Personalidade jurídica e cidadania coletiva na Bolívia: uma etnografia da
identificação jurídica e a formação de espaços públicos
INTRODUÇÃO
Uma das especificidades da formação social boliviana refere-se à coexistência
de organizações sociais e territoriais com uma longa tradição histórica, como
as comunidades indígenas, as organizações camponesas, as juntas de vizinhos e
os sindicatos de trabalhadores. Ao longo de sua história, o Estado reconheceu
sujeitos coletivos como interlocutores legítimos e estendeu-lhes direitos
cidadãos por meio da mediação de associações. Neste artigo, argumentamos que,
durante o período neoliberal na Bolívia, um conjunto de políticas orientadas
para a reestruturação do Estado aprofundou a dimensão coletiva de cidadania,
processo que, paradoxalmente, não foi acompanhado pela diminuição dos altos
níveis de pobreza e desigualdade social.
Durante esse período, não só as lutas e demandas por direitos cidadãos
continuaram sendo canalizadas pela via de associações, como também o Estado
estendeu direitos civis, políticos e sociais, sobretudo a indivíduos
organizados em coletividades, por meio da ampliação da esfera pública estatal.
É nesse contexto que se observa que, para amplos setores sociais, notadamente
para os historicamente excluídos, ser membro da comunidade política nacional
fortaleceu solidariedades e lealdades para com outras comunidades
intermediárias.
Argumentamos, com base nos resultados empíricos do estudo1, que a experiência
coletiva de cidadania constitui, de um lado, um status na sociedade boliviana,
no sentido de que o Estado outorga um conjunto de direitos (civis, políticos,
sociais e coletivos) a indivíduos que fazem parte de coletividades. De outro
lado está a formação social de pessoas que se veem e são vistas como membros de
grupos e de organizações, e que, a partir dessa participação, recebem o direito
de reclamar direitos. Em outras palavras, é como membros de coletividades que
muitos indivíduos formulam, demandam, exercem direitos e, consequentemente, se
percebem como cidadãos.
Na presente análise, abordamos criticamente um dos principais debates na
literatura sobre os direitos civis, políticos e sociais: a irredutibilidade das
dimensões individual e coletiva de cidadania. Na concepção individualista, o
indivíduo é moralmente anterior à comunidade, e esta importa unicamente porque
contribui para o bem-estar dos indivíduos que a constituem. Segundo essa
perspectiva, os direitos só podem ser conferidos a indivíduos fora de seus
contextos de relações sociais. Temos aqui a definição ontológica do cidadão-
indivíduo. Em oposição, os comunitaristas negam que os interesses da comunidade
sejam redutíveis aos interesses dos membros que a compõem. Nessa tradição, os
indivíduos pertencem, naturalmente, a uma comunidade, definida empírica e até
mesmo geograficamente, podendo esta ser unificada por uma única ideia de bem
comum. Temos aqui a definição ontológica do cidadão-comunitário.
Como é sugerido por Kymlicka (1996), a maneira como essas duas tradições tratam
o assunto dos direitos cidadãos tem como resultado a contraposição das duas
dimensões. Em suas palavras,
as teorias sobre os direitos individuais começam por explicar o que é
um indivíduo, que interesses tem esse qua indivíduo, e então derivam
um conjunto de direitos individuais que protegem esses interesses. De
forma similar, os coletivistas começam por explicar o que é uma
comunidade, que interesses tem essa qua comunidade, e então derivam
um conjunto de direitos comunitários que protegem esses interesses
(ibidem:75).
A discussão avançou propostas em âmbito normativo que matizam posições e
desenvolvem vasos comunicantes entre a visão liberal e a comunitária. Kymlicka,
por exemplo, abandona o universalismo abstrato da Ilustração e incorpora o
reconhecimento da diferença - o particular, o múltiplo e o heterogêneo - do
indivíduo concreto. O autor argumenta que a discussão entre individualistas e
comunitaristas é irrelevante quando se trata de promover os direitos
diferenciados de grupo (proteção externa) nas democracias liberais. Mesmo que
essa discussão seja relevante em relação às demandas de restrições internas -
aquelas que advogam a restrição do direito de os membros dos grupos
questionarem e rejeitarem as autoridades e as práticas tradicionais -, estas
não são passíveis de defesa nas democracias liberais.
Mouffe (1999) desenvolve uma discussão similar no marco do projeto político de
uma democracia plural e radical, e propõe que não se trata de escolher uma
tradição em vez de outra na geração de uma nova concepção de cidadania, mas sim
de inspirar-se em ambas. Seguindo a autora, o positivo da tradição liberal está
na defesa das novidades introduzidas pela democracia moderna, como a defesa do
pluralismo, a ideia da liberdade individual, a separação da Igreja do Estado e
o desenvolvimento da sociedade civil. Em relação à tradição do republicanismo
cívico, o ganho está na introdução do valor da participação pública. O objetivo
é superar a dicotomia entre um conjunto de indivíduos sem preocupação pública
comum e uma comunidade pré-moderna organizada em torno de uma única ideia
substancial de bem comum. Trata-se, então, de recuperar uma vigorosa noção
participativa de cidadania, desvalorizada pela tradição liberal, sem sacrificar
a liberdade individual.
Essa discussão normativa no campo da filosofia política se entrecruza com o
debate metodológico no campo da análise social que orienta as diferentes
perspectivas adotadas pelos estudos sobre cidadania. De um lado está o
individualismo metodológico, que explica todos os fenômenos sociais pela
agregação de decisões de indivíduos racionais, maximizadores e egoístas. Dessa
perspectiva, as decisões individuais constituem a base explicativa de qualquer
fenômeno coletivo. A partir do coletivismo metodológico, a comunidade, ou
sociedade compreendida como um todo orgânico, precede os indivíduos, sendo
estes guiados por uma realidade coletiva que minimiza o papel da vontade ou do
arbítrio individual (Reis, 1989; Levine, Sober e Wright, 1989). Enquanto o
individualismo metodológico concebe o indivíduo subsocializado, o coletivismo
metodológico concebe o indivíduo supersocializado.
A perspectiva relacional é uma alternativa entre as duas perspectivas
metodológicas ao conceituar a tensão entre os movimentos de individualização e
de socialização como constitutiva da vida social. Segundo essa perspectiva, as
sociedades modernas caracterizam-se pela diferenciação de esferas sociais, com
o consequente posicionamento dos indivíduos em múltiplas relações sociais;
portanto, sua identidade constitui-se na interseção desses diversos espaços de
sociabilidade. A sociologia relacional nos lembra que as mesmas leis que são a
fonte dos direitos cidadãos não se enquadram em nenhum dos extremos entre o
individualismo e o coletivismo metodológico2.
Somers (1994:79) faz uso de "autonomia em pertencer" (autonomy in membership) e
de "liberdade na inclusão" (liberty in embeddedness) para explicar que é o
relacionamento de direitos que provê os meios para o exercício de autonomia e
de independência na formação dos direitos na sociedade inglesa. Em suas
palavras, "os direitos cidadãos foram direitos que supunham um alto grau de
independência; simultaneamente, eles pressupunham o pertencimento e os limites
de ser membro de um grupo particular - família, comunidade, agremiação
sindical, sociedade civil local e esfera pública" (ibidem). Essa perspectiva
nos abre a possibilidade de analisar a interdependência das dimensões coletiva
e individual na formação da cidadania na Bolívia, e assim evitar tanto as
perspectivas essencialistas do indivíduo autossuficiente e independente quanto
a idealização da comunidade como um todo orgânico.
A perspectiva relacional permite, portanto, questionar a dicotomia que separa
de forma radical os direitos individuais e os direitos de grupo. Como
argumentaremos na análise seguinte, a conquista e o exercício individual de
direitos civis, políticos e sociais na sociedade boliviana implicaram, e tudo
indica que seguirá implicando, o reconhecimento do fato de os indivíduos
pertencerem a grupos sociais particulares. Tal reconhecimento, entretanto, traz
consigo conteúdos díspares sobre a relação entre indivíduos e grupos sociais,
e, consequentemente, sobre os conteúdos das reclamações. De um lado estão as
demandas por direitos que somente podem se concretizar pelo reconhecimento das
afiliações a comunidades e culturas políticas específicas no seio da comunidade
política nacional. De outro, as demandas por direitos que só podem se realizar
se for mudada a forma de os indivíduos, como mulheres e crianças, pertencerem a
comunidades primárias e à sociedade em geral.
A análise que propomos sobre a dimensão coletiva de cidadania não se inscreve
na discussão filosófica sobre o tipo de comunidade política a que devemos
aspirar. De acordo com as ciências sociais, o estudo está orientado para
compreender as formações social e estatal bolivianas em que se forjaram
múltiplas dimensões de cidadania. O argumento se desenvolve sobre três pilares:
primeiramente, argumentamos que a maneira como o Estado define e simboliza
cidadania, e como este estendeu direitos civis, políticos e sociais, não recai
nem exclusiva nem principalmente sobre indivíduos sem filiações sociais. Em
seguida, analisamos como o exercício e as demandas por direitos pelos setores
populares se realizam, sobretudo, pela via associativa. Finalmente, discutimos
como as relações entre sujeitos coletivos e Estado se construíram sobre e, por
sua vez, reforçaram lealdades e solidariedades para com comunidades
intermediárias; portanto, para com identidades sociais que forjam, finalmente,
a identidade de cidadãos.
Para abordar e conceituar a cidadania coletiva, partimos da definição de
cidadania como relações continuamente negociadas entre indivíduos e
coletividades, e as diferentes instâncias estatais (Tilly, 1996; Mische, 1996;
Somers, 1994). Cidadania refere-se tanto ao status de membros de uma comunidade
política nacional - portanto, aos direitos e obrigações outorgados pelo Estado
- quanto à participação em espaços públicos entendidos como espaços
participativos, em que atores com múltiplas identidades interagem como um corpo
político em negociações e em contestações sobre assuntos públicos e ações
estatais.
Distanciamo-nos, assim, dos estudos que definem cidadania unicamente como uma
relação jurídica entre os indivíduos e o Estado, em que cada um tem direitos e
deveres em virtude de pertencerem à comunidade política nacional. Apesar de os
direitos legais outorgados pelo Estado se referirem a uma importante dimensão
das relações entre o Estado e a sociedade, essa não é a única. Os processos de
reivindicar novos direitos são tão importantes quanto os direitos já outorgados
pelo Estado. Do mesmo modo, os direitos que as pessoas exercem na prática, bem
como as possibilidades de conversão dos direitos de jure em direitos de facto,
definem dimensões igualmente importantes das relações entre o Estado e a
sociedade e, consequentemente, nas realidades de cidadania.
Por meio da exploração dos efeitos simbólicos e práticos da identificação legal
das pessoas como membros da comunidade política nacional e, portanto, como
sujeitos de direitos, examinamos a construção social das identidades de
cidadania3. Em seguida, analisamos as lealdades e solidariedades para com
comunidades intermediárias e destas para com a comunidade política nacional.
Para isso, dirigimos nossa atenção às instâncias cuja função é outorgar
documentos de identidade civil, especificamente a personalidade jurídica e a
carteira de identidade. Os encontros entre as repartições de "identificação" e
os indivíduos e organizações "identificados pelo Estado" convertem-se em
situações privilegiadas para analisar os efeitos simbólicos e práticos da
identificação oficial, como sujeitos com ou sem filiações sociais, na vida
cotidiana das pessoas. Consideramos que a personalidade jurídica é um documento
que adquiriu uma enorme relevância social com as mudanças institucionais dos
anos 19904, chegando a simbolizar a dimensão coletiva de cidadania na sociedade
boliviana. A carteira de identidade, por outro lado, manteve-se como um dos
principais símbolos da cidadania individual.
Os documentos oficiais de identificação testemunham o poder do Estado de
identificar os atores que qualifica para a posição social de cidadãos e
cidadãs, com direitos e obrigações para com ele e para com os outros atores
sociais. Os documentos de identificação oficial são, de um lado, os veículos
dos direitos outorgados pelo Estado; de outro, símbolos de cidadania.
Entretanto, as identificações legais e as definições formais de direitos não
devem ser confundidas com as identidades sociais e os significados da população
sobre seus direitos e obrigações. O estudo sobre a sociedade boliviana ratifica
que os Estados concretos não são entes coerentes que emitem disposições legais
sem contradições entre si. Do mesmo modo, as ações e práticas estatais podem
produzir efeitos diversos e, muitas vezes, caminhar na contramão sobre os
significados de cidadania.
De acordo com a perspectiva teórico-metodológica que articula discursos e
práticas, a pesquisa combina a descrição das interações entre os funcionários
públicos e as pessoas, no momento em que estas fazem seus documentos de
identificação, e entrevistas em profundidade com indivíduos, dirigentes sociais
e funcionários. Essas entrevistas permitiram às pessoas articular suas
experiências como cidadãos em espaços públicos, suas percepções sobre o Estado
e seus sentimentos de pertencimento a coletividades, incluindo a comunidade
política nacional.
A observação das interações concretas nos permitiu distanciarmo-nos das
perspectivas abstratas e macrossociológicas de cidadania e, consequentemente,
de abordagens que tratam as representações de Estado e sociedade como
unidimensionais. Vimos de que maneira, nos encontros com diferentes instâncias
do Estado, práticas localizadas e significados de cidadania se articulam,
configurando dimensões diferenciadas não só do exercício de direitos como
também das representações sociais sobre o significado de ser membro da
comunidade política nacional.
O artigo está organizado em cinco partes, além desta introdução e da conclusão.
Na primeira parte, revisamos as principais contribuições das ciências sociais
bolivianas quanto à longa história de formação de sujeitos coletivos e sua
relação com o Estado. A segunda parte está orientada para as mudanças
legislativas nos anos 1990 e para os reconhecimentos jurídico e político da
pluralidade dos povos e culturas que habitam a Bolívia. Na terceira parte,
analisamos os significados simbólico e prático da personalidade jurídica para
comunidades indígenas, sindicatos de camponeses, juntas de vizinhos, entre
outros grupos sociais. São exploradas as noções de legalidade, direitos,
inclusão e participação que se tecem em torno da personalidade jurídica. Na
quarta parte, discutimos os efeitos da personalidade jurídica na construção de
espaços públicos de participação política e a demanda por direitos dos
cidadãos, assim como as continuidades da participação política entre os âmbitos
local e nacional, o aprendizado das linguagens estatais e sua articulação com
as identidades coletivas. A quinta parte introduz considerações sobre a
carteira de identidade como símbolo do cidadão-indivíduo.
A LONGA HISTÓRIA DA FORMAÇÃO DE SUJEITOS COLETIVOS E SUA RELAÇÃO COM O ESTADO
Antes de analisarmos a formação contemporânea de cidadania, permitimo-nos
introduzir resumidamente as principais descobertas das ciências sociais
bolivianas no que concerne especificamente à formação histórica dos sujeitos
coletivos e à sua relação com o Estado. Esse olhar diacrônico nos permite
compreender a ampla interação política e social de comunidades indígenas,
sindicatos operários e camponeses, corporações empresariais, juntas de
vizinhos, associações produtivas, juntas escolares e comitês cívicos regionais
ao longo da história da sociedade boliviana, e a formação de uma cultura
política na qual se configuram múltiplas dimensões de cidadania.
Em um importante estudo, a socióloga Silvia Rivera (1993) ressalta os efeitos
de um evento concreto no período colonial - a recopilação da Lei das Índias, em
16805, que estabeleceu juridicamente um reconhecimento relativo, por parte do
Estado, do direito de os indígenas se governarem, em seus territórios, por suas
próprias autoridades (os mallkus, kuraqas, ou caciques de sangue). Segundo a
autora, essa lei contribuiu para a sedimentação da concepção, por parte dos
indígenas, de seu próprio território como jurisdição e das "funções" do governo
central, que passou a fazer parte da memória coletiva dos aymaras. Em suas
palavras,
de acordo com o ponto de vista dos índios, a ideia de "duas
repúblicas" que se reconhecem mutuamente, mesmo que permaneçam
segregadas espacial e politicamente, chegou a traduzir a complexa
visão de seu próprio território, não como um espaço inerte onde se
traça a linha de um mapa, mas como jurisdição, ou âmbito de exercício
do próprio governo (ibidem:39).
É importante frisar, no entanto, que os reconhecimentos parciais dos
territórios indígenas, por parte do Estado (colonial e republicano), sempre
estiveram pautados por relações de subordinação e de sujeição dos indígenas.
A historiadora Rossana Barragán (2005) argumenta, com base nos estudos mais
recentes sobre a história política dos então nascentes Estados da América
Latina, que os processos políticos vividos pela Espanha no século XVIII
definiram uma modalidade de organização política que não concebia os indivíduos
como os átomos da sociedade, mas a "nação" como constitutiva da sociedade.
Esses processos políticos, denominados a via hispânica, influenciaram a
emergência dos Estados republicanos na América Latina (Aninno, 1995; López
Clavero apud Barragán, 2005). Segundo esses estudos, as experiências espanhola
e latino-americana compartilhavam a coexistência de princípios corporativos e
liberais de organização social e política. Deve-se sublinhar que, na própria
Constituição de Cádiz de 1812, a Espanha é concebida como a reunião de vários
territórios, de vários reinos. A própria ideia de soberania baseava-se em
povos, no plural, em coletividades territoriais e funcionais, antes que em
indivíduos. Segundo essa interpretação, a particularidade dos Estados modernos
na América Latina não seria resultado da contraposição entre um novo ideário
cultural liberal e uma sociedade não moderna, estamental e tradicional.
Seguindo o trabalho de Barragán (2001), os agrupamentos coletivos, incluindo
corporações territoriais, funcionais e sociais, continuaram sendo atores
centrais no período republicano, em articulação com uma lógica cidadã
individual, cimentando as relações entre Estado e sociedade. É no contexto de
uma formação social e política, marcada por essa articulação entre uma lógica
corporativa e liberal, que se encontra a política das rebeliões e dos pactos,
definindo uma das características centrais das relações entre a sociedade e o
Estado boliviano. Mediante práticas de enfrentamento, de resistência e, algumas
vezes, de subversão da ordem, as corporações territoriais e sociais, incluindo
as comunidades indígenas, foram adquirindo reconhecimentos parciais por parte
do Estado, ao mesmo tempo que o Estado foi se adaptando às dinâmicas e às
diversidades sociais e territoriais. Entretanto, se por um lado os pactos
implicaram a criação de espaços relativos de autonomia jurisdicional, por
outro, essas organizações nunca deixaram de estar subordinadas à ordem estatal.
Em consonância com essa linha interpretativa, Hylton e Thomson (2003) falam da
constituição de uma cultura camponesa e comunitária de insurreição ao longo dos
últimos 250 anos. Segundo os autores, a insurreição faz parte de um repertório
amplo de recursos políticos comunitários que inclui pactos com o poder estatal,
estabelecimento de pleitos jurídicos e a construção de redes inter-regionais de
representação política autônoma. Os autores recolhem as experiências de
insurreição dos povos indígenas desde os finais da colônia até o ano de 2003,
quando a "população majoritária irrompe, ultrapassando os espaços nos quais se
mantinha trancada, demonstrando seu poder demográfico e territorial ao reduzir
o poder contrário a uma mínima expressão" (ibidem:11). A cultura insurgente
fundamenta-se, por um lado, na memória de levantes anteriores e na acumulação
de experiência prática pelos que participaram nos processos de luta anteriores
e, por outro, em métodos de lutas como a assembleia (cabildo, conselho ou
junta), que definem os espaços sociais de deliberação e de tomada de decisão
entre as forças mobilizadas, a disciplina social na qual a coerção coletiva
garante as obrigações individuais e a tática militar do cerco como medida de
pressão e de inversão das relações de poder aplicadas ao longo da história
contra fazendas, povoados e cidades.
Na obra Historia del Movimiento Obrero Boliviano, Guillermo Lora (1967)
reconstrói a incorporação das associações de artesãos nas dinâmicas políticas
ao longo da segunda metade do século XIX. Lora argumenta que, durante o governo
do presidente Belzú (1848-1855), foi gestado um projeto que procurou consolidar
uma base política para os grupos de artesãos, comerciantes e pequenos
proprietários urbanos. Foi durante esse governo que se avançou no
reconhecimento jurídico, por parte do Estado, das associações de artesãos e de
produtores como sujeitos econômicos e políticos. Entretanto, só na primeira
metade do século XX é que o movimento operário-artesanal vai se consolidando,
sob a influência das ideologias anarquistas e, posteriormente, marxistas. O
estudo de Lehm e Rivera (1988) registra esse momento histórico, marcado pela
proliferação de organizações gremiais e operárias no âmbito urbano. As autoras
relatam os processos de formação organizacional e de dotação de ideologias que
fundaram identidades coletivas com capacidade para formular demandas setoriais
e interpelar o Estado.
Na primeira metade do século XX, o número de organizações operárias, artesanais
e camponesas, em círculos cada vez mais ampliados e organicamente
estabelecidos, criou um novo cenário social no qual os sindicatos operários e
empresariais foram se fortalecendo como atores proeminentes de intermediação da
sociedade com o Estado. Em 1936, o presidente David Toro estabeleceu a junção
compulsória das associações de produtores rurais e urbanos, em um esforço de
consolidação de sua base política por meio da absorção subordinada dos
movimentos sociais. Esse projeto não conseguiu consolidar-se em virtude da
resistência à cooptação dos movimentos sociais em relação ao Estado.
A Revolução Nacional de 1952 institucionalizou uma forma dual de governo que
serviu de referência a práticas que organizaram as relações entre atores
coletivos e o Estado nas décadas posteriores. Nos primeiros anos da revolução,
um poder estava constituído por milícias operárias e camponesas, reunidas na
Central Operária Boliviana (COB)6 e outro poder centrava-se no partido do
Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), que encabeçava o governo
revolucionário. Esses poderes dualistas estabelecem um tipo de
institucionalização que acomoda politicamente o movimento popular sem que este
ocupe posições políticas dentro do governo. Outras modalidades institucionais,
como a cogestão política, na qual se combina uma forte representação
corporativa com um projeto político-partidário, assim como autogestões parciais
de corporações funcionais (universidade) ou espaços territoriais (comunidades
indígenas), são recorrentes na história boliviana.
Vemos que a estruturação do poder estatal, durante a segunda metade do século
XX, caracterizou-se por formas híbridas de relacionamento com os sindicatos
operários e os camponeses, e a institucionalização de um tipo de filiação
cidadã coletiva em combinação com a filiação cidadã individual. Pareceria
correta a afirmação de que, durante o período de 1952 a 1982, a estrutura
sindical foi a principal via de canalização de demandas por direitos civis,
políticos e sociais. García Linera (2000) vai mais além e defende que, nesse
período, ser cidadão era ser membro de um sindicato. Segundo o autor, "seja no
campo, na mina, na fábrica, no comércio ou na atividade artesanal, a maneira de
adquirir identidade palpável ante o restante das pessoas e de ser reconhecido
como interlocutor válido pelas autoridades governamentais é por meio do
sindicato" (ibidem:93).
Sobressai, neste breve relato da história boliviana, que, sob diferentes
modalidades, os atores corporativos, especificamente os sindicatos de operários
e de camponeses, não só serviram de suporte político para diferentes governos
como também influenciaram na construção de modalidades institucionais de
organização estatal e de intermediação política7. Em face da extensa literatura
nessa matéria, surpreende a resistência a redefinir o conceito de cidadania
para além da relação não mediada por solidariedades e lealdades entre
indivíduos e Estado nacional. Em contraposição à visão unidimensional do
conceito de cidadania, alinhamo-nos ao princípio de que esse conceito não pode
se manter alheio às condições de sociabilidade que restringem ou possibilitam o
exercício de direitos e às categorias com as quais os membros de uma sociedade
classificam sua experiência.
NOVOS CONTEXTOS LEGAIS E RECONHECIMENTO JURÍDICO DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS
As mudanças na legislação boliviana durante a década de 1990 inauguraram uma
nova fase na formação do Estado boliviano, com os reconhecimentos jurídico e
político da pluralidade de culturas e povos que habitam o território nacional.
Nesse novo ordenamento jurídico do Estado, a personalidade jurídica adquiriu um
novo significado ao converter-se no documento que reconhece, jurídica e
politicamente, as comunidades camponesas, os povos indígenas e as juntas de
vizinhos.
Entre as reformas das instituições do Estado e da gestão de políticas sociais a
partir de 1993, sobressai a Lei de Participação Popular, que avança em relação
à articulação das comunidades indígenas e originárias na vida jurídica,
política e econômica do país. As associações comunitárias, como capitanias,
ayllus, subcentrais, centrais, federações e outras formas de organização,
segundo seus costumes ou disposições estatutárias, são reconhecidas como
Organizações Territoriais de Base quando investidas de personalidade jurídica.
Após o cumprimento dos requisitos definidos no regulamento da lei, novos
espaços formais de participação são abertos em nível municipal, e organizações
sociopolíticas que até então se mantinham à margem da ordem estatal têm uma
nova via de relacionamento com alguns órgãos públicos.
A modificação na Constituição Política do Estado, em 1994, reconhece a natureza
multiétnica e pluricultural da sociedade boliviana em seu art. 1º. Igualmente,
no art. 171 se consagram o reconhecimento, a proteção e o respeito aos direitos
sociais, econômicos, culturais, os relativos às Terras Comunitárias de Origem
dos povos indígenas e originários, as personalidades jurídicas das comunidades
indígenas e originárias, e os procedimentos jurisdicionais comunais.
Com a Lei do Instituto Nacional de Reforma Agrária (Inra), o Estado consolida
sua intenção de outorgar o direito coletivo à terra dos povos indígenas e
originários. Também define que será a comunidade, segundo seus usos e costumes,
que administrará a gestão individual e familiar de recursos naturais
renováveis. Veremos, nos testemunhos dos representantes das comunidades, os
problemas concretos na consecução do prescrito por essa lei e os procedimentos
e táticas para superar essas barreiras.
Nessa linha de reformas se estabelece o novo Procedimento Penal, em 1997, que
reconhece a existência de justiça diferenciada e a possibilidade de
compatibilizar a aplicação do Direito Consuetudinário Indígena e o Direito
Constitucional. Com esse novo mecanismo jurisdicional, procura-se
institucionalizar a administração de Justiça Comunitária, garantindo o caráter
constitucional de país multiétnico e pluricultural. Essa norma não teve muita
difusão e foi sistematicamente ignorada pelo próprio Estado. Outras leis e
disposições jurídicas ampliam direitos e obrigações às diversas organizações
sociais de longa tradição no país. Alguns exemplos são as leis de Reforma
Educativa, de Municipalidades, de Meio Ambiente, de Hidrocarburantes,
Florestal, Tribunal Agrário Nacional, de Maioridade e Capacidade de Trabalhar,
os decretos supremos "Conselho Consultivo" e "Línguas Oficiais", a de
Agrupaciones Ciudadanas, entre outras.
Quando observamos os últimos 25 anos, encontramos que as ações e práticas
estatais foram não só diversas como, muitas vezes, em sentido contrário. Se é
certo que as reformas estruturais dos anos 1980 e 1990 se inscreveram em um
"projeto político" que restringiu o protagonismo de atores coletivos, como a
Central Operária Boliviana, e limitou direitos sociais, como a responsabilidade
do Estado na expansão de fontes de trabalho e em sua proteção, também é certo
que, nesse mesmo período histórico, o Estado promulgou leis e políticas que
impulsionaram o reconhecimento jurídico de outros atores coletivos, como as
organizações indígenas e as juntas de vizinhos. Essas ações tiveram o efeito de
consolidar as organizações de base como mediadoras de direitos civis, políticos
e sociais por meio de sua incorporação sustentada e formalizada em novos
espaços públicos estatais.
De fato, os dirigentes de juntas de vizinhos, comunidades indígenas e
associações de camponeses que se encontravam em processo de aquisição da
personalidade jurídica em novembro de 2005, um mês antes das eleições
presidenciais em que Evo Morales saiu vitorioso, indicaram que as mudanças
legais da última década promoveram sua incorporação ao espaço público estatal e
lhes facultou direitos e benefícios. Essas mudanças são assumidas como o
resultado das lutas e demandas que enfrentaram suas organizações, junto com
muitas outras, em um longo processo no tempo8. Segundo Bienvenido Sacu,
dirigente de uma comunidade indígena do leste da Bolívia, para explicar a
importância da personalidade jurídica, é necessário fazer um retrospecto dos
antecedentes desse documento. Assim, diz ele:
Acontece que durante muitos anos depois da conquista dos espanhóis,
da fundação da Bolívia, nossa cultura perdeu-se, desapareceu dentro
da legislação boliviana; como povos indígenas, pareceria que não
existíramos. Mas acontece que existimos, e graças a esse reencontro
de povos, em 1982, começou a primeira etapa de organização. Daí vêm
as plataformas de luta, assunto de terras, território, educação,
saúde, organização e economia. Então, veio a luta por direitos dos
povos indígenas. Depois da marcha por território e dignidade no ano
de 1990, o Estado nos reconhece dentro da Constituição Política do
Estado. Quando falo de dignidade, quero dizer o nosso reconhecimento.
A partir daí viemos reivindicando. Posteriormente, elaborou-se um
projeto de lei indígena no ano de 1992; recolhemos umas cem
assinaturas. Foi então que o Governo vigente nos levou em conta. Não
é um presente, e, sim, é uma luta, foi feita uma marcha de mais de 30
dias, desde a cidade de Trinidad até a cidade de La Paz para que nós
fôssemos reconhecidos dentro do Estado boliviano. A raiz já foi
plantada. Apesar de não ter sido aprovada nossa lei indígena, nos
remetemos à reforma constitucional, na qual o art. 1º fala que a
Bolívia é um país independente, gente soberana, multiétnica,
pluricultural. O art. 171 também menciona os direitos dos povos
indígenas sobre suas terras comunitárias de origem. Não é por ser
bonzinho que nos estão dando esse direito. É fazendo marchas, é
preciso gastar os calcanhares, andar até a cidade de La Paz, é luta
sacrificada, a marcha, o sol forte, a chuva, o frio, porque lá não é
o nosso ambiente. Por isso, deve-se reconhecer a luta dos movimentos
indígenas. Foi a partir daí que se aprovou a LPP [Lei de Participação
Popular] que menciona que se tem que outorgar personalidade jurídica
aos indígenas, camponeses e juntas de vizinhos. É importante que a
sociedade nos reconheça, ou que o Estado boliviano nos reconheça com
este documento.
As mudanças legais e institucionais durante os anos 1990 são compreendidas como
resultado das lutas e demandas empreendidas pelas organizações sociais pelo
reconhecimento legal como atores legítimos na comunidade política nacional.
CIDADANIA COLETIVA E PERSONALIDADE JURÍDICA
Está claro, para muitos dos dirigentes das organizações territoriais de base,
que a Lei de Participação Popular e a Lei Inra são as referências de novos
direitos e da ampliação do espaço público sob o manto do Estado. Para as juntas
de vizinhos, os principais direitos são definidos pela Lei de Participação
Popular; uma delas, a junta de Yapacaní, disse-nos que "um bairro tem que ter
todos os requisitos para poder reclamar com mais direito e voto, e poder
receber mais obras. Então, com personalidade jurídica, temos poder para
participar do Orçamento Operativo Anual [Presupuesto Operativo Anual - POA] e
também temos direito de reclamar nossas necessidades". Outra junta de vizinhos,
da cidade de Cochabamba, explica-nos que a "personalidade jurídica é um
requisito mais de um bairro, que de qualquer maneira temos que ter para que
participemos do POA, para que as autoridades nos levem em conta". Essa
compreensão está presente em todas as localidades estudadas, tanto no leste
quanto no oeste da Bolívia. O dirigente da junta de vizinhos Mirador Atupiris,
na cidade de El Alto, relata:
O que consolida uma organização, a Lei 1.541 diz que para ser uma OTB
[Organização Territorial de Base] deve estar consolidada mediante
personalidade jurídica e por isso é tão importante. Quando já dermos
entrada nos documentos, temos esse acesso de poder reclamar nossos
direitos como OTB, pode ser na administração do departamento, no
município, em alguma ONG [Organização Não Governamental]. Mais que
tudo, no Orçamento Operativo Anual, se você não tem os documentos lhe
dizem que você não é uma organização bem consolidada; inclusive usam
o termo "falsificado".
Para as comunidades indígenas, as referências legais dos novos direitos tornam-
se mais complexas e combinam a mudança constitucional de 1994, a Lei de
Participação Popular e a Lei Inra. Trata-se de demandas de territórios como
organização indígena e demandas de inclusão na gestão pública local e no acesso
aos recursos destinados aos municípios. Segundo a Central Indígena de
Comunidades Originárias de Lomerío, em Santa Cruz,
para demandar uma Terra Comunitária de Origem [TCO], para fazer
demandas no território, tem que ter esse documento para ser
reconhecida como organização indígena. Era ilegal fazer uma demanda
por território até 1996, mas quando foi aprovada a Lei Inra, nós já
tínhamos personalidade jurídica e pudemos demandar a TCO. Entretanto,
antes que a organização estivesse legalmente constituída, não havia
muita atenção por parte do governo municipal.
Segundo as comunidades indígenas do leste da Bolívia (as terras baixas), essas
mudanças legais propiciaram a extensão de novos direitos (sobretudo o de
território) e novas margens de participação e gestão das comunidades sobre os
recursos que existem em suas terras. Essas iniciativas estatais são, para elas,
resultado de uma longa luta por reconhecimento, respeito e proteção dos
direitos sociais dos povos indígenas e originários.
Para as associações camponesas, a Lei de Participação Popular é vista como um
avanço em direção à maior capacidade de participação na gestão local e no
acesso a recursos públicos para melhorar as condições de vida dos camponeses ou
comunitários. Em relação à Lei Inra, para muitos sindicatos de camponeses ela
não significou avanços quanto aos direitos sobre o território. Ao contrário, a
lei representa uma ameaça à forma sindical de regulação da terra ao limitar o
reconhecimento e a garantia somente da propriedade agrária privada e da Terra
Comunitária de Origem.
A importância da personalidade jurídica para os sindicatos de trabalhadores
assalariados se molda na Lei Geral do Trabalho9. Como nos contou a secretária
executiva da Federação Departamental dos Trabalhadores Fabris de La Paz,
"quando uma empresa entra em falência, automaticamente a personalidade jurídica
dá todo o aval ao sindicato para continuar os trâmites correspondentes em juízo
para que se respeitem os direitos dos trabalhadores".
O conjunto dos testemunhos dos dirigentes indica a importância de se adquirir
status de organização legal para a consolidação de direitos e o acesso a
recursos provenientes do Estado e de outras instâncias não estatais. O
dirigente Miguel Ipamo Parapaino, da Central Indígena de Comunidades
Originárias de Lomerío, no Departamento de Santa Cruz, indica-nos que "é
importante ter status de pessoa jurídica porque uma organização que não nasce
de forma legal é como uma criança que, se não tem personalidade jurídica, não
pode ter direitos em nível nacional". Esse mesmo dirigente indica que cumprir
com todos os requisitos sem intermediar nenhum favor ou procedimento não
definido pela lei é importante para que depois esse documento lhes permita ter
acesso a todos os direitos e benefícios outorgados por instituições públicas e
privadas.
Outro dirigente, de uma junta de vizinhos de Yapacaní, em Santa Cruz, diz que
a personalidade jurídica é como uma ata de reconhecimento, nós já
podemos ser reconhecidos em nível nacional, estadual, porque sem a
personalidade jurídica é como se uma criança não tivesse certidão de
nascimento. É necessário fazer projetos para ficar reconhecidos no
município, porque temos mais direito quando temos personalidade
jurídica; sem isso é menos o que temos, não temos tanto direito. Com
personalidade jurídica é muito melhor.
Esses testemunhos nos mostram que a dimensão simbólica da personalidade
jurídica está estreitamente vinculada à abertura de novos espaços de
relacionamento com o Estado, assim como de acesso a recursos públicos e
privados que se abrem com as legislações e políticas vigentes no país10.
Como, ao Subordinar, o Estado dá Poder a Atores Coletivos
Os significados que adquire a personalidade jurídica nos permitem observar
como, ao subordinar, o Estado dá poder a atores coletivos. Apesar de, em
relação aos sujeitos individuais, a subordinação cotidiana à ordem estatal ter
o efeito de inferiorização ao limitar a possibilidade de os sujeitos reclamarem
seus direitos, como analisamos em outro trabalho11, em relação aos sujeitos
coletivos o efeito é inverso. É assim que os atos de acatar os requisitos e
procedimentos definidos por lei, e aceitar novas designações como o nome de
Organizações Territoriais de Base, são acompanhados do posicionamento subjetivo
e objetivo dos atores com o poder de protestar, demandar e exercer direitos. O
efeito é o de dar poder aos atores sociais.
A subordinação à ordem estatal se materializa nos próprios procedimentos para
tramitar a personalidade jurídica. Como nos explica um dos entrevistados,
para obter a personalidade jurídica, necessitamos ter toda a
documentação, o que regula, o que normatiza cada comunidade, como
estatuto, regulamento interno, resolução municipal da região,
resolução da subprefeitura e personalidade jurídica. E esses são os
requisitos indispensáveis da Lei Inra. É com esses procedimentos que
conseguimos titulações de terras. Também é com a personalidade
jurídica que devemos solicitar o Orçamento Operativo Anual
(Comunidade El Guindal, Departamento de La Paz).
A identificação oficial, materializada na personalidade jurídica, também
subordina em termos simbólicos. No processo de acatar, gera-se a
autoidentificação como organizações consolidadas e, enquanto não obtiver o
documento, classificam-se as organizações como "falsificadas". Esses
denominativos "falsificados" ou "consolidados" são parte tanto dos discursos de
funcionários públicos quanto das pessoas em geral. A afinidade e a coincidência
entre os significados legais e morais atribuídos aos documentos oficiais, tanto
pelos funcionários públicos quanto pelos membros das organizações, revelam-nos
a ascendência concreta do Estado (como instância simbólica e prática) sobre
organizações que exercem de facto competências estatais em partes do território
e em certas dimensões da vida cotidiana de setores sociais. Mesmo que,
concretamente, muitas dessas organizações já exerçam funções estatais, reclamam
e negociam cotidianamente o reconhecimento de jure de espaços de autonomia para
gerenciar esferas da vida cotidiana de suas comunidades (Orellana Hakjyer,
2004).
O empoderamento se dá na formação de atores que reconhecem o espaço aberto por
leis e políticas; atores que se apropriam desses canais formais, que negociam e
lutam para exercer os direitos definidos pelo Estado e que, além disso,
continuam demandando a extensão de novos direitos. Assim expressa o
representante de uma comunidade indígena: "São passos que estamos conseguindo,
então isso era a personalidade jurídica, depois era outra a demanda da TCO,
agora estamos fazendo um plano de gestão territorial, é um passo que nós
estamos vendo, conseguindo, como a organização vai avançando, mas sempre com
uma base legal" (Comunidade de Lomerío, Departamento de Santa Cruz). Enquanto é
forjado um nós, é um nós com direitos que compreendem uma relação de dupla via
com o Estado, na qual vão se consolidando gradualmente novos direitos. Nas
palavras do mesmo representante: "Se as organizações devem estar constituídas
legalmente, isso é responder mais ou menos à exigência da estrutura estatal, o
Estado também tem que responder à nossa organização. Este é o tema principal".
Os dirigentes de juntas de vizinhos, comunidades indígenas, associações
camponesas e sindicatos compreendem que a personalidade jurídica é a prova de
que o Estado os reconhece como sujeitos coletivos, da mesma maneira que a
carteira de identidade os reconhece como sujeitos individuais. De fato, a
maioria dos dirigentes equipara a personalidade jurídica à certidão de
nascimento e à carteira de identidade, equivalência também presente nos
discursos dos funcionários públicos. O dirigente da Central Comunal Urubichá,
em Santa Cruz, explica-nos que, "assim como eu tenho minha carteira de
identidade que me identifica como fulano de tal e sou um cidadão boliviano, da
mesma forma é a personalidade jurídica para as organizações". Os entrevistados
interpretam que, como membros de grupos e organizações, eles adquirem um status
de cidadãos. Na qualidade de coletividades lhes é reconhecido o direito a
participar na gestão local, a ter acesso e a controlar os recursos públicos, e
também a reivindicar direitos.
O dirigente da comunidade de camponeses El Guindal de Ixiamas, no Departamento
de La Paz, indica-nos que a personalidade jurídica "permite identificar-nos
como comunitários, como cidadãos bolivianos". Explica:
Em nosso país, o que praticam é identificar-nos; como cada cidadão
tem sua certidão de nascimento, sua carteira de identidade, então
temos também nossas normas, nossas regras em cada comunidade, e é por
isso que fizemos nossa personalidade jurídica para adicionar ao
trâmite que se chama Título Executorial, para nos titular e,
evidentemente, nos identificar - quem somos e de onde viemos, a quem
representamos.
A personalidade jurídica identifica, simultaneamente, os membros dessa
comunidade como comunitários e cidadãos bolivianos. A equidade de ambas as
identidades indica a compreensão de que a identificação é dupla: como
organização de um determinado tipo e como membro da comunidade política
nacional. Observa-se que o efeito simbólico desse documento é a coletivização
da identidade.
O reconhecimento das organizações como sujeitos sociais com direitos refaz a
base das relações das organizações com o Estado. A personalidade jurídica
materializa um reconhecimento em face de outras instâncias, organizações e
grupos não estatais. Isso é o que expressa o dirigente de uma junta de vizinhos
de Yapacaní, em Santa Cruz: "A personalidade jurídica significa sermos
reconhecidos tanto pelo governo quanto pelo povo. Tendo personalidade jurídica,
já temos o direito a qualquer reclamação, ninguém pode nos dizer 'vão embora
porque não têm personalidade jurídica'".
A identificação de organização legalmente constituída define um novo status não
só em relação ao Estado como também em relação a outros atores sociais. Segundo
o presidente da Uniarte, uma associação de artesãos indígenas, a personalidade
jurídica é a "credencial da organização, nos torna dignos de confiança, que
somos responsáveis e sérios para poder empreender gestões". Ele ainda
complementa: "Sem esse documento não se é reconhecido legalmente ante a
sociedade, ante o Estado e ante qualquer organismo de cooperação". A
personalidade jurídica converte-se em um espelho que permite que outros os
vejam como sujeitos responsáveis e sérios; é o reflexo do Estado, que
solidifica sujeitos que se percebem e são percebidos como agentes idôneos. Não
devem passar despercebidas as qualificações morais contidas no documento em
virtude das implicações sobre os conteúdos de cidadania.
Os sentimentos de dignidade que sobressaem desses testemunhos têm uma
correlação direta na formação subjetiva de cidadania. Ser reconhecido pelo
Estado e pela sociedade fortalece a autocompreensão como sujeitos portadores do
direito de participar no espaço público. O resultado é a reafirmação de sua
condição de atores que podem e devem demandar e exercer direitos. É o que
expressa outro dirigente de uma junta de vizinhos de Santa Cruz: "Com isso
estamos reconhecidos e temos todo o direito de fazer qualquer reclamação.
Direito a participar. Foi uma grande alegria receber a personalidade jurídica".
Outra junta de vizinhos, em Cochabamba, relata-nos: "Enquanto tivermos os
documentos, teremos esse acesso, poderemos reclamar nossos direitos como
organização na prefeitura [equivalente ao estado], município, ONG, embaixadas".
Com o emprego de palavras similares, a maioria dos entrevistados em pleno
processo de tramitação de seus documentos estabeleceu uma forte associação
entre reconhecimento legal, consolidação das organizações, exercício de
direitos e participação na esfera pública. Abel Mamani, então presidente da
Federação de Juntas de Vizinhos da Cidade de El Alto (Fejuve), disse que "a
personalidade jurídica nos dá validade nesse sentido, nos dá legalidade para
que as organizações se consolidem. Quem tem o documento é poderoso".
Cerimônia e Celebração da Personalidade Jurídica
Os sentimentos de afirmação e conquista associados à personalidade jurídica são
expressos nos rituais de entrega do documento que, muitas vezes, se convertem
em um grande festejo da organização, com a presença de autoridades oficiais e
próprias, assim como convidados de outra vizinhança ou comunidade. Como nos
revela o dirigente de uma junta de vizinhos de Cochabamba, "deve-se festejar
porque é um desejo, um sonho, por isso festejam com muita alegria". Outro
dirigente expressou que "festejamos a personalidade jurídica porque aí está
concentrada mais ou menos o que é a existência de nossa organização". Abel
Mamani, então presidente da Fejuve, relatou-nos: "É grande ter a personalidade
jurídica... É uma festa total, assistimos nós, as autoridades municipais, o
governo do departamento, a Igreja, vizinhos de outras zonas".
O processo de formalização da organização é coadjuvante da consolidação do
grupo como coletividade com interesses comuns que conta com recursos jurídicos
para participar nos assuntos públicos e defender seus direitos em face do
Estado. Um dirigente da Central Operária Regional (COR), da cidade de El Alto,
descreve-nos o momento da entrega da personalidade jurídica:
De manhã nos instalamos, cantamos o hino nacional, cumprimentamos as
autoridades que estavam ali, o Conselho, os deputados, o governador,
o prefeito Quenta e outros mais. Foi magnífico, pois também todos os
dirigentes da COR estavam ali para entregar a personalidade jurídica.
Já recebemos isso, e o ato estava magnífico para nos satisfazer, pois
já temos certidão de nascimento.
O ritual de entrega e/ou a festa de comemoração convertem-se no momento de
tornar real a aquisição de um novo status como membros da comunidade nacional,
o qual outorga o direito aos dirigentes que representam a organização de
demandar um conjunto de direitos garantidos pelo Estado. Além disso, o
reconhecimento oficial ordena as relações entre as organizações sociais ao
dirimir possíveis disputas pela autoridade para exercer a representação de
setores sociais. Dessa maneira, o Estado produz o efeito de hierarquizar e de
consolidar a composição social de organizações territoriais, funcionais e
originárias.
FORMAÇÃO DE ESPAÇOS PÚBLICOS
O conceito de espaço público adotado no presente artigo nutre-se do debate
gerado pelos primeiros trabalhos de Habermas (1962; 1974). Segundo esse autor,
"entendemos por esfera pública todas as instâncias de nossa vida social em que
algo que se aproxima da opinião pública pode ser formado. Cidadãos se comportam
como um corpo público quando eles discutem de forma irrestrita assuntos de
interesse geral" (Habermas, 1974:49; tradução da autora). Seguimos os autores
que questionam a ideia proposta por Habermas de que "a esfera privada provê a
esfera pública com sujeitos completamente formados, com identidades e
capacidades estabelecidas" (Calhoun, 1994:23; tradução da autora). Essa
interpretação não considera as práticas participativas e os discursos legais
constitutivos da esfera pública e das identidades dos cidadãos (Somers, 1994).
Nessa linha, ressaltamos a definição de espaço público de Somers:
A esfera pública é concebida como um lugar participativo, no qual os
atores, com suas múltiplas identidades como sujeitos legais, cidadãos
nacionais, atores econômicos, membros de famílias e comunidades,
interagem como um corpo público em negociações e contestações sobre
assuntos públicos e a lei nacional. Em meu uso, a esfera pública é um
"espaço estruturado" que pode ou não - dependendo da distribuição de
poder, capacidades participativas e associativas e culturas políticas
populares - ser transformado em uma arena democrática de participação
popular e de cultura de contestação (ibidem:74; tradução da autora).
Nesse âmbito, pensamos que os procedimentos de cumprimento dos requisitos da
personalidade jurídica dão lugar a interações sociais que promovem a construção
de identidades coletivas e espaços públicos. Nessas interações sociais,
fortalecem-se as redes de relações sociais, identificam-se objetivos comuns do
núcleo grupal, socializam-se noções sobre a localização do grupo em relação a
outros atores em espaços mais amplos de interação social, definem-se regras
(muitas vezes não escritas) de interação e de sanções dos comportamentos
inaceitáveis, formaliza-se a estrutura das organizações e formam-se líderes com
familiaridade e segurança para se moverem com os vocabulários e com os
procedimentos estatais.
Não menos importante no próprio processo de cumprimento dos requisitos para
obtenção da personalidade jurídica é a criação de confiança interpessoal, que
passa por interações cotidianas e por eventos extraordinários, como situações
nas quais se produzem intercâmbio de critérios, apoios mútuos, socialização de
exemplos positivos de cooperação e de experiências bem-sucedidas de solução de
conflito e comprovação de respeito de acordos e de tratos. É nas interações
diretas que se forjam os princípios de distribuição "justa" de
responsabilidades e dos benefícios adquiridos por suas ações conjuntas, assim
como os procedimentos para solucionar problemas que constantemente emergem de
qualquer forma de cooperação.
Os dirigentes relatam como a formalização das Organizações Territoriais de Base
criou uma oportunidade para o fortalecimento das associações. Para muitas
juntas de vizinhos, o primeiro passo para tramitar a personalidade jurídica foi
a realização de reuniões entre as famílias que habitam um mesmo bairro. Mesmo
que muitas juntas de vizinhos já estivessem bem formadas antes do trâmite da
personalidade jurídica, para outras esta se transformou na primeira
oportunidade para o conhecimento de seus vizinhos. Um segundo passo frequente
entre essas juntas consistiu na realização de censos de vizinhos para a
sistematização das informações mais importantes das famílias, incluindo a
situação legal de seu terreno. O consentimento de socializar essa informação e
entregar os documentos de propriedade aos dirigentes significou um grande passo
no estabelecimento de confiança nos dirigentes e na identificação coletiva de
objetivos comuns.
Paralelamente, muitas juntas de vizinhos, assim como comunidades indígenas e
sindicatos, promoveram reuniões de capacitação com o apoio da prefeitura, do
governo do departamento e de ONGs para o conhecimento de direitos associados à
personalidade jurídica. Por meio de reuniões de comunidade e exercícios
continuados de redação dos estatutos orgânicos, vão se consolidando espaços de
interação nos quais as pessoas vão se orientando como membros de um grupo com
interesses comuns, sendo estes de base territorial ou de base funcional.
Linguagens e discursos constroem-se com a definição de prioridades, direitos e
obrigações de uns para com os outros. A consolidação interna dos grupos se
complementa com a compreensão de sua localização em meios sociais e políticos
mais amplos e com a elaboração de noções sobre as condições de serem membros da
comunidade política nacional.
Esses processos implicam a expansão e a reafirmação do exercício burocrático do
Estado por meio da configuração de novas racionalidades. Entretanto,
distanciamo-nos das interpretações de que esses processos são unilaterais e
unidirecionais. Nancy Postero (2003), por exemplo, afirma que os processos de
socialização da Lei de Participação Popular com as comunidades indígenas
inculcaram nos líderes indígenas jovens as racionalidades do liberalismo. A
autora interpreta as aprendizagens de análise racional da situação em suas
comunidades, de proposta de soluções aos problemas diagnosticados, de gerência
transparente de suas organizações, de técnicas de contabilidade e relatório
financeiro, das responsabilidades nos assuntos comuns de suas comunidades como
técnicas de dominação que mostram como todas as políticas implementadas durante
a década de 1990 (incluindo as leis de Participação Popular, Inra, Reforma
Educativa) apontam para um mesmo objetivo: a interiorização das racionalidades
do neoliberalismo.
Encontramos, ao contrário, que o processo de adequação ao formato estatal é
vivido como tomada de poder pelos membros das organizações sociais que se
percebem sujeitos de direitos, que dominam os recursos discursivos e
organizativos para participar com mais eficácia nos espaços públicos de
interlocução com o Estado. O processo é muito mais complexo, o próprio objetivo
de mais autonomia para organizar a vida coletiva segundo princípios e valores
comunitários requer o trânsito entre esferas de interação mais além de seus
"territórios" geográficos e sociais. O domínio das linguagens estatais e a
capacidade de interagir com o Estado têm o efeito de fortalecer a demanda de
serem "iguais, mesmo que diferentes".
Em outras palavras, o cumprimento dos requisitos definidos pelo Estado
contribui para a estruturação mediante a explicitação (oral e escrita) dos
princípios que ordenam as práticas vigentes, forçando a formulação de outros
que não estavam ainda definidos. O registro escrito das regras de funcionamento
da organização é muito valorizado pelos membros, assim como os carimbos,
protocolos e resoluções. Observa-se a tentativa de se igualar às práticas
estatais na vida cotidiana das organizações; por exemplo, a atualização dos
livros de atas em cada nova reunião, andamento e atividade coletiva. Muitas
organizações superiores (confederações, federações) exigem até mesmo a
personalidade jurídica das novas organizações como requisito para sua
afiliação.
Aprendizagem das Linguagens Estatais
A importância que se outorga às formalidades legais nas organizações sociais é,
pelo menos em parte, o resultado das aprendizagens adquiridas nas relações com
o Estado. É evidente o forte legalismo nas práticas organizacionais que se
expressa na familiaridade com os estatutos, resoluções, regulamentos, livros de
atas etc. Mesmo que essa terminologia e as práticas legais sejam um mundo
difícil de transitar, este não se torna um mundo inacessível, no qual os
dirigentes se sintam irremediavelmente "analfabetos", como interpreta Salman
(2004). A possibilidade de mover-se nesse mundo tem implicações significativas
nas habilidades de demandar direitos e na disposição para participar no jogo
político.
Os dirigentes ressaltam a importância dos processos de aprendizagem das
linguagens e dos procedimentos estatais. O ingresso no mundo da legalidade e
dos trâmites administrativos requer iniciação para nele transitar com
desenvoltura. É na posição de representantes de coletividades que esse mundo se
torna mais inteligível e assimilável. Os dirigentes sentem a necessidade de
aprender, de saber se movimentar no mundo das terminologias formais, dos
procedimentos legais, para poderem representar suas bases no espaço público
estatal. Esse conhecimento é adquirido na própria prática, e seu manejo com
propriedade é o que define a qualidade do trabalho do dirigente. As
aprendizagens também incluem as "manhas", as práticas não escritas, a
naturalização da troca de favores que muitas vezes somente beneficiam os
dirigentes.
Entretanto, esse conhecimento não se restringe unicamente ao grupo dos
dirigentes. Pouco a pouco os membros das organizações vão se familiarizando com
os "idiomas", procedimentos e práticas estatais. As "bases" interessam-se por e
demandam explicações sobre os procedimentos que em seu nome são realizados. De
igual modo, desenvolvem formas de controle e sanção para os dirigentes que
violam a confiança depositada a partir da definição de padrões de comportamento
correto ou incorreto por parte dos dirigentes.
Diante das dificuldades para a formação de associações, que incluem abusos por
parte de dirigentes, uso da representação para benefícios particulares, atos de
corrupção, deslealdades, entre tantas outras experiências negativas, as
condições que possibilitam a consolidação das associações são ainda mais
importantes. Tanto com as experiências negativas quanto com as positivas, o
Estado surge como referência central não só na formação discursiva como também
nas práticas das organizações12.
Continuidades e Descontinuidades da Participação em Assuntos Públicos nos
Âmbitos Local e Nacional
Como vimos nos parágrafos anteriores, o espaço público, entendido como de
negociação e de contestação sobre assuntos comuns, constrói-se em interações
tanto cotidianas quanto extraordinárias. Na vida diária e no âmbito urbano,
destacam-se os bairros em processo de urbanização que ainda não contam com
serviços básicos de eletricidade, água e esgoto, além de uma delimitação de
zonas consolidada. No âmbito rural, as comunidades indígenas e camponesas
providenciaram o espaço de convivência social com graus diferenciados de
interdependência com o Estado.
A organização dos vizinhos para a provisão de bens e serviços públicos redefine
um espaço a partir do qual se gesta a "política de cidadania". A identidade
cidadã não se limita a compreender-se como usuários de serviços e bens públicos
toda vez que se gestam ações coletivas orientadas para a provisão de serviços e
bens de maneira concertada com as instituições públicas. Um dirigente na cidade
de El Alto explica: "A junta de vizinhos é muito importante: um cidadão que
tenha sua casa não pode fazer seu esgoto sozinho; então, a partir do momento em
que tenha sua casa, deve fazer parte da junta de vizinhos". A maioria dos
entrevistados, dirigentes e membros das juntas de vizinhos ressalta: "A missão
de nossa organização é ir melhorando nosso bairro com a reforma de escolas, de
postos de saúde, a provisão de serviços básicos (água, esgoto, energia
elétrica), a construção de vias públicas, melhoramento e abertura de estradas".
A abertura de espaços de autogestão e de canais concretos de participação na
definição dos orçamentos municipais e de controle sobre as decisões das
autoridades públicas locais amplia e redefine os sentidos do público e as
responsabilidades na política. No âmbito da Lei de Participação Popular, as
juntas de vizinhos solicitam a alocação do orçamento municipal para comprar
ferramentas e materiais de construção (areia, pedra, cimento). Em
contrapartida, os vizinhos entram com a mão de obra para as reformas dos bens
públicos. Se antes se solicitavam cotas aos vizinhos para cobrir muitos dos
gastos, com a Lei de Participação Popular normatiza-se a alocação de orçamento
para prévia planificação das prioridades dos bairros ou comunidades.
Nas comunidades indígenas, uma vez reconhecidas como Terra Comunitária de
Origem (TCO), desenvolve-se a gestão do território:
Nossa TCO está bem planificada, cada comunidade tem que fazer sua
própria gestão territorial, comunais, o que vai fazer com seus
recursos, o que vai fazer com seu solo, onde há madeira, como
aproveitar os recursos naturais, porque nós disso vivemos. Mas deve-
se aproveitar os recursos de uma forma sustentável [...]. Em termos
organizativos, estamos agora uniformizando os nomes das autoridades
em nível de comunidade. Antes era presidente, mas isso, reconhecemos
que não é nosso; então estamos retomando o que são os caciques,
caciques maiores em nível de comunidades, também a estrutura das
comunidades, para que haja uma relação direta para fazer as gestões
em âmbito territorial [...]. Também estamos vendo os regulamentos de
cada comunidade, de como quer cumprir o que está escrito dentro de
sua regra de uso e sua experiência interna social. Além disso, temos
também um regulamento da TCO que recolhe todas as experiências dos
regulamentos de todas as comunidades [...]. Planificação é anual
(Central Comunal Urubichá, Santa Cruz).
Parece confirmar-se o prognóstico de Rojas (1997:229) de que
o município territorial constitui um espaço de institucionalização
democrática com responsabilidades (e não somente de direitos de
reivindicação), em que a participação do cidadão não somente é
permitida, mas também estimulada pela menor distância deste ao
governo local. O fortalecimento do poder local permite ampliar a
legitimidade desde a base com intervenção efetiva (planificação
participativa, controle social), o que possibilita a governabilidade
democrática [...]. Finalmente, aspira a promover uma cultura de
concertação, inclusive no âmbito interno do Estado, diferenciando-se
do predomínio de "caudilhos" ou homens fortes que definem ao seu
arbítrio em suas zonas de influência, que tão frequentemente se
associam à cultura política na América Latina.
Por meio da participação direta nos assuntos locais, os sensos de
responsabilidade se fortalecem no seio de organizações cujos membros se
compreendem como agentes ativos na esfera pública.
A formação de identidades sociais com predisposição para a participação define
sociedades articuladas com recursos simbólicos e organizacionais para a
intervenção nos assuntos públicos para além do âmbito local. De fato, foi isso
que ocorreu com as juntas de vizinhos que, através de suas organizações
matrizes, assumiram um papel principal em assuntos concernentes às cidades onde
habitam e também nos assuntos de interesse nacional. A mesma observação é
válida para as comunidades indígenas. Estas lideraram os movimentos pelo
reconhecimento dos direitos coletivos e, especificamente, os direitos ao
território que motivaram as mudanças legais dos últimos vinte anos. Foram
também as organizações indígenas e camponesas as primeiras a pedir uma
Assembleia Constituinte, a qual se concretiza em 2006 sob o governo de Evo
Morales.
O grau de organização da sociedade boliviana vem acompanhado da centralidade da
política na vida cotidiana dos cidadãos, apesar da tradição elitista das
estruturas políticas, da baixa escolaridade da população e dos níveis de
pobreza e desigualdade. Parte importante da população não somente mostra um
enorme interesse por estar informada sobre a política nacional como também
participa em redes e associações que se convertem em espaços estruturados de
formação de opiniões sobre os debates políticos. Alguns assuntos sobressaem no
interesse da população em geral, como é o caso da propriedade e da gestão dos
recursos naturais, os quais se associam às noções de pertencer à comunidade
política nacional. Como fruto desse interesse mais além do âmbito local, a
Bolívia viveu, nos últimos anos, os eventos conhecidos como a guerra da água em
Cochabamba, a guerra do gás, a queda de dois presidentes e a eleição de Evo
Morales como presidente constitucional da República.
O trânsito entre a atenção sobre os problemas cotidianos dos bairros e a
atenção sobre as políticas econômicas e a propriedade dos recursos naturais nos
faz questionar as afinidades e as relações mútuas dos níveis - local e nacional
- de "política de cidadania". Uma das afinidades entre esses dois níveis se
refere ao fato de que as organizações de base são os espaços nos quais se
gestam as interpretações sobre a história do país e do contexto político
nacional, a construção de noções sobre os interesses nacionais e os critérios
para a avaliação das ações estatais.
Nessas organizações se concretizam os processos de aprendizagem de
relacionamento com o Estado, dos canais e as estratégias para conseguir
conquistas políticas e de direitos, de maior inclusão na tomada de decisões e
de abertura de mecanismos de controle sobre as ações estatais. Esses processos
de aprendizagem não são fechados aos membros das organizações e incluem atores
externos a elas, como intelectuais, jornalistas e políticos. As interpretações
geradas em outras esferas (círculos de intelectuais, meios de comunicação,
burocracias não estatais e estatais) circulam e são ressignificadas nesses
espaços de interação.
A Multidimensionalidade das Relações entre os Atores Coletivos e o Estado
Na história recente do país, a diferenciação de táticas de relacionamento com o
Estado e a construção de alianças com diversos atores sociais estiveram
marcadas pelo grau de abertura ou pelo fechamento de canais de comunicação com
os centros de decisão política pública e das oportunidades de influência sobre
as políticas. Entre 1985 e 2005, o encerramento dos espaços de decisão das
políticas econômicas e a perda de capacidade de representação dos partidos
políticos vinculam-se a estratégias de participação por meio de mobilização e
pressão nas ruas. Simultaneamente, as organizações sociais aproveitaram a
abertura de vias de interlocução e de influência nas decisões públicas nos
espaços locais. Em outras palavras, com diferentes estratégias e recursos,
espaços de participação nos assuntos públicos foram sendo gerados.
A múltipla dimensão das relações entre os atores sociais e o Estado se torna
visível quando analisamos a simultaneidade das práticas e estratégias
utilizadas pelas organizações sociais para demandar e exercer direitos. Nos
discursos dos dirigentes das organizações sociais operárias, sobressai a
apropriação daquelas iniciativas estatais que são interpretadas como respostas
às suas demandas, que institucionalizam direitos. Simultaneamente, recusam
outras iniciativas estatais, interpretadas como retrocessos em seus direitos
como cidadãos. O trânsito entre vias alternativas de participação e influência
nas decisões públicas é facilmente acomodado: enquanto aproveitam a abertura de
canais de interlocução com o Estado, acionam estratégias coletivas, como a
mobilização massiva fora do sistema formal de representação.
A experiência da Central Operária Regional (COR) da cidade de El Alto é
exemplar. Essa organização e a Fejuve, da mesma cidade, foram os principais
protagonistas do movimento social batizado como a guerra do gás (outubro de
2003), que terminou com a destituição de dois presidentes, Gonzalo Sánchez de
Lozada (outubro de 2003) e Carlos Mesa (junho de 2005). Ao mesmo tempo que a
Central questionava a legalidade e a legitimidade do Estado, também seguia os
trâmites da documentação para obter a personalidade jurídica junto ao próprio
Estado que combatia nas ruas13.
No ato de entrega de sua personalidade jurídica, no dia 9 de agosto de 2005,
Edgar Patana Ticona, máxima autoridade da COR de El Alto, recordou "que foram
cinco intensos meses para conseguir a personalidade jurídica" e que foi um dos
primeiros passos que ele tinha dado depois de ser eleito secretário executivo.
O então presidente da Fejuve - El Alto, Abel Mamani, presente no evento,
explicou que "é muito importante ter a personalidade jurídica porque dá
legalidade às instituições para que se consolidem [...], é de suma importância
ter a personalidade jurídica. Quem tem o documento é poderoso".
No evento de "autorização estatal" via concessão de personalidade jurídica, a
COR assume uma posição subordinada à ordem estatal; já nos atos de confrontação
nas ruas, as organizações assumem posições de igual para igual com o Estado. A
subordinação é justificada por um dirigente da COR: "O sindicalismo tem que
estar baseado no que é a personalidade jurídica. Achamos que é fundamental
porque sem essa identidade não podemos fazer nada e também não podemos reclamar
nada; simplesmente nos fazem passar por uma organização falsificada". Os
discursos de subordinação em que se sublinha que "sem esta identidade não
podemos fazer nada nem reclamar nada" certamente se refere a uma das dimensões
de relacionamento das organizações sociais com o Estado. Seria uma dimensão
mais cotidiana, dentro dos canais formais "das gestões ante as autoridades
públicas como o governo central, os governos departamentais, o município",
conforme nos indica Abel Mamani.
Os atos de insubordinação nos momentos de confrontação refletem outra dimensão
das relações com o Estado. Em 3 de junho de 2005, o jornal La Prensa publicou:
Centenas de vizinhos de El Alto mostraram ontem sua capacidade de
pressão como em outubro de 2003. Desde cedo levantaram barricadas,
estenderam arames entre os postes de luz, cavaram valas, instalaram
postos de vigília, fecharam o Mercado 16 de Julho e prepararam o
cerco à instalação de Senkata [armazenadora de hidrocarburante].
Nesses momentos de medição de forças, o Estado surge como o inimigo em uma
lógica de guerra em que a sociedade enfrenta o poder estatal. O dirigente da
COR nos indica que "nossos inimigos são o governo, a prefeitura, o governo
departamental, porque eles não gostam que reclamemos o justo, eles sempre
esperam que estejamos calados, braços cruzados [...]".
Em ambas as situações, de cumprimentos dos requisitos da personalidade jurídica
e de desacato por meio dos enfrentamentos e do controle da vida cotidiana das
pessoas e do território mediante bloqueios de ruas e estradas, observa-se o
exercício multidimensional de cidadania como demanda de direitos. Nas situações
de conflito aberto, os direitos são reclamados à margem de canais
institucionais de relacionamento com o Estado, enquanto a obtenção de
personalidade jurídica se converte na apropriação das vias e dos mecanismos
promovidos pelo Estado para o exercício de direitos. Esse exemplo mostra a
coexistência de diferentes espaços de exercício e de demanda de direitos dos
cidadãos, o que nos remete aos tecidos complexos e diversos que articulam
sociedade e Estado.
Tanto a participação política por meio dos canais formais abertos pelo Estado
quanto a participação fora do sistema político levam a aprendizagens cívicas de
comportamento cidadão, o qual se instrumentaliza de diferentes formas, como
medição de forças e lutas sociais ou negociação e cogestão. A relação com as
instituições públicas para a reivindicação e o exercício de direitos
protagonizada por atores coletivos adquirem diversas formas. Em outras
palavras, por diferentes vias se forma o público como um conjunto de práticas e
atividades em que as pessoas chegam a conceber-se como cidadãos e a assumir a
política como um assunto próprio, cristalizando concepções de interesse comum.
CIDADANIA INDIVIDUAL E CARTEIRA DE IDENTIDADE
Também exploramos neste artigo o significado da carteira de identidade, a qual
é descrita pela maioria das pessoas que se encontrava fazendo o documento, em
novembro de 2005, como "um documento muito válido", por permitir ultrapassar
barreiras, viajar ao exterior, fazer qualquer trâmite, ir ao colégio, entrar
para uma repartição pública, entre tantas outras atividades cotidianas. Segundo
essas pessoas, a carteira de identidade é o documento que lhes permite exercer
direitos civis como o de ir e vir, o direito de controlar bens sem que outros
os usurpem (direito de propriedade), estabelecer contratos sustentados pela lei
e aceder às instituições de Justiça. As pessoas da terceira idade indicaram que
é com a carteira de identidade que podem adquirir o Bonosol, um direito social
que entrou em vigência em 1997.
A maioria dos entrevistados expressa que "a carteira de identidade está por
cima de tudo", por constituir um requisito para a aquisição de outros
documentos, como a carteira de serviço militar, o diploma do segundo grau, o
título de eleitor, a personalidade jurídica, entre outros. Compreende-se que a
carteira de identidade é parte de uma cadeia de documentos que lhes faculta
desenvolver-se cotidianamente sem a intromissão de terceiros, entre eles o
Estado. Também são esses os documentos que viabilizam direitos civis, políticos
e sociais.
Os efeitos concretos da autorização legal em termos de "permitir" a realização
de atividades cotidianas, o estabelecimento de transações, de acesso a bens e
serviços públicos e privados posicionam o Estado como uma instância de poder e
com poder. É uma das maneiras de o Estado se fazer presente no dia a dia do
cidadão. O ato de autorizar, identificar e outorgar direitos e deveres forja "o
próprio tecido do mando" ao definir o que as pessoas devem, podem ou não fazer
em diferentes âmbitos de suas vidas. De fato, sem a carteira de identidade elas
se veem impossibilitadas de realizar as funções mais triviais, assim como serem
beneficiárias por serviços e políticas e, finalmente, de participarem da vida
pública.
Além desses efeitos práticos, a carteira de identidade simboliza o fato de
pertencer à grande comunidade política. Como nos indica uma das entrevistadas,
professora rural de Chimoré, Cochabamba, "a carteira de identidade é um
documento que identifica uma pessoa, quem é, de onde é; sem carteira de
identidade uma pessoa não é cidadã". Um senhor de Villa Dolores, em El Alto,
relata-nos: "A carteira de identidade é sua identificação dentro da sociedade,
dentro do governo", é o documento que reconhece sua condição de membro da
comunidade política com direitos e, nesse sentido, como um cidadão.
Os documentos oficiais, como a certidão de nascimento, a carteira de identidade
e o título de eleitor, transmitem a forte mensagem de que todos os bolivianos e
bolivianas são iguais diante do Estado. As eleições, assim como as consultas e
os referendos, são importantes eventos que reforçam a mensagem de igualdade de
direitos de indivíduos que habitam o território nacional. Outras tantas ações
do Estado e da sociedade estão orientadas para a consolidação da ideia de
cidadãos-indivíduos portadores de direitos e de obrigações em face do Estado e
da sociedade.
É assim que os efeitos simbólicos da carteira de identidade ressaltam a
capacidade de o Estado classificar as pessoas como indivíduos e,
concomitantemente, como membros da comunidade nacional. Os habitantes de um
território são definidos como boliviano, estrangeiro ou boliviano por
casamento; habilitado para ser eleitor; dona de casa; bacharel (aquele que
terminou o segundo grau) ou profissional; proprietário ou inquilino; casado,
solteiro, divorciado ou viúvo. Por meio da identificação materializada em
documentos e concretizada em leis, nas decisões de Justiça, nos registros, nos
resultados de censos, nas permissões, nos formulários de impostos, entre outros
tantos procedimentos, o Estado expressa categorias sobre quem somos, que
direitos e obrigações temos uns para com os outros e para com o próprio Estado.
CONCLUSÕES
Do ponto de vista das ciências sociais, compreendemos a cidadania como
processos específicos e historicamente contingentes de reclamações e de
negociações entre o Estado e os atores sociais. A análise orienta-se para a
formação de cidadania na sociedade boliviana, na qual a dimensão coletiva se
afirma nas lutas, nas demandas e no exercício de direitos, assim como nas
modalidades de extensão de direitos a partir do Estado. Uma das especificidades
da sociedade boliviana refere-se à sua excepcional capacidade organizativa. A
presença de esferas de interação social, ordenadas e controladas por
organizações formalmente estruturadas, com uma longa tradição histórica, foi se
consolidando e tomando forma com a promulgação de leis e políticas que
reconheceram e incorporaram as organizações de base no espaço público,
impulsionando a participação de atores coletivos na definição de políticas e na
atribuição de recursos públicos.
Analisamos a interação das ações e das práticas estatais, de um lado, e as
ações e as práticas dos atores sociais, de outro, na construção de espaços de
exercício e de demanda por direitos. As dinâmicas no seio da sociedade civil e
a formação de sujeitos que se concebem como membros da comunidade política, e,
em consequência, com direitos, condicionam e definem os processos de formação
das instituições públicas, a definição de direitos legais e as práticas
estatais. Do mesmo modo, as políticas e as práticas estatais formam, de uma ou
de outra maneira, os significados de cidadania.
A formação das reivindicações de direitos que se baseiam na autocompreensão de
pertencer à comunidade nacional está estreitamente relacionada com os processos
de expansão e contração dos direitos institucionalmente outorgados pelo Estado.
A história boliviana dos últimos vinte anos indica que ambos os processos, de
expansão de uns direitos e de contração de outros, são parte tanto da formação
estatal quanto dos espaços públicos onde se gestaram as lutas e as demandas por
direitos, seja como sinal de contestação e de resistência, seja como sinal de
negociação e de acatamento.
Nesse sentido, as relações entre o Estado e a sociedade boliviana não se deram
unicamente como negação, reação ou resistência, nem por parte do Estado, nem
por parte dos atores sociais mobilizados. O estudo mostra, ademais, que a
composição variada das estratégias de relacionamento das organizações sociais
com o Estado não é contraditória. De fato, a apropriação de leis que ampliaram
a participação nos assuntos públicos não suprimiu a confrontação em relação a
outras leis e políticas públicas compreendidas como retrocessos nos direitos
dos cidadãos. Do mesmo modo, as mudanças estatais não podem ser entendidas sem
localizá-las nos contextos social e político de formação de espaços públicos,
os quais refletem a distribuição relativa do poder na sociedade.
A personalidade jurídica materializa o reconhecimento do Estado de sujeitos
coletivos. É como membro de coletividades subnacionais que os indivíduos
demandam direitos civis, políticos, sociais e de grupo, como o direito ao
território pelas comunidades indígenas. Os direitos outorgados pelo Estado são,
por sua vez, reelaborados ao ingressar em redes de significados que reordenam a
experiência e definem sentidos de pertencer a coletividades e, portanto,
produzem compreensões multidimensionais de cidadania. As representações que se
tecem em torno da personalidade jurídica, as quais envolvem noções de
legalidade, reconhecimento, direitos, inclusão e participação, tornam visíveis
as experiências e práticas concretas que forjam sujeitos coletivos que se
percebem aptos a demandar direitos e com poder de participar da vida pública.
NOTAS
1. Realizou-se um total de 148 entrevistas em profundidade com indivíduos,
dirigentes sociais e funcionários públicos, e observações das interações em 22
repartições públicas responsáveis por outorgar carteira de identidade e
personalidade jurídica nas cidades de La Paz, El Alto, Achacachi, Cochabamba,
Chimoré, Santa Cruz e Yapacaní.
2. Para uma análise dos limites do individualismo na teoria dos direitos,
consultar López Calera (2000).
3. Entre outros estudos sobre a relação entre documentos e identidade social
estão os de Santos (1979; 1981) e Peirano (1982). Ambos argumentam que, na
sociedade brasileira, a carteira de trabalho é o símbolo de cidadania. Santos
ressalta que a cidadania no Brasil não é definida pelos direitos civis,
políticos e sociais; desenvolve-se pelo reconhecimento e pela definição por lei
das profissões vigentes, por meio de um sistema de estratificação ocupacional.
Peirano propõe que a nação brasileira existe como categoria ideológica, mas que
é uma nação composta de indivíduos hierarquizados que se diferenciam por sua
profissão e pelo lugar que ocupam na sociedade.
4. A longa história da personalidade jurídica articulou-se com novos direitos
definidos pela Lei de Participação Popular, promulgada em 1994, e pela Lei do
Instituto Nacional de Reforma Agrária, promulgada em 1996, como analisaremos
detalhadamente em seguida.
5. Essa lei considerava o mundo colonial dividido em duas entidades: a
República de Espanhóis e a República de Índios.
6. As dez agremiações mais importantes no país (mineiros, fabris, gráficos,
camponeses, empregados de banco, comércio e indústria) deram origem à entidade
máxima dos trabalhadores bolivianos, a COB, em 1953. Ao longo das três décadas
seguintes, o sindicalismo, sob a liderança da COB, converteu-se no principal
mediador entre a sociedade civil e o Estado. No fim do período 1979-1982, a COB
desempenhou um papel central no processo de retorno à democracia.
7. Entre os estudos sobre as formas alternativas de organização social e
política à ordem estatal boliviana, ver Murra (1975), Ticona, Rojas e Albó
(1995), Platt (1982) e Larson (1988).
8. Durante os anos 1980, período da abertura democrática, as organizações
indígenas começaram a fortalecer-se, enquanto as organizações operárias foram
perdendo protagonismo político. Nos anos 1990, surge a discussão no interior
das organizações indígenas camponesas sobre a identidade originária e a
necessidade de recuperar as formas de organização anteriores ao sindicato. Um
marco importante nesse período foi a Marcha pela Terra e a Dignidade, em 1990,
organizada pelos indígenas do leste (as terras baixas) da Bolívia.
9. A Lei Geral do Trabalho (LGT), promulgada em 1942 e vigente na atualidade,
reconhece o direito de associação em sindicatos, que poderão ser patronais,
gremiais ou profissionais, mistos ou industriais de empresa, cuja finalidade
essencial é a defesa dos interesses coletivos que representa.
10. Entre os autores que avaliaram as reformas políticas e institucionais da
década de 1990 como avanços no reconhecimento por parte do Estado da tradição
organizativa da sociedade boliviana, estão Rojas (1997), Arias e Molina (1997),
Medina (1997) e Verdesoto (1997).
11. No trabalho "Práticas Estatais e Cidadania Coletiva e Individual na
Bolívia" (Wanderley, 2009), são analisadas comparativamente as interações de
funcionários das repartições de identificação e as comunidades indígenas,
associações de camponeses, juntas de vizinhos, por um lado, e indivíduos-
cidadãos sem afiliações corporativas, por outro. Argumenta-se que as práticas
nas repartições de identificação têm o efeito de debilitar a experiência de
cidadão-indivíduo e fortalecer a experiência de cidadão-coletivo,
principalmente entre os grupos socialmente marginalizados.
12. Sobre as relações entre o sistema político e as organizações sociais, ver
os estudos de Quisbert (2003), Ticona, Rojas e Albó (1995) e Ticona (2000).
13. No contexto dos movimentos sociais de 2000-2005, as juntas de vizinhos, os
sindicatos de trabalhadores, as comunidades indígenas, entre outras,
consolidam-se como atores coletivos "de primeira ordem", ao lado dos sindicatos
e das associações camponesas. Foram mobilizações articuladas contra processos
de privatização de recursos naturais (especificamente a água), pela
consolidação das Terras Comunitárias de Origem, a recuperação do gás e os
hidrocarburantes. Mamani Ramírez (2005) argumenta que o levante da cidade de El
Alto, em outubro de 2003, estabeleceu microgovernos nos bairros que articularam
as estratégias de ação coletiva, conformando espaços de deliberação, de
decisões coletivas e aprofundamento de sentidos de identidades entre bairros
indígenas e populares, capazes de paralisar a cidade com barricadas. Os dois
principais articuladores dessas mobilizações foram a Fejuve e a COR.