Política externa chilena e espectro ideológico político-partidário: um estudo
sobre a Câmara dos Deputados (2002-2006)
INTRODUÇÃO
A percepção de que a política externa deve ser analisada desde a perspectiva
dos tomadores de decisão no âmbito doméstico ganhou força no cenário
acadêmico1. Os fatores internacionais, notadamente a estrutura do sistema
internacional, não são capazes de explicar toda a complexidade envolvida na
interação entre os Estados, tampouco apontar as variáveis determinantes na
adoção de determinada política externa. Nem mesmo a formulação da política de
segurança nacional, tradicionalmente analisada desde a perspectiva teórica
estruturalista2, pode ser plenamente compreendida enquanto um resultado advindo
de uma unidade de decisão concentrada (Estado Nacional) que não gera
incoerências na definição de seus interesses.
O estudo de Fordham (1998) é um excelente exemplo entre aqueles que conferem
peso específico à dimensão doméstica do processo decisório em política externa.
O autor argumenta que interesses econômicos conflitantes, mediados por partidos
políticos, ajudaram a moldar a política de segurança nacional norte-americana
no início da Guerra Fria. Assim, senadores cujos estados predominavam
investidores no Terceiro Mundo, bancos atuantes na Ásia e indústrias que
competiam com produtos similares importados tendiam a se opor à custosa e
ambiciosa política de segurança nacional da administração Truman. Em
contrapartida, senadores provenientes de estados majoritariamente compostos de
indústrias exportadoras e bancos atuantes na Europa tendiam a apoiar a política
de segurança nacional no período citado (ibidem). Dessa forma, as preocupações
com segurança nacional advindas da Guerra Fria, ao contrário do que sustenta o
estruturalismo, não gerou um conjunto unitário de preferências nacionais
(ibidem). Desde uma perspectiva mais ampla, para qualquer combinação de
condições estruturais e materiais, haverá uma significativa variabilidade nos
resultados da política externa (Hudson, 2005). Ainda que se reconheça a
importância de variáveis sistêmicas na formulação da política externa, esta
será mais bem entendida como o resultado de uma disputa de interesses no
interior do processo decisório.
Tendo em vista a relevância das preferências dos tomadores de decisão
domésticos na formulação da política externa, o presente artigo se fixa em um
desses agentes domésticos: o Congresso Nacional3. Mais especificamente,
pretendemos analisar as votações nominais dos deputados chilenos em temas de
política externa durante a legislatura 2002-2006. Este artigo é motivado pela
ideia de que, quanto mais os países da América do Sul se integram às economias
regional e global, mais interdependentes e imbricadas se tornam as políticas
domésticas e internacionais dos países da região. Dito de outra maneira, com a
integração econômica, é difícil compreender a política externa dos países sem
levar em conta fatores domésticos, assim como é difícil entender a política
doméstica sem entender a dinâmica do plano internacional.
Nesse sentido, a escolha do Chile como estudo de caso se justifica plenamente.
Na América do Sul, o Chile é o país que fez uma opção mais bem definida pela
integração à economia internacional via acordos bilaterais. Considerando que os
demais países da região enfrentam os dilemas da integração internacional
competitiva, observar de que forma se comportam os partidos políticos em
matéria de política externa, no caso chileno, pode ser tomado como uma
referência analítica importante para o campo de estudo das relações
internacionais do Brasil. Com este artigo, gostaríamos de dar uma contribuição
específica para um conjunto de questões centrais, mas ainda em aberto, como: de
que forma se estruturam as preferências dos partidos políticos em matéria de
política externa? A lógica estruturadora das preferências dos partidos em
política externa difere da lógica que estrutura suas preferências domésticas?
Qual é o peso da fidelidade partidária vis-à-visa clivagem governo
versusoposição na dinâmica de formação de preferências dos partidos em matéria
de política comercial? Sem a pretensão de responder a todas essas questões,
este artigo se concentra em compreender a estruturação das preferências
partidárias em matéria de política externa tomando o Chile como referência.
Esperamos, assim, dar uma contribuição específica para um debate mais amplo.
No plano da literatura internacional, vale destacar o fato de estudos recentes
terem reafirmado a influência da orientação partidária nas políticas públicas
domésticas (Figueiredo e Limongi, 1999; Poole e Rosenthal, 1997; Cox e
McCubbins, 1991; Aldrich, 1995; Leoni, 2002; Hager e Talbert, 2000).
Entretanto, o estudo da política externa, tradicionalmente considerada acima
dos partidos políticos, ainda carece de trabalhos empíricos mais sistemáticos
sobre a influência do Congresso Nacional e os partidos políticos, sobretudo no
que diz respeito aos países latino-americanos4.
O argumento central desenvolvido no presente estudo é o reconhecimento da
correlação entre o posicionamento dos partidos políticos chilenos no
continuumideológico direita-esquerda e os votos dos deputados em temas de
política externa. Nós argumentamos que a ideologia do partido político do
deputado chileno é um excelente preditor para seus respectivos votos em
política externa.
Este artigo está dividido em cinco partes, além desta introdução e da
conclusão. Na primeira parte, apresentamos a revisão da literatura acerca da
participação do Congresso Nacional na formulação da política externa, assim
como a influência dos partidos políticos na determinação dessa política. Na
segunda, apresentamos a metodologia do estudo, notadamente a utilização do
programa estatístico Nominate, desenvolvido por Poole e Rosenthal (1991) para a
análise de votações nominais na arena legislativa. Na terceira parte,
privilegiamos a apresentação dos dados empíricos do artigo, assim como alguns
motivos que tornam o Chile um objeto de estudo adequado à abordagem aqui
proposta. A quarta parte se dedica à análise dos resultados obtidos, revelando
a dimensão político-ideológica enquanto fator estruturador dos votos dos
deputados chilenos em política externa. Já a quinta descreve casos de votações
polarizadas a fim de delinear o conteúdo substantivo do posicionamento dos
partidos chilenos no tema. Por fim, concluímos o estudo e apontamos
possibilidades e desafios presentes na expansão dessa agenda de pesquisa na
América Latina.
ESTADO DA ARTE
Os anos 1990 marcaram o ressurgimento, na literatura norte-americana, dos
partidos políticos enquanto atores centrais do processo político e da
formulação das políticas públicas5. Fatores como disciplina partidária,
ideologia dos partidos políticos, coesão partidária e party governmentemergem
como explicações e conclusões advindas da análise das votações nominais (roll-
call voting) do Congresso Nacional norte-americano (ver, por exemplo, Poole e
Daniels, 1985; Cox e McCubbins, 1991; Rohde, 1991; 1994; Aldrich, 1995; Poole e
Rosenthal, 1991; 1997; Gerring, 1997; Aldrich e Rohde, 2000; Hager e Talbert,
2000; Cox e Poole, 2002). No caso da literatura que aborda países latino-
americanos enquanto objeto de estudo, podemos citar os trabalhos de Figueiredo
e Limongi (1999) e Londregan (2000) como exemplos dessa mesma tendência. Nesses
estudos, a constatação da existência de disciplina partidária e de influência
ideológica dos partidos políticos nas votações nominais da Câmara dos Deputados
do Brasil6 e o Senado chileno aproximam essa literatura à norte-americana
citada.
Além do ressurgimento dos partidos políticos, os anos 1990 também trouxeram
outro ressurgimento significativo na literatura norte-americana: o Congresso
Nacional como importante arena decisória em temas de política externa e defesa
nacional7. De maneira geral, é possível identificar duas grandes perspectivas
argumentativas na literatura em relação à atuação do Congresso Nacional na
formulação da política externa: a primeira advoga a preponderância do Poder
Executivo diante de um Congresso pouco ou nada assertivo em política externa,
ao passo que a segunda posiciona o Congresso de forma atuante tanto em política
externa quanto no âmbito doméstico.
Um dos argumentos centrais da primeira perspectiva é a percepção de que o
presidente obterá sempre um maior espaço de atuação em assuntos internacionais
se comparado aos assuntos domésticos8. Dessa forma, ideologia e partidos
políticos influenciariam de maneira determinante apenas as políticas
circunscritas no âmbito doméstico (Wildavsky, 1969; Edwards, 1989; Bond e
Fleisher, 1990; Ragsdale, 1995). Ademais, alguns estudos clássicos apontam uma
relativa harmonia entre os poderes Executivo e Legislativo na formulação da
política externa derivada do constante apoio do Congresso às políticas do
presidente9 (Dahl, 1950; Clausen, 1973 apudMcCormick e Wittkopf, 1992). Esse
constante apoio foi denominado pela literatura bipartisans-hip10. Nesse
sentido, a dificuldade de um parlamentar atuante em temas de política externa
obter sua reeleição e a maior capacidade técnica e operacional que possui do
Poder Executivo e de suas agências para conduzir a complexa relação exterior
dos Estados Unidos são algumas das explicações oferecidas para a predominância
do presidente no tema (Kegley e Wittkopf, 1995).
Ainda dessa mesma perspectiva, mas agora focando na literatura latino-
americana, Lima e Santos (2001) elaboraram um estudo pioneiro acerca do caso
brasileiro. A argumentação central fundamenta-se na percepçãodeumsistema de
delegação oportuno para o Congresso na medida em que havia convergência de
interesses entre o Legislativo e o Executivo durante o período de substituição
de importações. Contudo, a partir do fim dos anos 1980 e do início dos anos
1990, houve um descolamento entre política de comércio exterior e política
industrial, cessando a convergência de interesses entre os poderes e promovendo
o distanciamento entre suas preferências. Seria de se esperar, na avaliação dos
autores, uma demanda legislativa por aumento de competências institucionais em
matéria de política de comércio exterior, fato não ocorrido. De modo geral,
ainda que faltem estudos empíricos na área, a literatura latino-americana
especializada no tema tende a avaliar como débil a participação do Congresso em
questões internacionais (Stuhldreher, 2003).
Os principais motivos da baixa assertividade dos congressos latino-americanos
na formulação da política externa apontados pela literatura são: alta
concentração de poder na Presidência da República, carência de atribuições
constitucionais e instrumentos de expertise, assim como o baixo retorno
eleitoral (Lima e Santos, 2001; Santos, 2006; Oliveira, 2003; 2005).
A péssima repercussão da Guerra do Vietnã perante a opinião pública norte-
americana foi apontada como um marco para o fortalecimento dos canais de
participação direta do Congresso Nacional na condução da política externa11
(Meernik, 1993; Ripley e Lindsay, 1993; Lindsay, 1994; 2003). É esse o ponto de
partida de boa parte da literatura que aborda a segunda perspectiva. Além do
negativo efeito colateral da Guerra do Vietnã, no início dos anos 1990, o fim
da Guerra Fria reduziu os incentivos para a manutenção de uma aparente unidade
na condução da política externa norte-americana, diluindo a tradicional
diferença entre política doméstica e externa (Conley, 1999). Conforme Lindsay
(1994), três fatores apontam para essa tendência pós-Guerra Fria: 1) diminuição
dos custos eleitorais para se contrapor à política externa do presidente; 2) a
interdependência global diluiu a linha que se-para a política doméstica da
externa; 3) o distanciamento entre os extensos compromissos norte-americanos no
exterior e a crescente diminuição de recursos disponíveis.
A constatação de um Congresso mais atuante no início dos anos 1990 produziu um
significativo impacto na literatura especializada. Diversos estudos empíricos
constataram a influência da filiação partidária, da ideologia e dos interesses
econômicos especiais nas decisões dos congressistas em temas de política
externa em geral, predominando aqueles cujo foco, mais especificamente, é a
política comercial12 (McCormick e Wittkopf, 1992; O'Halloran, 1993; Epstein e
O'Halloran, 1996; Kahane, 1996; Wink, Livingston e Garand, 1996; McGillivray,
1997; Fordham, 1998; Gartzke e Wrighton, 1998; Conley, 1999; Baldwin e Magee,
2000; Bardwell, 2000; Fordham e McKeown, 2003; Xie, 2004; Delaet e Scott,
2006). Assim, contradizendo a primeira perspectiva argumentativa, ideologia dos
congressistas, eleitorado (constituency), influência partidária e interesses
econômicos organizados tornam-se importantes variáveis explicativas dos
resultados da política externa e comercial norte-americana.
Do ponto de vista da política comparada, ultrapassando a fronteira do caso
norte-americano, constatamos uma interessante produção acadêmica cuja
averiguação empírica correlaciona positivamente ideologia partidária e
preferência dos legisladores em política externa, inserindo-se na segunda
perspectiva (ver Thérien e Noel, 2000; Marks et alii, 2006). Por exemplo,
Milner e Judkins (2004) examinam o posicionamento dos partidos políticos em
temas de política comercial em 25 países desenvolvidos (a maioria membro da
OCDE - Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) entre 1945 e
1998. O argumento central desse estudo é a existência de um forte impacto entre
o posicionamento dos partidos políticos, em uma escala ideológica direita-
esquerda unidimensional, e as posições tomadas pelos políticos e legisladores
desses partidos em temas de política comercial. Ademais, na amostra desse
estudo, os partidos de esquerda tenderam a favorecer o livre comércio, enquanto
os de direita se posicionaram contra (ibidem).
No que se refere à influência do Legislativo e dos partidos políticos latino-
americanos na formulação da política externa, constata-se aprodução de alguns
interessantes estudos de caso cuja linha argumentativa central é a relevância
do Congresso no processo decisório da política externa (ver Diniz e Ribeiro,
2009; Feliú, Galdino e Oliveira, 2007; Follietti, 2005; Neves, 2003; entre
outros). Dentre esses estudos destacamos o de Leão (2008), cujo objetivo é
investigar a influência do Legislativo chileno na formulação da política de
comércio exterior durante os anos 1990. O autor argumenta que o Legislativo
chileno, mesmo restrito à atuação ex post facto, detém capacidade para influir
no processo decisório da política comercial, uma vez que o Poder Executivo
incorpora as preferências do legislador mediano da instituição na tomada de
decisões no tema.
Há ainda, na literatura latino-americana especializada, a percepção de que o
processo de abertura comercial dos anos 1990, comum à grande parte dos países
do subcontinente, cria uma tendência ao aumento da participação dos Congressos
Nacionais em temas de política externa (Onuki e Oliveira, 2006). A
internacionalização da agenda doméstica e a incidência desigual dos custos e
benefícios na sociedade advinda da abertura comercial (consequências
distributivas) estão entre os principais motivos para o apontamento dessa
tendência (Lima, 2000). Os casos mexicano (Mena, 2004), argentino (Stuhldreher,
2003) e brasileiro (Santos, 2006) são exemplos que sustentariam essa ideia.
Um importante aspecto a ser ressaltado é que, independentemente da ampliação ou
não da atuação dos congressos nacionais latino-americanos na política externa,
o poder de ratificar os acordos e os tratados internacionais, comum à boa parte
dos legislativos do continente (Alcântara, 2001), é um elemento suficiente para
a identificação destes enquanto veto players13 do processo decisório de
política externa. Nesse sentido, é extremamente importante realizar estudos
empíricos que auxiliem na construção de um modelo explicativo dos votos dos
congressistas latino-americanos em temas de política externa.
Ao analisar os estudos empíricos presentes na literatura aqui apontada,
observamos a predominância de três hipóteses centrais na explicação dos votos
dos congressistas norte-americanos: 1) a influência da ideologia do partido
político do congressista; 2) a influência do eleitorado do distrito do
congressista (constituency); 3) a influência de interesses econômicos especiais
ligados ao congressista. No presente artigo,pretendemos testar a primeira
hipótese citada para o caso da Câmara dos Deputados do Chile em temas de
política externa. Portanto, a pergunta aqui a ser respondida é: há correlação
entre o posicionamento no espectro político-ideológico dos partidos dos
deputados chilenos e seus respectivos votos em temas de política externa? Na
seção seguinte, discutiremos a metodologia empregada para responder à pergunta
acima.
METODOLOGIA
A utilização de modelos espaciais é uma importante ferramenta cada vez mais
utilizada na análise de votações nominais nos poderes legislativos.
Intuitivamente, nesses modelos o ponto ideal de cada legislador é representado
por um ponto no espaço euclidiano, e cada votação é representada por dois
pontos, um para sim e outro para não. Em cada votação, o legislador vota pelo
resultado mais próximo a seu ponto, ao menos probabilisticamente. O conjunto
desses pontos conforma um mapa espacial que resume as votações nominais (Poole,
2005).
Mais formalmente, considera-se que um conjunto de "n" legisladores (N = {1, 2,
... n}) se defronta com "m" votações entre pares de alternativas e devem votar
sim ou não para cada alternativa. Cada par de alternativa é uma votação. Assim,
no registro da decisão do legislador isobre o j-ésimoitem de votação nominal,
teremos Vij = {sim, não}, localizados no Rd,em que ié o legislador considerado,
jo item da votação nominal (par de alternativas) e da dimensão do espaço
político.
Do ponto de vista comportamental, a teoria espacial pressupõe certo tipo de
preferência dos legisladores que determinam o seu voto. Mais especificamente,
supõe-se que as preferências têm um ponto de saciedade, isto é, um ponto de
máxima utilidade, ou ponto ideal, e que a função utilidade é estritamente
côncava. É a característica de ser estritamente côncava da função utilidade que
permite interpretar as dimensões políticas como esquerda-direita, progressista-
conservadora etc.
Obviamente, a operacionalização empírica dessa teoria depende das técnicas
estatísticas empregadas. Várias são as técnicas estatísticas desenvolvidas na
literatura para estimação de ponto ideal a partir do registro das votações
nominais (Heckman e Snyder, 1997; Clinton, Jackman e Rivers, 2004). O trabalho
seminal na literatura, porém, é o procedimento Nominate (Nominal Three-Step
Estimation), desenvolvido por Keith Poole e Howard Rosenthal, cuja finalidade é
estimar o ponto ideal dos legisladores sobre uma determinada amostra de
políticas.
Esse método de análise das votações nominais, por ser métrico14,permite a
estimação de posições multidimensionais para os legisladores e as políticas
(Leoni, 2000). Os parâmetros são restringidos em uma hiperesfera de raio 1
(Poole, 2005:105).
Devemos lembrar também que os votos são sujeitos ao erro. Isto é, considerando
as centenas de votos que um legislador faz ao longo de uma legislatura, não é
impossível que alguns votos sejam inexplicáveis, tendo em vista o padrão de
atuação do legislador - por exemplo, em uma votação sobre aborto, um legislador
liberal acaba por ser contra porque sua filha está pensando em fazer aborto e,
nesse momento específico, ele não quer incentivar o procedimento. Por assim
dizer, cada legislador tem sua função de erro. Obviamente, cada um desses
"erros" não são erros e têm uma explicação, mas não são explicáveis pela função
utilidade usual. Dessa forma, o procedimento Nominate emprega um modelo
probabilístico que viabiliza a utilização dos padrões de erro para recuperar as
coordenadas dos resultados políticos, pressupondo que alguns erros são mais
prováveis que outros, independentes e igualmente distribuídos entre os
legisladores e as políticas (Rosenthal e Voeten, 2004). Assim, o Nominate
inclui uma razão de sinal para o ruído (signal-to-noise ratio), que mede quão
forte é o componente espacial em relação aos fatores que causam os erros
(Leoni, 2000:24-25).
Resumidamente, o Nominate deve ser capaz de estimar os seguintes parâmetros: 1)
as coordenadas dos pontos ideais dos legisladores para uma dada dimensão
política; 2) as coordenadas da quantidade de "sim" e de "não" em uma dada
dimensão política; 3) o tamanho típico dos erros. Para tanto,
simplificadamente, podemos dizer que é preciso estimar, dadas as votações
observadas, quais valores para os parâmetros maximizam a probabilidade de
produzir os dados observados. Em outras palavras, deve ser empregado um método
de estimação por máxima verossimilhança, que é, resumidamente, o que o Nominate
faz.
Como o número de parâmetros a estimar é muito alto, em vez de simplesmente
estimar por máxima verossimilhança, inicia-se a partir de uma dada localização
inicial dos parâmetros e então se realizam passos que melhorem as estimativas,
até atingir a máxima probabilidade de que os parâmetros atingidos no final
desse processo interativo gerem os votos observados.
Na prática, o procedimento Nominate consegue resolver o problema de como
determinar, a partir apenas do registro dos votos "sim" e "não" dos
legisladores, qual é o ponto ideal de forma precisa, isto é, com uma medição
espacial para cada legislador. Essa técnica de estimação determina quantas
dimensões (padrões) relevantes existem ou, mais precisamente, qual é a
capacidade explicativa de cada dimensão. Em outras palavras, podemos comparar o
sucesso do modelo com uma dimensão em capturar o comportamento do legislador
com o sucesso do modelo com duas dimensões, três etc. Esse é um aspecto
relevante do modelo, pois permite avaliar a capacidade de ajuste (fit) do
modelo aos dados e quantas variáveis (dimensões) são relevantes para explicar
as votações observadas.
Deve ser observado, contudo, que a técnica estatística em si não é capaz de
fornecer o significado substantivo das dimensões encontradas. Mais
especificamente, o procedimento Nominate requer que o analista informe como
ponto de referência um legislador considerado extremado em alguma dimensão
relevante. Usualmente, seguindo a prescrição da teoria, informa-se a posição do
legislador extremado em que há maior consenso sobre a posição ideológica do
ator em questão, isto é, dentro do espectro esquerda-direita.
Assim, a primeira dimensão estimada pela metodologia toma como base a
existência desse legislador e, portanto, tem o significado substantivo
referenciado nessa informação fornecida pelo analista e que deve ser confirmado
por meio da análise da disposição espacial resultante ou de outras técnicas
estatísticas (Leoni, 2000:6). Por essa razão, a interpretação substantiva da
primeira dimensão é usualmente ideologia, enquanto as demais dimensões que
porventura sejam relevantes exigirão análises interpretativas por parte do
analista (conservador versusliberal, nacionalista versusinternacionalista, do
norte versusdo sul, governo versusoposição etc.). Do ponto de vista gráfico, o
Nominate produz um mapa espacial contendo o ponto ideal estimado de cada
legislador e permite visualizar a existência ou não de padrões nas votações de
forma intuitiva.
A partir da análise de três legislaturas durante a Quarta República Francesa,
Rosenthal e Voeten (2004) argumentam que a utilização do Nominate pode não ser
adequada para analisar legislativos caracterizados por grande variação da
disciplina partidária entre os partidos políticos, baixa fidelidade partidária
e existência de incentivos institucionais ao voto estratégico. Caso alguns
legisladores estejam submetidos a pressões partidárias mais fortes, por
exemplo, o pressuposto de que os erros são independentes e igualmente
distribuídos será certamente violado (idem, 2004). O Legislativo chileno
certamente não se encaixa nas caracterizações que inviabilizariam a utilização
do Nominate para analisá-lo. Observa-se, no Congresso chileno, alta disciplina
e coesão partidárias entre os principais partidos políticos, assim como baixa
troca partidária (Alcantara Saéz, 2003; Nolte, 2003). Assim sendo, a Câmara dos
Deputados do Chile é um objeto de estudo propício ao uso do procedimento
Nominate de análise de votações nominais.
OS DADOS
A variável dependente da pesquisa são as votações nominais dos deputados
chilenos em temas de política externa. O posicionamento dos partidos políticos
no espectro político ideológico direita-esquerda é, de acordo com a hipótese do
trabalho, potencialmente a principal variável independente. Analisar qual é a
capacidade preditiva dessa variável (ideologia partidária), bem como o número
de dimensões adicionais explicativas do voto parlamentar, é, precisamente, o
objetivo da pesquisa.
No que diz respeito à variável dependente, foram incluídas todas as votações
nominais dos deputados chilenos em temas de política externa durante a
legislatura 2002-2006, totalizando 157 votações15.Aquelas cujo lado minoritário
não ultrapassou 2% foram excluídas16, assim como não foram considerados os
deputados que não participaram ao menos de dez votações (cut off criterium).
Após o critério de corte descrito, sobreviveram para a análise do Nominate 36
votações nominais e 118 deputados. Esse baixo número se deve ao fato de a
grande maioria das votações referentes à concessão de cidadania e aos acordos e
tratados internacionais de cooperação oferecer baixo ou nulo custo à sua
aprovação. Segue abaixo a Tabela_1, com os respectivos valores.
Foram classificadas como votações de política externa aquelas que se referiam a
tratados e a acordos internacionais assinados com países estrangeiros e
organizações internacionais (41,5%), comércio exterior (17,8%), ações diretas
em assuntos internacionais17 (14,6%), medidas referentes ao funcionamento do
Ministério das Relações Exteriores (MRE) e suas representações diplomáticas
(9,5%), solicitações ao Poder Executivo que abordem temas internacionais
(7,6%), concessões extraordinárias de cidadania chilena a estrangeiros (5%) e
acordos bilaterais para proteger os investimentos e evitar a dupla tributação
(4%). A Tabela_2 expõe esses dados mencionados.
Para fins comparativos, a disposição dos partidos políticos chilenos no
continuumideológico direita-esquerda utilizada neste artigo é a produzida por
Alcántara Saéz (2003) em artigo intitulado "La Ideología de los Partidos
Políticos Chilenos, 1994-2002: Rasgos Constantes y Peculiaridades".
Nesse estudo, Alcántara Saéz realiza uma série de entrevistas com deputados
chilenos em três legislaturas (1994-1998, 1998-2002 e 2002-2006), cuja
finalidade é delinear o posicionamento ideológico dos partidos chilenos. Para
tanto, foram selecionados quatro temas: o posicionamento do partido em relação
à democracia, o papel desempenhado pelas Forças Armadas, o grau de prioridade
de políticas públicas de natureza social e econômica, e aspectos da organização
interna dos próprios partidos.
A partir dos resultados obtidos nas entrevistas, o autor atribuiu valores para
determinar a localização dos partidos políticos no continuumideológico direita-
esquerda. Na Tabela_3, podemos ver esses valores18.
Os valores atribuídos variam de 1 a 10, em que 1 é esquerda e 10 direita. Na
Tabela_3, portanto, o partido mais à esquerda é o PS, no centro está localizado
o PDC, e o partido mais à direita é a UDI. Vale ressaltar que Londregan (2000)
também estima o posicionamento dos partidos políticoschilenosno
continuumideológico, diferindo no método empregado e no objeto de estudo (as
comissões do Senado chileno na primeira legislatura pós-Pinochet). A disposição
elaborada por Londregan (ibidem) é muito similar à de Alcántara Saéz (2003).
Tendo como referência a distribuição dos partidos políticos chilenos no
espectro ideológico19 contida na Tabela_3, podemos testar a existência ou não
de uma correlação entre os posicionamentos ideológicos (estimados via Nominate)
dos partidos políticos chilenos em política externa e em política doméstica
(estimados via survey) (Alcántara Saéz, 2003).
O sistema político chileno, bem como muitos outros da América Latina, funciona
sob a égide de um sistema multipartidarista que torna extremamente improvável a
eleição de um presidente apenas com o respaldo de seu próprio partido. Outra
improbabilidade é que esse partido detenha a maioria dos assentos no Congresso
(Nolte, 2003). Assim, a escassa possibilidade de que apenas um partido ganhe
tanto a Presidência quanto a maioria no Congresso faz com que a formação de uma
coalizão governamental seja necessária para garantir a estabilidade e a
governabilidade do sistema político (idem, ibidem). Além disso, o siste-ma
político chileno possui especificidades que favorecem a formação de coalizões
como o sistema eleitoral parlamentar binominal; a existência de um sistema de
compensação por meio de cargos no governo; o fato de as coalizões não se
constituírem apenas por um cálculo eleitoral mas também por um programa de
governo consensual, entre outros (ibidem:10-11). Observa-se, no Chile, a
formação de uma coalizão governista de centro-esquerda chamada Concertación20,
formada por PDC, PS, PPD e PRSD. Na oposição, temos a coalizão de direita
Alianza por Chile, composta de UDI e RN.
Segue, na Tabela_4, a composição partidária da Câmara dos Deputados na
legislatura 2002-2006.
RESULTADOS
Antes de analisarmos os resultados gerados pelo Nominate, vale lembrar que esse
programa foi desenvolvido para testar a hipótese de ideological constraintnos
votos dos legisladores (Leoni, 2000). O número de dimensões necessárias para
representar os pontos ideais dos legisladores é geralmente pequeno, dado que os
legisladores frequentemente decidem seus votos baseados em dimensões básicas
(Poole, 2005). No Congresso norte-americano, por exemplo, a dimensão liberal/
conservador é capaz de prever a maioria dos votos dos congressistas, sendo o
grande fator estruturador das votações nominais (idem, ibidem). Analogamente,
na Câmara dos Deputados do Brasil, a dimensão ideológica esquerda/centro/
direita21 também é capaz de prever a maioria dos votos dos deputados federais
(Leoni, 2002).
Como pode ser observado no Mapa_1, a dimensão ideológica (primeira dimensão) é
igualmente capaz de prever os votos dos deputados chile-nos em temas de
política externa. Nesse mapa, na determinação da ideologia dos partidos
políticos chilenos, utilizamos como referência os valores encontrados por
Alcántara Saéz (2003), contidos na Tabela_3. Assim, foram considerados partidos
de esquerda PS, PPD e PRSD; partido de centro, PDC; e partidos de direita, RN e
UDI22. Os legisladores de partidos de esquerda se dispõem na metade à esquerda
do espectro da primeira dimensão, enquanto os legisladores dos partidos de
direita se localizam na metade oposta. Essa distribuição polarizada torna mais
evidente a observação do constrangimento ideológico sobre o voto dos deputados
chilenos em temas de política externa. É interessante notar a baixa incidência,
na verdade, quase inexistência, de legisladores localizados no centro do
espectro político ideológico, mostrando clara polarização político-partidária
nas decisões dos deputados acerca da política exterior.
Os resultados do Mapa_2 mostram a mesma distribuição do Mapa_1, com a diferença
de que os partidos políticos são identificados. Observa-se que, embora a
distribuição permita a clara identificação de duas coalizões, o posicionamento
específico dos partidos no interior dessas coalizões varia de acordo com
alterações de intensidade ideológica. A título de exemplo, na coalizão de
esquerda, o PS é o que se encontra mais deslocado à esquerda, enquanto, na
coalizão de direita, a posição mais extremada à direita fica a cargo do RN. Os
resultados contidos nesse mapa coincidem com a argumentação de Nolte (2003) de
que a formação de coalizões partidárias no Chile é programaticamente orientada,
e não uma tática com vistas à vitória eleitoral. O fato de o comportamento do
legislador em matéria de política externa também ser ideologicamente
constrangido indica que o tema da política externa também faz parte desse
programa de governo consensual. Ainda com relação ao Mapa_2, podemos observar a
similaridade entre os valores ideológicos estimados por Alcántara Saéz (2003)
para a legislatura 2002-2006 e a disposição espacial dos partidos políticos
chilenos na dimensão ideológica (ver Tabela_3).
O Mapa_3 favorece a visualização dos pontos ideais dos deputados por partido, e
a Tabela_5a apresenta uma medida quantitativa mais precisa para os gráficos. A
partir dos pontos ideais dos deputados por partido, podemos inferir a
localização dos principais partidos políticos chilenos na dimensão ideológica
no que diz respeito às suas preferências em temas de política externa. Observa-
se, em primeiro lugar, a maior dispersão de posicionamento dos legisladores
independentes, ou seja, baixo constrangimento ideológico, como era de se
esperar. Dos partidos da coalizão de esquerda, o PDC é o que se localiza mais
ao centro do espectro político; o PS, mais à esquerda; entre ambos, o PRSD. No
caso da coalizão de direita, RN e UDI estão localizados em posição próxima na
primeira dimensão. Na segunda dimensão, contudo, a UDI se encontra
tendencialmente mais deslocada para cima que o RN. Contudo, uma vez que a
segunda dimensão tem pouco fator explicativo e os partidos se encontram mais
dispersos (maior desvio padrão), não investigaremos, no presente estudo, a
razão para essa inversão de posição entre UDI e RN.
De modo geral, os indicadores apresentados até o presente momento mostram que a
classificação obtida por intermédio do Nominate para o tema de política externa
não diverge de classificações elaboradas por outros autores e por meio de
metodologia distinta. De fato, conforme se pode observar no Gráfico 1, a
distribuição espacial da ideologia partidária produzida com base no histórico
das votações sobre política externa chilena e por meio do Nominate, é muito
similar à distribuição proposta por Alcántara Saéz (2003), tanto em termos de
ordenamento quanto em termos de intensidade. Em outras palavras, há forte
correlação entre as duas classificações. Apouca diferença entres elas reside no
fato de que a classificação de Alcántara Saéz se desloca levemente para a
direita, comparativamente ao Nominate, especialmente em relação ao PDC.
Essa similaridade entre as classificações encontradas, a despeito de terem sido
forjadas por meio de metodologias distintas, serve como indício de que o modo
como os partidos políticos chilenos estruturam suas percepções sobre a política
externa não difere significativamente do modo como as estruturam em relação aos
temas de política doméstica. Assim, a dominância do Executivo em matéria de
política externa não pode, no caso chileno e no período analisado, ser
atribuída à convergência de posicionamentos político-partidários
(bipartisanship)oua déficits de informação dos legisladores acerca de temas
internacionais. A fonte dessa dominância pode estar relacionada a questões
institucionais, como instrumentos que garantem ao Executivo o controle de
agenda, ou pode ser derivada do fato de o Executivo ter ampla maioria no
Congresso chileno - de forma que as posições contrárias da oposição de direita
figurem como insuficientes para vetar a tramitação desses temas. Somente a
análise em uma situação de governo dividido, ou seja, Executivo sem maioria no
Congresso, poderia permitir dimensionar o papel de contrabalança do Legislativo
em política externa no Chile. Os indicativos aqui encontrados, contudo, não
parecem corroborar com a tese da especificidade da política externa em termos
de baixa assertividade legislativa.
ANÁLISE DE CASOS ESPECÍFICOS
A título de ilustração e visando a um exame mais específico sobre o padrão de
polarização político-partidária em política externa, quatro votações nominais
são apresentadas a seguir. Essas votações foram selecionadas pelo fato de terem
um elevado grau de polarização ideológica e, consequentemente, serem casos mais
informativos sobre o peso de duas dicotomias cruciais para a análise em tela:
esquerda versusdireita e coalização de governo versuscoalizão de oposição. Para
tanto, as orientações político-partidárias foram agrupadas em quatro níveis:
independentes (sem filiação partidária), esquerda, centro e direita; enquanto
os votos seguem os padrões tradicionais de apoio (voto a favor), rejeição (voto
contra), abstenção e não voto.
A Tabela_5b permite visualizar uma clara divisão entre os partidos de centro e
esquerda contra a retirada do Chile do Acordo de Complementação Econômica com o
Mercosul; já os de direita eram favoráveis à retirada do Chile desse acordo. O
Acordo de Complementação Econômica, firmado entre os membros do Mercosul e o
Chile em 1996, visava à criação de uma área de livre comércio entre as partes
contratantes em um prazo máximo de dez anos, mediante a expansão e a
diversificação do intercâmbio comercial e a eliminação das restrições
tarifárias e não tarifárias que afetam o comércio recíproco. Essa votação foi
realizada em 2002, antes da ratificação do acordo de livre comércio com os
Estados Unidos em 2003. Assim, aqui se observa a tentativa de os partidos de
direita romperem o acordo com o Mercosul a fim de isolá-lo, privilegiando o
acordo de livre comércio com os Estados Unidos e o projeto de constituição da
Alca (Área de Livre Comércio das Américas). Vale lembrar que o Mercosul foi o
principal contraponto político à versão norte-americana da Alca, apoiada pelo
Chile. Mais da metade dos legisladores de direita (51,1%) apoiou a proposição,
enquanto dois terços dos legisladores de esquerda e centro votaram
contrariamente à medida. Os independentes, por sua vez, tiveram comportamento
mais próximo dos legisladores de direita.
Essa votação, específica para o caso de política comercial, é informativa sobre
as clivagens esquerda-direita em matéria de política externa no sentido mais
amplo. Isso porque o que esteve em jogo nessa votação foi a decisão do Chile em
priorizar o Mercosul - portanto, suas relações sul-americanas - ou voltar-se
para o norte e focar a atenção nos países desenvolvidos. A direita chilena
defende sistematicamente esta segunda vertente: o governo deveria focar a
atenção nos países desenvolvidos. Esse posicionamento da direita chilena em
relação ao Mercosul seria, assim, responsivo a preferências consolidadas no
campo de política externa.
A Tabela_6 revela a influência do posicionamento ideológico no resultado dessa
votação acerca do respaldo à participação do Chile na força de paz da ONU
(Organização das Nações Unidas) no Haiti23. Enquanto uma ampla maioria dos
deputados de esquerda e centro (respectivamente 72,2% e 62,5%) apoiou o envio
de tropas chilenas ao Haiti, conformando uma ação conjunta com o Brasil, os
partidos de direita foram majoritariamente contra (51,1%).
A principal argumentação contrária ao envio, encabeçada pelos deputados da UDI,
dizia respeito ao elevado custo da missão da ONU para os cofres públicos
chilenos, agravado pela grave situação socioeconômica do país caribenho, o que
resultaria em uma permanência longa das tropas chilenas para que a missão fosse
bem-sucedida. Para os partidos de esquerda e centro (coalizão governista), os
principais argumentos respaldando o envio de tropas ao Haiti são a consolidação
de um papel mais ativo e relevante do Chile na conformação da ordem
internacional e o aprofundamento da integração regional também na área de
segurança nacional, destacando o compromisso de participação de importantes
parceiros regionais, como Argentina e Brasil, na referida missão da ONU.
A votação realizada em 5 de março de 2003, expressa na Tabela_7, versava sobre
a recomendação de uma linha de ação para o Chile no Conselho de Segurança da
ONU. O tema abordado no Conselho era a possibilidade de uma intervenção militar
multilateral no Iraque, então sob o governo de Saddam Hussein. A recomendação
de uma linha de ação, proposta pelos partidos de direita chilenos, baseava-se
no apoio à proposta norte-americana de intervenção militar no Iraque. Os
partidos de esquerda, no entanto, rejeitaram a proposta, mantendo a posição
chilena a favor da inspeção de armas no Iraque e contra uma intervenção militar
precipitada. Do mesmo modo que na votação expressa na Tabela_5b, sobre o
Mercosul, o fator determinante da votação dos partidos de direita chilenos é o
alinhamento desses com os Estados Unidos.
A Tabela_8 representa a votação acerca da adequação de leis internas no que se
refere ao Tratado de Livre Comércio Chile-Estados Unidos. Essa adequação dispõe
sobre o imposto alfandegário que incide na venda de serviços fonográficos e de
radiodifusão. Em linhas gerais, esta é uma adequação que impõe medidas
protecionistas ao setor, mostrando o posicionamento favorável dos partidos de
esquerda e centro e contrário dos partidos de direita.
CONCLUSÃO
A tese de que os legisladores latino-americanos abdicam ou delegam poder
decisório ao Executivo quando o assunto é política externa, em função de
déficits de informação ou de baixo interesse político e eleitoral, parece não
ter assento ao menos no caso do Chile contemporâneo. A polarização ideológica
identificada na análise dos mapas espaciais das votações nominais apresentadas
ao longo deste trabalho é um indício contrário a essa tese. A tendência nos
casos de abdicação ou de delegação é que não haja divergências significativas
de posicionamento, uma vez que, por motivos distintos, tanto quem delega quanto
quem abdica tendem a acompanhar a posição da parte proponente.
O fato de haver um contingente expressivo de votações em matéria de política
externa, em que se verifica alta convergência, ou até mesmo aprovação por
unanimidade, não anula o argumento central deste artigo. Isso porque a questão
não reside em saber qual é o percentual de votações que são convergentes em
política externa, mas sim se esse percentual é significativamente distinto do
percentual de convergência em matérias de política doméstica. Muito embora essa
comparação não tenha sido feita diretamente, a similaridade da classificação
político-ideológica dos partidos, gerada por duas metodologias distintas - a
metodologia empregada neste trabalho, via Nominate, referente apenas a temas de
política externa, e aquela forjada por Alcántara Saéz, que utiliza técnicas de
surveye aborda um conjunto mais amplo de temas, prevalecentemente temas
domésticos -, é um sinal de que a política externa não se distingue da política
doméstica em termos de clivagens políticas.
Pode-se afirmar ainda mais que a consistência ideológica do legislador chileno
em matéria de política externa, além da própria polarização sistemática
evidenciada, é testada tanto pelo confronto de metodologias distintas quanto
pelo confronto entre temas domésticos e internacionais. Infere-se, assim, que a
lógica que estrutura preferências legislativas em matéria de política externa
nada tem de diferente ou específico daquela que estrutura os temas de política
doméstica. Ou, formulando de outro modo, existe uma linha que estrutura de
forma coerente e linear as percepções e as preferências dos legisladores
chilenos na passagem da dimensão doméstica para a internacional e vice-versa.
Faz-se necessário ter clareza do alcance preciso dos achados empíricos aqui
apresentados. Os dados do trabalho permitem apenas conclusões sobre o tema da
coerência ideológica decisional dos deputados chilenos em assuntos mais
sensíveis da política externa. Contudo, não nos permitem fazer inferências
sobre o fato de o Poder Legislativo chileno, enquanto instituição coletiva, ser
capaz de influenciar de maneira significativa os rumos da política externa
chilena. Para tanto, seria necessário que as evidências mostrassem que a
atuação legislativa constrangesse e enviesasse de algum modo a política externa
encampada pelo Poder Executivo.
De forma mais sistemática, é possível dizer que a capacidade de o Poder
Legislativo influenciar a política externa depende de três condições básicas. A
primeira é que os legisladores tenham posicionamento ou preferências, como
ocorre com as políticas domésticas de modo amplo. Considerando as teses de
baixo grau de informação ou de interesse dos legisladores sobre política
externa, a tendência é que não venham a formar posição ou preferência
suficientemente estruturadas. Em segundo lugar, as atribuições constitucionais
deveriam conferir ao Poder Legislativo capacidade legal e legitimidade para
atuar em assuntos internacionais. Por fim, deveria haver modificação do ponto
ideal do Poder Executivo caso a preferência do legislador mediano24 fosse
suficientemente divergente à do presidente. Formulando de modo mais resumido,
os interesses (preferências) do legislador mediano em política externa existem,
são conflitivos com os do Executivo e são legalmente respaldados para que sejam
exercidos.
A terceira condição mencionada - a do conflito de interesses - é
particularmente central para o exame sobre influência legislativa no tema de
política externa. Isso porque, no cenário de convergência de posicionamento
entre poderes (Executivo e Legislativo), não há como mensurar o viés
determinado pelo conflito ou pelas diferenças de interesses. Desse ponto de
vista, o caso chileno não oferece muitas possibilidades analíticas, uma vez
que, desde a redemocratização do país (1990), a estável coalizão de centro-
esquerda Concertación não só vence sistematicamente as eleições presidenciais
mas também conquista a maioria dos assentos no Congresso. Assim, na atual
configuração político-partidária chilena, torna-se difícil analisar as relações
entre Executivo e Legislativo propostas na literatura, já que não há governo
dividido e a disciplina partidária é alta.
A análise da influência do Legislativo sobre a política externa chilena
demandaria um esforço empírico distinto, além de um contexto político não
vivenciado até o momento. Deixamos esse tema indicado como agenda de pesquisa
em construção e também para empreitadas futuras. Coube a este artigo a tarefa
de angariar avanços sobre a relação entre ideologia político-partidária no
âmbito legislativo e política externa chilena. Sua contribuição está no fato de
apresentar indícios de que, tomando o Chile como estudo de caso, os
legisladores estruturam suas preferências em relação à política externa de modo
similar ao que fazem em relação à política doméstica. Não se sustentando,
portanto, as teses de que a abdicação é, no caso da política externa, fruto de
inconsistência cognitiva do legislador.
NOTAS
1. Ver, por exemplo, Neack, Hey e Haney (1995) e Hudson (2005).
2. Para uma conceitualização da teoria estruturalista das relações
internacionais, ver Waltz (1979).
3. De acordo com Shugart e Carey (1992), o termo mais apropriado para denominar
o parlamento em regimes presidencialistas é congresso. Desse modo, a utilização
desse termo torna implícita a referência a sistemas presidencialistas. Ademais,
pelo fato de a ampla maioria dos sistemas presidencialistas se encontrarem na
América Latina e nos Estados Unidos (ibidem), o termo congresso também torna
subentendida essa circunscrição geográfica.
4. No que se refere ao caso norte-americano, há uma significativa produção
acadêmica relacionando o papel do Congresso Nacional e o dos partidos políticos
na formulação da política externa dos Estados Unidos (ver a primeira,
intitulada Estado da Arte).
5. Para uma excelente crítica metodológica e, portanto, dos resultados
encontrados pela literatura norte-americana, ver Krehbiel (2000).
6. Para uma análise da influência da ideologia dos partidos políticos
brasileiros no voto dos deputados federais, ver também Leoni (2002).
7. Ver Ripley e Lindsay (1993).
8. Essa postulação ficou conhecida como two presidents thesis(Lindsay e Ripley,
1992).
9. Kegley e Wittkopf (1995) afirmam que o período pós-Segunda Guerra Mundial
foi marcado por um significativo consenso entre o Congresso e o Poder Executivo
na delineação de uma política externa marcada pelo internacionalismo e pela
contenção do comunismo e da União Soviética na política exterior norte-
americana.
10. Bipartisanshipé um tipo de mecanismo caracterizado pela ação conjunta do
Congresso e do Executivo na busca de objetivos comuns, mesmo que eventualmente
surja algum conflito de interesse. Assim, bipartisanshippossui, essencialmente,
dois elementos: unidade em assuntos externos, ou seja, suporte político pelas
maiorias dos dois partidos políticos norte-americanos e práticas e
procedimentos tomados com o intuito de atingir a desejada unidade (McCormick e
Wittkopf, 1990).
11. Faz-se necessário salientar que alguns estudiosos apontam para uma
participação relevante do Congresso Nacional e dos partidos políticos já desde
o início da Guerra Fria (ver, por exemplo, McCormick e Wittkopf, 1990; Fordham,
1998).
12. Para uma visão que minimiza o impacto dos constituintes e da ideologia dos
congressistas em temas de política comercial nos Estados Unidos, ver Biglaiser,
Jackson e Peake (2004).
13. Segundo George Tsebelis, "um veto playeré um ator individual ou coletivo
cuja concordância (pela regra da maioria no caso dos atores coletivos) é
requerida para tomar a decisão de mudar uma política" (1997:15). Ainda segundo
esse autor, dois tipos distintos de veto playerspodem ser delineados: os veto
playersinstitucionais e os veto playerspartidários. Os primeiros se
caracterizam por serem especificados pela Constituição, isto é, um ator
institucional apenas será considerado um veto playercaso possua um poder de
veto formalmente garantido. Os segundos se distinguem por serem os partidos que
integram uma coalizão de governo.
14. Um espaço métrico é aquele em que podemos medir quantitativamente (e não
apenas qualitativamente) a posição espacial dos legisladores.
15. Esse número foi obtido no siteda Câmara dos Deputados do Chile. Disponível
em http://www.camara.cl. Acessado em 18/8/2006.
16. É importante ressaltar que o Nominate apenas considera os votos "sim" e
"não", incluindo as abstenções como "não votou".
17. Ações diretas em política externa são precisamente projetos de lei advindos
do próprio Legislativo acerca de assuntos internacionais.
18. PS (Partido Socialista), PPD (Partido por la Democracia), PRSD (Partido
Radical Social Demócrata), PDC (Partido Demócrata Cristiano), UDI (Unión
Demócrata Independiente), RN (Renovación Nacional).
19. Apenas para efeito ilustrativo, segundo Alcántara Saéz (2003), os partidos
chilenos são os que, em termos latino-americanos comparados, melhor e mais
constantemente se localizam no continuumideológico direita-esquerda.
20. Vale ressaltar que, desde a redemocratização do Chile, a coalizão
Concertación foi sempre vitoriosa nas eleições presidenciais. Evidentemente,
nem sempre a coalizão foi conformada pelos mesmos partidos, entretanto, PS, PPD
e PDC são partidos que sempre figuraram na coalizão. A configuração descrita
anteriormente se refere à Câmara dos Deputados durante a legislatura 2002-2006.
21. O significado de esquerda, centro e direita certamente depende dos
contextos histórico e cultural, sendo necessário apenas que grande parte dos
atores compartilhe esse significado (Leoni, 2000).
22. Embora o PRSD não tenha sido incluído na Tabela_3, elaborada por Saéz
(2003), optamos por incluí-lo no presente estudo classificando-o como esquerda
23. A votação analisada se refere ao respaldo (moção de apoio) ao envio de
tropas ao Haiti, e não à votação acerca do envio em si. No momento dessa
votação, as tropas chilenas já estavam autorizadas a desembarcar no Haiti. Isso
se deve ao fato de a votação acerca do envio de tropas ao Haiti, no Chile, ter
tramitado apenas no Senado, fato que desagradou aos deputados chilenos tanto da
direita quanto da esquerda.
24. O legislador mediano é aquele que se encontra na mediana do espectro
político, ou seja, o legislador que tem 50% de deputados à sua esquerda e 50%
de deputados à sua direita. Se o espaço político é unidimensional, então em
geral nenhuma lei pode ser aprovada sem o apoio do legislador mediano.