização da competição político-partidária no Brasil é possível em virtude de um ambiente institucional favorável e resultante do modelo de governança eleitoral adotado. Além da combinação atípica de alguns elementos - concentração das atividades da governança em um único OE (rule application e rule adjudication), exclusão do Legislativo da indicação e da seleção dos membros do OE e adoção da "regra da interseção" -, a força do STF sobre o TSE o coloca como um organismo da Corte Constitucional em matéria eleitoral.

Esse desenho institucional torna possível que as decisões sobre as regras do jogo competitivo sejam alteradas por meio de interpretações judiciais. Afinal, tendo o apoio da Corte Constitucional, essas interpretações ganham uma força normativa que talvez estivessem ausentes se fossem definidas por um organismo com outro perfil.

Adição importante a essa força é o fato de o modelo de governança adotado oferecer condições institucionais para que as regras do jogo competitivo sejam interpretadas a partir do texto constitucional. Resultado disso é que a competição político-partidária pode ser alterada por interpretações judiciais respaldadas por uma interpretação da Constituição. Isso é possível ainda que o instrumento jurídico utilizado para a provocação do OE seja um instrumento bastante precário, como o instrumento da "consulta".

NOTAS 1. A polêmica nas eleições presidenciais de 2000 foi a seguinte: o sistema eleitoral norte-americano segue a regra do colégio eleitoral, ou seja, o vencedor é aquele que obtém o maior número de delegados no colégio eleitoral. A controvérsia se deu quando, na Flórida, a diferença entre os dois principais candidatos, Al Gore (democrata) e George W. Bush (republicano), foi de pouco mais de trezentos votos, com vantagem para Bush. A Flórida tinha direito a 25 delegados e naquele momento a vitória no estado decidiria a corrida presidencial. A lei da Flórida define que, se a diferença entre os candidatos é inferior a 0,5%, os votos devem ser recontados. Entretanto, dada a pequena margem de diferença, o candidato Al Gore ingressa com um pedido na Justiça estadual para que os votos sejam contados manualmente, que todo o processo é mecanizado. A partir de então, por quase um mês a disputa presidencial foi transferida para as diferentes instâncias judiciais, chegando até a Suprema Corte. O resultado final confirmou a apertada vitória de Bush na Flórida, dando-lhe o maior número de delegados no colégio eleitoral. Dois fatores ganharam destaque com o caso: 1) em função das regras eleitorais nos Estados Unidos, Bush obteve maioria no colégio eleitoral, mas não recebeu o maior número de votos populares; 2) a dificuldade administrativa das eleições devido à grande descentralização e autonomia dos organismos eleitorais.

2. A sede do Idea é na Suíça, mas ela também mantém escritórios na América Latina, na África e na Ásia. Em 2005, a instituição contava com 23 países- membros: Austrália, Barbados, Bélgica, Chile, Costa Rica, Dinamarca, Finlândia, Índia, Holanda, Noruega, Portugal, África do Sul, Espanha, Suíça, Botsuana, Canadá, Cabo Verde, Alemanha, Ilhas Maurício, México, Namíbia, Peru e Uruguai.

3. A lista completa produzida pelo Idea pode ser acessada em http:// www.idea.int/_elections/emd/index.cfm.

4. A Venezuela foi classificada como anocrática (nota 5,0) pelo Polity IV em 2006, o que a desclassificou de nossa amostra inicial. Entretanto, dados sua relevância para a região e seu histórico democrático, foi incluída em nossa análise nesta etapa.

5. Sabemos que na atividade de rulemaking estão incluídas as resoluções administrativas como, por exemplo, resoluções e instruções emitidas pelo TSE. O que argumentamos, entretanto, é que algumas decisões podem produzir efeitos para além da função administrativa, gerando regras novas e ingressando na atividade legiferante, típica do Legislativo.

6. Essa permissão decorre da decisão do STF na Adin 1.127/94, interpretando o estatuto da advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB (Lei 8.906/ 94). Nessa lei, o impedimento para o exercício da advocacia a "membros de órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos tribunais e conselhos de contas, dos juizados especiais, da justiça de paz, juízes classistas, bem como de todos os que exerçam função de julgamento em órgãos de deliberação coletiva da administração pública direta e indireta". A interpretação do STF abriu uma exceção para o caso da Justiça Eleitoral.

7. Em poucas ocasiões o STF ao menos conhece recursos que envolvam matéria eleitoral. Um importante precedente aberto foi a decisão tomada na Adin 4.018, de fevereiro de 2008, quando o Supremo decidiu pela inconstitucionalidade de uma resolução do TRE-GO.


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