A Família Homoparental na Ficção Televisiva: As Práticas Narrativas do Brasil e
da Espanha como Relatos das Novas Representações Afetivo-Amorosas
INTRODUÇÃO
Na sociedade atual, novas formas de relacionamentos, novos contratos e novos
códigos, entre outros aspectos, implicam distintas representações afetivo-
amorosas entre os casais. Estes frutos da contemporaneidade têm profunda
relação com a transformação da intimidade pessoal, com a evolução que Giddens
denomina “sexualidade plástica” (2004:12), liberada de sua relação com a
reprodução, orienta da à negociação sexual.
Segundo Roudinesco_(2003), a mudança contribuiu para uma outra forma de
enxergar as relações afetivo-amorosas e gerou uma grande “desordem”, vivenciada
pela nova organização social – a família. A autora observa que, desta forma, “a
transmissão da autoridade é cada vez mais problemática, à medida que divórcios,
separações e recomposições conjugais aumentam” (ibidem:19). A autora
parafraseia JeanJacques Rousseau ao evidenciar a relevância da família como a
mais antiga de todas as sociedades, e a única natural.
Atualmente,a questão sobre a constituição do parentescoe da família vem se
redefinindo, começando pelas margens da sociedade ou por situações especiais.
Sabemos disto porque, frequentemente, as ideias, as condutas, muitas vezes
passíveis de discriminação, movimentam-se para o centro por intermédio da
cultura popular, e durante este processo esta pode transformar-se em uma força
e um espelho da mudança social. Podemos afirmar, neste sentido, que, na
televisão, as novelas e as séries de ficção, de forma geral, se converteram,
pelo que o parentesco se refere, em um popular terreno de jogo da mudança
cultural (Martín-Barbero,_2002). Na perspectiva do grupo de pesquisa das
autoras, a comunicação tem na pluralidade e no equilíbrio de representação das
minorias uma responsabilidade social como ferramenta de socialização cidadã.
Em nenhum momento na história têm sido tão visibilizados publicamente na
televisão o protagonismo feminino, o enfraquecimento da família convencional, o
aparecimento de novas formas de convivência, mediante diferentes estilos ou
modelos de vida e novas performancesde gênero, sendo as tramas das séries de
televisão as principais mediações para representar ou recriar estes
acontecimentos, potencializando o cotidiano das pessoas.
Tomamos como exemplo nosso objeto de estudo, a família homoparental1 – ou
família homoafetiva – na ficção televisiva. Embora ainda consideremos sua
incidência pontual, nas tramas televisivas de forma geral, na perspectiva do
tratamento aprofundado das representações afetivo-amorosas e de seus aspectos
correlacionados como paternidade/maternidadee educação de filhos, admitimos que
este tipo de relato já vem sendo discutido nos programas televisivos e ganha
cada vez mais força no espaço midiático. Por este motivo, fomentamos o
interesse em promover uma reflexão acerca das possíveis mudanças nos valores e
representações de gênero e sexualidade, a partir da imagem da família
homoparental, apresentada tanto na série de ficção espanhola Hospital Central2
(Telecinco, 2000-2012) quanto na novela brasileira Páginas da Vida3 (Rede
Globo, 2006-2007).
De forma resumida, reforçamos que uma série de ficção apresenta caráter
autoconclusivo dos seus episódios, em que o grau de serialização entre eles é
mínimo ou inexistente. Como argumenta García_de_Castro_(2002), a trama costuma
centrar-se na resolução do caso de cada um dos episódios, orientando-se mais à
ação. As séries de tipo criminal, mistério, policial ou hospitalar são exemplos
deste formato narrativo. No caso da telenovela, tradicionalmente melodramática,
especificamente a produzida na América do Sul, La Pastina, Rego e Straubhaar
(2004) reforçam que se trata de uma obra vitrine da burguesia, com mais de 100
capítulos interdependentes, mitigando as aspirações não alcançadas do
telespectador. Por serem produções de ficção, assemelham-se na apresentação de
dramas crítico-realistas, mobilizando a opinião pública à mudança social.
Além do fato de Hospital Centralser uma série de ficção espanhola de grande
duração, esta produção nos chama a atenção pela abordagem de uma relação
homossexual formada por duas mulheres que trabalham no hospital, que almejam
ter filhos e que contraem matrimônio diante de um juiz; este fato foi exibido
em 2005, ano em que a Espanha começou a reconhecer, legalmente, o casamento
entre pessoas do mesmo sexo. Seguindo este recorte cronológico, buscamos na
novela Páginas da Vida, através do casal formado por dois homens, um
interessante caso de inserção de uma família homoparental estável na televisão
brasileira que também acompanhou as mudanças no terreno amoroso. Por tal razão,
esta novela complementa nosso universo de pesquisa pelo seu pioneirismo na
abordagem, ainda que simbolicamente aprofundada, na televisão aberta do Brasil.
Cabe acrescentar que a homoparentalidade, de progenitores do mesmo sexo, é um
tema que avança em investigações das áreas da sociologia, psicologia,
antropologia e serviço social (Flaquer,_1991; Perelson,_2006; Medeiros,_2006;
Reyes,_2007; Fonseca,_2008; Robaldo,_2011; Ceballos_Fernández,_2012). Este tipo
de estudo está sendo potencializado graças aos avanços nos direitos dos
homossexuais; no entanto, não o encontramos no âmbito da comunicação. Portanto,
o presente artigo pode ajudar a criar referências que até o momento não
existem.
MARCO TEÓRICO-REFERENCIAL: A RELEITURA DA CONVIVÊNCIA
Diversos autores afirmam que a instituição familiar se tornou um fenômeno
complexo pelos seus variados arranjos estruturais, consequência de importantes
mudanças em normas sociais e sexuais (Castells,_1999; Roudinesco,_2003;
Giddens,_2004). Essas mudanças desafiaram a família tradicional e nuclear,
formada por pai, mãe e filhos. O século XVIII foi marcado pelo surgimento do
feminismo, que “com o advento da burguesia, transformou a família em uma célula
biológica que concedia lugar central à maternidade”. Uma nova ordem familiar
apareceu, “permitindo às mulheres reafirmarem sua diferença, aos filhos serem
olhados como sujeitos e, aos ‘invertidos’4, se normalizarem” (Roudinesco,_2003:
11).
Nessa direção, torna-se imprescindível abordar a estrutura mais básica de todas
as sociedades contemporâneas: o patriarcado. Como verificamos em Castells_
(1999), o patriarcado se caracterizou pela autoridade e poder dos homens sobre
as mulheres e seus filhos na unidade familiar. A repercussão dos movimentos
sociais, sobretudo do feminismo nas relações de gênero, desencadeou uma onda
expansiva: foi posta nas entrelinhas a heterossexualidade como norma.
Já para os homossexuais masculinos, o questionamento da família tradicional e
as relações conflituosas entre homens e mulheres representaram “[...] una
oportunidad para explorar otras formas de relaciones interpersonales, incluídas
nuevas formas de familia, las familias gays” (Castells,_1999:162). O autor
complementa que a liberação sexual sem limites institucionais se converteu em
uma nova fronteira da expressão pessoal, sem vínculos com a imagem homofóbica
promíscua, mas, da afirmação do eu, e na experimentação com a sexualidade e o
amor. Para ele, a debilitação da família patriarcal foi observada na década de
1990, sobretudo nos países mais desenvolvidos. Um primeiro indicador do
desapego a um modelo de família que estava baseado no compromisso, a longo
prazo, dos seus membros, foi a desintegração dos casais, através do divórcio ou
da separação, um processo em que o desejo se encarna na vontade (Bauman,_2007).
A Família Homoparental
A transformação das formas de encarar o amor, a sexualidade e a reprodução, vem
atingindo a todos, independentemente de orientação sexual. Foucault_(1984)
reforça a dificuldade secular, em nossa sociedade, em integrar os dois
fenômenos:a inversão dos papéis sexuais ea relação entre indivíduos do mesmo
sexo. Encontramos uma noção pertinente para ilustrar a família homoparental, no
que se refere às “famílias que escolhemos” (Fonseca,_2008), ligada aos novos
arranjos familiares.
Giddens argumenta que algumas sociedades possuem uma história maior de
tolerância sexual que outras, e que as mudanças que experimentam não são, às
vezes, tão radicais quanto em países como os Estados Unidos, por exemplo. O
autor recorre à Alfred Kinsey5 (1948 apudGiddens,_2004:22; 1953) – já que suas
pesquisas sobre a sexualidade humana influenciaram profundamente os valores
sociais e culturais dos Estados Unidos, principalmente na década de 1960, com o
início da revolução sexual – para ilustrar o que foi um possível indício deste
radicalismo: seu relatório revelou que apenas 50% de todos os homens americanos
eram “exclusivamente heterossexuais”; 18% deles eram ou exclusivamente
homossexuais, ou persistentemente bissexuais; 13% haviam participado de alguma
forma de atividade homossexual, enquanto que mais de 15% confessaram que haviam
tido desejos homossexuais sem haver cedido a eles.
Giddens (ibidem) recorda que, inclusive na época em que apareceram os livros de
Kinsey, a homossexualidade ainda era vista como uma patologia, um transtorno
psicossexual. Igualmente, não devemos perder de vista o fato de que as
sociedades buscam – quando há interesse político – tolerar a existência dos
homossexuais e, também, suas uniões, dentro do campo jurídico; no entanto,
limitaram-lhes os direitos que já vinham sendo aplicados aos heterossexuais
(Pérez_Cánovas,_1996; Villaamil,_2004). Isto porque, na visão de Mira_(2007), a
resistência à normalização não se produzia na forma de modelos alternativos ao
ativismo, mas, defensiva ou negligente. Apesar disso, cada uma das conquistas,
ainda que em proporções limitadas, constituiu um passo decisivo na tarefa
pendente de acabar com uma situação discriminatória.
Os exemplos de conquistas do coletivo homossexual, que pareciam restritos ao
contexto europeu, são realidade no continente americano – da América do Norte à
América do Sul. As regras que valem para relações estáveis entre homens e
mulheres, aplicadas aos casais gays,já não afetam apenas os casais homossexuais
de países como Holanda, Bélgica, Espanha, Suécia ou Islândia. Estados norte-
americanos, México, Argentina e, recentemente, Brasil, já reconhecem a união
estável entre casais do mesmo sexo como entidade familiar. No entanto, cabe
trazer à luz um pertinente pensamento de Belgrano_Rawson_(2012), que chama a
atenção para a importância do reconhecimento legal dos casais de mesmo sexo,
aliado às medidas similares impulsionadas por uma democracia motivada pelo que
denomina “cidadania sexual”6.
A Nova Família na TV: Brasil e Espanha
Segundo o Censo Demográfico 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE)7, o Brasil tinha mais de 60 mil casais homossexuais, que, a
partir de maio de 2011, já poderiam ter direitos garantidos como herança,
comunhão parcial de bens, pensão alimentícia e previdenciária, licença médica
ou inclusão do companheiro como dependente em planos de saúde. A sentença do
Superior Tribunal Federal foi um marco importante na história legislativa do
país, um dos mais homofóbicos do mundo8, uma vez que há mais de 15 anos o
coletivo homossexual esperava pela aprovação de um projeto menos complexo, o de
Parceria Civil Registrada que, devido à polêmica, não era colocado em votação
pelos senadores federais. Esse projeto, criado em 1995, não tinha pretensões de
equiparar as uniões homossexuais com os casamentos convencionais; por esta
razão, a palavra casamentonunca foi utilizada no projeto e, mesmo assim, não
foi debatido amplamente, devido a resistências diversas, sobretudo da sociedade
civil e dos operadores do direito.
Antes da aprovação da união homossexual no Brasil, os casais homossexuais só
podiam firmar contratos de união estável. Com a decisão da Justiça, está
permitida também a adoção de filhos, o que divide ainda mais as opiniões. No
entanto, os casamentos de caráter civil entre pessoas do mesmo sexo não param
de acontecer, inclusive em estados menos desenvolvidos da federação. O tamanho
da discriminação foi traduzido em números pelo Instituto Brasileiro de Opinião
Pública e Estatística (Ibope), em pesquisa realizada em julho de 2011. De
acordo com o órgão, 55% da população brasileira não aprovava a união entre
pessoas do mesmo sexo9. A pesquisa revelou, ainda, que o percentual era o mesmo
quando se tratava da adoção de crianças por casais homossexuais: 55% dos
brasileiros eram contrários e 45% a favor. O levantamento trouxe à tona que,
“nos dois casos, a resistência é maior entre os homens, os evangélicos, os mais
velhos, pessoas com menos escolaridade e de classes mais baixas. Nessas
categorias, os índices de rejeição às causas homossexuais são maiores”. Uma
sociedade marcada por desigualdades capazes de promover desarmonias de poder
social e oportunidades de vida é notadamente menos tolerante (Santos,_2011).
No caso espanhol, a aprovação da lei do casamento homossexual, em 2005, motivou
conflitos envolvendo a população, a Igreja Católica e o partido opositor, o PP
(Partido Popular). Mais de 8.700 casamentos gaysforam celebrados na Espanha até
2008, conforme estudo realizado pelo Instituto Nacional de Estadística10.
O número nos chama a atenção para a ânsia da adoção da ordem familiar que, como
bem sabemos, chegou a contribuir paraa desventura do coletivo homossexual. Essa
aproximação da instituição familiar é um traço marcante de uma relação afetiva,
construída na ausência de uma lei consensual. Em outras palavras, a
inexistência de normas fixas transformaria a família homoparental em uma
instituição carente de regras comuns.
Na televisão dos dois países, a nova família ganhou destaque paralelamente às
conquistas do coletivo homossexual. Em 2005, o reconhecimento da lei do
casamento homossexual, na Espanha, incidiu quase que imediatamente no argumento
narrativo da série Hospital Central, na qual os personagens Maca e Esther
oficializaram a união diante de um juiz, na trama fictícia. O casal
protagonizou debates sobre maternidade, inseminação artificial, educação de
filhos e até batizado. Foi uma prática narrativa consistente e reveladora da
experiência homossexual como não se havia apreciado com tal profundidade
anteriormente na televisão espanhola, apesar das inúmeras inserções de
personagens homossexuais na ficção, especialmente desde os anos 1980, quando
novas e transgressoras representações, inclusive da mulher, começaram a
aparecer (Sáez_Mateu,_2008).
No final da década de 1990 os personagens homossexuais começaram a atuar com
“normalidade”, o que, segundo o autor, significava que a homossexualidade era
somente um componente a mais do personagem, não o que lhe definia de forma
unidimensional. Para nossa pesquisa, o conceito de normalidadeem uma obra
narrativa é pertinente, também, por relacionar-se à representação familiar
vinculada à figura homossexual, não apenas demarcando sua presença individual
na trama.
A partir do ano 2000, algumas séries trataram de apresentar, ainda que de
maneira estereotipada, personagens regulares, com narrativa enfocada em sua
homossexualidade, como aconteceu em Siete Vidas(Telecinco, 1999-2006), El Cor
de la Ciutat(TV3, 2000-2009), Jet Lag(TV3, 2001-2006) ou Aquí no Hay Quien Viva
(Antena 3, 2003-2006).
O imediatismo da tradução da vida real em ficção também aconteceu no Brasil.
Não obstante, cabe rememorar que as representações iniciais da homossexualidade
costumavam se centrar na orientação sexual dos personagens. Nos programas
humorísticos da televisão brasileira, por exemplo, a imagem do homossexual
efeminado era a mais comum desde os anos 1970 (Nunan,_2003). A imagem
estereotipada começou a perder força a partir da década de 1980, com
personagens secundários em novelas da emissora Rede Globo, como Vale Tudo(Rede
Globo, 1988-1989 – com um casal de lésbicas); A Próxima Vítima(Rede Globo, 1995
– com o jovem casal homossexual masculino); Por Amor(Rede Globo, 1997-1998 – na
qual um bissexual abandona sua mulher e filho para viver um romance
homossexual); Torre de Babel(Rede Globo, 1998-1999 – com um casal de lésbicas
maduras); Mulheres Apaixonadas(Rede Globo, 2003 – em que um casal lésbico
trocou carícias explícitas) ou mesmo Senhora do Destino(Rede Globo, 2004-2005 –
na qual duas jovens se apaixonaram e adotaram um recém-nascido). Vale destacar
que esses personagens não formavam uma união estável e, naquele momento,
causaram bastante polêmica na sociedade, sendo minimizados nas tramas ou mesmo
excluídos da narrativa, como aconteceu com o casal de lésbicas de Torre de
Babel,que morreu em uma explosão em um centro comercial, depois de sua
repercussão negativa.
Apesar do avanço dramático que as representações homossexuais produziram na
sociedade, cabe enfatizar que a profundidade na abordagem homoparental não
recebeu muito destaque no Brasil. Como argumenta Joyce_(2013), a progressiva
representação homossexual na televisão brasileira vinha sendo limitada em um
importante aspecto: a ausência de um beijo entre os casais gays. Demorou, mas
aconteceu.
No mesmo mês em que o Judiciário brasileiro aprovou o casamento homossexual e a
segurança jurídica que isso implica para as famílias gays, a televisão deste
país mostrou uma cena histórica: um beijo entre duas mulheres. Em 12 de maio de
2011, os telespectadores do canal SBT11 assistiram ao beijo entre Marina e
Marcela, personagens da novela Amor e Revolução(SBT, 2011-2012). Esta obra de
ficção foi a primeira a conceber e a transmitir uma cena do beijo gay– já
mitificado na televisão brasileira – sem interferências. Em 2005, o setor de
dramaturgia da emissora Rede Globo escreveu uma cena de beijo homossexual para
a novela América,que acabou vetado pela emissora. Naquela época, a Rede Globo
justificou o veto, com base nos “Princípios de Qualidade da TV Globo”, que não
contemplariam “beijos gays e carícias”.
A repercussão foi grande após a atuação das atrizes da novela Amor e Revolução,
de forma que o autor, Tiago Santiago, condicionou a continuação do romance das
duas à aceitação do público12. A resposta positiva encorajou o autor a escrever
outra cena de beijo gay, desta vez entre dois homens na novela, o que não
aconteceu porque a emissora estava preocupada com a audiência mais
conservadora.
O mítico beijo gay, uma vez vetado pela Rede Globo, finalmente foi levado ao ar
em uma telenovela da emissora. Em Amor à Vida(Rede Globo, 2013-2014), o beijo13
entre os personagens Félix e Niko, no último capítulo da novela, foi
considerado o mais esperado pelo país, respondendo a uma necessidade
dramatúrgica e, sobretudo, refletindo o momento que vive a sociedade
brasileira.
DESENHO METODOLÓGICO
Os pressupostos teóricos e metodológicos que fundamentam esta investigação, de
caráter qualitativo, buscam elementos da narratologia – a teoria dos textos
narrativos – para analisar os aspectos de interesse desse texto televisivo
empírico, do ponto de vista do seu conteúdo. De acordo com Bal_(1990), um texto
narrativo é composto pelo texto em si, por uma história e uma fábula. Caberá a
esta pesquisa deter-se ao texto narrado da série Hospital Centrale da novela
Páginas da Vida, com seus acontecimentos relacionados aos personagens
selecionados, representativos de unidades semânticas completas. Nessa
perspectiva, estudaremoso que concerne ao o queé dito no texto,e não comoé
dito. Faremos, ainda, um breve estudo de recepção para entender como os
coletivos homossexuais dos dois países percebem as obras de ficção abordadas
aqui e os contextos televisivos nos quais estão inseridos.
Objetivos
Neste estudo, pretendemos alcançar os seguintes objetivos específicos:
* Investigar a inserção e o tratamento de duas famílias homoparentais – uma
presente na trama da série espanhola Hospital Centrale outra na novela
brasileira Páginas da Vida –, a fim de identificar as diferenças nas
relações afetivo-amorosas dos personagens e seus vínculos paterno-
filiais;
* Averiguar o impacto das produções examinadas, através de uma análise
virtual-comparativa para Espanha e Brasil;
* Oferecer elementos teórico-metodológicos para a criação de um campo de
estudo acadêmico que investigue a família homoparental na ficção
televisiva.
Amostras e Modelo de Análise de Conteúdo
A classificação da série de ficção Hospital Centrale da novela Páginas da
Vida,como amostras da análise, foi realizada a partir da articulação entre
gênero (drama), presença regular de uma família homoparental (relação estável),
e protagonismo (personagens fixos na amostra selecionada). A partir do
exercício empírico de visualização de capítulos das duas obras de ficção,
pretende-se encontrar dados qualitativos sobre o tratamento que se dá à família
homoparental na ficção televisiva, valendo-nos de uma perspectiva comparativa
ligada às particularidades deste tipo de família, formada por duas mulheres,
Maca e Esther (família homoparental 1) e outra, formada por dois homens,
Marcelo e Rubinho (família homoparental 2).
Em termos mais formais, esta pesquisa foi concebida após observação empírica de
197 capítulos, referentes às duas obras audiovisuais, divididos em: 28
capítulos de Hospital Central(temporadas 9/10 = 25 capítulos; temporadas 11,
12, 13 = 3 capítulos) e 169 capítulos de Páginas da Vida, o que,
cronologicamente, totaliza mais de 10 mil minutos analisados. Além disso, com
base na percepção de Casetti e di Chio (1999:240), desenvolvemos a análise de
conteúdo das obras a partir de um recorte predeterminado, tendo em conta, nos
capítulos estudados, os fenômenos de interesse, identificados após observação e
selecionados em forma de sequências de interesse, numeradas de 1 a 228, de modo
a facilitar a localização das referências na análise, e com sua minutagem
final, quando se tratar, especificamente, dos casais estudados.
Como esta análise constitui o enfoque mais tradicional do texto, partiremos do
princípio de que estes programas televisivos, além de corresponder a um
instrumento de transmissão de representações, são, ainda, realizações
linguísticas e comunicativas nas quais nos interessam seus códigos verbais e as
manifestações evidentes e específicas de cada fator estudado: personagens,
ações e transformações.
Nos Quadros_1 e 2, apresentamos uma mostra das sequências de interesse da
pesquisa, e, em seguida, os dados adicionais da análise realizada das obras de
ficção e informações gerais sobre cada uma:
Quadro 1 Modelos – Sequências de Interesse
ESPANHA
228. (00:19:04) O casal gay acaba de acordar e conversa ainda na cama:
Marcelo: Caramba, Rubinho! Você se mexeu a noite inteira! Você sonhou, você falou,
você deu um verdadeiro show na cama!
Rubinho: Eu sei, eu sei. Eu estou preocupado, estou com medo de que a gente se
apegue a essa menina, de repente a Margarete vai embora e a gente fica aqui, os dois
solitários, com saudade.
Marcelo: É, mas calma! Se ela se sentir protegida, se sentir acolhida, não tem
porque ela querer ir embora. E além do mais, a gente vai treinando pra quando a gente
for adotar um filho.
Rubinho: Isso! É isso o que a gente tem que pensar de verdade e colocar em prática.
Marcelo: Você está falando sério?
Rubinho: Claro que eu estou falando sério. Se a gente fica falando em adoção... e
nada? A gente tem que “meter as caras”. Você não viu aqueles caras de Catanduvas
(cidade de São Paulo)? A gente se gosta, Marcelo. A gente se ama de verdade. Então,
estamos esperando o quê pra formar uma família de vez?
Marcelo: Claro que a gente tem esse direito. Vamos adotar! Vamos dar um irmãozinho
pra Quitéria.
Rubinho: Ou uma irmãzinha! (Dão-se as mãos sem carinho algum. Em seguida, entram a
mãe de Marcelo, Hilda, a empregada, Margô, e o bebê, com bolo para celebrar o 1o mês
de vida da criança. Cantam parabéns). (00:20:48)
Fonte: Elaboração própria.
Quadro 2 Especificidades – Hospital Centrale Páginas da Vida
Hospital Central Páginas da Vida
País Espanha Brasil
Emissor Telecinco Rede Globo
Início de emissão 2000 2006
Final de emissão 2012 2007
Gênero Série de ficção Novela
Microgênero Drama hospitalar Melodrama
Horário Prim e time Prim e time
Periodicidade Semanal Diária
Duração/capítulo 70’ 40’
Sequências de interesse 165 63
Capítulos estudados 28 203
Temporadas estudadas 9-13 –
Tempo estudado (minutos) 2.080 8.120
Casal homossexual Maca e Esther Marcelo e Rubinho
Fonte: Elaboração própria.
Recorremos a Igartua_et_al._(1998) para apreendermos os aspectos mais
relevantes dos personagens, objetos de nossa investigação, no que se refere aos
atributos morfológicos(descrição física e características corporais) e aos
atributos funcionais(aspectos psicológicos ou traços de personalidade,
comportamentos e temas), apresentados pelos personagens da narrativa seriada.
Outros trabalhos destacaram o estudo do caráter e as atribuições aos
personagens, como forma de analisar a representação do coletivo (Fouts_e_Inch,
2005).
Para este artigo, os dois atributos serão tomados em consideração porque
apresentam dados importantes para a análise dos perfis sociais, abordados na
série estudada. Além disso, acrescentaremos à investigação os atributos
narrativos, relacionados aos aspectos próprios da narração televisiva, como
presença na tela. Desta forma, respeitaremos as abreviações utilizadas para a
ficha referencial da nossa análise:
* AM – Atributos morfológicos (dos personagens);
* AF – Atributos funcionais (dos personagens, temas e seu ambiente);
* AN – Atributos narrativos (da presença dos personagens na tela).
A elaboração das categorias para a análise textual obedece à seguinte lógica:
Estabelecimento de categorias gerais e metodológicas para a análise, como:
* Casal homossexual 1 (Maca e Esther);
* Casal homossexual 2 (Marcelo e Rubinho);
* Relação amorosa tradicional (representativa de normas sociais
dominantes);
* Relação amorosa não tradicional (não representativa de normas sociais
dominantes);
* Qualificações dos personagens e de suas relações;
* Temas abordados pelos casais;
* Conflitos entre o casal e a relação paterno-filial.
A partir da definição dos critérios de interesse, elaboramos a nossa análise
textual, obedecendo a uma lógica que estabelece como critérios as
características corporais ou rasgos de personalidade (comportamentos) comuns
dos personagens. É esta estereotipizaçãodos personagens em torno de uma série
limitada de traços que facilitam um rápido reconhecimento pelas audiências
(Montero Rivera, 2005). Esta parte do estudo considerará, então, os principais
protótipos encontrados nas tramas narrativas de ficção (Igartua_et_al._,_1998).
A caracterização psicológica, por exemplo, compreenderá traços de maior
incidência na televisão, como personagens com personalidade sociável, passiva,
poderosa, agressiva, ciumentaou responsável. Para nosso estudo, acrescentaremos
à lista, valores morais, temperamento, aptidões, atitudese qualidades de ser
introvertidoou extrovertido. No tocante às emoções, utilizaremos quatro básicas
(Galán_e_Herrero,_2011; Igartua_et_al._,_1998): alegria, medo, raivae tristeza.
Partindo destes atributos, utilizaremos outros traços funcionais (psicológicos)
que complementarão nossa lista, ligados a estados, disposições e aspectos
sociais (Iraegui_e_Quevedo,_2002). Exemplos destes traços podem ser:
dialogante, respeituoso, generoso, amável, elegante, sério, nervoso,
inteligente, decididoou sedutor.
Quando os atributos se relacionarem a temas ligados aos casais analisados,
teremos em mente que, como em toda narração, este repertório temático deverá
estar conectado a um conflito que os personagens terão de enfrentar. Como
afirmaram Galán e Herrero, “[...] las buenas historias provienen de grandes
conflictos: el miedo, el amor, la soledad, los secretos, los deseos
inalcanzados… Cuanto más universal sea este conflicto, más fácil será la
identificación con el público” (2011:95).
Assim, os conflitos que serão selecionados para nosso trabalho serão baseados
nestes de caráter universal, além dos que classificaremos de acordo com os
contextos relacionados de cada obra que compõe a investigação, considerando,
ainda, suas características sociais, como classe, educação, ócio, vida
familiar, culturale profissional. Com todas estas características definidas,
reunimos nossos principais elementos referenciais metodológicos, considerados
após observação empírica.
DESENHO DA ANÁLISE VIRTUAL-COMPARATIVA
Nesta parte, centramo-nos na importância de conhecer as opiniões de audiências
específicas que, em princípio, estariam mais comprometidas com a causa
homossexual dos dois países estudados. Estas audiências se transformariam em um
recurso valioso para conhecer o universo que compõe o contexto aqui analisado e
para aprender o que os informantes pensam sobre um fenômeno de interesse.
Reiteramos, então, que a assistência dos entrevistados se produziu a partir de
uma demanda da investigação e que a análise de respostas teve um caráter
ideológico. Este enfoque quantitativo-qualitativo, portanto, obedeceria ao que
preconizaram Hernández Sampieri et al. (2003), referente ao caráter não
probabilístico do universo entrevistado, já que a eleição dos elementos da
mostra seguiria critérios convenientes para a investigação.
Os Grupos
Objetivamos a participação, através de seus membros associados, de duas
entidades militantes, do ponto de vista reinvidicativo da causa homossexual.
Buscamos organizações relevantes para seu contexto e de expressividade
comprovada na luta pela normalização da homossexualidade nas sociedades em que
atuam. Seguimos, então, com a parceria com o Grupo Gay da Bahia14, iniciada em
2008. A entidade espanhola foi escolhida com base na sua especificidade: uma
associação de famílias LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais
e Transgêneros), localizada em Barcelona. A Associació de Families Lesbianes i
Gais15 se mostrou solícita, animando seus membros a participarem da pesquisa e
responder ao questionário. Nos dois grupos, o contato estabelecido aconteceu
mediante a direção das entidades, o que, a nosso ver, representou mais
facilidade na sensibilização dos informantes.
Tivemos o interesse em procurar ao máximo traçar o perfil dos entrevistados, de
modo a compreender melhor a composição de cada entrevistado e o que os
diferenciava. Este entendimento cultural e até mesmo simbólico das
características dos grupos poderia, em nossa opinião, ser um elemento de grande
valor, já que enriqueceria os critérios de orientação nas análises qualitativas
(Serbia,_2007). Assim, definimos como fatores de interesse referentes aos
participantes: nome, profissão/ocupação e entidade a que pertenciam. Este
último se referia à necessidade de comprovar a origem dos informantes, porque
consideramos a possibilidade de os questionários ultrapassarem as barreiras das
entidades contatadas.
Uma WebBilíngue16
O conteúdo do trabalho apresentado na webfoi desenvolvido em questionários
estruturados em dois idiomas, dependendo da escolha do respondente, brasileiro
ou espanhol: português ou castelhano. Para cada contexto, um fragmento da
novela e da série estudadas que consideramos relevante para caracterizar as
duas relações homoafetivas. A sequência de Hospital Centralfoi a que
representou um ineditismo na televisão espanhola, a do casamento entre duas
mulheres (Seq. 228/cap. 203/00:19:04). Já no caso de Páginas da Vida,
selecionamos a cena do último capítulo da novela, que contempla a decisão do
casal homossexual, em sua cama, de adotar uma criança (Seq. 151/cap. 13/ 01:08:
12). Assim, após a visualização de cada cena, nos contextos a que lhes
correspondiam, os entrevistados responderam ao questionário – cada um
estruturado com seis perguntas fechadas –, conformando um instrumento conciso e
breve.
Estas perguntas, de caráter objetivo, foram elaboradas com base em respostas
dicotômicas e múltiplas, evitando ambiguidades e equívocos por parte do
respondente. Cada pergunta referente às obras analisadas se relacionava com a
cena em questão – a título recordativo para o entrevistado –, e com suas
opiniões ligadas à narrativa da família homoparental na ficção televisiva de
seu país de origem.
RESULTADOS
Com base nos objetivos anteriormente explicitados, no trajeto teórico-
conceitual realizado e nas análises da amostra da pesquisa, destacamos o papel
da televisão como espaço de relações dialógicas, enfatizando outro conceito que
deve ser recuperado quando se falar em televisão: a pluralidade, que, como
argumentou Ferré_Pavia_(2010), possibilita um conteúdo variado e multitemático,
em que a sociedade se vê representada, apesar de sua diversidade.
Identificamos, também, características importantes nos perfis dos dois casais
homossexuais estudados e a prática narrativa emancipadora de Hospital Central,
por meio da família homoparental 1, diferentemente das limitações de
aprofundamento do vínculo afetivo-amoroso e das relações paterno-filiais
detectadas na família homoparental 2, de Páginas da Vida. Frisamos, ainda, a
construção de uma estrutura de pesquisa relevante para a consolidação de uma
linha de estudo acadêmica, direcionada à família homoparental na ficção
televisiva.
Os Perfis dos Casais Homossexuais e suas Diferenças
Seguindo a lógica metodológica estabelecida para os atributos morfológicos dos
quatro personagens estudados – Maca e Esther (família homoparental 1); Marcelo
e Rubinho (família homoparental 2) –, relacionados às suas características
físicas e corporais, destacamos a utilização de atores e atrizes de boa imagem
e atraentes, o que poderia vir a ser um estereótipo comum na ficção de modo
geral. De acordo com a pesquisa, pudemos constatar que os personagens estudados
apresentaram, cada um, traços peculiares que os caracterizavam de maneiras
distintas. A pediatra Maca era mais reservada e afetuosa; a enfermeira Esther
parecia ser mais espontânea e extrovertida; já o dermatologista Rubinho se
mostrou equilibrado e tranquilo, e o músico Marcelo era ingênuo e sensível. No
entanto, em momentos pontuais das tramas, os perfis chegam a assimilar-se,
denotando um contraste próprio do ser humano com seu entorno, sempre
privilegiando o profissionalismo, o talento e as amizades de cada casal. Não
identificamos nenhum perfil pejorativo ou forçosamente vinculado à orientação
sexual dos personagens, revelando que a sexualidade não foi concebida, nas
obras, como um fator determinante para a construção da personalidade e da
emotividade de cada um.
O tratamento do discurso amoroso referente à família homoparental 1 contou com
histórias de fácil identificação com os telespectadores, ainda que
espacialmente limitado por acontecer, na maior parte das vezes, em uma unidade
de urgências médicas. A relação amorosa não tradicional, independentemente de
sua orientação sexual, teve um tratamento, até certo ponto, aprofundado com
beijos e carícias, ainda que de forma dinâmica, já que sabemos da ágil
estrutura temporal das histórias que envolviam os sujeitos, pela autonomia de
cada capítulo da série. O destaque da relação ocorreu em momentos pontuais: no
casamento das duas mulheres, na gravidez por inseminação artificial da pediatra
Maca e nos conflitos com a educação do filho.
Já no tocante à família homoparental 2, comprovamos que se tratava de uma
relação estável, embora informal, com pouca intimidade e carícias, e cujo único
dilema se referia à decisão de lutar na Justiça pela adoção de um filho, o que
somente pareceu ser uma escolha definitiva do casal no último capítulo da
novela, quando os dois homens, na cama, ainda que sem carinho mútuo, afirmaram
que tinham esse direito para completar a família.
Verificamos, aí, um ponto-chave de diferença entre os dois casais: o tratamento
das relações paterno-filiais associado a cada casal. O primeiro recebeu o
aprofundamento do tema dentro do que coube à narrativa, ambientada num
hospital, explorando conflitos relacionados a religião, educação, transgressão
de valores tradicionais, como a gravidez de uma das mulheres por meio de
inseminação artificial. No que se refere ao segundo casal, a introdução do tema
da adoção por casais homossexuais é apresentada como o único linktransgressor
em relação aos dois homens. O nascimento da filha da empregada doméstica dos
rapazes trouxe à tona o debate, já fortalecido pelo incentivo da mãe de um
deles para se tornar “avó”. Foi, então, o desfecho da indecisão do casal: a
certeza de que queriam e que poderiam adotar uma criança.
Na observação empírica da amostra própria, do ponto de vista dos atributos
narrativos estabelecidos pela investigação e baseados nas sequências de
interesse, quantificamos que, nas duas temporadas, a família homoparental
1obteve, em média, 60 minutos de presença em tela; já a família homoparental
2apareceu em pouco mais de 58 minutos, denotando, em nossa opinião, um
equilíbrio significativo de representação dos dois universos narrativos
estudados, ainda que consideremos que o primeiro casal obteve destaque na
trama, dentro da amostra escolhida, diferentemente do segundo casal, que
somente começou a ter visibilidade na novela a partir do capítulo 32. Outro
ponto de incongruência encontrado diz respeito à quantidade de sequências de
interesse obtidas para cada casal: 165 para o casal espanhol e 33 para o
brasileiro,o que ratifica o protagonismoea introdução de fios narrativos dos
personagens estudados da série espanhola.
O Discurso Integrado de Hospital Central
O principal ponto em comum entre a série espanhola e a novela brasileira se
apresentou na tentativa de romper com o contrato heteronormativo, conceito
abordado por Allrath_e_Gymnich_(2005), ainda que interpretemos essa espécie de
liberação narrativa em favor da representação das mudanças sociais diante da
homossexualidade. Também devemos recordar que, por culpa do desejo da sociedade
de diferenciar categoricamente as sexualidades, pressupõe-se à
heterossexualidade uma identidade, enquanto à homossexualidade, a introdução da
diferença ou da heterogeneidade. Por estas razões, entendemos que se trata de
uma afirmação própria do sistema heteronormativo, se considerarmos as
convenções narrativas dominantes: casais estáveis, atraentes fisicamente, bem-
sucedidos e levando uma vida familiar comportada e aceita pelo seu entorno.
Atenuou-se a realidade gaypara evitar choques aos telespectadores; uma
iniciativa que, a fim de dar mais visibilidade aos homossexuais, não deveria,
em nosso ponto de vista, ser menosprezada nem sob esta condição.
De forma geral, as características narrativas da série espanhola, em nossa
opinião, fazem desta obra um bom observatório da representação televisiva das
novas relações afetivo-amorosas, por oferecer ao telespectador a possibilidade
de assistir ao argumento narrativo de um casal homossexual, praticamente com o
mesmo tratamento dado aos casais heterossexuais da trama17, sem a veia
estereotipada que costumava disseminar, de um lado mais suave, o tabu ou o
desconhecimento, de outro, nem tanto, a homofobia. A questão paterno-filial
merece ser enfatizada em Hospital Central,a partir da perspectiva inovadora no
tratamento de temas como a inseminação artificial por uma mulher lésbica, a
educação de um filho com duas mães e o questionamento da tradição, como o
batizado.
Efetivamente, constatamos nessa amostra que a questão da maternidade entre as
duas mulheres poderia ser um problema com a tentativa de batismo do filho,
denotandoo quão delicado que era paraa Igreja Católica aceitar a substituição
de um maridopor uma esposa. Apesar da indignação pelo dilema em batizar o bebê,
Maca aceitou a proposta de Esther de educar bem o filho, e de que esperassem
que ele crescesse para decidir, por si mesmo, se queria submeter-se a este
ritual católico. Novamente, um elemento transgressor se fez presente à trama,
indicando a ruptura de uma convenção, e a sugestão de que a educação dos filhos
desta nova família deveria estar baseada na liberdade e no respeito.
Como tendência geral, apontamos uma visibilidade crescente da identidade
homossexual como consequência direta dos ganhos obtidos pelo movimento
homossexual – tendências nas televisões dos dois países. Reforçamos que nossas
considerações do contexto foram imprescindíveis para poder estabelecer uma
articulação entre a metodologia empregada e seus distintos níveis, até a
conclusão de que as realidades e os contextos do mundo da televisão e do real
se tocam e se entrelaçam em um grau que ainda exige mais determinação.
O Discurso Moderado de Páginas da Vida
No contexto brasileiro, o que pudemos destacar foi a timidez no tratamento
desses vínculos, no caso dos dois homens, em contraste com as experiências
narrativas em relação à família homoparental 1, que tinham filhos e conflitos
ligados à educação. A família homoparental 2teve parte de seus argumentos
narrativos direcionados à construção do desejo de adotar uma criança,
culminando, no último episódio, com a certeza de que criariam a filha de sua
empregada doméstica e efetivariam uma adoção legal, ainda que isso, àquele
momento, significasse uma batalha judicial. A partir dos capítulos estudados,
podemos afirmar, também, que as duas obras de ficção apresentaram uma vocação
pedagógica e um compromisso moral em que se verificou uma dedicação
profissional tamanha a ponto de chegar à implicação pessoal. Outro dado
importante se refere à capacidade inovadora no formato de Páginas da Vida, que
incluiu, no final de cada capítulo, depoimentos de pessoas anônimas, narrando
um acontecimento marcante de suas vidas, relacionando, desta forma, as
participações aos temas abordados nos episódios.
Nesse sentido, esses dados podem ser ainda mais relevantes quando um argumento
narrativo delimita que a orientação sexual de seus personagens não recebe
atenção além daquela que merece, demarcando o espaço que separa o personagem
profissional e o personagem pessoal.
No entanto, apesar do esforço de normalização da família homoparental na ficção
televisiva dos dois países, reconhecemos que, do ponto de vista comparativo, há
outras congruências interessantes que marcam a posição dos dois casais
analisados, uma vez observadas justificativas de roteiropara explicar e
convencer a audiência. Tomamos, como exemplo, a necessidade de inserir à trama
as opiniões dos pais dos personagens Maca e Esther, ratificando que a aceitação
paterna da homossexualidade dos filhos é um tema que não se pode evitar
debater.É mais um traço, em nossa opinião, da tentativa de normalização da
experiência homossexual na TV. Neste caso, a resistência dos pais – princípio
notadamente expressivo quando é desafiado o pilar em que se alicerça a família
heterossexual –, foi tratada como conflito maior, com um desenlace em clima de
menos intolerância e, por final, de aceitação. O mesmo aconteceu em Páginas da
Vida, já que os pais de Rubinho foram mencionados na trama como resistentes à
orientação sexual do filho, o que, por isso, obrigava o médico a evitar criar
pontos de conflito, omitindo da família progressões ligadas ao seu namoro com
Marcelo.
Verificamos, portanto, que ambas as obras fizeram seu particular esforço para
romper com o contrato heteronormativo. Trata-se de uma normalização ratificada
em propósitos sutis, como, por exemplo, mostrar que um personagem, até então,
de orientação heterossexual, pode tornar-se homossexual sem que, para isso,
necessite revolucionar sua trajetória de vida. Referimo-nos ao caso do
personagem Esther, que se assume homossexual depois de apaixonar-se por Maca.
Referência alguma, nesse sentido, registramos com o casal brasileiro.
Entendemos que têm mais fundamento na prática narrativa estudada elementos
transgressores como a autonomia pessoal, a liberdade e a igualdade profissional
e sexual de personagens masculinos e femininos, e a consideração narrativa de
que uma união amorosa pode não ser uma opção vitalícia. Cabe ressaltar, ainda,
a relevância da atitude de Hospital Centralem oferecer ao imaginário coletivo a
certeza da legitimidade dos vínculos amorosos, da solidez dos laços que se
estabelecem, indiferentemente de orientação sexual, e dos novos modelos
familiares, que não excluem o aspecto idílico das relações paterno-filiais. No
caso brasileiro, podemos discorrer sobre outra certeza: a de que os novos
vínculos amorosos que emergem ainda precisam de aceitação social para que se
proliferem e deixem de ocupar a margem da sociedade e a borda da ficção.
A ANÁLISE VIRTUAL-COMPARATIVA
As cenas de Hospital Centrale Páginas da Vidadisponibilizadas na nossa página
na webforam consideradas conhecidas pela maioria dos entrevistados em cada
grupo; foram tidas como polêmicas, de acordo com o coletivo brasileiro,
diferentemente do que ponderou o coletivo espanhol; e, por quase unanimidade,
os dois grupos afirmaram que faltava, nas televisões de seus países, uma
abordagem mais abrangente das relações paterno-filiais de casais homossexuais.
Vale destacar que o grupo que reconhece que faltam intimidade e afetividade na
representação do casal homossexual 2 (Rubinho/Marcelo), éo mesmo que rechaçaa
necessidade de prudência na exibição de relações afetivo-amorosas como essa, o
que poderíamos deduzir que se trata de uma coerência opinativa; afinal, uma
cena, notadamente carente de demonstração afetiva, já denota moderação no seu
tratamento.
Outro aspecto que merece ser compartilhado, no que se refere ao grupo
brasileiro, foi a crença de 90% dos entrevistados de que a televisão no Brasil
será capaz de narrar, de maneira aprofundada, na ficção, casos de famílias
homoparentais.
Esse otimismo também é verificado no caso espanhol, já que 83% dos informantes
avaliaram a televisão de seu país como um potencial modelo para outras
televisões no âmbito do tratamento de novas relações afetivo-amorosas, sendo um
espelho da sociedade em que vivem. Reiteradamente, 71% afirmaram que a
televisão da Espanha acompanha as mudanças verificadas no tecido social, o que
ratificaria uma de nossas hipóteses, já que com esta característica, a ficção
deste país tende a revelar novas representações familiares.
Grupo na Espanha – 52 participantes
Ao entrar no nosso site, na área reservada ao coletivo espanhol, cada
entrevistado era convidado a assistir à cena de Hospital Central(Seq. 151/
cap.13/ 01:08:12), ali publicada antes de proceder à leitura e à escolha das
respostas, marcando síou nocomo opções oferecidas. Chamou-nos a atenção o fato
de haver uma pequena diferença entre os entrevistados que conheciam e que
desconheciam a cena de Hospital Central, disponibilizada em nosso site. Do
total destes, 54% disseram ter assistido ou ouvido falar da sequência que
evidencia o casamento entre as duas mulheres. Ea mesma cena, para 43 dos
informantes, conformando 83% do universo, não foi considerada controversa na
sociedade. Quando perguntados se relações homoafetivas, como a exibida no site,
deveriam receber um tratamento moderado na ficção espanhola, quase todos (98%)
responderam que “Não”.
A maioria, nesse caso formada por 71% dos entrevistados, confirmou que a
televisão espanhola tem acompanhado as mudanças sociais no que se referia à
orientação homossexual. Não obstante, um elevado percentual de informantes
(98%) demonstrou não ter dúvidas de que era necessária uma abordagem maior no
tocante às relações paterno-filiais entre casais homossexuais.
Mesmo assim, 43 respostas (83%) ratificaram que a narrativa de ficção
televisiva da Espanha poderia servir de modelo a outras emissoras no que
concerne ao fato de retratar ou recriar a vida real na tela.
Grupo no Brasil – 52 participantes
Quando perguntados se já tinham ouvido falar ou se haviam assistido à cena em
que o casal homossexual de Páginas da Vida(Seq. 228/ Cap. 203/ 00:19:04) está
em sua cama, despertando juntos, metade dos brasileiros entrevistados respondeu
que sim. Do total, 28 pessoas (54% dos entrevistados) disseram que esta cena
exibia pouca intimidade entre um casal homossexual, diferentemente do que se
costuma ver em uma cena de trato íntimo entre um casal heterossexual na
televisão.
Para uma maioria apertada (28 respostas), a cena, mesmo exibida em 2007, ainda
parece ser polêmica nos dias atuais, já que 54% acreditavam que as imagens
seriam capazes de gerar controvérsia na sociedade brasileira. Apenas 15% dos
entrevistados consideraram que as relações homoafetivas como esta de Páginas da
Vidadeveriam ser tratadas com moderação na ficção televisiva do Brasil,
enquanto 96% não tiveram dúvidas de que as relações homoparentais mereciam
maior abordagem nas narrativas de ficção.
Em relação à pergunta que sondava a opinião sobre a possibilidade de a ficção
brasileira narrar, de forma aprofundada, casos de famílias homoparentais, 90%
mostraram uma posição otimista. Cinco pessoas discordaram.
CONCLUSÃO – O NOVO DIÁLOGO ENTRE DESEJO E TRADIÇÃO NA FICÇÃO
Relações construídas na ausência de uma lei consensual, ainda que
inevitavelmente inspiradas na tradicionalização do vínculo amoroso, e que
possuem uma subjetividadee intimidade orientadas conformeo próprio desejo, com
um código ainda longe de ser estandardizado: entendemos que seja esta a
tendência afetivo-amorosa que se aponta nas duas produções de ficção aqui
estudadas.
Reconhecemos, ainda, que, ao estudar a família homoparental, assim como a
heterossexual, não se pode esquecer o cultivo de uma interioridade que dê
conteúdo às relações, de cônjuge ou não, ou mesmo em um romance passageiro. Ao
nos centrarmos excessivamente no casamento pode fazer com que nos esqueçamos
que, certamente, como estrutura, este esteja supervalorizado. Preferimos nos
valer do conceito de “família plástica”, concebido por Sáez_(2008), que reitera
o que verificamos no trajeto teórico desta investigação: as relações e os
vínculos, neste contexto de diversidade formal e liberdade individual, ganham
em sinceridade, mas, também, em fragilidade. Investigar as novas relações
afetivo-amorosas nos obriga a ter esse conceito sempre em mente, a fim de
considerar o caráter dialético e mutacional da família, sobretudo.
No momento em que desenvolvemos o presente estudo, os contextos legal e
televisivo do Brasil e da Espanha revelaram contrastes substanciais entre os
dois países. Mesmo assim, não houve ânimo em adotar uma postura colonizadora ou
Europa-centrista. Os resultados desfavoráveis ao âmbito brasileiro se devem à
ausência, naquele período estudado, de modelos familiares homoafetivos
consistentes, apesar da vasta representação homossexual na televisão do Brasil.
Do ponto de vista do meio de comunicação estudado, uma sugestão deixada por
esta linha de investigação é a de que este possa servir de antecedente ao
desenho de iniciativas culturais de produção das cadeias televisivas,
sintonizadas ao contexto da contemporaneidade, de modo a revitalizar o vínculo
social como função de serviço público da televisão, transmissora de valores.
Neste sentido, entendemos que, como intelectuais, devemos exercer nossa
capacidade crítica diante dos efeitos de dominação de ideologias e
instituições, porém, ao mesmo tempo, devemos insistir no resgate da capacidade
de gerar marcos de referência que nos permitam interpretar o presente e
articular vontades em prol de projetos comuns, em que prevaleçam a igualdade de
tratamentos narrativos dos personagens, sem influência da sexualidade, para
que, assim, possamos conquistar, verdadeiramente, futuro mais justo e sem
discriminação.
Daí vem nossa proposta máxima, a de que o Brasil possui identidade própria para
tratar, mais abertamente, de um tema como a família homoparental, igualmente
como observamos na Espanha. O beijo entre dois homens em uma telenovela
brasileira, em janeiro de 2014, não foi um simples beijo, ainda que considerado
por muitos como pouco íntimo e inspirador do real, diferentemente do primeiro
beijo lésbico da televisão brasileira. Longe de avaliar a qualidade do beijo
consagrado, reconhecemos que seu caráter revolucionário é irrefutável. Promove
questionamentos, induz a uma normalização, incita à tolerância. Esta tendência
dramática representa uma tendência social. E vice-versa.
Não se trata, porém, de um trajeto linear fácil. Tanto na Europa quanto no
Brasil, a resposta social aos modelos familiares gays e lésbicos mantém a
ficção televisiva em um estado de certa tensão, ainda que seja um espaço de
liberdade individual que será cada vez mais normalizado. Cabe destacar que,
dentro desta normalização, homens e mulheres homossexuais ainda não são
igualmente tratados, o que faz com que a ficção televisiva tenha outro campo de
trabalho em prol da igualdade deste coletivo, no contexto de suas
representações familiares.
A prática narrativa e as especificidades verificadas em Hospital
Centralconstituem uma base para analisar a mudança social inserida na ficção,
concretamente no conteúdo narrativo sobre a família homoparental na televisão,
também presente no contexto brasileiro. E ratificam o potencial investigativo
de um inovador campo acadêmico a que começamos a dar vida: a família
homoparental na ficção televisiva. Um estudo como este traz a reflexão acerca
dos novos valores nas relações afetivo-amorosas que emergem na
contemporaneidade e debate, assim, sobre a disseminação desses valores e seus
modelos nas narrativas televisivas, em direção a uma sociedade diversificada,
mas democrática (Mesquita,_2012). Conforme identificamos na pesquisa,
especialmente a partir dos questionários virtuais de coletivos homossexuais do
Brasil e da Espanha, a falta de protagonismo da família homoparental e suas
especificidades, tanto na televisão, de forma geral, quanto no universo
acadêmico, no nosso ponto de vista, transformam o tema em um segredo por
revelar, uma verdade a compartilhar, e que, por isso, motivou esta pesquisa,
podendo, com sorte, motivar outras.
Com isso, a expectativa aqui é a de que o delineamento de um campo de
investigação tão instigante quanto inovador possa servir de antecedente ao
desenho de iniciativas culturais de produção das cadeias televisivas,
sintonizadas ao contexto da contemporaneidade, a fim de revitalizar o vínculo
social como função primordial da televisão contemporânea.