Redistribuição e desenvolvimento? A economia política do programa bolsa família
INTRODUÇÃO
Nos dias que correm, países em desenvolvimento vêm buscando estratégias que
conciliem a redução da pobreza e da desigualdade com o desenvolvimento.
Políticas sociais - em particular a nova geração de programas de garantia de
renda implementados na América Latina e em países do continente africano nos
últimos anos - integram pacotes de desenvolvimento comprometidos com esses
objetivos. Nos programas de renda garantida, a conexão entre redistribuição e
desenvolvimento se daria pela focalização nos mais pobres e pelo
condicionamento dos benefícios à educação das crianças, o que aumentaria suas
capacitações futuras1.
O que se pode aprender com a experiência brasileira recente de redistribuição
de renda? É esta claramente um caso de política de desenvolvimento?
O Brasil emergente da longa aventura desenvolvimentista é um grande país que
cresceu à sombra do enigma de ser "o país do futuro". O predicado algo
paradoxal dificilmente pode ser entendido como elogio, pois o futuro teima em
se afastar à medida que nos aproximamos dele: se é verdade que, seis décadas
após Stefan Zweig fazer a observação profética, o país se encontra entre as dez
maiores economias mundiais, com elevados Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)
e expectativa de vida ao nascer, esses êxitos são temperados por sua
distribuição fortemente desigual entre a população. A desigualdade econômica é
resistentemente alta, a pobreza, especialmente infantil, é alarmante, e a
escolaridade e o desempenho escolar médios são muito baixos. Como se sabe, o
Brasil tem ocupado as últimas posições na lista de mais de cinquenta países que
periodicamente se submetem ao exame de desempenho educacional levado a cabo
pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
![](/img/revistas/dados/v52n1/a02qua01.jpg)
A caminho do futuro, a administração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva
implementou, no ano de 2004, um extenso programa nacional de transferência de
renda para os pobres, o Bolsa Família.O país havia experimentado, durante o
governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), variados programas de
transferência de renda em menor escala, incluindo programas condicionais
focalizados nos pobres, que foram administrados por diferentes ministérios. A
primeira experiência de transferência de renda condicional ocorreu em âmbito
municipal no ano de 1995, na cidade de Campinas, sendo logo seguida pelo
Distrito Federal. Durante o governo Lula, os programas nacionais foram
consolidados, ampliados, redefinidos e unificados em um programa nacional de
transferência de renda para famílias pobres com crianças até 15 anos, o Bolsa
Família.
Em sua criação, esse programa explicitou dois objetivos: reduzir a pobreza e
interromper seu ciclo intergeracional. Enquanto o primeiro objetivo seria
atendido pelas transferências, o segundo seria alcançado por meio das
condicionalidades de educação e saúde: frequência regular das crianças à escola
e participação em programas de orientação nutricional e de assistência
preventiva à saúde, especialmente de crianças pequenas e mulheres grávidas. O
Quadro_2 abaixo resume as características do programa.
[/img/revistas/dados/v52n1/a02qua02.jpg]
Assim, meu propósito neste artigo é examinar o desempenho do programa tendo em
vista os aspectos de redistribuição e desenvolvimento que se apresentam como
seu duplo objetivo, com particular ênfase na questão da sustentabilidade.
Trata-se essencialmente de um esforço de reunir a informação existente sobre o
programa e refletir sobre os principais empecilhos para sua sustentabilidade.
Minhas questões são dirigidas para a economia política do Bolsa Família e foram
suscitadas por fatos recentes da crônica política do país. A despeito de o
programa contar com um grande apoio popular, recentemente uma proposta de
expansão foi fortemente atacada na mídia e em acaloradas discussões no Senado
brasileiro. No fim de 2007, uma contribuição compulsória que era parte de seu
esquema de financiamento foi abolida no Senado sem que houvesse um "plano B"
para substituí-la. Por que isso aconteceu? De que maneira esses novos fatos
interagiram com o programa? Será que as características institucionais do
programa afetaram de algum modo sua economia política? Poderia ser diferente?
Adianto que sim, poderia ser diferente: minha principal conclusão é que uma
política redistributiva que é também claramente uma política de desenvolvimento
tem mais chances de ser efetiva, além de parecer mais legítima (e ser, também
por essa razão, mais efetiva).
Na próxima seção, comento brevemente o celebrado impacto do Bolsa Família sobre
a redução da desigualdade de renda e da extrema pobreza no Brasil. A segunda
discute oportunidades e desafios para a sustentabilidade do programa, incluindo
o impacto continuado sobre a desigualdade, tal como se apresentaram no debate
público recente sobre o financiamento de políticas sociais no Brasil. A
terceira seção examina algumas das características institucionais do Bolsa
Família que podem representar prejuízos para o alcance de modo sustentável de
seus objetivos. A seção seguinte analisa oportunidades para expandir o apoio ao
programa. Na última seção, sugiro uma reorientação do programa que reforce o
aspecto de desenvolvimento contido nele, indicando que iniciativas de educação
infantil deveriam ter uma ênfase muito maior do que a que têm presentemente.
O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E A REDUÇÃO RECENTE DA DESIGUALDADE
Depois de oscilar por décadas em torno de um coeficiente de Gini de 0,602, a
desigualdade na distribuição pessoal da renda no Brasil vem cedendo de modo
inequívoco ao longo dos últimos seis anos (20012006), alcançando em 2006 um
Gini de 0,56, o que representa uma variação negativa de cerca de 6%3.
Tem havido algum debate sobre a importância do montante da redução. De todo
modo, a velocidade da mudança não parece desprezível, pelo menos se compararmos
o desempenho do Brasil com o de países da OCDE no momento em que consolidavam
seus Estados de Bem-Estar Social, com a notável exceção da Espanha (Soares,
2008)
4
. O número é certamente impressionante se compararmos o Brasil com... o Brasil.
As duas razões mais importantes para a queda da desigualdade parecem ter sido o
comportamento dos rendimentos do trabalho - uma combinação de expansão do
mercado formal de trabalho com os reajustes do salário mínimo - e os programas
sociais, especialmente o Bolsa Família (Saboia, 2007; Soares, 2006; Hoffmann,
2005).
A política de aumento do salário mínimo em termos reais - adotada desde a era
Fernando Henrique, ainda que não como política de governo; continuada e
acelerada durante a administração Lula, agora como política de governo - teve
um impacto importante na redução da desigualdade salarial e de aposentadorias e
pensões, e pode ser considerada o principal determinante da recente queda da
desigualdade de renda na medida em que salários, aposentadorias e pensões
representam a maior parte da renda domiciliar (Saboia, 2007). Contudo, se
observarmos que as transferências governamentais representam uma pequena parte
da renda domiciliar no Brasil, o programa Bolsa Família aparece como um fator
relativamente mais importante do que as variações em salários, aposentadorias e
pensões. O impacto específico desse programa na queda de 4,7% na desigualdade
ocorrida entre 1995 e 2004 é estimado em torno de 21%, ao passo que a fração da
renda domiciliar que essa transferência representa é de apenas 0,5% (Soares et
alii, 2006). O efeito significativo sobre a desigualdade total pode então ser
atribuído ao fato de que um número substancial de pessoas na cauda inferior da
distribuição está complementando sua diminuta renda com esses benefícios
monetários.
Quanto à redução da pobreza, se considerarmos a linha de pobreza estabelecida
pelo programa, o efeito dos benefícios sobre a incidência da pobreza (proporção
da população que recebe uma renda inferior à linha de pobreza) não é
especialmente importante5. Esse resultado reflete as regras de elegibilidade e
o tamanho dos benefícios. Ou seja, as famílias elegíveis, classificadas como
muito pobresou pobres, recebem transferências em razão da intensidade da
pobreza e do número de crianças na família, mas as transferências não são
suficientes para removê-las da condição de pobreza. As transferências
representaram, não obstante, um importante mecanismo de alívio à pobreza para
famílias muito pobres e podem ter tido efeitos significativos sobre a
subnutrição infantil (Soares, Ribas e Osório, 2007). De fato, estima-se que 87%
das transferências foram utilizadas pelas famílias para comprar alimentos
(Duarte, Sampaio e Sampaio, 2007). Vários impactos do programa estão resumidos
no Quadro_3 abaixo.
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A influência do programa sobre a queda da desigualdade foi bastante comentada e
celebrada no país e pode ser responsável por sua grande popularidade. Contudo,
cabe questionar se a desigualdade seguirá caindo de modo sustentado caso o
programa seja mantido ou mesmo estendido para incluir jovens de 16 e 17 anos,
como projetado para 2008. A continuidade do impacto parece duvidosa, a menos
que o programa acentue seu aspecto de equalizador de oportunidades, o que será
discutido nas próximas seções.
O IMPACTO SOBRE A DESIGUALDADE É SUSTENTÁVEL?
Que a economia política do programa Bolsa Família pode estar com problemas me
foi sugerido, durante o ano de 2007, por dois fatos contrastantes da crônica
política do país.
O primeiro deles se manifestou quando uma pesquisa de opinião, no início
daquele ano, mostrou a popularidade da presidência Lula (então iniciando o
segundo mandato, em seguida à turbulência do escândalo do "mensalão") e do
governo em alta (CNT/Sensus, 2007). Segundo a pesquisa, enquanto o presidente
contava com a aprovação de cerca de 65% da população, seu governo alcançava
aproximadamente 50% e, enquanto a taxa de aprovação entre os demais estratos
econômicos estava bem acima de 50%, entre os que ganhavam mais de dez salários
mínimos - indivíduos das classes média e alta que em pesquisas anteriores se
mostravam menos favoráveis ao governo -, surpreendentemente 46% também
aprovavam o governo (respostas "bom" e "muito bom"); apenas 30% o desaprovavam.
Parte do apoio ao presidente e a seu governo decorre do desempenho econômico do
país; os programas sociais, especialmente o Bolsa Família, parecem ser outra
parte da história. É possível ter uma noção da participação do Bolsa Família
nas avaliações positivas do governo por meio dos resultados de outra pesquisa
de opinião, levada a cabo também em 2007, que singularizava o programa nas
perguntas de avaliação do governo (ver Encarte Tendências, 2007). Segundo essa
pesquisa, 79,5% dos recipientes do Bolsa Família aprovavam o governo. Esse
número cai um pouco, para 72,8%, quando se computa apenas a avaliação de
pessoas que não eram beneficiárias do programa, mas conheciam alguém que o era;
e cai mais significativamente, embora para um patamar ainda elevado, cerca de
46,1%, entre aqueles que nem recebiam benefícios nem conheciam qualquer
beneficiário. Cabe notar que esse percentual coincide com o percentual de
pessoas que na população adulta recebia mais de dez salários mínimos e aprovava
o governo na pesquisa CNT/Sensus. Nesta última, o apoio aos programas sociais
também se manifestara: apesar de apenas 15% da população se beneficiar deles,
66% dos entrevistados consideravam os programas positivos e apenas 27% os
consideravam negativos. Esse fato, para o qual tenho apenas uma evidência
indireta, poderia muito bem ser interpretado como uma expressão de
solidariedade à brasileira. Aparentemente, contudo, passou despercebido nas
análises sobre os programas sociais.
O segundo fato em rota de choque com o primeiro é a contemporânea crítica que o
programa recebeu da mídia e de líderes dos partidos de oposição, além de
ameaças mais concretas à sua estabilidade financeira. Essas críticas,
especialmente intensas ao longo de 2007, se seguiram ao anúncio de expansões
futuras6.
Na mídia, circularam argumentos variados e não inteiramente congruentes.
Editoriais, cartas ao editor e a chamada "imprensa investigativa", de um lado,
clamavam por mais eficiência, por um minucioso monitoramento para prevenir os
chamados "vazamentos" (pessoas que estariam recebendo os benefícios
indevidamente) e assegurar que os recipientes estariam de fato cumprindo as
condicionalidades. Menos favorável ao programa, de outro lado, foi a tese de
que ele teria um custo de oportunidade elevado - desviaria recursos de usos
alternativos mais proveitosos, como a expansão e a melhoria da educação
pública7.
Outra objeção frequente é que o programa seria assistencialista e como tal
tenderia a aumentar a dependência dos pobres em vez de encorajar a
responsabilidade e a autonomia. De maneira surpreendente, essa avaliação foi
esposada pelo presidente da Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da
Caridade, da Justiça e da Paz8.Esteque poderíamos chamar de "argumento de
sentimentos morais" tem sido reforçado por argumentos econômicos que enfatizam
a necessidade de investimentos nas chamadas "portas de saída" para aumentar a
efetividade do programa - de fato, entre os defensores do Bolsa Família, há
certo consenso de que a questão de prover oportunidades sustentáveis para as
famílias é realmente crítica9.
Adotada sobretudo por líderes da oposição ao governo no Congresso, outra linha
de resistência foi o argumento político de que o programa teria intenções
eleitoreiras, sendo em última instância motivado pelo desejo do presidente e de
seu partido de se manter em no poder, o que inclui ganhar as eleições
presidenciais de 2010.
Certamente todas essas proposições estão abertas a investigação empírica,
podendo vir a representar desafios mais ou menos sérios ao programa. Tomemos,
por exemplo, o problema da verdadeira motivação por trás das ações
governamentais - conhecê-la e denunciá-la é decerto importante na hipótese de
que a mesma se materialize em práticas problemáticas no desenho, na
implementação ou no monitoramento da política social. Até agora, contudo, não
há evidência de uso clientelístico das bolsas pelo governo central, o que
evidentemente se relaciona ao fato de que a implementação e o monitoramento do
programa, além de descentralizados, incluem muitos pontos de checagem e
abundante informação pública. A evidência em apoio às outras críticas está
longe de ser conclusiva. Em alguns casos, não é nem sequer claro o que deveria
contar como evidência, conforme ilustrado pelo debate sobre a eficiência do
programa (esse problema é discutido na próxima seção). Em outros casos, como a
objeção de que o programa poderia criar dependência, contrariando essa
expectativa, dados do IBGE (2008) revelam que a taxa de participação de adultos
no mercado de trabalho é maior entre os beneficiários do que no restante da
população adulta. No entanto, a insuficiência de portas de saída é geralmente
reconhecida como um problema importante. De todo modo, exceto pelos argumentos
do custo de oportunidade (retomado na última seção) e do uso político, as
críticas podem ser vistas como potencialmente construtivas.
Ameaças mais significativas à continuidade do programa apareceram recentemente,
quando o Senado derrubou a proposta do governo de manter uma contribuição
compulsória, a CPMF10, que era parte do esquema de financiamento do Bolsa
Família, além de representar importante fonte de recursos para a expansão de
programas públicos de saúde. Na época da rejeição senatorial, estimou-se que o
fim da contribuição representaria a perda de mais de US$ 20 bilhões-cercade 10%
-do orçamento social.
O acontecimento se revestiu de grande dramaticidade na medida em que
preferências intensas estiveram envolvidas. Na ocasião, representantes do
governo, de um lado, observaram que o corte no tributo prejudicaria o
investimento público nas portas de saída dos programas sociais, além de
representar a perda de um precioso instrumento para o controle da elevada
sonegação tributária, uma vez que a contribuição incidia virtualmente sobre
toda a movimentação financeira realizada no Brasil. De outro lado, líderes de
partidos de oposição replicavam que o governo, além de grande, era ineficiente
e que mais eficiência compensaria a perda de recursos. Observavam que a receita
da contribuição era vulnerável à manipulação política por parte do governo, já
quese destinaria aprogramas que contribuiriam para um melhor desempenho
eleitoral do Partido dos Trabalhadores (PT). Argumentavam, finalmente, que a
CPMF era um tributo regressivo. A propósito, a questão da regressividade da
contribuição, de modo bastante incomum, ocupou grande espaço no noticiário da
grande imprensa do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Avaliação um pouco mais detida desses argumentos revela que, na época da
decisão senatorial, não se cogitou, no âmbito do Senado, nenhum outro mecanismo
que substituísse a receita perdida, representando a rejeição à continuidade da
CPMF uma ameaça concreta de estagnação dos programas sociais existentes na
medida em que dificultava as expansões planejadas e propaladas11, jogando no
colo do governo a concepção de qualquer alternativa. A questão de se algum
conjunto de medidas poderia no futuro compensar a perda do tributo é
irrelevante para o ponto deste artigo na medida em que, no referido debate -
midiático e senatorial -, nenhuma alternativa foi publicamente aventada pelos
senadores da coalizão de oposição para preencher o considerável vazio
financeiro deixado pelo fim da contribuição, além da vaga e obviamente
insuficiente recomendação de austeridade.
Quanto à queixa acerca do evidente apelo eleitoral do programa, é notável que
dois dos prováveis candidatos à presidência do principal partido de oposição
(os governadores de São Paulo e de Minas Gerais) tenham publicamente apoiado a
iniciativa do governo de prorrogar a contribuição, desafiando as lideranças
partidárias e se contrapondo aos colegas no Congresso. Como possíveis ocupantes
da cadeira presidencial, eles não estavam interessados em queimar as pontes
financeiras para um ganho político certo, os programas sociais.
Finalmente, no que diz respeito à regressividade da contribuição, o que
surpreende no argumento é que, salvo engano, essa característica de certos
tributos jamais contou como razão suficiente para cancelar impostos no Brasil.
Na verdade, o sistema tributário brasileiro é solidamente baseado em impostos
indiretos, tipicamente regressivos, e até agora ninguém pareceu se incomodar
muito com isso12.Háuma proposta de reforma tributária encaminhada pelo governo
ao Congresso, mas nem mesmo o PT está avançando um mecanismo concreto para
tornar o sistema mais progressivo. Aparentemente (e tristemente), a causa da
progressividade não terá patrocinador na discussão sobre a reforma tributária.
Se a CPM Ffoi revogada a despeito da inexistência de uma alternativa no curto
prazo e, ao que tudo indica, de uma lógica eleitoral, e ainda a despeito de uma
tradicional despreocupação com a regressividade do sistema tributário, qual é a
rationalede sua revogação? Uma resposta possível é que o debate em torno da
contribuição recobriu a tensão distributiva brasileira, o confronto entre
expectativas e interesses simétricos13.Esteseria omeu segundofatoestilizado:
odebatesobre aCPMF se teria prestado, enquanto durou, a campo de batalha, em
que o conflito distributivo brasileiro se manifestou. A oposição perceptível
(ainda que não abertamente declarada pelos participantes) seria entre os
interesses e as expectativas de beneficiários dos programas sociais e dos
contribuintes não beneficiários (e de alguns sonegadores fiscais).
Se confrontarmos os dois fatos estilizados - a solidariedade à brasileira e a
tensão distributiva -, é inevitável a questão de se o conflito sobre a
contribuição de algum modo pressagiaria uma reversão ou saturação da
solidariedade detectada indiretamente nas pesquisas de opinião e viria a
constituir desafio mais permanente para os programas sociais (especialmente o
Bolsa Família), sua continuidade e necessária expansão. Na seção seguinte,
examino o potencial para o encolhimentodo programa (o risco de perder a
solidariedade); na outra, as chances para sua melhoria (a plausibilidade de
ganhar suporte crescente ou pelo menos estável). Minha hipótese central é que o
processo de formação de preferências em relação à tributação é pelo menos
parcialmente afetado pelos programas sociais e pelo tipo de pedagogia que
praticam.
POTENCIAL PARA O ENCOLHIMENTO: OS PARADOXOS DA EFICIÊNCIA, DA REDISTRIBUIÇÃO E
DA AUTONOMIA
Vamos observar agora as características institucionais básicas do Bolsa Família
como política redistributiva-a focalização nos pobres e as condicionalidades de
educação e saúde - para refletir sobre sua influência na estabilidade do
programa via a conexão "economia política". Ou seja, como essas características
retroagem sobre o programa e sua economia política?
Focalização
É perfeitamente focalizado o programa que transfere recursos para todas as
pessoas elegíveis e apenas para elas. Essa é a definição, por assim dizer,
primária de eficiência de programas focalizados. Na prática, contudo, esse
objetivo nunca é atingido, e os tomadores de decisão se defrontam com a escolha
entre aceitar algumas inclusões indevidas (vazamentos), exclusões indevidas ou
uma combinação dos dois erros.
Esse fato familiar a respeito de programas de transferência de renda fazcom que
se opere comuma definição secundária de eficiência. De modo previsível, não
obstante, qualquer definição secundária envolve problemas de equidade.
Por exemplo, se os tomadores de decisão escolherem minimizar os erros de
inclusão, eles provavelmente terão de aceitar operar um programa menos extenso
e acabarão por incorrer no erro de exclusão, um resultado paradoxal se
considerarmos que o objetivo de tais programas é a eliminação da pobreza14. Se,
inversamente, buscarem minimizar os erros de exclusão, perseguirão a expansão
do programa e enfrentarão o risco de incluir pessoas não elegíveis. Se,
finalmente, decidirem acertar o alvo, terão de despender recursos para manter
um cadastro confiável e atualizado de todas as pessoas elegíveis e apenas elas,
o que representaria uma diversão de recursos que, dado o orçamento, poderiam
ser mais proveitosamente utilizados na expansão do programa. Portanto, do ponto
de vista da equidade, a escolha de umanoção secundária, praticável, de
eficiência é não neutra.
Com base na PNAD de 2004, Soares, Ribas e Osório (2007) estimaram que o Bolsa
Família teria um erro de inclusão de cerca de 49%. Convém notar que a maioria
dessas pessoas não está muito acima da linha de pobreza do programa: segundo
estimativas do IBGE (2008), baseadas na PNAD de 2006, a renda média mensal dos
domicílios recipientes é inferior a meio salário mínimo. O erro de exclusão do
Bolsa Família, estimado por Soares, Ribas e Osório (2007), é, contudo, de 59%,
uma proporção espantosa de pessoas. Estimativa mais recente, baseada na PNAD de
2006 (IBGE, 2008), aponta o ainda extremamente elevado percentual de 46%.
Se colocarmos o programa em perspectiva internacional, observaremos que,
comparado com programas similares, particularmente o mexicano Oportunidades15,
o brasileiro tem um erro de inclusão bem maior e um erro de exclusão menor,
sendo um programa bem mais extenso do que o mexicano (Soares, Ribas e Osório,
2007). Contudo, levando-se em consideração seu duplo objetivo - reduzir a
pobreza e quebrar seu ciclo -, o programa é claramente insuficiente em virtude
de seu expressivo erro de exclusão. Aprópria natureza de programa focalizado
pode ter algo a ver com esse resultado decepcionante.
Na verdade, um conjunto de razões pode ser invocado para entender por que um
contingente tão grande de pessoas elegíveis permanece de fora. Inicialmente,
devemos notar que o alcance do alvo depende de as pessoas se apresentarem e
declararem sua pobreza perante o governo local. Em muitos casos, essas pessoas
não possuem nem sequer informação sobre seus direitos e, portanto, sobre como
receber os benefícios. Paradoxalmente, é provavelmente o mais pobre o mais
difícil de ser atingido pela política que o focaliza. Em outros casos, algumas
pessoas elegíveis poderiam preferir evitar o estigma de viver por conta de
benefícios sociais; o medo de uma dependência de longo prazo parece real,
considerando que o programa não tem sido capaz de garantir acesso às portas de
saída de modo importante. Uma terceira causa possível são os erros na lista de
beneficiários, que é baseada em um mixde informações providas pelos governos
locais e informação estatisticamente tratada provida pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA), mecanismo que pode não ser capaz de eliminar
oportunidades de ação clientelística por parte de autoridades locais. Além
disso, a seleção de beneficiários é feita a partir do cadastro, que, sendo uma
fotografia da pobreza em um ponto no tempo, não capta situações de risco de
pobreza. Uma última razão é, de modo nada surpreendente, restrição orçamentária
pura e simples.
Esse último empecilho para a efetividade do programa merece atenção especial.
Os problemas mencionados anteriormente são os classicamente relacionados a
políticas de transferência focalizada de renda (falta de informação entre os
mais pobres, estigma, dinâmica da pobreza, oportunidades para ação
clientelística) e têm sido apontados por alguns críticos desse tipo de
política, mas a limitação do orçamento tem sido geralmente absorvida como um
fato, independente da política social adotada. Desenvolvo a seguir uma
perspectiva alternativa sobre a questão do orçamento limita do que nãotem
aparecido no debate público brasileiro.
É bastante plausível supor que, se o programa Bolsa Família for orientado
sobretudo para o alívio da pobreza, mantendo o atual desenho, a pressão
orçamentária seguirá forte. Esse ponto é obviamente empírico e aberto a teste,
porém parece não apenas plausível como também, se confrontado com o recente
debate sobre a CPMF, bastante provável. A ideia subjacente é que programas
focalizados tendem a reforçar atitudes que enfraquecem a solidariedade em vez
de fortalecê-la. A ligação entre esses elementos é a disposição das pessoas
para pagar tributos que financiem programas sociais.
Muitos fatores determinam a disposição de pagar tributos. Simplificadamente,
podemos descrevê-los como um mixde motivações autointeressadas e não
autointeressadas, mixpara o qual temos alguma evidência indireta, no caso do
Brasil, como discutido na seção anterior. O ponto aqui é que esse mixpode ser
afetado pela orientação filosófica de uma política social, o que mais adiante
pode vir a afetar a própria efetividade da política.
O estilo da política social, em outras palavras, não é neutro em relação à
formação de preferências: ele pode influenciar e provavelmente impactar
atitudes e preferências de pessoas. Políticas sociais focalizadas podem
enfraquecer a disposição para pagar impostos que as financiem
pormeiodoprincípio de segregação que está inscrito nelas, segundo o qual
"alguns pagam enquanto outros se beneficiam". Se a política é percebida desse
modo, tem de contar com um sentido de solidariedade muito forte (quase
irracional), que ela mesma inviabiliza na medida em que reforça a segregação.
Essa ideia não pressupõe que as pessoas sejam por natureza auto interessadas,
mas que a solidariedade requeira pelo menos um sentido de identificação ou
simpatia com os beneficiários, que é, no entanto, solapada pela segregação. Se
assim é, o resultado pode ser o conhecido paradoxo da redistribuição, para a
existência do qual há importante evidência16: políticas redistributivas de
renda tendem a redistribuir menos do que políticas de renda universais porque
há uma tendência de haver menos a ser redistribuído.
Como vimos anteriormente, na segunda seção, a discussão pública no Brasil está
registrando sinais negativos em relação à expansão do orçamento social. Tanto
as críticas à expansão projetada do Bolsa Família quanto a rejeição à
continuidade da CPMF no Senado parecem sinais importantes. Influentes
especialistas em política social têm argumentado, diante das restrições, que o
programa deveria perseguir mais eficiência no sentido canônico: entregar
melhores resultados de redução de pobreza por unidade monetária de um orçamento
dado. Essa recomendação às vezes vem acompanhada de outra: generalizar, para os
serviços sociais (educação e saúde), a orientação de focalização que já é
seguida pelos programas de renda, se possível canalizando os serviços
exclusivamente para os pobres17. Contudo,ofoco exclusivo na logística pode
estar negligenciando o ponto de que oorçamento não é dado, mas em boa medida
endógeno à orientação de política.
É preciso ter claro que, se o programa for mantido, ele precisa ser expandido
ao menos por questões de equidade: além de incluir jovens de 16 e 17 anos das
famílias que já são beneficiárias, o programa deveria incluir ao menos as
pessoas excluídas indevidamente, o que dificilmente será feito apenas pela
exclusão dos indevidamente incluídos e por gastos administrativos adicionais em
um cadastro perfeitamente fiel, em virtude dos inevitáveis trade-offs; porém,
não apenas por questões de equidade deve o programa crescer. Se for para ser
fiel a seus objetivos explícitos - reduzir a pobreza e interromper seu ciclo -,
ele necessitará de muito mais recursos, a serem investidos na crucial provisão
de serviços (treinamento e qualificação para o trabalho, educação e saúde).
Em relação à expansão dos serviços, até o momento não houve expansão importante
dos serviços de educação e saúde associados ao programa. Parte da rejeitada
contribuição, convém lembrar, estaria destinada a investimentos em saúde. Na
verdade, a maior parte do fundo para o programa se destina às transferências
monetárias, cerca de 10% cobrindo gastos administrativos e outras despesas, não
havendo recursos específicos para as chamadas ações complementares e para os
serviços sociais. Todavia, a expansão dos serviços é urgentemente necessária,
especialmente se levarmos em consideração que os sistemas públicos de saúde e
educação funcionam de modo precário no Brasil, enfrentando problemas de
quantidade e qualidade.
Condicionalidades
Um traço importante do Bolsa Família são as condicionalidades: famílias
elegíveis ao benefício podem recebê-lo desde que as crianças entre 6 e 15 anos
frequentem regularmente a escola, e as crianças pequenas e as mulheres grávidas
utilizem serviços de saúde predefinidos. A ideia é que essas condicionalidades
possibilitariam o acesso às portas de saída, ao menos para as gerações futuras.
Certamente, a efetividade das condicionalidades é, por sua vez, condicional à
disponibilidade e à qualidade dos serviços providos. Uma rápida avaliação dos
serviços básicos de educação e saúde no Brasil evidencia, contudo, quão crítica
é sua provisão.
Como se sabe, o acesso à educação básica e à saúde públicas no Brasil independe
da condição socioeconômica do potencial beneficiário. No entanto, ao longo das
últimas quatro décadas, juntamente com sua expansão, a qualidade dos serviços
básicos caiu e a classe média praticamente saiu do sistema, provavelmente
causando uma queda adicional na qualidade, além de um agravamento da
desigualdade social com a segmentação das oportunidades.
Uma evidência desse movimento de perda absoluta de qualidade é o produto final
do sistema educacional brasileiro, considerado sub-standard. No exame
padronizado realizado pela OCDE em 2006 - o PISA -, o Brasil ocupou a 52ª
posição em ciências e a 49ª em leitura, em 57 países; no exame de matemática,
em 2003, o Brasil foi o último da fila.
O sistema público que educa a quase totalidade dos estudantes pobres está em
más condições, enfrentando problemas de infraestrutura e de treinamento e
formação de professores; remunera mal os professores e mantém diminutas
jornadas escolares (4,2 horas por dia em média no nível básico, uma das menores
do mundo)18. O investimento público em educação é especialmente baixo,
representando apenas 4,5% do PIB, a menor proporção no universo de países
considerados no exame do PISA: enquanto o gasto público per capitaem educação,
descontadas as diferenças de custo de vida entre os países (ou seja, em dólares
com paridade de poder de compra), no Brasil, é de 1.303 dólares por ano,
remonta a 7.527 dólares na média de trinta países da OCDE19.
O mesmo é verdade sobre o sistema de saúde. A partir da Constituição de 1988, o
sistema sofreu uma profunda reestruturação, com a universalização, a
descentralização e várias mudanças importantes no sistema decisório; seu modelo
descentralizado é considerado paradigmático. Não obstante essas virtudes, o
montante de recursos destinados ao sistema está muito aquém do que seria
necessário para um bom funcionamento: o país gasta 8,8% do PIB em saúde
(próximo à média dos paísesdaOCDE-9%), masogasto per capitaequivale à metade do
gasto da OCDE, 1.500 dólares com paridade de poder de compra em 200420. Mais
importante, o sistema é profundamente segmentado: as famílias financiam cerca
de metade dos gastos em saúde (ver WHO, 2007). Dada a elevada desigualdade de
renda entre as famílias, a provisão de saúde acaba perpetuando as desigualdades
sociais em vez de compensá-las. A provisão pública é notoriamente insuficiente,
sendo universalmente reconhecido que o sistema básico necessita de
investimentos urgentes para atender seja a clientela existente, seja a
adicional que pode chegar por meio do Bolsa Família. Devemos recordar mais uma
vez que os investimentos públicos em saúde foram as principais vítimas da
recente eliminação da CPMF, já que 50% da receita se destinava a programas de
saúde.
Em resumo, os serviços sociais, além de precários, estão congestionados,
despreparados para oferecer esperança crível de emancipação para as gerações
futuras da condição de pobreza de suas famílias. De fato, de modo não
surpreendente, as primeiras avaliações de indicadores escolares dos recipientes
do Bolsa Família têm mostrado que, a despeito do aumento da frequência escolar,
o desempenho escolar dessas crianças é mais baixo do que o de crianças que
estão fora do programa (Soares, Ribas e Osório, 2007).
Em face dessa evidência, é difícil não cultivar dúvidas a respeito da motivação
por trás das condicionalidades do programa. Será que o objetivo é fazer com que
as pessoas se tornem de fato autônomas, não dependentes do benefício e capazes
de fazer escolhas significativas a respeito de seu próprio bem-estar?21Ou será
que as condicionalidades são impostas baseadas no princípio de que "não há
almoço grátis", isto é, que os benefícios devem, de alguma forma, ser
compensados pelos beneficiários, já que alguém estaria de fato pagando por
eles? Adiferença não é desprezível, especialmente se desejarmos que as
políticas sociais em que estamos interessados sejam também instrumentais para o
desenvolvimento.
O debate público brasileiro registrou esses dois pontos de vista diferentes.
Alguns especialistas insistem que as condicionalidades se relacionam ao
princípio de que "não há almoço grátis", consequentemente cobrando do governo
que monitore a obediência a elas, excluindo as famílias recalcitrantes22.
Outros observam que a não obediência às condicionalidades pode estar
relacionada à precariedade dos serviços23, sendo, portanto, até certo ponto
baseada em raciocínio coerente por parte dos recipientes. O governo hesitou
bastante entre as duas posições e, finalmente, decidiu monitorar o cumprimento
das condições, cortando os benefícios de famílias que por cinco períodos
consecutivos não as cumprissem. Isso resultou no primeiro cancelamento maciço
de benefícios desde que o programa foi lançado, em setembro de 200724.O
monitoramento mais apertado exigiu uma expansão da parte do orçamento destinada
a monitoramento, mas o fato de os serviços sociais serem precários permaneceu
inalterado. Portanto, a despeito de declarações oficiais de que as
condicionalidades existem para criar capacitações futuras e permitir escolhas
autônomas, seu cumprimento não deixou de ser heterônomo: um forte motivo para o
cumprimento parece ter sido o medo de perder os benefícios, e não os ganhos
esperados em termos das capacitações das crianças.
Do ponto de vista de desenvolvimento, a situação parece dramática (emboranão
tanto da perspectiva de que"não há almoço grátis"): de um lado, o mero
cumprimento das imposições não é em si um indicador de aumento de capacitação
(em virtude da precariedade dos serviços); de outro, a manutenção das famílias
no programa não é nem sequer garantia de que elas se tenham beneficiado de
qualquer serviço, já que, quando o serviço não é provido por falta de
disponibilidade, a condicionalidade é simplesmente suspensa. Ou seja, o
programa não prevê nenhuma punição para a falha do governo em cumprir com o seu
dever de oferecer os serviços.
Como vemos, há necessidade de aumento dos recursos financeiros para que o Bolsa
Família cumpra de fato seus objetivos. Entretanto, vimos também, um pouco
antes, que há pressões para a não expansão do orçamento do programa e que, de
algum modo, essas pressões podem ser endógenas ao Bolsa Família na medida em
que, sendo visto como um programa para pobres, isso reforça o princípio da
segregação e com eleamá vontade de pagar tributos que o financiem. É possível
solucionar o dilema "é tão pouco, contudo, é tanto" inerente ao programa Bolsa
Família?
POTENCIAL PARA EXPANSÃO: SERVIÇOS UNIVERSAIS COM UMA REGRA DE PRIORIDADE
Pode parecer que, em certo sentido, o Bolsa Família tenha de decidir o tipo de
programa que é: alívio à pobreza ou emancipação da pobreza? Entretanto, essa
escolha não resolveria o problema de economia política inerente a ele: até como
um simples programa de alívio à pobreza, seria grande e caro (mesmo mantido o
foco em famílias com crianças apenas), envolvendo substancial redistribuição.
Além disso, se ele não oferecer perspectivas concretas de inserção social, é
fácil prever que a clientela permanecerá grande e crescente, e assim a
substancial redistribuição deverá ser mantida por um longo tempo.
Como um programa de alívio à pobreza, pode-se prever que ele terá problemas de
sustentabilidade se minha hipótese sobre formação endógena de preferências
tributárias for corroborada, isto é, se for válida a hipótese de que a
disposição apagar tributos para financiar a expansão do programa dependa
inversamente do grau de focalização do mesmo. O programa tende a encolher25e a
tomar a direção de buscar eficiência em algum dos sentidos secundários
discutidos na primeira seção. De fato, alguns defensores do programa propõem
que o governo invista em aperfeiçoamento do cadastro para eliminar os
vazamentos26. E quanto à virada emancipatória? No curto prazo, envolveria
investimentos maciços. De novo, se minha hipótese de preferências endógenas
estiver correta, seria importante não segregar socialmente o investimento na
expansão de oportunidades para que esta pudesse contar com o apoio dos
contribuintes de classe média. Contudo, até isso pode ainda não ser suficiente.
Porque, se de um lado uma suposta canalização de serviços sociais para os
pobres em detrimento de sua universalização (serviços já muito precários que,
na prática, excluem a classe média) aumentaria a pressão para a não expansão do
gasto nesses serviços, por outro, o montante de investimento e o esforço
tributário requerido para a oferta realmente universal de serviços de alta
qualidade seriam quase proibitivos. Considerando que o país não é rico em
termos de PIB per capita, dificilmente expandirá a provisão pública de serviços
sociais universais em escala e qualidade apropriadas, mesmo com um esforço
tributário maior. Nosso problema passa então a ser como criar e expandir
oportunidades equalizadoras sem segregação - e, por conseguinte, sem
comprometer a sustentabilidade do programa -, de modo que seja também sensível
ao ritmo de crescimento dos recursos para financiar essa expansão.
Três passos parecem necessários. O primeiro decorre da aceitação do pressuposto
ideacionista de que "ideias" são relevantes no processo de produção e de
implementação de políticas sociais: a forma como uma política é descrita e o
repertório doutrinário ao qual é referida importam para a obtenção de apoio
aelas27. Nesse caso, minha sugestão é que o programa Bolsa Família seja
redescrito e, se possível, renomeado como uma política de desenvolvimento de
equalização de oportunidades. Além do importante problema da segregação, essa
estratégia evitaria a problemática associação de "bolsa" a dinheiro fácil ou
não controlado (soft money) que pode em parte ser responsável por uma má
vontade percebida informalmente em relação a expansões do programa. Como uma
política de oportunidades, por outro lado, poderia ser visto como provendo
segurança econômica para famílias que caíram na pobreza (lembrando, portanto,
que a pobreza é uma condição temporária que pode atingir qualquer um), além de
estender outras oportunidades gerais a famílias que ficaram presas na pobreza.
O segundo passo é reorientar o componente de serviços do Bolsa Família na
direção de uma política social híbrida - parcialmente focalizada, parcialmente
universal - a fim de ganhar a adesão da classe média que o programa arrisca
perder, provendo serviços universais com uma regra de prioridade. No mínimo, a
maior heterogeneidade da clientela pode ser instrumental para alcançar o apoio
político e financeiro de que o programa precisa, algo como "eu posso não me
beneficiar, mas conheço alguém que se beneficia". Assim, por exemplo,
investimentos em educação e saúde associados ao programa estariam abertos a
todos, mas seriam providos de modo que impactassem os mais pobres primeiro,
como a provisão de creches e educação infantil e a extensão da jornada escolar
(incluindo atividades extracurriculares e cursos preparatórios para o avanço no
fluxo escolar), começando com escolas públicas frequentadas sobretudo por
beneficiários por estarem localizadas em áreas onde eles se concentram.
Paradoxalmente, pode ser mais fácil ganhar apoio para o programa se ele for
mais caro - por se expandir na dimensão "oportunidades" - do que se ele
permanecer como um programa mais barato, focalizado apenas nas transferências
para os pobres.
O terceiro passo é reforçar o Bolsa Família como uma política de
desenvolvimento que aumenta não apenas o bem-estar mas também as capacitações.
Esse passo pode requerer uma reavaliação da política de provisão de serviços e
exercer impacto tanto sobre o lado da oferta (disposição a pagar) quanto sobre
o da demanda (necessidade de recursos) na economia do Bolsa Família, como
explico na próxima seção.
SEGUIRÁ O FUTURO ULTRAPASSANDO O BRASIL? ACERTANDO O PASSO DESDE O INÍCIO28
Considero agora a orientação desejável para a provisão de serviço em conexão
com uma agenda de desenvolvimento. Como notamos anteriormente, alguns
críticos29do programa Bolsa Família argumentam que o dinheiro gasto nele seria
mais proveitosamente despendido na expansão da educação pública.
De fato, há controvérsia na literatura sobre Estados de Bem-Estar Social quanto
à eficácia relativa de políticas de redistribuição de renda e de expansão de
oportunidades em termos de inclusão social (Esping-Andersen, 2007). Essa
controvérsia, no entanto, faz mais sentido quando nos referimos a países
desenvolvidos (e quando a questão da imigração não é levada em consideração) do
que a países em desenvolvimento, pois, nesses últimos, a pobreza se confunde
com privação absoluta, incluindo situações de subnutrição infantil, crônica e
aguda.
No caso do Brasil, pesquisa divulgada pelo IBGE (2008) revelou o perfil do
conjunto dos beneficiários como composto, de modo geral, de pessoas que
trabalham em empregos precários no setor informal da economia, recebendo renda
insuficiente para satisfazer necessidades básicas. O complemento de renda
representado pelos benefícios é, pois, essencial para o alívio das várias
privações. Entre elas, a mais crítica é a subnutrição infantil, sobretudo
porque pode danificar permanentemente as capacitações das crianças,
atualizando-se ao longo do ciclo da vida como baixo desempenho escolar e baixa
capacidade para o exercício de muitas outras potencialidades humanas. Do ponto
de vista de política social, é um desastre completo: a subnutrição na infância
é uma indicação segura de exclusão social futura.
Certamente a educação também é importante; e o é por várias razões, entre elas
por aumentar a probabilidade de sucesso econômico das crianças mais tarde, ao
longo da vida, ou pelo menos por ampliar o horizonte de opções para escolhas
futuras. No entanto, aqui também uma privação crucial é a falta de estímulos
cognitivos no início da vida, sem que muito da escolarização posterior e da
vida social será irremediavelmente prejudicado (ver Heckman e Carneiro, 2003;
Farkas, 2003). Estímulos cognitivos são essenciais nos primeiros anos de vida e
podem não estar presentes em famílias com níveis baixos de educação e capital
cultural, condição normalmente correlacionada com a pobreza (as famílias ricas
podem, de certo modo, "comprar" o capital cultural que não possuem) (Heckman e
Carneiro, 2003; Esping-Andersen, 2007; De Graaf, De Graaf e Kraaykamp, 2000).
Baseando-se na evidência fornecida por programas de educação infantil
desenvolvidos na Escandinávia, alguns autores vêm argumentando que a educação
de crianças pequenas é um modo de aumentar suas habilidades cognitivas e suas
realizações futuras, seja na escola, seja no mercado de trabalho (Esping-
Andersen, 2005; 2007). Inversamente, um risco extremo para crianças pobres é o
que podemos chamar de "subnutrição cognitiva", condição caracterizada pela
presença de uma estrutura cognitiva insuficiente para que conteúdos de
informação possam ser proveitosamente adicionados e interagir de maneira rica e
estimulante. A subnutrição cognitiva é outro sinal inequívoco de exclusão
social futura. Da perspectiva da política social, então, a expansão do sistema
de educação pública deveria incluir a provisão de creche e educação infantil de
boa qualidade30.
Obviamente, a expansão do sistema público deveria prever também investimentos
substanciais no sistema existente para superar o problema da baixa qualidade.
Esse sistema tem também problemas graves de provisão que acabam por interagir
negativamente com a qualidade dos serviços. Mesmo no nível fundamental de
ensino, não obstante a propalada universalização da escolarização, a provisão é
insuficiente, sobretudo se considerarmos, além da precária infraestrutura, a
necessidade de expandi-la para permitir a extensão das diminutas jornadas
escolares, um problema gravíssimo do sistema educacional brasileiro que
infelizmente não despertou maior interesse por parte do governo ou dos
especialistas em política social no país31. Essas dificuldades certamente têm
sua parcela de responsabilidade no baixo desempenho escolar dos estudantes
brasileiros em testes padronizados.
Será que esses programas deveriam focalizar os mais pobres?
Se abstrairmos os aspectos de economia política e de sociologia política
(legitimidade), e deixarmos de lado interações esperadas (o custo-efetividade
global), focalizar as crianças mais pobres teria efeitos de equalização de
oportunidades, já que as crianças não pobres não têm as oportunidades tão
restritas quanto as pobres. Contudo, os fatores de economia política podem ser
importantes; à medida que o são, tenderá a haver menos apoio e maior
dificuldade para se obter financiamento para a redistribuição, como indicou o
debate público brasileiro recente. A política social precisa ser percebida como
legítima em um sentido apropriado, especialmente por aqueles que vão pagar por
ela. Na medida em que a legitimidade é condicional ao estilo de política - em
particular à sua característica de segregação -, é possível prever a
dificuldade de se levantar a receita necessária para se equalizar a "partida".
Uma política social segregadora tende a reforçar a percepção de uma sociedade
segmentada, e uma sociedade segmentada tende a ter problemas recorrentes de
exclusão social.
Do lado do custo-efetividade, as avaliações que consideram a focalização
superior às políticas universais, em termos de promoção de igualdade,
normalmente desprezam efeitos de interação importantes, como os que ocorrem em
escolas e hospitais socialmente mistos. É o efeito de "elevar os padrões".
Escolas que misturam crianças de backgroundsdiferentes tendem a melhorar o
desempenho de estudantes mais pobres sem diminuir o de estudantes não pobres
desde que seja alcançado um mixcrítico (Kahlenberg, 2003).
Backgroundsheterogêneos também são úteis para que haja escolas mais controladas
pelas comunidades, na medida em que pais de classe média tendem a acompanhar
mais ativa eefetivamente o que sepassa na escola do que pais mais pobres.
Finalmente, a heterogeneidade social faculta a crianças de backgroundssociais
menos favorecidos o acesso a redes de relações sociais não redundantes, o que
pode significar melhores chances de vida futura.
Essas são observações empíricas de grande valor para o formulador de políticas
públicas. Outros efeitos, não diretamente testáveis, também são prováveis de
ocorrer. Por exemplo, pessoas que regularmente compartilham o mesmo espaço
tendem a desenvolver certa ligação, um sentido de similaridade, que pode ajudá-
las a valorizar as respectivas vidas como iguais. Em países muito desiguais
como o Brasil, os encontros entre pessoas afluentes e não afluentes são
fortuitos e algumas vezes, como nas grandes cidades, bastante ameaçadores.
Parece, portanto, pelo menos duvidoso que o investimento em um sistema na
prática segregado produza o resultado desejado em termos de bom desempenho e
melhores chances de vida para as crianças.
Evidentemente que a expansão dos serviços de educação e saúde, da maneira
indicada acima, representará investimentos muito elevados. Apenas para dar uma
ideia conservadora, calculamos (Kerstenetzky e Alvarenga, 2008) o déficit
social brasileiro comparando a média dos gastos per capitaem educação e saúde
do Brasil com os de outros países com desempenho superior (Chile em educação e
Cuba em saúde) para o ano de 2005 e chegamos a uma cifra equivalente a 5,7% do
PIB. Se nos concentrarmos apenas na educação pré-primária, além dos baixos
gastos públicos per capita, as taxas de participação médias no Brasil são
baixas, especialmente entre as famílias beneficiárias de programas sociais.
Menos de 13% das crianças de 3 anos ou menos e cerca de 73% das crianças entre
4 e 6 anos das famílias beneficiárias do Bolsa Família estão matriculadas em
creches e jardins de infância (IBGE, 2008).
A primeira coisa que é preciso ter em mente é que esses investimentos pagam: o
valor presente dos retornos futuros é muito superior aos custos presentes, como
mostram estimativas realizadas por Esping-Andersen (2007). Esse autor estimou a
contabilidade dinâmica da provisão de educação infantil e concluiu que os
ganhos superavam os custos no longo prazo, sobretudo porque a provisão de
creches e jardins de infância permite a elevação da taxa de participação
feminina no mercado de trabalho e o correspondente aumento da receita
tributária. Outra maneira de computar esses ganhos é estimar os custos da
pobreza ou, mais precisamente, os custos diretos e os ganhos não faturados em
virtude da pobreza infantil, como fez Holzer (2007) para a economia americana -
cerca de 4% do PIB americano é perdido por causa da pobreza infantil (perda de
capital humano, despesas com saúde e repressão ao crime). Alguns podem
argumentar que o futuro não está aqui e que a estimativa é contrafatual.
Talvez, no fundo, a decisão deva ser tomada com base nos efeitos sentidos da
exclusão social e na consideração bastante sensata de que políticas não
efetivas são uma perda de tempo, esforço e dinheiro.
De todo modo, é bastante improvável que um país como o Brasil, nem pobre nem
rico, consiga dispor, no curto prazo, dos recursos necessários para mudar
substancialmente sua estrutura de oportunidades, mesmo com um esforço
tributário maior. Assim, não se deve descartar o mixde universalismo e de
focalização na provisão adicional de serviços em que o elemento de focalização
operaria não em uma lógica residualista, muito menos como um princípio de
segregação, mas como uma regra de prioridade na expansão dos serviços sociais a
fim de não excluir as classes médias e alcançar primeiro os pobres32. Uma
abordagem de comunidade, em vez da focalização seletiva (família por família),
poderia funcionar nesse sentido. A consequência interessante parece ser que
estratégias de focalização operando dentro de esquemas universalistas poderiam
ajudar a tornar o sistema viável, de modo que reduzisse desigualdades e
superasse o impasse distributivo.
De volta ao futuro, o foco nas crianças parece crucialparaopaís finalmente se
reconciliar com o seu futuro.
NOTAS
1. Adoto aqui a já consagrada concepção de desenvolvimento como expansão de
capacitações multidimensionais proposta por Amartya Sen. Ver Sen (2000).
2. O coeficiente de Gini é utilizado para medir o grau de desigualdade na
distribuição de renda. Varia entre zero, ou igualdade perfeita, e um, ou
desigualdade perfeita (situação na qual uma pessoa detém toda a renda e as
demais são desprovidas dela).
3. Um número especial da revista Econômica(2006) - "A Queda da Desigualdade no
Brasil" - foi inteiramente dedicado à mensuração da queda da desigualdade e à
discussão de seus determinantes.
4. A queda anual brasileira no período é estimada em 0,7 ponto de Gini,
superior à observada nos Estados Unidos, França, Noruega, Países Baixos, Reino
Unido e Suécia no período de consolidação do Welfare Statenesses países. Aqueda
espanhola é de 0,9 pontode Gininesse período.
5. A linha de pobreza de referência do programa era inicialmente o salário
mínimo oficial, sendo considerada pobrea família cuja renda per capitafosse
inferior a meio salário mínimo; e muito pobrea família cuja renda média fosse
inferior a um quarto do salário mínimo. Contudo, a política de reajuste real do
salário mínimo pode ter sido responsável pela opção feita pelo governo de não
indexar a linha de pobreza do programa ao salário mínimo.
6. Em 2007, o governo anunciou a intenção de expandir o programa para incluir
jovens de 16 e 17 anos das famílias beneficiárias em resposta aos altos níveis
de evasão escolar detectados entre adolescentes nessa faixa etária.
7. Essa opinião tem sido frequentemente reiterada pelo editor do jornal de
maior circulação no Rio de Janeiro, Ali Kamel. Durante o ano de 2008, em
seguida à divulgação de uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), esse editor reafirmou seu ponto de vista enquanto
denunciava que os recipientes do Bolsa Família estariam comprando
eletrodomésticos e que o governo, em vez de financiar esse tipo de consumo,
deveria investir em escolas (OGlobo, 4 /3/2008).
8. O presidente da Comissão, dom Aldo Pagotto, fez essa declaração durante uma
entrevista coletiva à imprensa da Confederação Nacional dos Bispos Brasileiros
(CNBB) em 17 de novembro de 2006. Ver http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/
2006/11/17/materia.2006-11-17.6055581924/view. Acessado em 26/3/2008.
9. Ver, por exemplo, entrevista concedida pelo economista e demógrafo Eduardo
Rios-Neto, da UFMG, coordenador da AIBF (2007), para o jornal O Globo, em 29/3/
2008.
10. A Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) foi criada
originalmente como um imposto provisório em 1993, o Imposto Provisório sobre
Movimentação Financeira (IPMF), e recriada como uma contribuição em 1997; e
acabou se mantendo inercialmente desde 1999. Antes de sua rejeição, em 2007, a
CPMF incidia na forma de uma alíquota de 0,38% sobre retiradas e transferências
entre contas bancárias. Seu objetivo era financiar gastos públicos em saúde,
previdência social e aportar recursos para o Fundo de Combate e Erradicação da
Pobreza, importante fonte de financiamento do Bolsa Família.
11. No entanto, perspectivas positivas de crescimento econômico, elevação de
outros tributos e maior controle sobre a sonegação de impostos podem ajudar a
preencher o vazio deixado pela contribuição. O problema básico segue sendo a
previsibilidade limitada dessas outras fontes de financiamento.
12. Os impostos indiretos representam mais de 50% do total de impostos
arrecadados no Brasil.
13. Deve ser mencionado, a propósito, que, em entrevista concedida ao jornal O
Globo, publicada em 19/5/2008, o empresário Paulo Skaf, presidente da Federação
das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), declarou que durante seis meses
(e até o desfecho favorável à sua causa) fez lobbyno Senado pela rejeição da
CPMF.
14. O erro de inclusão é calculado como a razão entre o número de beneficiários
não pobres e o total da população beneficiária. O erro de exclusão corresponde
à razão entre os não beneficiários pobres (elegíveis) e o total de pobres
(elegíveis) (Soares, Ribas e Osório, 2007).
15. Ver http://www.oportunidades.gob.mx/index.html. Acessado em 23/3/2008.
16. Korpi e Palme (1998), por exemplo, notam que a formação de coalizões e a
definição de interesses estariam condicionadas por características
institucionais do Estado do Bem-Estar Social, em particular por sua orientação
focalizadora ou universalista. Eles encontraram evidência em apoio a essa
hipótese nos países da OCDE. Ver também simulações de restrições orçamentárias
geradas endogenamente por políticas focalizadas, que mostram como o orçamento
disponível para redistribuição tende a ser menor em um contexto de políticas
que focalizam os mais pobres (Gelbach e Pritchett, 1997).
17. Essa ideia foi ventilada em um workshopsobre distribuição de renda ocorrido
na Universidade Federal Fluminense (UFF), em 2007, pelo economista Ricardo Paes
de Barros, um dos mais importantes especialistas em política social no Brasil e
ex-diretor de políticas sociais do IPEA. Ver também Carvalho (2006), uma
colaboradora de Paes de Barros, para argumentos nesse sentido.
18. A propósito, a combinação entre baixos benefícios e curta jornada escolar
está provavelmente por trás da ainda alta taxa de participação infantil no
mercado de trabalho de crianças e adolescentes de famílias beneficiárias do
Bolsa Família. Segundo o IBGE (2008), essa participação era mais de duas vezes
maior entre famílias inscritas nos programas sociais do que entre famílias não
inscritas (14,4% versus6,5% de crianças entre 10 e 14 anos).
19. OECD (2007a). Os números são de 2004.
20. Ver OECD (2007b) e WHO (2007). Os dados dos países da OCDE se referem ao
ano de 2006.
21. Esse argumento é problemático, pois supõe que as pessoas sejam incapazes de
julgar o que é melhor para elas. Por que supor que os beneficiários só
colocariam seus filhos nas escolas ou os levariam ao posto de saúde se fossem
monetariamente compensados por isso?
22. Essa posição tem sido abertamente advogada, por exemplo, pelo economista
José Márcio Camargo, especialista em política social, um dos criadores do
programa Bolsa Escola, que acabou dando origem ao Bolsa Família. Em 2005, ele
argumentou nesse sentido em uma reunião preparatória para o World Development
Report 2006, no Rio de Janeiro.
23. Soares, Ribas e Osório (2007), por exemplo, sugerem que esse problema pode
ser importante no que se refere às condicionalidades de nutrição e saúde.
Sugerem ainda que o desempenho comparativamente baixo de estudantes de famílias
beneficiárias pode indicar problemas de qualidade escolar insuficiente.
24. Cerca de 4.000 famílias tiveram os benefícios cancelados em setembro de
2007 em virtude da não obediência às condicionalidades por cinco períodos
consecutivos.
25. O programa pode encolher simplesmente porque não se expande, o que poderia
ocorrer se o valor dos benefícios fosse mantido ou com a eventual saída de
beneficiários. O uso de estratégias indiretas de retração de políticas sociais
foi muito importante, por exemplo, nos Estados Unidos pós-anos 1980. Ver Hacker
(2003).
26. Essa tem sido a linha de argumentação de Ricardo Paes de Barros e seus
colaboradores.
27. A importância das ideias no processo de produção e de implementação de
políticas sociais é crucial, como mostra Béland (2005). Não apenas as ideias
sobre políticas são importantes, como também o são os repertórios ideológicos
mais amplos em que estão aninhadas. Nas palavras de Béland, os "atores
políticos se baseiam em repertórios [ideológicos] para construir descrições
destinadas a convencer a população a apoiar as opções de políticas públicas que
eles advogam" (ibidem:1; tradução da autora).
28. Agradeço a Gøsta Esping-Andersen por direcionar minha atenção para a
questão crucial da educação infantil.
29. Vários, incluindo o editor-chefe de O Globo, Ali Kamel.
30. Há programas interessantes desenvolvidos em muitos países, entre eles os
americanos Head Start e Perry Preschool, e o britânico Sure Start. Tanto este
último quanto o Perry Preschool vão além dos serviços para as crianças pequenas
e envolvem também as famílias por meio de certo número de serviços para os
pais. O Sure Start tem um programa de escolas estendidas para crianças pobres
(essencialmente atividades desenvolvidas além do horário escolar). Algumas
avaliações desses programas mostram o sucesso relativo daqueles que "investem"
também nas famílias, pois esses investimentos prolongam os efeitos das
intervenções sobre as crianças pequenas (Heckman e Carneiro, 2003).
31. A exceção importante vem do campo de pesquisadores da educação. Para uma
visão crítica, ver Kerstenetzky (2006a).
32. A contraposição entre focalização e universalização, com destaque para os
vários sentidos de focalização, é discutida em Kerstenetzky (2006b).