As redes sociais importam para a pobreza urbana?
INTRODUÇÃO
As literaturas sociológica e de estudos urbanos recentes têm destacado
crescentemente a importância das redes sociais para a sociabilidade urbana e
para as condições de vida dos indivíduos. Apesar disso, são relativamente raros
os estudos sobre o tema, em especial enfocando conjuntamente os efeitos da
segregação residencial e das redes. Como sabemos desde pelo menos o trabalho
seminal de Wilson (1987), ambas conformam estruturas de médio alcance que
medeiam o acesso dos indivíduos a estruturas de oportunidades. Analisar os
efeitos diferenciados dos padrões de relação dos indivíduos em situação de
pobreza que habitam locais submetidos a diferentes graus de segregação é o
objetivo deste artigo. Baseio-me em pesquisa recente mais ampla, que analisou
as redes sociais e a sociabilidade de indivíduos em situação de pobreza em São
Paulo (Marques, 2009).
A relevância do tema é ao mesmo tempo acadêmica e ligada à construção das
políticas sociais (Perri 6, 1997). Por um longo período, a ênfase da literatura
e das políticas de combate à pobreza esteve em atributos pessoais dos
indivíduos e das famílias em situação de pobreza, tentando dotá-los de
características que supostamente seriam estratégicas para que saíssem da
pobreza e ascendessem socialmente. Embora outras dimensões tenham sido
incorporadas ao longo do tempo, uma parte importante das iniciativas públicas
continua orientada por esse viés. Essa compreensão "atomista" da pobreza talvez
seja explicada pela hegemonia de uma visão (marcada pelo discurso econômico)
que foca a existência ou a inexistência de rendimentos monetários ou, no
máximo, de ativos individuais entendidos dentro do marco das discussões do
capital humano e associados à educação, às boas condições de saúde etc. Segundo
essa visão, esses elementos seriam importantes por permitir aos indivíduos
acessar mais facilmente, ou com melhores credenciais, estruturas de
oportunidades similares às consideradas quando se pensa apenas nos rendimentos.
Embora essas dimensões sejam absolutamente essenciais para a compreensão da
pobreza e para o seu enfrentamento pelas políticas de Estado, tanto trabalhos
acadêmicos quanto as políticas já implementadas demonstram que outros elementos
podem também ser fundamentais.
Em período recente, deslocamentos importantes têm ocorrido até mesmo no
interior dessa tradição, incorporando o efeito de processos coletivos e
sociais. É nessa direção que caminham as discussões sobre os efeitos de
vizinhança, os role model effectseos peer group effects, assim como sobre o seu
impacto nas situações de privação e pobreza. Embora incorporando elementos
supraindividuais, esses deslocamentos não contribuem para o rompimento da visão
atomista que marcava a literatura anterior, visto que esses processos são
entendidos usualmente como elementos ambientais que influenciam aquelas mesmas
propensões e capacidades individuais já citadas, e não como lócus de dinâmicas
próprias que impactam as condições sociais.
A consideração da influência dos padrões de relação sobre as situações sociais
nos afasta tanto de análises estruturalistas e holistas da pobreza, que derivam
essa condição diretamente de dinâmicas estruturais, usualmente da economia e do
mercado de trabalho, quanto de perspectivas individualistas e atomistas, que
veem a pobreza como simples resultado de atributos individuais e comportamentos
e decisões pessoais.
A adoção de uma perspectiva relacional não pretende negar a importância das
chamadas condições econômicas objetivas nem das estratégias e dos
comportamentos individuais, ambos absolutamente essenciais para a compreensão
do fenômeno. No entanto, a integração da sociabilidade e das redes aos
constrangimentos econômicos mais amplos e às escolhas individuais permite
avançar para a superação da dicotomia entre estrutura e ação que marca a maior
parte das interpretações sobre o tema. Com relação ao conteúdo dos processos
mobilizados, por outro lado, esse tipo de análise possibilita a construção de
um ponto de partida não apenas econômico para o estudo da pobreza, inserindo
essa dimensão nos processos sociais que o cercam.
Neste artigo, exploro as associações entre os padrões de relação e a
sociabilidade dos indivíduos e algumas das dimensões mais importantes do acesso
a bens e serviços obtidos em mercados: obtenção de trabalho; obtenção de
trabalho com alguma proteção; precariedade social; e rendimentos monetários. O
trabalho e o rendimento representam os elementos mais comumente associados pela
literatura à pobreza, enquanto a precariedade estabelece uma medida síntese das
condições sociais negativas, tentando apontar para as situações mais precárias
entre os mais pobres. Foram estudadas redes de 209 indivíduos, em situação de
pobreza, que habitam sete locais na Região Metropolitana de São Paulo,
submetidos a diferentes condições de segregação, além de trinta indivíduos de
classe média, entrevistados para gerar um controle da variabilidade do
fenômeno.
Vale dizer que a causalidade entre esses elementos é considerada biunívoca; ou
seja, as redes influenciam os processos, mas são também impactadas por eles.
Assim, a distinção que estabeleço é apenas analítica; em termos ontológicos,
tanto atributos individuais e situações sociais quanto redes se produzem e se
influenciam mutuamente. A construção de padrões de relação e atributos se dá de
forma concomitante e imbricada ao longo das trajetórias de vida dos indivíduos.
O artigo está dividido em quatro seções, além desta introdução. Na primeira,
discuto a literatura sobre o tema e construo conceitualmente o objeto
analisado. A segunda seção descreve o desenho de pesquisa e as opções
analíticas adotadas. Na terceira, são apresentados os resultados alcançados. Na
última seção, resumo as principais descobertas.
A POBREZA E AS REDES NA LITERATURA
A pobreza foi estudada tradicionalmente por investigações centradas em
processos estruturais e sistêmicos que derivaram as condições de vida e a
pobreza diretamente da especificidade do nosso capitalismo (periférico) ou das
dinâmicas dos nossos mercados de trabalho, marcados em especial por desemprego
e informalidade. Mais recentemente, em especial desde os anos 1970, o campo se
tornou dominado por uma literatura focada em atributos individuais, sendo
processos e elementos sociais entendidos apenas como constrangimentos à
inserção dos indivíduos.
Apesar disso, uma parcela da literatura avançou recentemente ao sugerir a
incorporação do espaço (Wilson, 1987; Briggs, 2005), resultando em políticas
focadas operacionalmente no território, a fim de enfrentar acrise urbana,comoa
Politique de la Villefrancesa (Le Galès, 1996). De modo concomitante, foram
também integrados os efeitos multiplicadores de precariedade social na cidade,
sobretudo em termos de cumulatividade de processos negativos e desegregação
socio espacial (Briggs, 2003). A introdução desses elementos e a construção de
políticas em tal direção representam um avanço que apenas lentamente chega ao
Brasil (Torres, 2005; Marques e Torres, 2005). Entretanto, a experiência
internacional de políticas e trabalhos acadêmicos recentes (Blokland, 2003) têm
demonstrado que apenas a incorporação do local de moradia, entendido como
"ambiente", parece não dar conta de todos os desafios a serem enfrentados
(Briggs, 2005).
Acredito que, para avançarmos na compreensão da pobreza, é necessária uma
mudança de enfoque que supere o paradigma atomista e parta de uma ontologia
verdadeiramente relacional, no sentido de Emirbayer (1997) e Tilly (2001). Para
isso, temos que trazer as relações para o centro da análise, mesmo que levando
em conta os atributos, pois ambos se influenciam dinamicamente de forma
contínua. Certo olhar sociológico sobre o tema tem defendido, já há algum
tempo, a importância de elementos sociais de natureza coletiva e
supraindividual (Massey e Denton, 1993), assim como processos extraeconômicos
na produção e na reprodução da pobreza (Paugam, 2005). No contexto dessa
perspectiva, apobreza não seria vista apenas como uma questão de reprodução
econômica, mas de integração social e de pertencimento, considerando uma
abordagem relacional da pobreza.
No caso brasileiro e latino-americano, marcado por uma herança de estudos mais
estruturais sobre o tema (Moya, 2004), essa literatura exerceu uma influência
acadêmica razoável, mas não chegou a construir um conjunto de elementos que
permitam operacionalizar pesquisas empíricas sobre o assunto, de maneira que
testasse a importância dos elementos destacados e cotejasse essa importância
com a das variáveis individuais. A presente pesquisa se insere nesse debate,
deslocando a ênfase e estudando detalhadamente as principais características
das redes sociais de indivíduos em situação de pobreza, os seus condicionantes
e as consequências desses padrões relacionais para as situações de pobreza
urbana encontradas.
A questão é de especial relevância, pois uma geração recente de
políticasdecombate à pobreza já tem as redes como um dos elementos de
interesse1. Na verdade, como é amplamente aceito por essa literatura (Policy
Research Initiative, 2005a; 2005b), e comprovado por estudos brasileiros, como
Pavez (2006), as ações do Estado já impactam as redes sociais de modo não
intencional, mas a sua consideração explícita pode ser bastante útil para o
desenvolvimento das políticas públicas. Considero que a relação entre redes e
políticas envolve basicamente duas formas de interação.
Em primeiro lugar, as redes podem ajudar a melhorar a implementação, tornando
as iniciativas públicas mais capazes de alcançar os seus alvos (Trotter, 1999),
como no caso da incorporação de associações não governamentais na política
brasileira de combate à Aids, hoje referência internacional, ou ajudando a
customizá-las a aspectos locais, inclusive culturais, como na contratação de
agentes comunitários nas políticas de saúde (Lotta, 2006). Uma segunda linha de
importância das redes, entretanto, é menos operacional e mais substantiva. As
redes têm sido citadas como um dos elementos que caracterizam a pobreza e que
devem ser diretamente impactados pelas ações do Estado (Levitas et alii, 2007;
Policy Research Initiative, 2005a; Perri 6, 1997). Esse é o caso de amplo, mas
ainda recente, conjunto de políticas de combate à pobreza formuladas a partir
do conceito de capital social (Policy Research Initiative, 2005b; Cechi,
Molinas e Sabatini, 2008; Perri 6, 1997). Essa geração de políticas já chegou
ao Brasil, embora de forma acrítica e sem a menor especificação dos mecanismos
associados às redes, tornando a sua citação pouco mais do que um elemento
retórico.
A questão de fundo que parece representar um importante obstáculo ao
desenvolvimento de políticas que não apenas sejam informadas da existência das
redes, mas as incorporem e ajam sobre elas, é que se sabe pouco sobre o
fenômeno, assim como sobre a sua contribuição para a reprodução das situações
de pobreza. Se quisermos levar às últimas consequências a dimensão relacional
da pobreza (Perri 6, 1997), é preciso compreender muito mais detalhadamente os
padrões de relação que cercam os indivíduos. O estudo das redes de indivíduos e
comunidades, portanto, encontra-se em posição de destaque também em nível
internacional na interface entre o conhecimento acadêmico e o desenvolvimento
de políticas eficazes de combate à pobreza (Policy Research Initiative, 2005a;
2005b).
Embora o destaque das redes sociais nos debates de políticas seja recente, a
sua presença é mais antiga na produção acadêmica de ciências sociais. A
preocupação já se fazia presente na ontologia social considerada por clássicos
da sociologia, como Simmel (1972) [1908], e foi objeto de atenção destacada em
estudos diversos ao longo dos últimos trinta anos. Os debates das redes sociais
e pessoais se associam (ou podem se associar) ao tema da pobreza, permitindo
incorporar simultaneamente elementos mais gerais da estrutura social e a
sociabilidade cotidiana dos indivíduos. Vale adiantar aqui que as redes são
exploradas como elemento importante na promoção tanto de coesão social
(bonding) quanto na construção de conexões e de integração social (bridging),
no sentido dado aos termos por Briggs (2001). O primeiro efeito pode auxiliar
na produção de identidades, na promoção de sensação de pertencimento e na
construção de controle social nas comunidades. O segundo efeito tem
consequências sobre a integração social, a redução do isolamento de grupos
sociais específicos e a construção de padrões de sociabilidade com troca e
integração mais intensa entre grupos. Tanto redes sociais quanto redes pessoais
produziriam potencialmente coesão e integração.
Assim, as redes dos indivíduos devem ser incorporadas necessariamente aos
nossos modelos explicativos da reprodução da pobreza, se pretendemos considerá-
la de forma relacional e multidimensional (Mingione, 1996; Levitas et alii,
2007). Nesse sentido, uma ampla literatura tem citado a conexão entre redes e o
que Lin (1999) denomina realização de statusao longodociclo de vida - a
aquisição de características individuais que são construtoras de hierarquias
sociais, como rendimento, escolaridade, cultura etc. Segundo essa concepção,
diversos processos e atributos sociais dependeriam da existência de um tipo
específico de capital social composto de elementos coletivos produzidos e
estocados acima do nível dos indivíduos, mais precisamente nas suas teias de
relações (Perri 6, 1997). Para os autores que tentam conectar o capital social
às redes, as características comportamentais destacadas pela literatura, como
confiança mútua e civismo (a partir de Putnam, 1996), seriam geradas e
reproduzidas pelas redes de relações. Sugere-se que "capital social se refere
às redes de relações sociais que podem prover aos indivíduos e grupos o acesso
a recursos e apoio" (Policy Research Initiative, 2005b:5; tradução do autor).
Esse elemento é destacado por uma parte importante dos diagnósticos
internacionais recentes do tema (Policy Research Initiative, 2005a; 2005b;
Cechi, Molinas e Sabatini, 2008; Perri 6, 1997; Levitas et alii, 2007).
Adicionalmente, a análise de redes também pode ajudar a refinar o nosso
entendimento sobre os efeitos da segregação territorial sobre a pobreza, outro
tema já bastante investigado pela literatura (Wilson, 1987; Jargowsky, 1997;
Briggs, 2001). Nesse particular, apenas estudos empíricos que trabalhem
conjuntamente espaço e redes podem ajudar a avaliar em que medida as redes
integram locais segregados, conectandoosindivíduossubmetidosaessa condição
acontextos sociais mais amplos. Em termos gerais, o problema remete às relações
entre a estrutura social, a localização geográfica e a estrutura relacional do
social composta pelas redes. De maneira mais específica, a questão diz respeito
aosacessosdesiguais queosindivíduospodem terabens materiais oriundos de
serviços, políticas e mercados de trabalho ou a elementos imateriais, como
repertórios e formas de viver. Nesse sentido, as redes poderiam ajudar a vencer
espaços geográficos e sociais e dar acesso aos indivíduos a círculos sociais
mais ou menos amplos, ou inseri-los nesses círculos. Assim, embora com sinais
trocados, tanto as redes sociais quanto a segregação apareceriam como
estruturas de acesso diferenciado às oportunidades presentes em uma dada
sociedade; e, a partir das quais, no entender da literatura sobre pobreza, os
indivíduos apresentariam as suas credenciais (ou ativos) e retirariam renda dos
mercados.
A PESQUISA
O estudo levantou as redes pessoais de 209 indivíduos em situação de pobreza e
de trinta indivíduos de classe média a fim de construir um padrão de
comparação. Para explorar os efeitos da segregação espacial sobre as redes
pessoais, foram escolhidos sete locais bastante distintos do ponto de vista da
inserção urbana, partindo de estudos anteriores sobre a distribuição espacial
dos grupos sociais em São Paulo. Foram levantadas aproximadamente trinta redes
pessoais em cada local estudado, além do grupo de controle de classe média, sem
especificação de local de moradia. Na verdade, se controlássemos a localização
residencial da classe média, encontraríamos um padrão concentrado no centro
expandido da metrópole, embora as suas redes se expandam por um amplo
território e não incluam praticamente nenhum indivíduo da sua vizinhança
física, em um padrão similar ao que Wellman (2001) denomina comunidades
pessoais. Esse padrão é muito distinto do encontrado entre indivíduos em
situação de pobreza, o que já indica enormes diferenças nos padrões de relação
e nas possibilidades de utilização dessas relações.
Optei por analisar redes pessoais, e não redes de comunidades ou redes
egocentradas em indivíduos. Diferentemente da maior parte da literatura
internacional, considero que uma parcela importante da sociabilidade que
influencia a pobreza e as condições de vida ocorre a distâncias maiores do ego
do que do seu entorno imediato2, razão pela qual são levantadas aqui as redes
totais dos indivíduos, sem limitar previamente o seu tamanho. Essa decisão se
mostrou muito acertada, pois as redes encontradas na pesquisa variaram entre
cinco e 148 indivíduos (cada qual representado posteriormente por um nó na
rede). Essa variabilidade de situações relacionais não teria sido captada pela
consideração apenas das redes egocentradas.
Os locais estudados resultaram de uma amostra intencional das localizações de
indivíduos em situação de pobreza na cidade do ponto de vista da distância ao
centro, dos graus de consolidação das áreas, dos padrões construtivos e dos
graus de intervenção do Estado. Entre os locais estudados, a localização mais
central inclui cortiços no Centro da cidade. As localizações mais segregadas e
distantes incluem uma favela na franja periurbana da Região Metropolitana, um
conjunto habitacional de grande porte na franja urbana da Zona Leste do
município de São Paulo e uma área bastante periférica na Zona Sul. Além dessas,
foram pesquisadas redes pessoais em duas favelas de grande porte com
localizações relativamente próximas ao centro expandido, uma contígua a um
bairro de renda extremamente alta, e outra contígua a bairros de classes média
e alta. Uma terceira favela de pequeno porte, próxima ao centro de um município
periférico e inserida em um distrito industrial, completa o conjunto estudado.
As entrevistas foram realizadas em dias de semana e em fins de semana entre
setembro de 2006 e agosto de 2007.
Em cada um desses locais, foram realizadas entrevistas com um questionário
semiaberto e um gerador de nomes. A escolha dos entrevistados em cada campo
ocorreu de forma aleatória ao longo de percursos pelos locais estudados, sendo
os indivíduos abordados nos espaços públicos ou na entrada das suas casas. Em
alguns casos, o acesso aos locais de estudo foi mediado por informantes de
pesquisas anteriores ou membros dos movimentos associativos locais. Ao longo do
trabalho de cada campo, a amostra de entrevistados foi controlada por alguns
atributos sociais básicos, como sexo, idade, statusmigratório e ocupacional, e
área de moradia no local estudado. Esse controle objetivou garantir uma
proporcionalidade razoável com as características médias da população local e
evitar a constituição de vieses. A comparação entre as características dos
entrevistados e da população estudada sugere que esse objetivo foi alcançado
com bastante sucesso.
A classe média foi definida de maneira ampla, mesclando critérios de rendimento
com ocupação, e inclui profissionais liberais, funcionários públicos, pessoas
envolvidas com atividades intelectuais e donos de estabelecimentos comerciais
de certo porte. A delimitação do grupo não seguiu maiores preocupações
conceituais ou metodológicas, visto que o objetivo das entrevistas com
indivíduos assim classificados era apenas constituir um padrão de comparação
para a análise das redes de indivíduos em situação de pobreza. As informações
das redes de classe média, portanto, foram usadas apenas como parâmetro e nunca
em análises mais centrais e conclusivas.
Essas informações foram posteriormente tratadas com ferramentas de análise de
redes sociais, resultando em 239 redes pessoais. Em seguida, explorei diversas
características das redes dos indivíduos em situação de pobreza, acessando os
seus principais condicionantes e os processos que influenciam na sua formação e
dinâmica, comparadas com as redes de classe média. Foram estudados os processos
de criação e rompimento de vínculos, as dinâmicas da homofilia3 e os
condicionantes sociais de construção e manutenção de redes. As redes variam
segundo diversos atributos e variáveis específicas, incluindo sexo, ciclo de
vida, statusmigratório e ocupacional, entre outras. De forma geral,
praticamente inexistem relações dos indivíduos com pessoas de grupos sociais e
de renda diferentes dos seus. Essa é talvez uma das mais importantes
características dessas redes para a reprodução da pobreza e da desigualdade
social. Naturalmente, a questão não se origina nas redes, mas representa apenas
uma faceta relacional da estrutura social.
Em seguida, e já com as análises estatísticas realizadas, escolhi um conjunto
de redes pessoais para empreender a parte qualitativa da pesquisa. Os critérios
para a escolha dos casos combinaram os tipos de rede encontrados, os campos
estudados e as características pessoais dos entrevistados. Ao todo foram
realizadas entrevistas qualitativas com vinte indivíduos, explorando as
transformações das redes desde as primeiras entrevistas, assim como a sua
utilização pelas pessoas no cotidiano, como na migração, na obtenção de
emprego, em ajudas com relação à saúde e a cuidados com as crianças, na
habitação, na obtenção de empréstimos de vários tipos, no acesso a apoio
emocional e a políticas públicas, entre outros tipos de auxílio. Essas
informações me permitiram compreender a dinâmica dos padrões relacionais e a
sua mobilização pelos indivíduos. Os padrões e as recorrências observados me
levaram a delimitar mecanismos sociais responsáveis tanto pela constituição e
transformação das redes quanto pela sua mobilização pelos indivíduos nas suas
práticas.
O presente artigo apresenta a parcela da pesquisa relativa à análise
quantitativa das consequências das redes para a situação social dos indivíduos,
em especial de pobreza, sendo o leitor remetido a Marques (2009) para a parte
qualitativa e a discussão dos mecanismos.
RESULTADOS
Os resultados apresentados ao longo desta seção se referem aos testes empíricos
da importância das redes para o acesso a bens e serviços obtidos em mercados
que influenciam a pobreza e as condições de vida. Alguns resultados anteriores
da pesquisa, entretanto, devem ser reportados a seguir para que se compreendam
as dimensões discutidas.
Em primeiro lugar, os resultados demonstraram que, quando comparadas com as
redes de classe média, as redes pessoais de indivíduos pobres tendem a ser
menores, mais locais e menos variadas em termos de sociabilidade. Apesar disso,
elas variam substancialmente entre si, sendo bastante difícil encontrar
relações diretas entre variáveis socioeconômicas e padrões de relação. Os
principais efeitos de condicionantes socioeconômicos sobre as redes são os que
se seguem. Apenas a título de exemplo, apresento a seguir os sociogramas das
redes de uma mulher pobre, moradora de um conjunto de periferia, e de uma
mulher de classe média. Ambas são casadas e apresentam indicadores próximos da
média de cada grupo.
Embora tenhamos trabalhado com indivíduos no interior da pobreza, os
dadosmostraram que os mais pobres entre os pobres têm redes com menor
variabilidade da sociabilidade, localismo mais elevado e maior importância da
vizinhança. De forma geral, esses resultados apontam para a dificuldade que os
indivíduos mais pobres têm de fazer frente aos custos de constituir e manter
vínculos. A escolaridade tem aparentemente um efeito similar, embora
independente, mesmo que controlada pela renda. Indivíduos com escolaridade mais
elevada, mesmo entre os mais pobres, tendem a ter redes mais ricas e menos
locais em termos de vínculos, reforçando a ideia, presente na literatura
internacional, que atribui um papel importante ao ambiente escolar na
construção de vínculos sociais diversificados. A existência dessas duas
dinâmicas combinadas (visto que renda e escolaridade se encontram altamente
correlacionadas) cria provavelmente importantes efeitos de circularidade na
perpetuação da situação social e relacional dos mais pobres, com consequências
importantes não apenas para a pobreza mas também para a desigualdade social.
Padrões relacionais diferentes e atributos distintos tendem a construir o tipo
de reforço que caracteriza as "desigualdades persistentes", embora nesse caso
não sejam necessariamente desigualdades categoriais, considerando o sentido de
Tilly (2005).
Em consonância com o descrito pela literatura internacional, o ciclo de vida
apresenta importantes efeitos sobre as redes (Bidart e Lavenu, 2005; Blokland,
2003), embora no nosso caso os resultados apareçam sobretudo nos dois extremos
da estrutura etária. A velhice tende a reduzir as redes e a torná-las menos
ricas, em termos de sociabilidade, mais locais e mais centradas na família. Os
jovens, por outro lado, não têm redes substancialmente diferentes dos demais
indivíduos (ao contrário do que sustenta a literatura), mas têm uma
sociabilidade mais centrada nos estudos e na amizade, além de redes mais locais
do que a médiada amostraestudada. A análise posterior dos tipos de rede sugeriu
ainda que idosos e jovens estão associados a duas situações relacionais
típicas, com, respectivamente, tamanhos muito pequeno e bastante grande, mas
ambas com sociabilidade local e bastante homofílica.
Embora a pequena participação dos indivíduos em associações não nos permita
concluir o seu efeito sobre as redes, a frequência a templos (e não a adesão a
credos religiosos) tem efeitos sobre as redes. As pessoas que frequentam
intensamente templos religiosos (mais do que quinzenalmente) tendem a ter maior
diversidade de sociabilidade, mesmo quando as diferenças são controladas pelo
rendimento. O efeito tende a desaparecer quando controlado pela sociabilidade
(e não pela renda), o que nos impede de separar completamente os dois efeitos.
O sexo dos indivíduos tende a não produzir efeitos significativos sobre as
redes, embora haja evidências não conclusivas de que as mulheres tenham redes
um pouco maiores, menos associadas à família, ao trabalho e ao lazer. A
aquisição de nós por redes e na igreja é mais frequente para as mulheres; a de
contexto familiar, para os homens. Quando se consideram apenas homens e
mulheres que trabalham, as redes das mulheres se apresentam maiores. Essa
diferença se mantém quando se comparam homens e mulheres que trabalham fora da
comunidade, embora as diferenças de sociabilidade desapareçam, sugerindo que as
diferenças talvez não se liguem a sociabilidades distintas em si, mas a
diferentes inserções sociais nas esferas pública e privada que os mercados de
trabalho possibilitam. Esses resultados confirmam os apresentados por Moore
(1990) para o contexto norte-americano usando redes egocentradas.
Também não foram encontradas diferenças organizadas segundo o statusmigratório,
nem mesmo quando se consideram separadamente migrações recente e antiga, embora
a proporção de conterrâneos vá diminuindo com o tempo. Na verdade, as
principais diferenças aparecem quando delimitamos um subgrupo de migrantes que
têm muitos conterrâneos nas suas redes. As redes desses indivíduos são menorese
menos variadas socialmente. Nesses casos, tratava-se da presença de
conterrâneos conformando verdadeiras comunidades transplantadas (por vezes de
locais muito pequenos, sendo a vizinhança mantida no local estudado em São
Paulo), de forma similar ao que foi discutido por Portes (1999), Maya Jariego
(2003) e Dujisin e Maya Jariego (2005). Os resultados da análise dos
condicionantes da precariedade social comentados mais adiante reforçam esses
achados.
Por fim, confirmando resultados prévios presentes na literatura, a relação
entre espaço urbano e redes indicou que as redes de indivíduos pobres
sãomarcadaspor intensolocalismo.Nocasodaclasse média, não há praticamente
nenhum localismo ou vizinhos nas redes, e a própria ideia de comunidade ou de
dentro/fora não faz nenhum sentido. Os indivíduos de classe média constroem
suas redes em espaços geográficos muito mais amplos, incluindo laços por toda a
cidade, mas também em outras cidades ou países, em um padrão próximo ao que
Wellman (2001) denomina "comunidades pessoais desterritorializadas".
A hipótese inicial de um efeito direto da segregação social no espaço sobre as
redes não se verificou, e a segregação (macrossegregação, na escala da cidade)
parece não impactar diretamente o tamanho, a atividade e a estrutura das redes.
Apesar disso, indivíduos de regiões mais segregadas tendem a ter redes com
menor localismo, em especial se o local de moradia é de pequena escala. Assim,
se há efeito da segregação sobre as redes, parece operar para tornar a
sociabilidade mais ampla em termos urbanos e, talvez, mais diversificada,
favorecendo as redes de locais mais segregados.
Portanto, a análise sugere que a relação entre segregação e redes é mais
complexa do que a descrita pela literatura e do que a formulada na minha
hipótese inicial. Embora as redes não variem substancialmente segundo o grau de
segregação dos locais estudados, aparentemente ajudam a integrar uma parte dos
indivíduos que estão segregados. A análise dos condicionantes dos rendimentos
comentada a seguir confirma esse achado.
Considerando a variabilidade encontrada nas redes, a estratégia que segui para
analisá-las foi a construção de tipologias. Foram construídas duas tipologias
utilizando análise de cluster: das redes dos indivíduos pobres (a partir de
indicadores das redes) e dos seus padrões de sociabilidade (a partir da
distribuição proporcional das redes pelas esferas de sociabilidade). Os achados
indicam que, embora as redes de indivíduos em situação de pobreza sejam em
geral menores, mais locais e menos variadas do que as de indivíduos de classe
média, variam muito, e também se observam redes grandes e de sociabilidade mais
variada, assim como redes menores e com isolamento urbano significativo. É
interessante destacar que o tamanho, a variabilidade da sociabilidade e o
localismo não caminham juntos, e as redes maiores são muito locais. Essa
característica também está presente nas redes muito pequenas, sendo as de
tamanho médio as que apresentam menor localismo.
No que diz respeito à sociabilidade dos mais pobres, os dados também sugerem a
existência de padrões muito diversificados. Se, por um lado, podemos notar a
existência de padrões de sociabilidade muito locais e baseados em vínculos
primários (basicamente família, vizinhança e amizades), uma parte significativa
das redes apresenta sociabilidade pouco local e produzida substancialmente em
ambientes organizacionais ou institucionais (trabalho, igreja, associativismo).
O cruzamento dessas heterogeneidades, ao mesmo tempo que confirmou a
heterogeneidade das redes, sugeriu a existência de padrões relacionais amplos,
com sociabilidade variada e homofilia potencialmente menor, mesmo entre os
pobres. Essas situações relacionais se mostraram centrais para a explicação das
situações sociais em geral e de pobreza em particular, como veremos a seguir4.
Trabalho
A maior parte dos indivíduos obteve trabalho por contatos através de redes -
66%5. Entretanto, quais são as principais consequências das redes dos
indivíduos para os seus trabalhos e até que ponto esse efeito não pode ser
creditado a outras variáveis consideradas tradicionalmente pela literatura? No
teste que se segue, utilizei medidas de rede e incluí como "com trabalho" os
indivíduos empregados com e sem carteira, domésticos ou não (74 casos), assim
como os pequenos proprietários (17 casos) e os trabalhadores em negócios
familiares (apenas três casos)6. Considerando as características das atividades
declaradas como trabalho autônomo, julguei esses casos como representando
desemprego oculto, somando-os ao desemprego na conformação dos "sem trabalho"7.
Os indivíduos com trabalho totalizavam 94 (45% dos entrevistados), contra 57
indivíduos sem trabalho (27%) e outros 58 (28%) em que não se aplicavam as
condições (donas de casa, aposentados e estudantes).
Primeiramente, para avaliar a associação entre a condição "ter trabalho" e as
redes, procedi a testes de análise de variância com medidas de rede
separadamente. Os resultados indicam que a variabilidade da sociabilidade dos
indivíduos e o localismo têm efeitos significativos8, sendo que as redes dos
com trabalho tendem a ser levemente mais locais e a ter sociabilidade mais
variada. O tamanho e outras medidas das redes não apresentam associação com a
condição de trabalho.
Os tipos de rede, por outro lado, não apresentam efeito direto sobre o statusde
estar empregado9. No que diz respeito à sociabilidade, os indivíduos que têm
sociabilidade ligada ao trabalho têm maior probabilidade de estarem empregados
do que os demais (significativo a 95% de significância). A causalidade, nesse
caso, não é nem um pouco clara, visto que é razoável imaginar que quem tem
sociabilidade intensa ligada ao trabalho tem ou teve trabalho em período
relativamente recente. Essa é a única sociabilidade que apresenta significância
individualmente. Entretanto, indivíduos que têm sociabilidades ligadas a
ambientes institucionais - igreja, trabalho e associações - também tendem a
estar significativamente mais empregados do que os que têm sociabilidade mais
local e primária - família, vizinhança e amizade.
Para analisar o efeito conjunto dos condicionantes sociais e relacionais,
utilizei uma técnica exploratória de classificação por árvore conhecida
comumente como Chaid. O método estuda basicamente a relação entre
umavariáveldependenteeuma sériedevariáveis preditoras queinteragem entre si,
escolhendo sucessivamente as de maior poder explicativo, em uma árvore de
associações10. Na explicação do statusde "ter trabalho", foram utilizadas
dezoito variáveis: relacionais, socioeconômicas, etárias, migratórias e
espaciais11. A Figura_3 acima apresenta a informação.
O resultado indicou o tipo de sociabilidade dos indivíduos como o que mais
diferencia as situações de ter ou não trabalho, sugerindo que sociabilidades
mais primárias e mais tendentes à homofilia - família, vizinhança e amizade -
tendem a gerar piores situações com relação a trabalho. O resultado é
evidentemente o mesmo com as sociabilidades com ênfase em ambientes
institucionais - igreja, trabalho e associações -, que representam o
complemento das anteriores. O modelo explicou corretamente 62,3% dos casos.
Como podemos ver, a incidência de trabalho é de 62% no conjunto dos casos
considerados (desconsiderando-se os aposentados, donas de casa e estudantes),
mas alcança 78% entre os indivíduos com sociabilidades menos primárias e apenas
55% entre os com sociabilidades mais primárias e mais locais. Entre quem não
tem esse último tipo de sociabilidade, apenas 22% não tem trabalho, contra 45%
entre as pessoas com sociabilidades concentradas na família, na vizinhança e na
amizade. Portanto, a análise indica a importância de os indivíduos terem
sociabilidades pouco homofílicas para o acesso a trabalho. É importante notar
que os tipos de sociabilidade aparecem como mais importantes mesmo na presença
de variáveis socioeconômicas consideradas clássicas nas discussões sobre o
tema, como a escolaridade, a renda, a idade, o statusmigratório e o grau de
segregação residencial a qual estão submetidos os indivíduos. Como já discutido
anteriormente, a causalidade presente aqui é provavelmente múltipla, e os
indivíduos tanto têm esse tipo de sociabilidade porque têm trabalho com mais
frequência quanto têm trabalho por terem esse tipo de sociabilidade. O caminho
mais profícuo para compreendermos essa associação não é a busca de uma direção
causal única, mas o estudo dos efeitos dos mecanismos ao longo das trajetórias
dos indivíduos (Marques, 2009).
Trabalho Protegido
Os indivíduos podem ter ou não trabalho, mas esse pode ter qualidade muito
diferenciada do ponto de vista da estabilidade e da proteção em termos tanto de
acesso a benefícios sociais quanto de certa estabilidade do vínculo no tempo.
Para testar o efeito das redes sobre a obtenção de trabalhos de melhor
qualidade, dividi os trabalhos em "trabalho protegido" - empregado com carteira
(doméstico ou não), proprietário e empregado em negócio familiar - e em
"trabalho pouco protegido" - empregados sem carteira, autônomos e
desempregados12. Essa condição envolvia 41% dos entrevistados, ou 59 casos, no
conjunto de 145 casos considerados13. Aposentados, donas de casa e estudantes
foram retirados da análise (31% do universo).
A análise indicou que nenhuma das medidas edos tipos de rede influencia
diretamente a obtenção de trabalho protegido. Por outro lado, novamente
indivíduos com sociabilidade proporcionalmente maior em instituições, menos
local e menos primária apresentaram maior probabilidade de ter emprego
protegido do que os demais. Entre os indivíduos com esse tipo de sociabilidade,
58% têm trabalho protegido, contra 33% dos que têm sociabilidades mais locais e
primárias14. Esse resultado voltou a aparecer para alguns tipos de
sociabilidade separadamente.
Com relação às sociabilidades, os indivíduos com sociabilidade caracterizada
pela vizinhança tendem a ter trabalho protegido menos frequentemente - apenas
30% -, enquanto no restante dos casos essa proporção chega a 46%. A
sociabilidade ligada ao trabalho também se apresenta significativa para a
associação com trabalho protegido e quem tem essa sociabilidade tem trabalho
protegido em 66% dos casos, contra 34% de quem tem outros padrões de
sociabilidade. No entanto, como já destacado, o sentido da causação não é
claro.
Para a análise conjunta dos condicionantes do trabalho mais protegido, foi
utilizada a mesma técnica de Chaid15. A Figura_4 acima apresenta a informação.
Como resultado, a técnica separou os indivíduos com sociabilidades na igreja ou
no trabalho dos demais (a sociabilidade do trabalho também apresentou
significância separadamente, mas menos destacada). O modelo explicou
corretamente 64% dos casos.
Conforme podemos ver, a incidência de trabalho protegido é de apenas 41% dos
indivíduos que participam do mercado de trabalho, mas chega a alcançar 58%
entre quem tem sociabilidade na igreja e no trabalho, e apenas 33% entre quem
tem outros tipos de sociabilidade. Portanto, de forma similar à análise
anterior, mesmo na presença de variáveis socioeconômicas clássicas, como anos
de estudo, statusmigratório, estrutura etária e renda, adimensão que mais
discrimina os indivíduos que têm trabalho protegido dos que não têm é a que
indica a existência de um padrão de sociabilidade pouco primária e
potencialmente menos homofílica.
Precariedade Social
Podemos analisar também de que forma as redes influenciam a presença de
situações de precariedade social em geral. Foi considerada "precária
socialmente" a situação em que o entrevistado apresentava ao menos duas
condições de precariedade entre quatro - familiar, habitacional,derenda
edetrabalho. Aproximadamenteumterço dosentrevistados - 31%, ou 64 casos - se
encontrava nessa condição, mas a distribuição das condições desagregadas de
precariedade variava bastante - apenas 12% na familiar, 16% na habitacional,
29% na relativa aos rendimentos e 60% na precariedade do trabalho.
Embora as situações de precariedade não encontrem associação direta com
características e tipos de rede, os tipos de sociabilidade voltaram a
apresentar relevância na mesma direção das análises anteriores. Em primeiro
lugar, indivíduos com sociabilidade centrada na vizinhança se mostraram mais
sujeitos à precariedade - a precariedade incidia sobre 46% de pessoas com essa
sociabilidade, enquanto sobre apenas 23% dos que tinham outros padrões de
sociabilidade. Em sentido oposto, ia novamente a sociabilidade do trabalho;
entre os indivíduos com esse padrão, apenas 12% eram precários, contra 34% dos
restantes. Um resultado similar e mais precário foi obtido com os indivíduos
com sociabilidade primária e local - família, vizinhança e amizade. Entre quem
tinha sociabilidade mais primária, 38% era precário, contra 15% entre quem
tinha outros tipos de sociabilidade. Portanto, quanto mais local e primária a
sociabilidade, maior a probabilidade de o indivíduo se encontrar em situação
social precária. Contrariamente, para os indivíduos cuja sociabilidade inclui
parcelas importantes que ocorrem em ambientes institucionais, a probabilidade
de precariedade se reduz16.
Os tipos de rede conjuntamente não apresentaram influência na precariedade, mas
as redes entre médias e pequenas tendem a estar associadas menos frequentemente
a precariedade. Entre os indivíduos com esse padrão de vínculos, 21% é
precário, contra 36% dos restantes.
As análises indicaram ainda que indivíduos com redes médias e sociabilidade
pouco local e pouco primária tendiam a estar menos sujeitos a situações de
precariedade do que os demais: apenas 11% dos indivíduos com esses padrões
relacionais apresentam precariedade, contra 35% de precários com as demais
situações relacionais.
Para a análise conjunta dos condicionantes da precariedade social, foi
utilizada novamente a técnica de Chaid com dezessete variáveis: relacionais,
socioeconômicas, etárias, migratórias e de trabalho17. Como a variável de
precariedade foi construída por escolha direta dos casos a partir da renda, da
estrutura familiar e da posição na ocupação, essas variáveis evidentemente não
puderam ser incluídas no modelo, caso contrário os resultados obtidos seriam
tautológicos. O mesmo ocorreu com a variável segregação. Como na construção da
precariedade está incluída a segregação habitacional, e como essa é muito mais
elevada nos cortiços, a relação entre segregação e precariedade seria forçada
pelo método. Por outro lado, variáveis relativas ao trabalho, que antes não
foram utilizadas, foram introduzidas aqui.
Como resultado, o método indicou três variáveis e o modelo ajustado explicou
corretamente 69% dos casos. A árvore resultante é a que se segue (Figura_5).
Novamente os resultados foram obtidos mesmo na presença de diversas variáveis
socioeconômicas mais tradicionais, como anos de estudo, idade e tempo de
migração. Como se pode ver, a precariedade incide sobre 31% dos casos, mas,
entre os indivíduos com redes médias e sociabilidade pouco local ou primária
(igreja, trabalho e associações), cai para um terço - 11%. Entre quem não tem
esse padrão relacional, por outro lado, a precariedade incide sobre 35% dos
casos. Esses resultados reforçam os anteriores, indicando a sociabilidade nas
redes como um dos principais condicionantes das situações sociais dos
indivíduos em pobreza.
Entretanto, a segunda linha indica que, entre os indivíduos com sociabilidade
mais local e primária, quem tinha sociabilidade centrada na família tendia a
ter situação menos precária. Os indivíduos com essa sociabilidade tinham, em
média, precariedade de 25%, alcançando 40% entre os que não tinham nem o padrão
relacional do primeiro nível da árvore nem a sociabilidade centrada na família.
Embora haja em parte aqui um efeito de método, já que a precariedade inclui uma
dimensão familiar, o resultado aponta de forma eloquente para o papel da
família na redução da precariedade em indivíduos que não contam com as
sociabilidades menos homofílicas.
Esse resultado pode parecer contraditório, pois a concentração da sociabilidade
na família, para o conjunto das pessoas estudadas, tende a estar associada mais
frequentemente à precariedade social, visto que essa situação está incluída no
lado esquerdo do primeiro nível da árvore (34,5% em situação precária, na
média). Entretanto, entre os indivíduos que não contam com redes médias e
sociabilidades menos homofílicas e menos locais, os que têm apoio familiar
conseguem reduzir relativamente o risco de cair na precariedade (segundo nível
da árvore), mesmo que não no mesmo patamar dos que apresentam asociabilidade
anterior (25,4% contra 11,4%). Os vínculos familiares, na verdade, estão
associados à prestação de ajuda para a solução de problemas cotidianos e para o
acesso a bens e serviços providos fora de mercados (Marques, 2009).
Por fim, entre os indivíduos nessa situação (sem a combinação do primeiro nível
e sem sociabilidade familiar), a migração aparece como elemento discriminador.
A situação dos migrantes com esse padrão relacional era a pior de todas, com a
precariedade incidindo sobre quase a metade dos indivíduos (49%), enquanto
entre os não migrantes fora das condições analisadas anteriormente chegava a
apenas 23%. Aprincípio, seria possível sustentar, com base nesse resultado, a
existência de dimensões de preconceito no mercado de trabalho ou em outras
esferas sociais que levassem os migrantes a piores situações em termos de
precariedade.
Entretanto, a análise mais detalhada das informações sugere que o modelo está
delimitando, na verdade, um grupo específico de indivíduos com baixa integração
social. Embora o tempo de migração não apresente associação com o fenômeno, a
observação das redes dos indivíduos classificados pelo modelo na pior condição
indica uma presença muito grande de conterrâneos. Isso sugere que estão nessa
condição sobretudo as pessoas migrantes que experimentaram baixa integração
relacional em São Paulo, mesmo que tenham chegado à cidade há muito tempo. Esse
efeito não pode ser explicado simplesmente pela presença de preconceitos, visto
que outros migrantes apresentam baixa presença de conterrâneos (e não estão
localizados majoritariamente na última casela do modelo). Na verdade, os
espaços estudados disponibilizam contingentes significativos de indivíduos para
a constituição de relações que, mesmo que sejam socialmente homofílicas, podem
envolver não conterrâneos em grandes quantidades. Vale acrescentar que a
incidência de precariedade entre os indivíduos com sociabilidade mais
homofílica, mas não na família e não migrantes (casela à direita na terceira
linha da árvore), é similar à incidente entre os com sociabilidade centrada na
família (casela à direita na segunda linha da árvore), reforçando a
interpretação anterior sobre a baixa integração de uma parte dos migrantes
(22,9% contra 25,4%). Essa situação está associada a um mecanismo relacional
específico que envolve os locais de chegada dos migrantes à cidade (Marques,
2009).
De forma geral, portanto, o resultado indica que a proteção contra a
precariedade depende, de maneira combinada, de três formas distintas de apoio
social: padrões relacionais pouco locais e pouco primários (com baixa
homofilia); esferas familiares ativas na sociabilidade; e maior integração
social dos não migrantes que não contam com as dimensões anteriores
(relacionais e familiares). Vale especificar que, como o modelo é hierárquico,
a importância da sociabilidade na família aparece apenas atenuando a
precariedade em quem não tem padrões de relação pouco homofílicos e pouco
locais. A presença desses é o elemento mais fortemente associado com situações
de baixa precariedade social.
Rendimentos
Por fim, analisei os efeitos das redes e de atributos sobre os rendimentos dos
indivíduos. Assim como nas análises anteriores, os indivíduos de classe média
não estão incluídos nesse teste18. A realização da análise que se segue apenas
com os pobres a torna bastante robusta, visto que a variação da renda dos
indivíduos está limitada pela própria escolha dos casos. É provável, portanto,
que, se estivéssemos trabalhando com grupos sociais que abarcassem uma faixa
mais ampla de renda, as relações encontradas fossem ainda mais fortes, mas
talvez outras variáveis também apresentassem importância. Consequentemente, a
análise é bastante rigorosa para explicar a variação dos rendimentos entre os
pobres, mas pouco nos informa sobre o que acontece com o fenômeno para o
conjunto da sociedade. Foram testadas associações com a renda familiar per
capitae com a renda total.
Entre os elementos relacionais analisados individualmente, apenas a
variabilidade da sociabilidade, medida pelo número de esferas, tem efeito
direto sobre a renda para o conjunto dos casos. Como veremos a seguir,
entretanto, outras características das redes podem exercer efeito importante
sobre conjuntos de casos específicos.
Os tipos de rede não apresentaram associação com a renda, mas ficou evidenciada
a associação com certos tipos de sociabilidade. Os indivíduos com sociabilidade
baseada na vizinhança tenderam a apresentar rendas menores - quem tem
sociabilidade desse tipo tem em média renda de R$ 210 contra R$ 300 da média
dos indivíduos com outros tipos de sociabilidade. Inversamente, quem tem
sociabilidade organizacional (igreja, trabalho e associativismo) tende a ter
renda substancialmente mais alta - R$ 390 per capitacontra R$ 225 de quem tem
sociabilidade local e primária. Por fim, pessoas com redes médias com
sociabilidade organizacional (a situação relacional que apresenta menos
precariedade, como vimos na última seção) têm rendas ainda maiores - R$ 430
contra R$ 240 das demais situações relacionais19.Deforma geral, portanto,
quanto mais diversificada, menos primária e local for a sociabilidade, maiores
tendem a ser os rendimentos.
Como é usual nesse tipo de análise, as medidas de rede e os diversos
indicadores sociais se encontram correlacionados. Assim, de que maneira essas
variáveis e outros indicadores sociais influenciam conjuntamente na renda? Para
analisar de forma combinada as influências das variáveis sociais e dos
indicadores de rede sobre a renda, procedi a uma série de análises
multivariadas utilizando modelos GLM (General Linear Model)20.
Após a realização de uma série de testes incluindo variáveis socioeconômicas,
de sociabilidade e de redes, cheguei ao modelo que se segue21(Tabela_1).
Resultados muito similares foram obtidos com a renda familiar, em vez da renda
familiar per capitano modelo, embora com explicação menor. Como não estou
interessado em prever resultados, mas apenas em avaliar a influência conjunta
dos processos e das variáveis sobre a renda, o resultado pode ser considerado
amplamente satisfatório22.
As primeiras colunas apresentam os parâmetros; a última, o efeito em reais da
variação de uma unidade em cada variável, no nível da renda familiar média per
capitade R$ 271.
Como podemos ver, apresentaram significância estatística na explicação da renda
familiar per capitavariáveis tradicionais, como a escolaridade do indivíduo e o
tamanho do núcleo familiar (pessoas no domicílio). A primeira variável
influencia positivamente o rendimento e, como seria de se esperar, indivíduos
com escolaridade mais elevada tendem a ter renda maior. Cada ano de estudo
acrescenta, em média, R$ 9,0 ao rendimento familiar médio per capitados
indivíduos (ver última coluna da tabela). Vale frisar que a análise inclui
apenas indivíduos em situação de pobreza e, portanto, com variabilidade
reduzida tanto na renda quanto na escolaridade. Seria possível que a realização
do estudo com um leque mais amplo de grupos sociais resultasse em efeitos mais
fortes da escolaridade.
A segunda variável, inversamente, afeta negativamente o rendimento - quanto
maior o número de pessoas no domicílio,menor arenda per capita. O efeito do
número de pessoas não é apenas numérico (embora essa variável entre no cálculo
da variável dependente), visto que, no rendimento familiar total, estão
incluídas rendas de outras pessoas que não o entrevistado, assim como as redes
dão acesso a mais pessoas do que apenas ao ego. O que o modelo nos informa é
que os efeitos de agregação das redes e das rendas não compensam o efeito de
dependência e, à medida que cresce o número de pessoas em um domicílio, a
dependência cresce mais rápido do que a entrada de outros geradores de renda e
agregadores de redes. Como podemos observar na última coluna da tabela, cada
indivíduo a mais no domicílio retira R$ 51,9 da renda, um efeito muito grande
se considerarmos que cada ano de estudo a mais acrescenta R$9,0. Esse
raciocínio é evidentemente hipotético e tem por objetivo apenas comparar o
efeito relativo das diversas variáveis.
As variáveis relacionais entraram no modelo de três formas distintas. Em
primeiro lugar, uma variável dicotômica que especifica a situação de o
indivíduo ter ou não rede média com sociabilidade centrada em igreja, trabalho
ou associações. Como vimos, essa situação corresponde a redes médias com
sociabilidade variada, pouco homofílica e com baixo localismo. O efeito é
positivo, indicando que a renda tende a ser mais elevada para indivíduos com
esses padrões relacionais, acrescentando R$66,9 à renda, em média, o que
corresponde a mais do que sete anos de estudo e ao efeito negativo de uma
pessoa a mais no domicílio. Entretanto, temos que ter em mente que os tipos de
rede e sociabilidade assumem apenas os valores zero e um, enquanto os anos de
estudo variam entre zero e 12 anos, e as pessoas no domicílio, entre uma e
nove23.
O modelo também inclui duas variáveis de interação com dimensões relacionais.
Em primeiro lugar, uma interação entre tamanho das redes e rendimento estável.
O rendimento estável é capturado por uma variável dicotômica que ganha valor um
nas situações de remuneração que garantam fluxos de rendimento mais ou menos
regulares. Não se trata das condições analisadas anteriormente de trabalho ou
trabalho protegido, já que estão englobadas todas as situações que podem gerar
fluxo constante de rendimentos - trabalho com carteira, doméstico ou não, ser
proprietário de negócio próprio, mas também ser aposentado. Entretanto,
considerando o padrão de informalidade presente no mercado de trabalho local, e
o fato de indivíduos permanecerem às vezes durante anos em empregos sem
carteira, incluí ainda como com rendimento estável os empregados sem carteira,
domésticos ou não, desde que estivessem nos seus atuais empregos há mais de um
ano. Os indivíduos sem rendimento estável são os desempregados e as pessoas que
afirmam viver de bicos, além dos sem carteira que estavam nos seus empregos há
menos de um ano24.
O sentido da interação é bastante fácil de entender. Uma variável de interação
representa a multiplicação das variáveis envolvidas. Para cada caso, portanto,
assumirá como valor a multiplicação dos valores de cada variável para aquele
caso. Como "rendimento estável", assume o valor um para quem tem essa condição
e zero para os demais; o termo de interação não tem efeito para quem não tem
rendimento estável. Conforme podemos ver na última coluna, para os indivíduos
que contam com rendimento estável, cada nó a mais acrescenta R$ 1,3 à renda.
Como o número de nós varia entre quatro e 179, o efeito pode ser bastante
significativo. Apenas para termos parâmetros de comparação, para quem tem
rendimento estável, cada dez nós adicionais na rede correspondem a mais R$ 13,2
na renda, um efeito superior a um ano adicional de estudo.
A última variável, por fim, também nos fornece uma interpretação bastante
interessante, que complementa evidências já encontradas anteriormente. Trata-se
de uma interação entre uma variável dicotômica correspondente à segregação e o
número de esferas, indicador de variabilidade da sociabilidade. Como a
segregação adquire valor zero em locais não segregados, a variabilidade da
sociabilidade não tem efeitos sobre a renda naqueles locais, mas apenas nos
segregados. Assim, para indivíduos que moram em locais segregados, cada esfera
a mais na sua rede acrescenta R$ 14,7 à sua renda. Esse efeito é quase igual ao
de dois anos de estudo adicionais, um impacto bastante significativo,
considerando que o número de esferas varia entre um e sete. Esse resultado
sugere que, em locais de maior isolamento espacial, a variabilidade da
sociabilidade é importante para os rendimentos e, por meio deles, tem efeitos
sobre o acesso a bens e serviços comprados no mercado. Para moradores de locais
não segregados, o efeito não é significativo.
A interpretação da evidência é relativamente clara e segue a mesma direção de
outros achados anteriores. Como a segregação espacial tende a causar isolamento
social, estarão melhores entre os indivíduos segregados os que contarem com
sociabilidade variada, indicando que as redes efetivamente podem ajudar a
reduzir o isolamento causado pela segregação. Entretanto, como esse resultado é
alcançado apenas para quem consegue manter padrões de sociabilidade variada, a
situação social tende a ser pior para os indivíduos segregados que não
conseguem manter padrões variados de sociabilidade, aumentando a
heterogeneidade das situações. Por outro lado, entre os indivíduos que não
estão submetidos ao isolamento da segregação, a variabilidade da sociabilidade
não tem efeitos sobre a renda.
SUMARIZANDO OS EFEITOS DAS REDES SOBRE O ACESSO A MERCADOS
Vimos que as redes de indivíduos pobres tendem a se rmenores, mais locais e a
ter sociabilidade menos variada do que as de pessoas de classe média. Apesar
disso, as redes também variam substancialmente dentro de cada grupo, e foi
possível encontrar redes com características bastante distintas entre os
pobres. O estudo demonstrou que essas diferenças têm importantes consequências
para os indivíduos em termos de acesso a trabalho, trabalho protegido,
precariedade social e rendimentos monetários.
Os tipos de rede e sociabilidade se associam fortemente à possibilidade de os
indivíduos terem trabalho, terem trabalho que conte com algum grau de proteção
e viverem em situações precárias. Em todos esses casos, a existência de padrões
relacionais baseados em contatos primários e mais propensos à homofilia e ao
localismo aparece associada a piores condições. Inversamente, quem conta com
padrões de relação menos primários e mais associados a ambientes
organizacionais tende, com maior frequência, a ter trabalho, ter trabalho mais
protegido e a ser menos precário socialmente. Embora a mais importante
condicionante das situações de precariedade seja esse tipo de sociabilidade
pouco homofílica e pouco local, a precariedade é atenuada pela presença de
sociabilidades centradas na família ou é agravada pelo statusde migrante.
Por fim, a renda dos indivíduos está associada à sua escolaridade e à
quantidade de pessoas residindo no domicílio, variáveis tradicionais da análise
do tema, mas também ao tipo de padrão relacional dos indivíduos, ao tamanho das
suas redes (para os indivíduos com fontes estáveis de rendimento), assim como à
variabilidade da sociabilidade (para os indivíduos residentes em áreas
segregadas). O tamanho dos efeitos dessas variáveis permite sustentar a
destacada relevância das redes e da sociabilidade na explicação da renda dos
mais pobres. Em todos os casos, são melhores as condições de indivíduos com
redes médias, pouco locais e com sociabilidade construída em espaços
organizacionais (igreja, trabalho e associações), que tendem a ser menos
homofílicas.
Esses resultados confirmam a necessidade de incorporarmos simultaneamente as
redes sociais e a segregação nos estudos sobre pobreza, a fim de ultrapassarmos
as limitações impostas pelos paradigmas estruturalista e atomista da pobreza, e
entendermos melhor os mecanismos associados à sua produção. A incorporação
desses elementos contribui também, decisivamente, para a construção de
políticas mais bem desenhadas para o combate ao problema.
NOTAS
1. Um exemplo emblemático disso são os estudos desenvolvidos pelo Prime
Minister's Strategy Unit, através da Social Exclusion Task Force, do governo
britânico, e o Policy Research Initiative, do governo canadense. Disponíveis,
respectivamente, em http://www.cabinetoffice.gov.uk/social_exclusion_task_force
e em http://www.policyresearch.gc.ca.
2. Ou, tecnicamente, a apenas um passo do ego.
3. Relações homofílicas são relações entre pessoas de mesmo atributo.
4. A pesquisa incluiu também uma análise do papel das redes e da sociabilidade
no acesso dos indivíduo sabens e serviços obtidos fora dos mercados (com as
informações da pesquisa qualitativa), assim como uma investigação dos
mecanismos relacionais que explicam tanto a diversidade das redes quanto a sua
mediação das dinâmicas assinaladas (Marques, 2009).
5. Vale destacar que os resultados de um surveyrealizado em 2001 na Região
Metropolitana de São Paulo, por Guimarães (2004), confirmam essa proeminência
das redes - 80% dos indivíduos que procuravam emprego afirmavam lançar mão de
relações com familiares, amigos e conhecidos. Outro surveyaplicado em 2004,
também pela autora, indicou que, mesmo entre quem estava procurando emprego em
agências, cerca de 60% afirmavam que o seu último trabalho fora obtido via rede
(Guimarães, 2008).
6. Rigorosamente, portanto, não se trata de emprego, visto que os proprietários
também estão incluídos nessa condição, mas considerei que, organizada dessa
forma, a variável descreveria melhor a condição que gera efeitos sobre a
pobreza. Ou seja, foi considerada a presença ou não de uma fonte de renda
relativamente estável.
7. Apenas como exemplos dos tipos de ocupação nos quais os autônomos estavam
engajados, tínhamos nove vendedores ambulantes, dois ajudantes de florista
ocasionais, cinco carregadores de entulho ou de caminhão ocasionais e dois
catadores de papel e de latas de alumínio.
8. Com, respectivamente, estatística F igual a 3,08 e p-value de 0,048, e
estatística F igual a 6,95 e p-value de 0,001.
9. Para explorar o efeito dos tipos de rede e sociabilidade, construí um
conjunto de tabelas cruzadas submetidas a testes estatísticos de variáveis
nominais.
10. O método trabalha com tabelas de dupla entrada com as relações entre a
variável dependente e cada preditora, testando todas as partições possíveis das
suas categorias e escolhendo aquela que apresenta o maior valor para a
estatística qui-quadrado. Os dados são agrupados segundo a partição escolhida e
uma nova análise é realizada dentro de cada subgrupo, repetindo-se o
procedimento anterior para a variável dependente e as demais preditoras. Esse
processo é repetido sucessivamente até que os grupos divididos cheguem a um
número mínimo de casos estipulado para a análise. Como se trata deum método de
tipo stepwise, todas as combinações possíveis são analisadas e podemos tomar as
variáveis indicadas no resultado final como representando os condicionantes
mais importantes na explicação da variabilidade da variável dependente. Esse
método foi escolhido, em vez de análises de regressão logística, por exemplo,
pelo pequeno número de casos disponíveis.
11. Relacionais: 1) número de nós da rede individual; 2) grau médio; 3) tamanho
eficiente da rede egocentrada; 4) proporção de pessoas externas à área; 5)
número total de esferas; 6) variáveis dicotômicas (dummy) referentes aos tipos
de rede com cinco grupos; 7) variáveis dicotômicas referentes aos tipos de
sociabilidade e rede, assim como às suas combinações. Socioeconômicas: 8) sexo
do indivíduo; 9) anos de estudo; 10) renda familiar per capita; 11) frequenta
igreja ou templo mais do que quinzenalmente. Etárias: 12) idade do indivíduo;
13) idoso (60 anos ou mais); 14) jovem (idade menor do que ou igual a 21 anos).
Migratórias: 15) migrante; 16) migrante há mais de dez anos; 17) proporção de
conterrâneos maior ou igual a 21%. Espacial: 18) segregado. Nesse caso, as
variáveis relativas ao trabalho foram excluídas por questões óbvias - quem não
tem trabalho não pode trabalhar fora, ter tempo de ocupação, emprego antigo ou
ser classificado em determinada posição na ocupação.
12. Assim como no caso anterior, não se trata rigorosamente de condição de
emprego. Ver nota_6.
13. Essa condição representava um subgrupo da analisada anteriormente, embora
tenham sido retirados também seis casos para os quais não havia informações
suficientes sobre proteção.
14. Todas as associações indicadas são representativas a 95% ou a 99% de
confiabilidade.
15. Relacionais: 1) número de nós da rede individual; 2) grau médio; 3) tamanho
eficiente da rede egocentrada; 4) proporção de pessoas externas à área; 5)
número total de esferas; 6) variáveis dicotômicas (dummy) referentes aos tipos
de rede com cinco grupos; 7) variáveis dicotômicas referentes aos tipos de
sociabilidade e rede, assim como às suas combinações. Socioeconômicas: 8) sexo
do indivíduo; 9) anos de estudo; 10) renda familiar per capita; 11) frequenta
igreja ou templo mais do que quinzenalmente. Etárias: 12) idade do indivíduo;
13) idoso (60 anos ou mais); 14) jovem (idade menor do que ou igual a 21 anos).
Migratórias: 15) migrante; 16) migrante há mais de dez anos; 17) proporção de
conterrâneos maior do que ou igual a 21%. Espacial: 18) segregado.
16. Em todas essas análises, as associações são significativas a 99% de
confiabilidade.
17. Relacionais: 1) número de nós da rede individual; 2) grau médio; 3) tamanho
eficiente da rede egocentrada; 4) proporção de pessoas externas à área; 5)
número total de esferas; 6) variáveis dicotômicas (dummy) referentes aos tipos
de rede com cinco grupos; 7) variáveis dicotômicas referentes aos tipos de
sociabilidade e rede, assim como às suas combinações. Socioeconômicas: 8) anos
de estudo; 9) frequenta igreja ou templo mais do que quinzenalmente. Etárias:
10) idade do indivíduo; 11) idoso (60 anos ou mais); 12) jovem (idade menor do
que ou igual a 21 anos). Migratórias: 13) migrante; 14) migrante há mais de dez
anos; 15) proporção de conterrâneos maior do que ou igual a 21%. Trabalho: 16)
há quanto tempo está no trabalho atual; 17) trabalha fora da comunidade.
18. Obviamente, os seus rendimentos são muito superiores aos dos indivíduos em
situação de pobreza e, como vimos, as suas redes também são muito distintas com
relação ao tamanho, à variabilidade da sociabilidade e ao localismo. A inclusão
da classe média atrapalharia os testes quantitativos por aumentar a
variabilidade do fenômeno explicado sem que tivéssemos o necessário controle
sobre o que ocorreria na vasta faixa que separa os dois grupos.
19. Em todas essas análises, as associações são significativas a 99% de
confiabilidade.
20. Esse tipo de modelo estatístico permite a análise da variabilidade de uma
variável dependente contínua a partir do estudo tanto de variáveis categóricas
(consideradas fatores) quanto contínuas (consideradas covariáveis). Quando as
preditoras são todas variáveis categóricas, o modelo realiza uma Anova; quando
as preditoras são todas variáveis contínuas, o modelo realiza uma análise de
regressão; quando existe uma combinação de preditores categóricos e contínuos,
realiza-se uma Ancova. O modelo assume a linearidade dos efeitos das variáveis
independentes sobre a dependente, assim como a existência de igualdade de
variâncias entre as variáveis independentes. A vantagem desse tipo de
procedimento sobre a análise de regressão convencional está em que o
procedimento considera os fatores como variáveis categóricas efetivamente, em
vez de recodificá-las em uma ou mais variáveis dicotômicas. Agradeço a Edgard
Fusaro a sugestão e a revisão das análises estatísticas realizadas aqui. Dadas
as premissas de normalidade das variáveis dependente e de linearidade, utilizei
como variáveis dependentes as raízes quadradas da renda e da renda familiar
mensal per capita. Para melhorar a compreensão dos resultados, apresento os
resultados convertidos para a renda familiar per capitaem reais.
21. O modelo executa um teste específico para avaliar a violação da suposição
de igualdade das variâncias das variáveis independentes. No nosso caso, a
significância do teste de Levene foi de 0,195, rejeitando-se a hipótese de que
as variâncias das variáveis independentes sejam diferentes e, portanto, levando
à aceitação do modelo.
22. Três casos foram excluídos da análise por distarem mais de três desvios
padrão dos valores esperados (casos 146, 153 e 237), resultando em 206 casos na
análise.
23. É interessante acrescentar que a variabilidade da sociabilidade medida pelo
número de esferas da rede também apresenta significância, mas apenas quando
substitui os tipos de rede e sociabilidade citados, e acaba por retirar outras
variáveis do modelo, reduzindo a explicação total.
24. O rendimento estável apresenta correlação significativa (e positiva) com a
renda, mas a análise mostrou que um termo de interação de rendimento estável,
com número de nós, também apresentava significância e aumentava a explicação do
modelo, embora tornasse a variável original de rendimento estável não
significativa. Dado o aumento da explicação, optei por manter a interação em
vez da variável original. A consideração dos sem carteira como estáveis seguiu
uma ótima sugestão de Nadya Guimarães. Além de especificar a condição
ocupacional mais corretamente, tornou o modelo estatístico mais estável.