Fazendo Eleitores e Eleições: Mobilização Política e Democracia no Brasil Pós-
Estado Novo
Em 1953, discursando na Câmara dos Deputados, Guilhermino de Oliveira, do
Partido Democrático Social de Minas Gerais (PDS-MG) afirma: "somos eleitos por
eleitores que fazemos com o maior sacrifício". Para o deputado, só poderiam
contestar sua afirmação aqueles que "nunca fizeram eleições nem
eleitoresenadaco-nhecem do que se passa no interior do país, como se faz
qualificações ou como se processam as eleições" (Diário do Congresso
Nacional,19/12/1953:5795, ênfases minhas).
Fazer eleitores era alistá-los, isto é, torná-los aptos a tomar parte do
processo eleitoral. Políticos faziam eleitores porque sabiam como as criaturas
a que davam vida viriam a votar. Para tanto, deviam incorrer em doses extras de
"sacrifícios", custeando o transporte e fornecendo as cédulas com as escolhas
devidamente impressas a serem depositadas nas urnas. Assim, políticos podiam
estar certos de que eram eleitos pelos eleitores que haviam feito e que,
consequentemente, fazer eleitores era apenas o passo inicial para "fazer a
eleição". Participar de eleições, portanto, está longe de ser uma decisão
voluntária. Participavam os eleitores feitos, mobilizados por terceiros.
A se crer neste depoimento, referendado, como veremos ao longo deste artigo,
pela crônica política e por outros tantos parlamentares, as práticas eleitorais
da Primeira República (1889-1930) e da Terceira República (1945-1964) não
seriam muito diversas. As eleições de 1945, contudo, marcaram uma ruptura
fundamental na história política do país. A queda do Estado Novo marca o início
de nossa primeira experiência democrática, rompendo com uma experiência que se
estendera por mais de cem anos em que eleições eram controladas pelo governo.
Governantes passaram a sofrer derrotas eleitorais. Dito de forma inversa:
oposições passaram a ter chances reais de chegar ao poder.
Práticas eleitorais foram preservadas, mas as eleições ganharam novo caráter,
passando a ser competitivas. À primeira vista, estas duas proposições não
poderiam ser conciliadas. Em geral, assume-se que "a liberdade do voto" é a
condição necessária para a emergência de eleições competitivas. Em artigo
anterior (Limongi,_2012), mostrei que o controle sobre o eleitor não é
suficiente para eliminar a competição eleitoral. Neste artigo, sugiro que a
independência dos eleitores não é condição necessária para a emergência de
eleições competitivas.
Para usar os termos de Cox_(2005), eleições competitivas não exigem que
partidos se dediquem à persuasão dos eleitores1.Competição pode ocorrer mesmo
quando políticos fazem eleitores e sabem de antemão que serão eleitos por
aqueles que fizeram. O eleitor vota de acordo com a vontade daquele que lhe
providenciou o título, transportou e lhe forneceu as cédulas previamente
preenchidas. Pode haver certeza quanto aos votos individuais e incerteza quanto
aos resultados.
Há competição quando diferentes partidos lutam para fazer mais eleitores que os
demais e são capazes de fazer com que seus eleitores votem. Nesta situação,
partidos competem por eleitores, e não por votos. Para que haja competição é
necessário que mais de um partido possa conduzir "magotes de eleitores" às
urnas "como quem toca tropa de burros" (Leal,_1993:43). Para retornar à
terminologia deCox_(2005), mobilização é a atividade essencial para a
ocorrência de eleições competitivas. Políticos são sempre eleitos pelos
eleitores que fazem. Muda apenas a forma como eleitores são feitos.
O artigo está organizado da seguinte forma: além desta introdução, a segunda
seção reconstitui a queda do Estado Novo, frisando a importância da perda de
controle do governo sobre o processo eleitoral que desencadeara e a
consequência deste fato para a formação e composição dos partidos políticos. A
terceira relaciona a legislação à mobilização eleitoral que, como procuro
mostrar, não se resume ao alistamentoex-officio.Chamo a atenção para a
definição ambígua das fronteiras da cidadania política e para as possibilidades
abertas para o alistamento coletivo feito por terceiros. A quarta seção procura
caracterizar as práticas eleitorais vigentes. Indico que, para os políticos, as
atividades eleitorais fundamentais eram o alistamento (fazer eleitores), o
transporte e a distribuição de cédulas (fazer as eleições). A última seção
extrai as consequências do discutido para o entendimento da emergência de
eleições competitivas.
A TRANSIÇÃO À DEMOCRACIA
Em sua análise seminal sobre a transição de 1945, Maria do Carmo Campello de
Souza_(1990) realça as continuidades entre o Estado Novo eoregime democrático
nascente. A ênfase no controle e na influência de Vargas sobre a eleição e seu
resultado faz com que a autora minimize as consequências da queda do Estado
Novo. Afinal, se Vargas tinha tamanho controle sobre a transição, por que foi
deposto? Ao realçar a continuidade, a análise perde de vista a ruptura
ocorrida, minimizando as incertezas do processo eleitoral. O fato é que se
continuidade houve, esta só foi assegurada após conhecido o resultado das
eleições.
Sabemos hoje, graças ao trabalho de Ângela Castro Gomes_(2005), que o governo
perdeu o controle sobre o processo que deslanchara. Se bem-sucedido, aí sim as
eleições seriam mera fachada. Como demonstra esta autora, o projeto inicial de
Vargas era o de obter um novo mandato presidencial por meio de uma eleição não
competitiva. O governo tinha de fato um plano, chamadoPlano B,como nomeado nos
documentos secretos de Vargas depositados no Centro de Pesquisa e Documentação
de História Contemporânea do Brasil (CPDOC).
O controle sobre o processo de alistamento, a ser feito com base nos sindicatos
oficiais, incluindo sindicatos rurais, era a peça central da estratégia do
governo. A essência desta estratégia era, em realidade, uma atualização da
máxima enunciada por Belisário Soares de Souza quase cem anosantes: "feitauma
boa qualificação, está quase decidida a eleição" (1979:27). Desde a aprovação
da Lei Saraiva, em 1881, a qualificação dos eleitores passou a ser fortemente
controlada. Mais do que as restrições legais de renda e de educação, os
controles formais (documentação exigida) passaram a funcionar como um filtro a
restringir a participação política2.
Compor adequadamente o eleitorado pede a neutralização dos esforços dos
adversários. Por isto mesmo, no caso do PlanoB,previa-se que o alistamento e a
eleição deveriam ser feitos rapidamente, impedindo assim a reorganização
política das velhas oligarquias, cuja força eleitoral, de acordo com este
documento, se basearia "nos serviços de alistamento de um eleitorado mais ou
menos pessoal. Era esta a hierarquia: o eleitor ligado ao cabo eleitoral que o
alistava; o cabo submetido aos chefes municipais - vereadores, prefeitos,
fazendeiros - e estes obe-dientesaum doschefesestaduais conforme
azonadeinfluência"3.
O Plano B,elaborado pelo ministro da Justiça e do Trabalho, Marcondes Filho,
não contou com apoio unânime de lideranças ligadas a Vargas e ao Estado Novo.
Como observa Ângela Castro Gomes_(2005:276), referindo-se especificamente às
movimentações e intenções de Oswaldo Aranha, candidato a suceder Vargas, não
eram pequenas as divisões no interior das elites governamentais. Como se sabe
(Dulles,_1967:269), as pretensões presidenciais de Aranha foram obstadas de
forma clara pelo empastelamento da Sociedade Amigos da América,ação em queo
general Eurico Gaspar Dutra desempenhou papel de destaque.
Obviamente, o brigadeiro Eduardo Gomes não poderia receber o mesmo tratamento,
posto que, como observa Ângela Castro Gomes (2005:276), sua candidatura "tinha
certamente origens militares e provavelmente contava com a indulgência dos
americanos". A cartada certeira do grupo mais próximo aos Estados Unidos coloca
Vargas e seu círculo íntimo na defensiva. Agamenon Magalhães assume o
Ministério da Justiça (desmembrado do Ministério do Trabalho) e passa a ser o
principal responsável por traçar a estratégia política do governo. O lançamento
da candidatura do general Eurico Gaspar Dutra é parte desta estratégia, visando
dividir as Forças Armadas, impedindo assim que estas convergissem para uma
candidatura única. Vale ressaltar: o governo não escolhe seu próprio candidato.
Lançar Dutra foi a alterna tiva para ganhar tempo4.
Agamenon Magalhães, portanto, improvisa um Plano C.Aguinada, contudo, não
significou o abandono completo da alternativa coordenada por Marcondes Filho.
Conforme afirma Ângela Castro Gomes_(2005:282):
No início de 1945 se estabeleceu a hipótese de que as forças ligadas
a Vargas se mobilizassem em duas, e não apenas em uma organização
partidária [...]. O PTB, neste sentido, nasceu ao mesmo tempo que o
PSD,já que ambos resultaram da frustração do projeto de partido único
de massas que vinha sendo acalentado pelo Estado Novo.
Ainda que tenha sido assim, as diferenças entre as duas alternativas e a
relação de Vargas com cada uma delas é evidente. Vargas não abraça ou encampa
com entusiasmo a candidatura Dutra. Este, de sua parte, nunca deixa de
desconfiar das intenções continuístas do ditador, expressas em sua conivência
com oQueremismo.
Dentro da estratégia desenhada por Agamenon Magalhães, o Partido Social
Democrata (PSD) ganha autonomia e vida própria, escapando ao controle direto de
Vargas. Os interventores preparam-se para vencer a eleição e assumir o controle
sobre a política em seus estados (Hippolito,_1985:119)5.Emboa medida, recorrem
às velhas práticas políticas que o Plano Bqueria sepultar. De outra parte, as
relações entre PSD e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) estão longe de
correr por trilhos paralelos e complementares como pretende o folclore político
que atribui à astúcia e maquiavelismo do velho ditador a criação dos dois
partidos. Nada mais significativo neste sentido do que a admoestação de
Agamenon Magalhães a Segadas Vianna: "Quem chegar em Pernambuco falando em PTB
eu baixo o pau" (Gomes,_2005:283).
OPTB (ibidem:289;Delgado,_1989:62) não apoia a candidatura Dutra de forma
imediata. Quando o faz, a decisão não é unânime ou automática. Opta-se, ao
final, pelo mal menor, e somente após obter concessões significativas.
Se é verdade que Vargas inventa o trabalhismo (Gomes,_2005), não parece ser
menos verdadeiro que ele não dispensa o mesmo zelo e recursos para criar e
preparar o PTB para a disputa eleitoral que se aproximava. O ditador nunca
abandonou sua opção pela continuidade, pelo adiamento das eleições, cuja
expressão política foi o movimento queremista.
Os resultados eleitorais colhidos pelo PTB em 1945 apontam para o improviso e a
alta dependência do partido para com o prestígio pessoal do ditador deposto.
Enquanto UDN (União Democrática Nacional) e PSD lançam candidatos em todos os
estados, o PTB marca presença apenas em 14 das 22 unidades da Federação. O dado
é mais significativo quando se leva em consideração que o Partido Comunista
Brasileiro (PCB), por seu turno, apresenta candidatos em todos os estados. Além
disto, a votação pessoal de Vargas representa algo como 50% da votação do PTB
para a Câmara dos Deputados6. Dos oito estados em que o partido obtém
representação, somente em um deles (Amazonas), Ge-túlio não encabeça a lista.
Em todos estes sete estados o partido não ultrapassaria o quociente eleitoral
sem a votação pessoal de Vargas. Em boa parte destes, a votação de Vargas é dez
vezes maior que a do segundo mais votado da lista apresentada pelo PTB.
A recomposição das forças políticas ao final do Estado Novo segue o padrão
observado usualmente em quedas de regimes autoritários (Przeworski, 1991:54).
Questões de encaminhamento, em especial as relativas à forma de assegurar a
sobrevivência política dos de dentro são tão ou mais importantes que as
desavenças substantivas e ideológicas. Quebrada a unidade em torno da
preservação e continuidade do regime, as forças políticas se recompõem
rapidamente.
Fundamental para o entendimento da queda do Estado Novo e suas consequências é
ter claro que as divisões no interior do próprio regime impulsionaram o
processo. Estas divisões foram profundas. As Forças Armadas se dividem. Não é
irrelevante que as duas principais candidaturas tenham tido origem militar.
A cisão no interior das elites civis não é menor. Vale observar que boa parte
dos que tramam a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes e participaram da
fundação da UDN haviam mantido boas relações com Vargas e, mesmo, com o Estado
Novo7. Alternativas à estratégia desenhada por Marcondes Filho foram gestadas
no interior do regime, incluindo a candidatura Oswaldo Aranha, cuja proximidade
com os Estados Unidos é conhecida. Assim, é possível traçar uma linha que liga
as pretensões presidenciais de Oswaldo Aranha à criação da UDN8. As divisões
não foram menos relevantes entre os que permaneceram sob a órbita de Vargas.
PSD e PTB, para não falar no Queremismo,têm bases de apoio e foram regidos por
lógicas políticas diversas. O importante é ressaltar que tanto o PSD quanto a
candidatura Dutra ganharam autonomia em relação ao projeto pessoal de Vargas,
que nunca abandonou o projeto continuísta.
Ao longo de 1945, o governo não recupera sua unidade. Ainda que mantenha a
iniciativa e tenha controle sobre a elaboração da legislação eleitoral,
manipulando-a a seu favor, atuou sob fortes restrições, impostas tanto pela
força da oposição quanto por sua incapacidade de superar suas divisões
internas. A Lei Agamenon foi uma pálida imagem do Plano B.
O desfecho do processo, a deposição de Vargas, indica os limites da influência
e controle do ditador e seu círculo íntimo sobre a transição. As Forças Armadas
se unem para depor Getúlio e garantir a eleição, adotando a fórmula defendida
pela UDN, isto é, a transferência do poder para o Judiciário, mais
precisamente, ao presidente do Supremo Tribunal Federal, José Linhares.
Victor Nunes Leal_(1993:237), após revisar a história político-eleitoral do
Brasil desde a independência, enfatiza as características "excepcionais em
nossa história política" da eleição de 1945, uma vez que estas teriam sido
marcadas pela "isenção de ânimos dos governantes na direção da eleição"9.
A neutralidade do governo José Linhares é o resultado do processo descrito
anteriormente. Tendo concordado em depor Vargas, eliminada a alternativa
continuísta, Dutra e Gomes tinham que optar entre a guerra civil e a disputa
eleitoral. Escolheram a segunda alternativa10.
A LEGISLAÇÃO ELEITORAL E A MOBILIZAÇÃO DE ELEITORES
O alistamento ex-officiopode ser visto como o que a Lei Agamenon preservou do
Plano B(Gomes,_2005:280). Na interpretação de Maria do Carmo Campello de Souza_
(1990:121), o recurso a este expediente teria conferido à eleição de 1945,
"senão um caráter de fraude oficializada, pelo menos um viés considerável".
Neste ponto em realidade, a autora faz eco às denúncias de setores da UDN que
creditaram sua derrota ao controle exercido pelo governo sobre o processo de
alistamento dos eleitores, em especial dos trabalhadores urbanos11.
De fato, o pleito de dezembro de 1945 foi precedido por forte mobilização
eleitoral, mas este processo não se resumiu ao alistamento promovido pelo
Estado, tampouco se concentrou nos centros urbanos. Em menos de seis meses, se
tomarmos a promulgação da Lei Agamenon (28/5/1945) como o ponto de partida,
pouco mais de 7,4 milhões de eleitores foram alistados, o que representava 16%
da população em idade de votar. O contraste com a participação nas eleições
anteriores é significativo. Nas eleições presidenciais de 1930, o eleitorado
inscrito não alcançara 2,5 milhões ou 5,7% da população adulta12.
Parte deste crescimento pode ser creditada às mudanças legais, como a
diminuição da idade legal para votar e a extensão do direito de voto às
mulheres. Contudo, menos que a relação com a população total ou mesmo com a
adulta, o que deve ser frisado é o número absoluto de eleitores alistados em
tão pouco tempo. O esforço para mobilizar eleitores foi enorme.
Conforme recorda Amaral Peixoto, a estratégia seguida pelos políticos "era
fazer o alistamento eleitoral em massa... Se fossem levar eleitor por eleitor,
não teriam a base que conseguiram. Uma eleição que se fazia em Niterói com 10
mil eleitores passou a ser feita com 100 mil" (apudNicolau,_2012:95).
Contudo, não se deve assumir que o alistamento ex-officioeraaúnica alternativa
à disposição dos partidos e dos políticos interessados em incorporar eleitores
ao processo eleitoral. Tampouco se deve pensar que este esforço mobilizador
tenha se concentrado ou se dado majori-tariamente nas áreas urbanas.
A Lei Agamenon previa duas modalidades de alistamento, o ex-officioe o por
requerimento. A contraposição entre estasduasalternativasleva a crer que a
segunda se daria de forma voluntária e individual. Além disso, as denúncias da
UDN associam a ação do Estado ao alistamento fraudulento de analfabetos e de
estrangeiros. No entanto, tais suposições não contam toda a história. Em
primeiro lugar, deve-se notar que a Lei Agamenon era suficientemente ambígua
para permitir que os requerimentos para alistamento fossem apresentados por
terceiros em favordegruposdeeleitores13.
A Tabela1mostraque opesodoalistamento ex-officiosobre a composição do
eleitorado é bem menor do que a estridência das reclamações da UDN faz supor:
não mais que um quarto do eleitorado fora alistado desta forma. Ainda que não
tenha sido desprezível, não se pode dizer que esta forma de alistamento
preponderou. Sobretudo, está longe de ser fundamental no interior, onde se
concentrava a maior parte do eleitorado.
Por sua vez, a Tabela_2 traz estatísticas publicadas pelo Superior Tribunal
Eleitoral (TSE) que indicam que o contingente de eleitores alistados em 1945
tangenciou o eleitorado potencial em uma série de estados. Considerando os
dados agregados para o Brasil, vê-se que 8 em 10 eleitores potenciais foram
inscritos. Ainda que haja considerável variação por estados, parece evidente
que o esforço de mobilização foi enorme. A maioria dos que reuniam condições
para votar foi alistada.
Tabela 2 Eleitorado Alistado e Potencial por Estado (1945)
Estado Eleitorado (a) Potencial (b) (a)/(b) (%)
AM 31.948 101.071 31,6
PA 159.395 244.197 65,3
MA 109.101 163.704 66,6
PI 132.455 96.755 136,9
CE 369.550 335.206 110,2
RN 131.560 130.388 100,9
PB 175.634 187.409 93,7
PE 321.736 434.515 74,0
AL 82.068 115.983 70,8
SE 97.089 87.737 110,7
BA 440.621 620.140 71,1
ES 122.281 174.570 70,0
RJ 383.100 471.358 81,3
SP 1.688.598 1.899.241 88,9
PR 229.672 294.068 78,1
SC 248.086 306.756 80,9
RS 753.232 1.062.770 70,9
MG 1.231.251 1.392.885 88,4
GO 103.079 119.603 86,2
MT 59.121 102.854 57,5
DF 549.353 825.315 66,6
Brasil 7.418.930 9.166.525 80,9
Fonte: Tribunal Superior Eleitoral, Dados Estatísticos.
Os dados revelam que este esforço não foi uniforme, sendo maior em alguns
estados do que em outros. Contudo, o fato mais relevante destes dados é que em
alguns estados, especificamente no Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte e Sergipe,
o número de alistados excedeu o legalmente possível. Nestes, de acordo com as
estimativas do próprio TSE, eleitores sem a qualificação necessária, a
alfabetização, teriam sido alistados de forma ilegal. Não é preciso conhecer
profundamente a estrutura social brasileira para notar que estes não são
estados nos quais predomina a urbanização e/ou há concentração de estrangeiros.
Ou seja, se houve fraude no alistamento, esta não se concentrou nas áreas
urbanas e/ou foi levada a cabo recorrendo exclusivamente ao alistamento ex-
officio.Basta voltar à Tabela_1 para verificar que, exceto para o Piauí, onde
não há dados, nestes estados o alistamento por requerimento predomina sobre
oex-officioe o eleitorado do interior sobre o da capital.
Tabela 1 Alistamento em 1945 por Modalidade e Statusdo Município
Unidade da Capital (%) Interior (%)
Federação ============================ ============================ Total
Ex-officio Requerimento Ex-officio Requerimento
AM 22,5 31,6 4,5 41,4 31.948
PA 13,8 27,0 3,7 55,6 159.395
MA 7,9 7,8 3,9 80,4 109.101
PI - - - - -
CE 4,8 9,2 3,4 82,5 369.550
RN 2,9 10,3 5,9 81,0 131.560
PB 4,4 6,5 5,3 83,9 175.634
PE 13,9 13,2 7,2 65,7 321.736
AL 11,0 13,4 11,6 64,0 82.068
SE 9,2 10,2 6,1 74,5 97.089
BA 7,4 11,7 9,9 71,0 440.621
ES 6,8 9,8 8,3 75,1 122.281
RJ 6,3 6,2 25,4 62,1 383.100
SP 18,3 20,4 14,7 46,5 1.688.598
PR 10,7 11,5 10,9 66,9 229.672
SC 2,2 4,5 17,2 76,1 248.086
RS 7,4 8,0 13,6 71,0 753.232
MG 2,9 4,5 11,7 80,9 1.231.251
GO 2,3 7,0 5,1 85,6 103.079
MT 4,0 16,4 11,7 67,9 59.121
DF 54,1 45,9 0,0 0,0 549.353
Total 12,7 14,3 11,1 62,0 7.286.475
Fonte: Tribunal Superior Eleitoral, Dados Estatísticos.
Nota: Não há dados para o Piauí.
Contudo, deve ser notado que ao apresentar os dados contidos na Tabela_2, o TSE
não explicita os critérios utilizados para definir o eleitorado potencial. Em
realidade, atendo-se à letra da Lei, o Tribunal não teria como fazê-lo. A Lei
Agamenon, como de resto toda a legislação eleitoral republicana até então,
negava o direito de voto aos analfabetos sem estabelecer os critérios a serem
seguidos para aplicar a proibição estipulada14. Significativamente, não há
menção a documentos ou qualquer outro tipo de comprovação que deveriam ser
fornecidos para comprovar a qualificação requerida.
Implicitamente, sabia ler e escrever quem assim afirmasse. No máximo, a prova
seria dada pela capacidade de assinar os requerimentos e o próprio título.
Contudo, como boa parte desta tarefa poderia ser feita por terceiros, a
exigência, na prática, não era um obstáculo difícil de ser transposto15.
Assim, taxas de alistamento superiores a 100% do eleitorado potencial não
necessariamente indicam alistamento fraudulento. Indicam, isto sim, que as
fronteiras da cidadania política eram fluidas e indefini-das16. Foram assim
durante todo o período republicano. Dito de outra forma: as fronteiras da
cidadania não podem ser inferidas diretamente das definições constitucionais ou
da legislação.
Ocontraste entre a baixa participação política na Primeira República e a forte
mobilização que caracteriza o início da Terceira República não pode ser
explicado, quer pelas fronteiras formais da cidadania, quer por possíveis
mudanças na estrutura social.
Não há dados que discriminem os eleitores alistados por local de residência.
Contudo, a estrutura social do país permite supor que a maior parte do
eleitorado continuava a residir no campo e a se dedicar a atividades primárias.
Os dados apresentados e analisados por Kinzo_(1980:90) permitem concluir que,
deste ponto de vista, o Brasil não mudara muito ao longo dos 15 anos do governo
Vargas. Conforme nota esta autora, em 1920, para cada trabalhador no setor
secundário havia 6,56 empregadas no setor primário. Esta relação caiu para 5,82
em 1940 e para 4,22 em 1950. Quanto ao local de residência, apoiando-se no
trabalho de Vilmar Faria, Kinzo_(1980:91) mostra que a porcentagem da população
urbana brasileira seria de 16,6%, em 1920,15,1%, em 1940, e 19,9%, em 195017.
Deve-se notar ainda que, como mostra Kang_(2010:57), as mudanças no perfil
educacional da população brasileira ao longo dos 15 anos de governo de Vargas
não foram significativas. Pelos dados compilados por este autor, a porcentagem
da população acima de 5 anos de idade e alfabetizada era de 24,5%, em 1920. Em
1940 esta proporção subira para 38,2% e chega a 42,7%, em 1950.
As transformações estruturais da sociedade brasileira não são suficientes para
dar conta do contraste entre o baixo e o alto grau de mobilização eleitoral
verificados na Primeira e na Terceira República. Como veremos adiante, a
despeito do voto secreto, as práticas eleitorais tampouco sofreram alterações
profundas. Modernização e/ou a Justiça Eleitoral não explicam a emergência da
competição eleitoral. A diferença crucial está na legislação, na diminuição do
controle sobre o processo de alistamento de eleitores18. Paradoxalmente, o
alistamento ex-officio,previsto no Código Eleitoral de 1932, faz parte de uma
série de medidas visando simplificar os requisitos formais exigidos para a
inscrição de eleitores19. O objetivo destas reformas era retirar do governo e/
ou seus representantes locais os meios para impedir que as oposições alistassem
eleitores.
Voltando à mobilização ocorrida em 1945, parece apenas razoável supor que os
dois principais partidos envolvidos na disputa, PSD e UDN, tenham recorrido aos
meios condenados pelo PlanoB.Cadaumbuscou usar dos meios à sua disposição para
filiar o maior número de adeptos e, desta forma, vencer as eleições. As
incertezas quanto aos resultados do pleito alimentaram a mobilização de
eleitores, alistados em massa nas cidades e no campo. A condição para o
deslanche desta competição é a cisão no interior da elite política, e a
manifestação prática desta cisão é que ambas as partes, governo e oposição,
tenham como fazer seus eleitores.
O eleitorado do PSD, com certeza, não se resumiu a eleitores alistados pelos
sindicatos e órgãos públicos20, tampouco se poderia supor que a UDN contou com
o apoio apenas de eleitores que tenham se inscrito de forma voluntária. Em boa
medida, restaurou-se o que oPlano Bpretendia erradicar; as práticas políticas
das velhas máquinas oligárquicas foram reativadas pelas elites políticas
acomodadas tanto no PSD quanto na UDN. Contudo, estas práticas se desenrolam
sob um marco legal em que grupos políticos locais perdem a capacidade de
controlar a formação do corpo eleitoral.
A aprovação do Código Eleitoral de 1950 não significou alteração radical do
quadro legal instaurado pela Lei Agamenon. O Código, é certo, atende as
principais demandas UDN, revogando as medidas que, na visão do partido, haviam
beneficiado o PSD e, de forma mais geral, o varguismo. O alistamento ex-
officioé abolido21, candidaturas múltiplas vedadas e o método D'Hondt passa a
regular a distribuição de sobras nas eleições proporcionais.
Mais importante, contudo, é o que o novo marco legal preservou a indefinição
das fronteiras da cidadania política e os baixos custos formais para alistar
eleitores. O Código não estipulou quais provas ou documentos deveriam ser
apresentados para comprovar que o alistando sabia ler e escrever22. Mais do que
isto, a possibilidade do alistamento feito por terceiros e de forma coletiva
foi preservada. O art. 37 do Código previa explicitamente que os títulos
poderiam ser entregues ao procurador do eleitor, isto é, ao chefe político que
havia "feito o eleitor". O detalhe não é insignificante, uma vez que isto
indicava que os responsáveis por fazer eleitores poderiam reter os títulos em
suas mãos. Os custos formais e as práticas envolvidas foram preservados.
Em última análise, as indefinições e ambiguidades do Código tornavam letra-
morta a restrição do voto aos analfabetos. Ao longo da tramitação do Código
esta questão não é levantada quer pelo PSD, quer pela UDN. Vale frisar que à
época da aprovação do Código os dois partidos se encontravam coligados (Leal,
1993; Amorim_Neto,_1995;Figueiredo,_2007).
Os dois partidos, portanto, quando aprovam o novo Código, concordam que
continuariam a "fazer eleitores" aproveitando-se das ambiguidades e brechas
deixadas pela legislação. Em virtude dos desdobramentos posteriores, o ponto
talvez peça ênfase. Ao participar da aprovação do Código de 1950, a UDN não
empunha a bandeira da moralização das práticas políticas. Isto seria feito no
futuro, em outro momento, quando o partido altera a sua estratégia política. Em
1950, a UDN e o PSD concordam em manter e explorar as ambiguidades das
fronteiras da cidadania política que traçam.
Deste modo, o processo de mobilização eleitoral iniciado em 1945 se estendeu à
eleição de 1950, quando o número de eleitores registrados alcança a marca de
11,4 milhões, registrando, assim, um crescimento de 53,5% em menos de cinco
anos. Boa parte deste crescimento se concentra no ano que antecede as novas
eleições gerais. Em 1949, o eleitorado registrado era composto por 8,7 milhões
de eleitores. Em um único ano, portanto, precisamente no que antecede a eleição
geral, ocorreu um crescimento de 30% no total de eleitores inscritos23.
Estatísticas publicadas pelo TSE permitem caracterizar o processo em curso. A
Figura_1 mostra claramente que a maioria dos novos eleitores foi alistada meses
antes da eleição. O alistamento, portanto, não seguiu padrão esperado tivesse
ele ocorrido de forma voluntária e individual, com os eleitores se alistando
quando alcançavam a idade legal para votar. Antes das eleições, políticos
redobram seus esforços para "fazer eleitores". O TSE publica gráficos como este
para estados específicos e para eleições estaduais e municipais. Anorma é a
mesma: picos de alistamento nos meses que antecedem eleições específicas. O
incremento do eleitorado, contudo, é bem mais pronunciado no ano que antecede a
eleição geral.
Figura 1
O intenso processo de mobilização eleitoral se estende até a eleição de 1955. O
clima político deste período, contudo, é outro. O acordo tácito entre o PSD e a
UDN em torno das fronteiras da cidadania política é rompido ao longo do governo
Vargas. AUDN passa a defender reformas moralizadoras da legislação eleitoral,
isto é, que aumentem as exigências e custos para incorporar eleitores e fazê-
los votar. Contudo, como o PSD derrota as primeiras reformas propostas pela
UDN, as eleições legislativas de 1954 são regidas pelo Código de 1950. Para as
eleições presidenciais de 1955, a UDN obtém uma importante concessão do PSD,
que acaba aceitando a adoção da cédula oficial naquela opor-tunidade24. No
entanto, as propostas específicas visando o recadastramento do eleitorado foram
derrotadas25. Por isto mesmo o eleitorado continuou a crescer de forma
acelerada, ultrapassando a marca dos 15 milhões nas eleições presidenciais de
1955. Em dez anos de democracia, oeleitoradodobra, enquanto a população cresce
por volta de 25%.
Em resumo, os anos iniciais da Terceira República são marcados por amplo
processo de mobilização eleitoral. Esta não se resume à entrada das camadas
urbanas na política sob a tutela do varguismo e dos sindicatos atrelados ao
Estado. Não há dúvidas que este processo ocorreu, mas não foi este o traço
preponderante do período. PSD e UDN, naquele momento, tinham suas bases
eleitorais no campo; a relativa permissividade da legislação eleitoral,
expressa nos baixos custos formais exigidos para alistar eleitores, permitiu
que agentes políticos se lançassem à tarefa de fazer eleitores.
ATIVIDADES ELEITORAIS E SEUS CUSTOS
Há uma extensa literatura tratando das práticas eleitorais no Império e na
Primeira República. Nestes trabalhos, em geral, ressalta-se a ausência das
condições institucionais e estruturais para a participação política regular. O
tema perde importância na literatura que discute o regime inaugurado em 1945.
Implicitamente, assume-se que os problemas experimentados ao longo de mais de
cem anos com eleições estariam resolvidos ou, no mínimo, em vias de sê-lo. Do
ponto de vista institucional, a criação da Justiça Eleitoral e a adoção do voto
secreto limitariam a influência que a violência e a fraude teriam tido até
então. No que se refere à estrutura social, a urbanização e a industrialização
do país diminuiriam o peso do eleitorado rural e dos controles tradicionais que
cerceavam a liberdade do voto.
Entretanto, do ponto de vista das práticas eleitorais, a ruptura entre a
Primeira e a Terceira Repúblicas não é grande, se é que ela existe. A adoção do
voto secreto não retira dos políticos a capacidade de controlar o comportamento
dos eleitores. A emergência da competição eleitoral se dá sem alterações
profundas na forma como eleitores eram levados a votar.
Os debates ocorridos ao longo da tramitação do Projeto de Lei no 870, de 1952,
apresentado pelo deputado Tarso Dutra (PSD-RS), evidenciam estes dois aspectos:
a continuidade e a ruptura verificados no período. Políticos descrevem de forma
cândida, inocente, como "faziam eleitores e as eleições", ao tempo que reagem
aos custos crescentes envolvidos neste processo26. O principal objetivo do
projeto era obter financiamento estatal, via criação de um Fundo Partidário a
ser incorporado ao Orçamento Geral da União, por meio do qual os partidos
seriam ressarcidos pelas suas despesas com alistamento, transporte e impressão
de cédulas27.
Saudando o projeto, o deputado Fernando Ferrari (PTB-RS) afirma:
O alistamento pelas leis vigentes, pelo sistema atual, face à lei
eleitoral, é, não há dúvida alguma, um ônus do Estado. Todavia, os
partidos políticos, todos, aqui e acolá, têm-se adiantado a esse
favor do Estado, fazendo eles mesmos o alistamento. Os partidos
políticos têm substituído o Estado nessa função, através, inclusive,
do proselitismo da busca do votante, da vinda dele ao escritório
eleitoral, do preenchimento do formulário diante do Juiz Eleitoral, e
assim por diante. São raros os eleitores neste país que se inscrevem
diretamente no Tribunal Eleitoral. Creio que não fujo à realidade se
afirmasse que 95 ou 96% do eleitorado brasileiro é inscrito através
dos órgãos partidários, com a cooperação destes que, como
procuradores legais, levam o requerimento a registro para o
competente processamento e despacho (DCN,junho de 1953:5504).
Obviamente, é impossível saber com precisão a proporção do eleitorado inscrito
pelos partidos. A estimativa feita por Ferrari pode conter exagero; contudo,
revela que se tratava de prática corrente, disseminada e, mais importante,
aceita. O alistamento individual e voluntário era a exceção. Anorma era o
alistamento feito pelo partido, cujos agentes se encarregavam de todos os
trâmites. Como observa Ferrari, cabia ao chefe político local "levar o
requerimento a registro para o competente processamento e despacho".
Os custos com alistamento e transporte eram vistos como um ônus, um serviço
prestado ao Estado pelos partidos. Veja-se, a título de exemplo, o depoimento
de Alberto Deodato (UDN-MG):
Eu fui presidente de um partido político, da UDN do Estado de Minas
Gerais, o qual tinha despesas como nunca imaginei fossem feitas. Não
são despesas para corrupção, não são despesas para comprar eleitores,
mas despesas que, beneficiando o Partido, beneficiam toda a
coletividade política. Por exemplo, fazer eleitor. Nenhum partido faz
eleitor para o seu partido, faz eleitor em massa. A despesa é enorme.
Em segundo lugar: o transporte no dia da
eleição,oqueélouvável,nãosópa-ra o Partido como para as eleições,
como também, para o próprio eleitor que se não tiver transporte
pagará a multa;a alimentação do eleitor durante o dia da eleição,
principalmente em Minas, onde as estradas são deficientes - tudo isso
são despesas obrigatórias dos Partidos políticos.
(DCN,23/6/1953:5390)
O deputado João Cabanas (PTB-SP)28,por seuturno,oferece umaboa descrição das
atividades envolvidas na distribuição de cédulas:
Nas eleições passadas, eu chegava muitas vezes num diretório com
minhas cédulas e pedia que fossem distribuídas. A distribuição,
porém, tinha de ser feita casando-se aquelas cédulas com outras para
Presidente e Vice-Presidente, Senador, para Deputado Federal,
Estadual, etc. Ora, esse serviço de casar 2.000, 3.000,10.000
cédulas, quem o faznão é o cabo eleitoral, mas uma equipe de pessoas,
10 moças ou 10 crianças, que trabalham durante dias. Essas pessoas
precisam de alimentos, de transporte e outras pequenas coisas. De
modo que as exigências feitas pelos cabos eleitorais é coisa humana,
natural, não pode sofrer crítica. (DCN,1/7/1953:5051)
O "casamento" das cédulas pedia investimento prévio: as mesmas tinham que ser
impressas e distribuídas. Todas estas despesas não seriam rentáveis se os
candidatos não tivessem certeza de que o seu investimento redundaria em votos.
Ou seja, era preciso garantir que as cédulas distribuídas fossem efetivamente
depositadas nas urnas, de onde o complemento necessário de toda esta estratégia
era o isolamento e a vigilância sobre o eleitor feito, omitida, por motivos
óbvios, dos discursos parlamentares29. Orlando Carvalho_(1946:152), discorrendo
sobre as práticas eleitorais da eleição de 1945, oferece uma descrição desta
parte essencial do processo:
O princípio a que obedece toda a técnica é o de preservar o roceiro
de qualquer contato com os cabos eleitorais adversários, porque - é a
triste verdade - ele geralmente vota com a última cédula que lhe é
posta na mão. Para obter este isolamento, sem transformá-lo em
prisão, os chefes da cidade e dos distritos, organizam os
tradicionais "quartéis", [...] um prédio amplo [...] no qual os
eleitores possam abrigar-se durante a noite, encontrando aí
alimentação e diversão. [...] Do quartel, os eleitores da roça saem
para votar, em grupos pequenos, guardados à vista por gente de
confiança, disposta e armada, que impedirá a comunicação com
elementos suspeitos30.
Fazer eleitores para fazer eleições era uma prática disseminada a que recorriam
políticos de todos os matizes. Afonso Arinos de Melo Franco, por exemplo, ao
rememorar a campanha de 1954, observa:
Ali pude ver o trabalho tremendo que é o preparo de um pleito
eleitoral no sertão. O alistamento, a assistência aos eleitores a
famílias, a prudente coragemde enfrentar a pressão dasautoridades
adversárias,sem falar das despesas com transporte, alimentação,
vestimentas e abrigo nos 'quartéis'" (1965:292).
Ao defender o Fundo Partidário, os políticos não questionam as práticas
vigentes. Despesas com o alistamento, transporte e abrigo nos quartéissão
tratadas como normais. Quando e sejustificadas, são apresen-
tadas como necessárias, um ônus, uma despesa que deveria caber ao Estado, mas
assumida pelos políticos para evitar o absenteísmo. Este longo trecho do
parecer da Comissão de Finanças ao projeto instituindo o Fundo Partidário é
esclarecedor:
O regime democrático está fundado em eleições periódicas, quando o
povo é chamado a escolher seus dirigentes e representantes. A União
tem a seu cargo as despesas dessas funções. Consistem na manutenção
da Justiça Eleitoral, aquisição de material e instalação de Mesas
receptoras de votos. Estas são as despesas mínimas. Outras, porém,
existem na realidade brasileira, que sempre estiveram a cargo dos
políticos ou dos partidos. São aquelas que, em um país de elevado
grau de civilização e de facilidade de transporte, podem ser feitas
pelo próprio eleitor. É o alistamento eleitoral, é o transporte do
eleitor para a sede da votação e a sua alimentação o dia da eleição
que constituem os encargos dos partidos, em quase todo o interior do
Brasil. São homens e mulheres do campo, de escalas e origens sociais
diversas, que se deslocam para as cidades, vilas ou povoados mais
próximos com o propósito de votar e que não dispondo de animais ou
outros meios de transporte e nem de recursos com que custeiem
alimentação fora de casa, sempre receberam uma e outra coisa dos
interessados no pleito. Secular o costume, não há força que o
revogue. (DCN,11/4/1953:2504)
O problema a ser sanado, portanto, não era os costumes seculares, pois estes
não seriam revogados mesmo com o emprego da força. O projeto solucionava um
problema de outra ordem, mais exequível e mais pragmático, passível de ser
moldado pela força da lei. O que se pretendia era atacar os custos envolvidos
nestas práticas, que a despeito de seculares, passavam por transformações. O
diagnóstico do parecer é claro: "Atingiu-se a um número de eleitores votantes
que ultrapassa de muito as possibilidades do abnegado chefe municipal. Passaram
os candidatos a cooperar nas despesas"(idem).
As despesas dos candidatos e dos partidos aumentam à medida que se veem
impelidos a "fazer" um número crescente de eleitores, recorrendo para tanto a
recursos de terceiros, perdendo, assim, a sua independência. A importância do
chefe político local também cresce ao mesmo tempoque passaaser disputadopor
candidatos. Como se lê no mesmo parecer:
Não poucas vezes o candidato afortunado domina as preferências dos
chefes municipais ou cabos eleitorais ligados a outro de pouco
recurso financeiro [...]. Passou a época em que os partidos podiam
escolher homens de real valor moral e intelectual, com que pudessem
compor bem a sua representação. Estaria isto certo, se eleitos fossem
os que tivessem real prestígio eleitoral. Porque este se adquire à
custa de serviços prestados à coletividade. Mas, também se estes não
podem financiar as despesas mínimas de suas eleições, correm o risco
da derrota. (DCN,11/4/1953:2504)
Partidos e candidatos teriam sido lançados em um verdadeiro redemoinho: a
competição por votos leva à competição pelos recursos usados para obter os
votos. Este processo traz consigo a erosão das relações tradicionais entre
políticos e chefes políticos locais. A competição pelos votos controlados pelos
chefes políticos locais mina o modelo hierárquico descrito no Plano
B.Cortejados por diferentes políticos carentes e necessitados de uma quantidade
cada vez maior de votos para se eleger, o poder de barganha do chefe político
local, do coronel descrito por Nunes Leal, cresce. Este não se vê mais impelido
a apoiar automaticamente a política dominante no Estado.
A proposta visando a criação do Fundo Partidário pode ser vista como uma
tentativa de reequilibrar as peças e as engrenagens sobre as quais se
assentavam as relações políticas tradicionais. Políticos apresentam-se como as
vítimas de um mundo em que o dinheiro passara a ser o principal trunfo. Ao
saudar o projeto instituindo o Fundo Partidário, Fernando Ferrari (PTB-RS)
afirma que o mesmo
traz no bojo principal da sua ideia o desejo de afastar dos partidos
políticos a influência do poder econômico, o desejo de tornar os
partidos não milionários, não poderosos economicamente, mas o
suficientemente fortes para se contraporem as arremetidas exteriores
deste ou daquele aventureiro que às vésperas dos pleitos eleitorais
avassala consciências, compra votos... (DCN,junho de 1953:5504).
Joel Presídio (PTB-BA) apoia medidas legislativas que tragam consigo
modificações moralizadoras e de caráter urgente, modificações que
impeçam a influência do poder econômico nos futuros pleitos,
modificações que cheguem talvez, pela energia, a violência contra
aqueles que se servirem do dinheiro para corromper consciências, para
comprar caboseleitorais,contraaqueles, enfim, que, por teremnascido
em berço de ouro ou enriquecido de um momento para outro, em negócios
escusos, se julgam com o direito de, às vésperas de um pleito,
candidatarem-se a cargos eletivos [...] comprando cadeiras e mandatos
como se compram ingressos nos circos de cavalinho.(DCN,26/8/1953:809,
ênfases minhas)
Políticos denunciam a importância cada vez maior que o dinheiro estaria
assumindo nas eleições. A necessidade de buscar recursos para financiar as
atividades tradicionais (alistar, transportar e distribuir cédulas) é vista
como uma fonte de corrupção. Idealiza-se um mundo em que os recursos
individuais dos políticos seriam suficientes para fazer eleitores e eleições. A
conclusão do parecer da Comissão de Finanças não poderia ser mais explícita
quanto a este ponto:
Dotados os partidos de recursos financeiros que bastem às despesas
mínimas de uma eleição, de certo poderão não ter forças para impedir
gastos perdulários de um candidato rico, mas terão para recusar-lhe a
legenda, porque já não dependerão de sua fortuna. Para os partidos e
homens de real prestígio na opinião pública é preciso apenas que
possam alistar e fazer comparecer o eleitorado. (DCN,11/4/1953:2504)
A essência das práticas eleitorais vigentes não é denunciada ou associada à
corrupção; alistar e fazer comparecer o eleitorado são práticas normais e
aceitas. Políticos são corrompidos, perdem sua independência quando precisam
recorrer a recursos de terceiros. Ou seja, o objetivo central do Fundo era tão
somente o de prover os partidos com recursos para que estes pudessem continuar
a fazer o que sempre haviam feito, isto é, eleitores e eleições.
CONCLUSÕES
Do ponto de vista das práticas eleitorais, pouco mudou entre a Primeira e a
Terceira Repúblicas. O voto secreto forçou adaptações, mas não alterou o
essencial: o controle sobre o comportamento dos eleitores. Transportar
eleitores implicava mais do que simplesmente providenciar o deslocamento às
seções eleitorais. Eleitores eram "aquartelados" nas sedes dos municípios em
que votavam. Era preciso ter garantias que compareceriam e, sobretudo, que
teriam em mãos as cédulas corretas. Aquartelar, portanto, significava isolar o
eleitor, impedir que este entrasse em contato com os cabos eleitorais dos
demais candidatos.
O voto secreto não impede que políticos controlem o voto dos eleitores que
alistam e levam a votar. Ainda assim, a despeito desta continuidade, há uma
diferença significativa em relação à Primeira República.
Eleições passam a ser competitivas. Para ser eleito, políticos têm que fazer um
grande número de eleitores. O crescimento do eleitorado é a evidência indireta
da incerteza quanto aos resultados das eleições.
A Primeira República caracteriza-se pela baixa participação. Defini-la como
oligárquica é simplesmente nomear o que precisa ser explicado. Entre 1894 e
1926, nas eleições presidenciais, a porcentagem de votantes sobre a população
variou entre 1,50% e 3,34%. Na eleição de 1930, os números apresentam uma forte
inflexão, alcançando 5% da população, ficando bem acima da norma anterior31.
A mobilização que antecede a eleição de 1930 aponta para a relação positiva
entre competição e mobilização eleitoral. O raciocínio é simples e imediato;
para vencer eleições é preciso fazer e trazer para votar um maior número de
eleitores. Tanto Júlio Prestes quanto Getúlio Vargas lançaram mão desta
estratégia. O resultado foi o crescimento da participação.
Prestes e Vargas, contudo, só puderam fazer eleitores nos estados em que eram
apoiados pelos respectivos governadores. Na eleição de 1945, PSD e UDN não se
deparam com a mesma restrição. Análise dos resultados desta eleição revela que
ambas as candidaturas puderam "fazer eleitores" em praticamente todos os
municípios do país, uma vez que são raras as localidades inteiramente dominadas
por um dos candidatos. Em apenas 10 dos 357 municípios para os quais há dados,
um dos candidatos recebeu mais do que 90% dos votos. Somente em40 municípios um
deles obteve votação superior a 80%. Na maioria dos municípios, como se vê,
ambos os candidatos foram capazes de marcar presença32.
Os políticos da Terceira República percebem e reagem à nova realidade em que se
movimentam. Os autores do parecer da Comissão de Finanças que apoia a criação
do Fundo Partidário notam de forma clara a diferença entre as duas realidades
quando afirmam que durante a Primeira República "os governos tinham certa a
vitória e as oposições a derrota" e por isto "funcionava plenamente a lei do
menor esforço" isto é, o "alistamento mínimo", e eram, "consequentemente, muito
pequenas as despesas com a realização de eleições" (DCN,11/4/1953: 2504). Já no
período iniciado em 1945, a realidade seria outra porque as oposições,
confiando no "legítimo resultado dos pleitos, passaram a tomar o mais vivo
interesse no alistamento eleitoral, obrigando o situa-
cionismoaagirdamesmaforma"(ibidem).
Não se poderia pedir caracterização melhor. A contraposição é clara. O
essencial, o elemento distintivo, é a incerteza quanto aos resultados
eleitorais. A divisão interna das elites políticas faz com que estas passem a
competir pelos votos controlados por diferentes chefes locais. E isto significa
que competem também pelos recursos empregados por estes para fazer eleitores.
Se tanto o governo quanto a oposição sabem com certeza que o primeiro vencerá
as eleições, ambas as partes não têm incentivos para mobilizar eleitores. O
alistamento mínimo é suficiente desde que a situação (o governo) tenha como
assegurar esta vantagem. Uma possível ameaça da oposição de mobilizar eleitores
e levá-los às urnas pode ser neutralizada. O controle sobre o alistamento é uma
condição necessária para que o governo tenha certeza da vitória.
Rachel de Queiroz, que serviu de mesária na eleição de 1945, oferece um
contraste tão vivo como eloquente das eleições dos dois períodos:
Não sei bem se o sentimento será de saudade; mas a verdade é que
eleição mudou muito. Recordo da eleição do tempo de dantes - tiro,
co-medorias, botinas de graça para os eleitores, cachaça a rodo, era
um carnaval. Votava vivo e votava morto, votava doido do hospício, só
não votavam nossos inimigos políticos(apudLeal,_1993:242).
Ocrucial é se os inimigos políticos poderão ou não votar. As demais
características dos eleitores, se doidos ou mesmo se mortos, são menos
relevantes. A lista poderia prosseguir: educação, renda, grau de consciência,
independência etc. Estas distinções não importam. Não são elas que discriminam
a característica efetivamente relevante. O que importa é a afinidade política
do eleitor, em quem ele votará. Dito de outra forma, a qualificação do eleitor
que efetivamente importa não é dada por sua capacidade, como quer que esta seja
medida, mas, sim, por sua inclinação partidária, por quem o fez eleitor e o
leva a votar, se os amigos ou os inimigos, se o governo ou a oposição.
Parafraseando Rachel de Queiroz, há competição quando votam os nossos amigos e
os nossos inimigos.