Home   |   Structure   |   Research   |   Resources   |   Members   |   Training   |   Activities   |   Contact

EN | PT

BrBRHUHu0011-52582015000400951

BrBRHUHu0011-52582015000400951

variedadeBr
ano2015
fonteScielo

O script do Java parece estar desligado, ou então houve um erro de comunicação. Ligue o script do Java para mais opções de representação.

Encontros Globais e Confrontos Culturais: O Pentecostalismo Brasileiro à Conquista da Europa INTRODUÇÃO O processo histórico de encurtamento das dimensões do espaço e do tempo promovido pelas novas tecnologias de transporte e comunicação, a que nos referimos quando falamos genericamente de globalização, levou a desenvolvimentos que requerem dois tipos de atenção intelectiva. O primeiro, de cunho teórico, envolve a criação de um aparato conceitual que capacite os analistas a identificar e interpretar movimentos globais. O segundo, de cunho empírico, consiste em rastrear fluxos de pessoas, informações e recursos que passam certas vezes ao largo de esferas institucionais do Estado ou de instituições centralizadoras. As interpretações acerca das relações entre religião e globalização ganharam, nas últimas décadas, espaço no campo das ciências sociais, e poderiam se beneficiar do emprego destas duas formas de atenção. Neste artigo analisamos fluxos de missionários brasileiros de Porto Alegre em direção à Europa. Seguindo imagens da ordem global (Robertson, 1996) construídas especialmente no mundo evangélico pentecostal, podemos estabelecer a versão dos atores para esse fluxo, que, em grande medida, está calcada na ideia de missão invertida.

A missão invertida (Freston,_2004, 2010), evangelização ao contrário (Mary, 2008), ou evangelização de retorno (Trombetta,_2013) constitui um importante objeto de interesse das ciências sociais que se ocupam da religião na atualidade. Isto porque se constata na vasta literatura sobre o tema a convergência de uma política de recristianização da Europa tanto por parte de igrejas pentecostais latino-americanas quanto africanas (ver os dossiês organizados por Capone,_2004; Cingolani_e_Gusman,_2013; Oro_et_al.,_2009; e também em livros publicados por Trombetta,_2013; Rocha_e_Vásquez,_2013; Argyriadis_et_al.,_2012; Oro,_Steil_e_Rickli,_2012;Pace_e_Butticci,_2010; Währish-Oblau,_2008; Spindler_e_Lenoble-Bart,_2000; Bastian,_Champion_e Rousselet,_2001). A missão invertida pode assim ser definida: aqueles que um dia foram objeto de missão, catequisados nas colônias, invertem o fluxo histórico, enviando missionários para as metrópoles, com a consigna de converter a seus cidadãos (Carranza_e_Mariz,_2013:29)1.

Paul Freston_(2010:155) chama a atenção para o fato de que a missão invertida não consiste somente numa inversão geográfica, sul-norte. Ela é também social, no sentido de que provém de baixo, invertendo as posições no mapa mundial, assemelhando-se à expansão do Cristianismo dos primeiros tempos. Seria, como destacam Ruiz e Michel, uma forma de revanche histórica do colonizado sobre o colonizador (2012:135, tradução livre).

Este artigo versa sobre quatro igrejas pentecostais de Porto Alegre que colocam em prática a política da reconquista espiritual da Europa. São elas: Igreja Batista Brasa, Igreja Assembleia de Deus, Igreja Maanaim e Igreja/Ministério Encontros de Fé2. Os países contemplados por estas igrejas são, sobretudo, Reino Unido, Portugal e Itália. Dois tópicos serão privilegiados na análise: em primeiro lugar, as estratégias postas em prática pelas igrejas para implementar a missão na Europa e os sentidos atribuídos a esta iniciativa; em segundo, as tensões enfrentadas pelos missionários brasileiros em suas experiências transnacionais na Europa. Ou seja, mostramos que paralelamente ou juntamente à comprovada e histórica capacidade pentecostal de adaptar-se às culturas locais ocorrem também tensões e embates que podem provocar desentendimentos e até mesmo conflitos.

Esclarecemos de saída que as quatro igrejas mencionadas operam na Europa adotando um modelo de atuação diferente daquele executado pelas grandes igrejas neopentecostais brasileiras implantadas no exterior, como Deus é Amor, Renascer em Cristo, Mundial do Poder de Deus, Internacional da Graça de Deus e, sobretudo, a Universal do Reino de Deus. Estas se internacionalizam abrindo filiais no exterior com o objetivo de conquistar fiéis no competitivo mercado religioso local. Para tanto, na medida do possível recorrem às mídias e a outras estratégias de marketingpara divulgarem os seus serviços e atraírem novos consumidores religiosos. Atuam como empresas multinacionais de salvação exclusivas, que competem entre si e com as igrejas locais, não mantendo com elas nenhuma relação ecumênica e obedecendo as orientações e diretrizes que emanam das matrizes que se encontram no Brasil. as igrejas sobre as quais nos ocupamos neste artigo operam transnacionalmente obedecendo a outra lógica: firmam parcerias com igrejas no exterior, onde predomina o associativismo, uma espécie de contrato interinstitucional que geralmente se beneficia de alianças nutridas por afinidades interpessoais3, o que não significa, como veremos, que as relações entre elas sejam harmônicas e pacíficas. Iniciamos, porém, tecendo algumas considerações sobre o conceito de transnacionalização, que privilegiamos neste estudo.

TRANSNACIONALIZAÇÃO E RELIGIÃO: UMA DISCUSSÃO CONCEITUAL Os fenômenos sociais caracterizados por atravessamentos de pessoas, informações ou recursos entre países foram reconhecidos, ao longo dos últimos anos, através de um conjunto de conceitos que demandam ser relacionados de alguma maneira.

Passamos a tecer considerações que visam situar nosso ponto de vista acerca desse campo conceitual4.

Globalização e transnacionalização não são, a nosso ver, conceitos excludentes.

Possuem, antes, uma relação hierárquica. As características essenciais do fenômeno (aquilo que Robertson chamava de compressão do espaço e do tempo promovida pelas novas tecnologias de informação) abarcam todos os aspectos, inclusive o que nominamos como transnacionais. A globalização, que entendemos como um processo civilizatório contemporâneo, oferece um horizonte de sentido, ou paisagem, dentro do qual os movimentos internacionais, transnacionais, diaspóricos ou globais fazem sentido para os atores. Resulta disso que globalização, como processo, envolve todos os demais conceitos.

Internacionalização refere-se a movimentos de organizações societárias que promovem produções de bens materiais ou imateriais irradiados e replicados a partir de um centro para os lugares de destino. Assim, as grandes corporações se internacionalizam baseados em lugares diferentes do globo: eles reterritorializam uma referência organizacional, produtiva ou cultural, central. Os movimentos ideais da internacionalização são os das grandes corporações do Norte ou aqueles dos Estados-nação, quando estabelecem embaixadas em países estrangeiros. O supranacionalismo de organismos como a Organização das Nações Unidas (ONU) não é nada mais do que uma variação deste tema.

Diáspora concerne, como tipo ideal, movimentos especialmente migratórios ou culturais nos quais uma comunidade étnica se integra longe de seu lugar de referência. A diferença da internacionalização reside exatamente no aspecto comunitário.

Globalização é tomada por muitos autores não como processo, mas também como fato objetivo da realidade. Aqui delimitamos a abordagem sociológica calcada nas ideias de desenvolvimento, hegemonia e desigualdade. Os autores são famosos (o mais emblemático seria Samuel Huntington) e o que os caracteriza ficou conhecido como nacionalismo metodológico. Assim como as sociologias dependem da análise de instituições, as análises calcadas no nacionalismo metodológico precisam de unidades de análise e comparação, que são países ou culturas (não raro tomados como sinônimos), ainda que os fluxos guardem referências de múltiplos lugares. Os fluxos observados, por isso, são sempre de escala macro, com ênfase nos processos de homogeneização cultural. Aspectos sutis dos encontros culturais e a cristalização dos imaginários mútuos sobre as culturas frequentemente são desconsiderados em face das macrotendências dos alinhamentos de poder em escalas mais amplas. A objetificação do conceito tende a tornar a globalização um processo histórico no qual uma cultura global dissemina-se como uma nova forma de senso comum5.

Transnacionalização diz respeito a processos de atravessamento de organizações societárias com respeito a fins, produções ou culturas caracterizados pela dispersão e adaptação ao local receptor.

Transnacionalização afasta-se da visão objetificada do conceito de globalização por dois motivos. Um deles se refere ao reconhecimento de fluxos anti-hegemônicos obliterados pela ênfase nas macrotendências; o outro ao papel dos sujeitos na análise, muito mais ativo. Devido a esses fatores, os trabalhos sobre transnacionalização enfatizam menos fluxos norte-sul do que aqueles centrados no conceito objetificado de globalização. Ulf Hannerz_(1996), por exemplo, propôs o conceito de transnacionalização ao invés de globalização6 para enfatizar o fluxo de indivíduos e de grupos, e não somente de empresas, na arena mundial. Alejandro Frigerio e outros estudiosos ampliaram o conceito. De fato, o antropólogo argentino considera a globalização como sendo uma transnacionalização pelo alto, posto que ela descreve os esforços das corporações multinacionais, da mídia e de outras elites sociais poderosas para estabelecer dominação política, econômica e social no mundo (Frigerio,_2013: 19). os fluxos religiosos transnacionais constituem uma transnacionalização por baixo, a qual, no dizer de Smith e Guarnizo, faz referência a esforços conscientes e bem-sucedidos da parte de pessoas comuns para escapar da dominação desde acima do capital e do Estado (1998:5; tradução livre; ênfase do original). Por isso mesmo, Capone_e_Mary_(2012:30; tradução livre), destacam a dimensão política da transnacionalização. Ela constitui um espaço político contra-hegemônico que desloca o jogo das discriminações impostas desde cima, constituindo um complemento ou o reverso da mundialização econômica e tecnológica.

Frigerio sublinha que a transnacionalização por baixo pode ocorrer de duas maneiras principais: (a) enquanto circulação ou fluxo de pessoas e/ou bens distintos de um país para outro, ou então (b) como o estabelecimento de um campo social formado por uma variedade de conexões que transcendem as fronteiras nacionais (Frigerio,_2013:17).

Em seu estudo sobre a expansão das religiões afro-brasileiras, sobretudo do Rio Grande do Sul para os países do Prata, Frigerio mostrou como ambas as perspectivas teóricas se complementam, uma vez que a circulação das crenças e práticas afro-religiosas entre Brasil, Argentina e Uruguai ocorreu mediante o fluxo social multidirecional não migratório (primeira perspectiva), formando, mesmo assim, um campo social transnacional afro-religioso, apoiado, em grande medida, na noção de linhagens religiosas, baseadas em redes de relacionamento (segunda perspectiva).

Como veremos neste estudo, semelhante situação que implica na dupla possibilidade de transnacionalização religiosa parece ser também recorrente no campo pentecostal que abraça a política da missão invertida para a Europa.

Importa reter, do que precede, que a transnacionalização possui duas características principais. Em primeiro lugar, como sustenta Alves_(2011:32), ela se refere a fluxos de pessoas que se juntam em redes de relações (...) com níveis de institucionalização variáveis, atravessando espaços societários diferentes”7; e, em segundo, como defende Hannerz_(1996), ela não está contida dentro de um Estado, não possui uma base fixa nos Estados nacionais. Ou então, como frisaram Badie_e_Smouts_(1995)8, a transnacionalização mantém fraca (ou nenhuma) relação com os aparelhos de Estado, embora isto dependa da situação legal e conjuntural que vigora em cada país.

Essas características, como veremos, também estiveram presentes no acompanhamento que fizemos das quatro igrejas pentecostais radicadas em Porto Alegre que efetuam a missão invertida para a Europa.

AS IGREJAS E SEUS FLUXOS TRANSNACIONAIS NA EUROPA As igrejas e pastores que passamos a examinar a seguir possuem um elemento em comum: alcançam a Europa através de parcerias celebradas com igrejas e agentes religiosos europeus. É através de alianças estratégicas (Castells,_2000) que eles desencadeiam a transnacionalização religiosa para a Europa. Um dos precursores deste modelo de parcerias e de construção de redes sociais no interior do campo evangélico-pentecostal é o renomado evangelista argentino Carlos Annacondia9, que afirma: Antes tudo estava centralizado nas instituições. Agora, a ênfase é posta nas redes. É preciso olhar as redes. A Igreja do Espírito Santo é composta de indivíduos que se associam em redes”10.

Annacondia, além de protagonizar uma importante transição do pentecostalismo nos anos 1980 na Argentina (Wynarczk,_1993), foi um dos primeiros, nas redes de líderes pentecostais que estudamos, a estender sua atuação para além das fronteiras nacionais de seu país e da América Latina. A forma de construção de reputação através de convites e parcerias baseadas numa compreensão religiosa do sentido das redes difundiu-se a partir de sua atuação. Examinemos de agora em diante exemplos da constituição de redes transnacionais em direção à Europa, abordando as formas de sustento dos agentes envolvidos, a comunicação com as sedes e a relação com as agências de controle migratório nacionais.

Convites e Parcerias O pastor Luiz Bazerque, responsável pela área de missões da Igreja Batista Brasa11 de Porto Alegre, diz12 que o trabalho voltado para a Europa veio para nós no final dos anos 1990 como um convite, um pedido de socorro, de alguns pastores da Inglaterra e de Portugal. Foi um período, acrescenta, em que, especialmente no Reino Unido, as igrejas estavam fechando as portas, pois o número de fiéis estava encolhendo e os prédios históricos e centenários estavam sendo ocupados para outras finalidades, como museus, bibliotecas, lojas etc.

Veio também de Portugal um convite, um pedido de ajuda. Mas eles não tinham como começar. Então nós fundamos uma igreja em Portugal, inicialmente em Espinho e, mais tarde, na cidade do Porto.

Também na Assembleia de Deus a prática missionária na Europa iniciou com um convite. Segundo o pastor Joel Lucas13, secretário de missões desta igreja em Porto Alegre, precisa realmente primeiro vir de um convite. Nunca a gente vai assim pra fazer um trabalho independente; a gente vai pra trabalhar junto com as igrejas de .

A ida do pastor Josué Dilermando, da Igreja Maanaim14, ao País de Gales, em 2009, também se deveu a um convite recebido de uma pastora brasileira, casada com um galês. Igualmente o pastor Edilson Avila, da mesma igreja, foi a Roma a convite do pastor italiano Ugo Sottile, que esteve em Porto Alegre em janeiro de 201115.

A recente ida do pastor Dilermando para Bucareste se deve a uma parceria pessoal firmada com o pastor romeno Bolozani Mihai. Dilermando conta que o conheceu aqui no Brasil e que este me contou da necessidade do país e me convidou para ir ajudar ele”16. As tratativas ocorreram via internet e em setembro de 2013 Dilermando partiu para Bucareste, para pregar na Igreja Dumnezeu si dragoste17. No último dia de sua estada na Romênia, em 22 de setembro de 2013, postou em seu Facebook o seguinte agradecimento: Agradecemos o convite do pastor Bolozani Mihai e pelo acolhimento da sua esposa Irma Milena Mihai e também a igreja Dumnezeu si dragoste.

Segundo Dilermando18, esta é a fórmula do seu trabalho missionário na Europa: encontrar igrejas e pastores parceiros para trabalhar com eles. Formar uma rede com igrejas e pastores. Não é chegar [Europa] e abrir igrejas; não é fazer um império, como outras igrejas fazem. Enfim, Elias Figueiró, do Ministério Encontros de , também destaca19, referindo-se às suas viagens transnacionais: (...) sempre contatos, convites, trocas.

Portanto, as parcerias firmadas entre igrejas de Porto Alegre e de alguns países europeus resultam de convites provenientes do Velho Continente. Os convites conduzem à construção de parcerias, institucionais e/ou pessoais, as quais se constituem, como assinalou Joanildo Burity_(2006) em seu estudo sobre as parcerias entre organizações da sociedade civil e agências governamentais, em recurso estratégico para alcançarem seus objetivos, que, no caso das igrejas brasileiras referidas, como veremos, consiste em recristianizar a Europa (Oro_e_Mottier,_2012).

O Sustento dos Missionários na Europa Na Igreja Batista Brasa, durante os primeiros anos das parcerias, o sustento dos missionários brasileiros na Europa ficou a cargo das igrejas europeias.

Porém, como afirma o pastor Bazerque20, nos últimos anos, com a crise econômica na Europa, algumas igrejas [no caso, do Reino Unido], que bancavam todo o salário do pastor, hoje elas não conseguem fazer mais. Hoje nós participamos disso. Especialmente as igrejas menores não conseguem dar todo o salário e uma casa. Por isso, parte do sustento a gente garante.

O mesmo ocorreu com os pastores da Assembleia de Deus. No início do seu trabalho missionário na Europa, foram acolhidos e apoiados, também financeiramente, pelas igrejas locais. Porém, assim como ocorreu com a Igreja Batista Brasa, com o passar do tempo o sustento dos missionários tornou-se praticamente uma tarefa das igrejas brasileiras. Neste sentido, segundo o pastor Joel Lucas, é comum acontecer um consórcio de igrejas brasileiras para sustentar os pastores em missão, mesmo os que estão atuando na Europa.

Também o pastor Edilson e família foram inicialmente acolhidos e apoiados pela Igreja Assembleia de Deus de Roma, mas, passados alguns meses, tiveram que prover o seu próprio sustento. Para tanto, Edilson e sua esposa realizam hoje diferentes serviços temporários. Além disso, para completar a receita mensal da família, a Igreja Maanaim de Porto Alegre envia quase que mensalmente dinheiro para Roma.

A recente viagem do pastor Dilermando para a Romênia e para a Itália foi toda ela custeada pela sua igreja brasileira. Uma semana antes da sua partida, em 11 de setembro de 2013, o pastor anunciou em sua página do Facebook que iria para a Europa em mais uma viagem missionária e solicitou ajuda financeira, uma oferta de amor. Para tanto, informou os seus números de telefone pessoais e o número de sua conta no banco Itaú.

O renomado músico evangélico radicado em Porto Alegre Asaph Borba21, que circula bastante no meio evangélico europeu, frisa22 que hoje em dia, apesar das parcerias que as igrejas europeias mantêm com as igrejas brasileiras, são estas últimas que sustentam seus missionários no exterior. Para ele, quem envia missionários (mesmo para a Europa) sustenta daqui, com dinheiro brasileiro.

Deduz-se que o envio e a manutenção de missionários na Europa implicam em custos altos por parte das igrejas locais que, mesmo assim, por razões que veremos mais adiante, tendem a não desistir do projeto de recristianização da Europa. Cabe agora examinar como interagem, se comunicam, os pastores locais com os seus parceiros europeus, ou com os missionários que se encontram em cidades europeias.

As Parcerias e a Internet Em seus estudos sobre a transnacionalização afro-religiosa no Cone Sul, Frigerio_(2013:47) sublinha que é um truísmo (dizer) que a internet oferece uma arena privilegiada para o estabelecimento de redes transnacionais. O mesmo poder-se-ia afirmar relativamente ao campo evangélico. Hoje em dia, a maioria das igrejas evangélicas e pentecostais possui sua própria página na web, com plataformas bem-feitas, diga-se de passagem, além de explorarem as possibilidades de relacionamentos via internet como o Facebook, Skype, Twitter e MSN (até 2009)23. A presença naweb constitui uma importante vitrine de divulgação dos trabalhos realizados pelas igrejas, permitindo, assim, transcender o nacional e aceder ao transnacional.

Evidentemente a internet é útil tanto para estabelecer e manter contatos transnacionais entre as igrejas parceiras quanto para manter a comunicação transnacional entre os membros das igrejas que se encontram no exterior. De fato, os depoimentos dão conta de que os líderes das igrejas locais se comunicam constantemente com membros dirigentes de igrejas europeias e com os missionários em atuação. Neste sentido, o responsável das missões da Igreja Batista Brasa informa que mantém contatos diários com os seus pastores no exterior. Além disso, ao menos uma vez por ano um responsável de missões da igreja faz uma viagem para verificar in loco o trabalho dos seus missionários.

Também o pastor Dilermando afirma que conversa diariamente, via Skype ou Facebook, com Edilson Avila, que está em Roma. Dilermando enfatiza que diante de Deus se sente responsável por Avila e sua família. Por isso, acrescenta: (...) a gente tem que estar conectado; eu daqui tenho que estar fortalecendo com palavras de ânimo, encorajando ele, que está no campo de batalha”24.

A internet constitui, portanto, uma importante ferramenta para assegurar as relações sociais e manter as redes de relacionamento entre os agentes religiosos e as igrejas transnacionais. Assim, neste contexto de uma transnacionalização religiosa que ocorre sobretudo mediante intercâmbios e circulação de atores sociais (agentes religiosos), a internet torna-se uma importante mediação para a constituição de um campo social transnacional (Capone,_2010). Isto significa, em outras palavras, que se repete no contexto da transnacionalização evangélico-pentecostal uma certa recorrência da dupla possibilidade de transnacionalização que Frigerio_(1993) havia constatado no Mercosul relativamente à transnacionalização afro-religiosa, como foi assinalado anteriormente, ou seja, uma transnacionalização que envolve deslocamentos e circulação de atores sociais que se organizam em redes sociais formando um campo social transnacional.

Vejamos agora que tipo de relações mantêm os atores sociais implicados no processo de transnacionalização religiosa com os aparelhos de Estado.

A Transnacionalização e os Controles Estatais de Migração A segunda característica da transnacionalização consiste na relação com as instâncias estatais de controle migratório que vai da aproximação estratégica à evitação total. É o que também ocorre com as quatro igrejas referidas, as quais recorrem às instâncias oficiais somente para satisfazerem as exigências legais de ingresso e a permanência dos seus missionários nos países em missão: passaportes e vistos, caso desejem permanecer por mais tempo do que o permitido para turistas. Assim, a maioria dos pastores desembarcam na Europa como turistas ou como trabalhadores. Dificilmente vão para a Europa como religiosos. Vão com outra finalidade: alguns vão como turistas, vão como trabalhadores, vão renovando o visto, esclarece o músico Asaph Borba. A consequência disto, segundo o mesmo informante, é que nem todos os religiosos que atuam na Europa estão documentados. Diz ele: Eu conheço pastor ilegal, conheço pastor que consegue o documento como religioso e conheço gente que vai como trabalhador, consegue um visto de trabalho, tem uma profissão.

A Igreja Batista Brasa, no início da sua atividade na Inglaterra, por intermédio do pastor Marcelo Guimarães, encontrou no estudo de inglês para os pastores recém-chegados do Brasil uma alternativa para obter visto de permanência de um ano. Assim, durante vários anos a própria igreja de Bognor Regis assegurou a escola de inglês para os missionários brasileiros, contribuindo, desta forma, para facilitar a sua permanência legalizada. Nos últimos anos, porém, devido às mudanças na legislação local, esta alternativa não existe mais. Por isso mesmo, a situação do visto ficou bastante complicada.

O ingresso dos missionários brasileiros da Assembleia de Deus na Europa geralmente se como turistas. Procuram, então, ligar-se a uma igreja local, a partir da qual iniciam um processo de tramitação de documentos visando a obtenção de um visto de permanência temporária. Também o pastor Dilermando viaja como turista. Por sua vez, os pastores Edilson Avila e sua esposa Ana, depois de três anos de permanência em Roma, conseguiram visto de permanência temporária25. Foi um milagre de Deus, afirmou pastor Dilermando26.

Importa assinalar aqui que as distâncias relativas mantidas pelas igrejas transnacionais em relação às instâncias estatais não significa que as mesmas desconsiderem as identidades nacionais. Ao contrário, a ideia de nação e a reivindicação da nacionalidade integram os fluxos transnacionais, fato verificado não somente na explicitação constante dos vínculos nacionais das igrejas e dos agentes religiosos, mas também, e sobretudo, na ostentação, sempre que possível, de bandeiras nacionais enquanto símbolos representativos das nações nos recintos religiosos. Assim, o recurso às bandeiras por parte das igrejas pentecostais e neopentecostais brasileiras transnacionais revela não apenas a articulação entre o nacional e o transnacional, mas também a afirmação das nacionalidades (Oro,_2010).

Vamos agora nos ater ao tópico concernente à motivação das quatro igrejas referidas para fechar parcerias com igrejas e atores religiosos europeus e implementar o processo de transnacionalização, a saber: o seu desejo de recristianizar a Europa ou reconquistar espiritualmente a Europa.

A RECONQUISTA ESPIRITUAL DA EUROPA Predomina nas quatro igrejas referidas, mas não somente nelas, um mesmo discurso sobre a religião na Europa, sobretudo nos países católicos: a modernidade27 que ali vigora fez com que eles se desviassem da verdadeira em Jesus, posto que seus habitantes seriam hoje demasiadamente frios do ponto de vista espiritual e apegados ao materialismo e hedonismo, com muita ênfase no individualismo. Segundo o pastor Josué Dilermando: O problema da Europa é a modernidade, o pensamento moderno e a secularização, o racionalismo e o individualismo. Este pensamento não agrada a Deus”28. o pastor Joel Lucas sustenta que a chama se apagou na Europa, e que hoje restam somente as cinzas dos avivamentos de outrora.

Consideram os líderes religiosos entrevistados que não podem permanecer passivos diante dessa situação que vigora na Europa. Ao contrário, como sintetiza o pastor Dilermando, faz-se necessário encetar esforços para reconquistar espiritualmente a Europa. É tão forte esta pretensão que o pastor chega a afirmar: minha preocupação hoje não é evangelizar o Brasil; hoje minha preocupação é evangelizar a Europa. Por isso, estou interessado na formação de pessoas que tenham amor para a missão, para enviar eles para a Europa.

Por seu turno, o pastor Luiz Bazerque, da Igreja Batista Brasa, considera que os europeus foram os pais que trouxeram o evangelho para os filhos do sul, mas que agora está na hora de nós, filhos, voltarmos aos pais, auxiliarmos os pais, fortalecermos os pais para juntos agora, filhos e pais, completarmos essa onda. Trata-se, segundo ele, de uma missão que parte dos confins do mundo.

Tem pastores que dizem que estamos vivendo Atos 1:829, algo reverso hoje. Os confins do mundo é que estão fazendo essa mesma rota, voltando para a Europa.

Outro pastor da Assembleia de Deus, Paulo Locatelli, que esteve pregando em vários países da Europa, assevera que o Brasil possui uma dívida em relação à Europa30. Isto porque os europeus trouxeram a mensagem religiosa que aqui foi guardada e cresceu. Para ele, a missão invertida é a devolução, o retorno do que eles nos deram, porque hoje eles vivem o que talvez uma vez a gente viveu aqui, no passado. Estamos pagando uma dívida.

Os pastores entrevistados, por outro lado, confessaram que a maior parte dos fiéis dos pastores brasileiros na Europa não são europeus, e sim brasileiros, latinos e africanos31. Da mesma forma, nenhum dos entrevistados referiu convictamente a conversão de europeus como resultado da ação religiosa dos seus missionários32. Os obstáculos mais importantes para a conversão de europeus, na avaliação dos agentes religiosos entrevistados, são reconhecidos como de ordem cultural, como veremos logo adiante. Diante desta situação, poder-se-ia supor a existência de um certo sentimento de frustração, ou ao menos de tensão, entre a missão invertida que se propõe a reevangelizar a Europa e a que se torna diaspórica, como ocorre, aliás, com as igrejas africanas na Europa33. Ora, tal não parece ser o caso das igrejas de Porto Alegre. Esta ambiguidade aparente não as desencoraja de enviar missionários para a Europa, nem os pastores de pregarem em cidades europeias. Podemos, então, sugerir que a missão invertida para a Europa possui outras significações para além do discurso estrito de reevangelizar a Europa.

Com efeito, não se pode desprezar, por exemplo, o interesse econômico de certas igrejas e certos pregadores e missionários em desembarcar na Europa, o que não é incompatível com o trabalho missionário, inscrito na lógica da fluidez entre o religioso e o econômico. Veja-se, neste sentido, a declaração do pastor Valdeci, da Assembleia de Deus de Porto Alegre34: Elas [as igrejas europeias] pagam muito bem aos que vão e pregam a palavra de Deus. Vale a pena. Neste caso, pode-se imaginar que o apoio financeiro dado aos missionários para chegarem à Europa, como vimos anteriormente, não deixa de constituir um investimento das igrejas devido ao retorno financeiro que elas podem vir a auferir com o trabalho efetuado por eles nas cidades europeias.

Um outro sentido ligado à missão invertida na Europa concerne a possibilidade aberta a sujeitos brasileiros e latino-americanos (pregadores, pastores, missionários, fiéis que nutrem o sentimento de se tornarem missionários), muitos deles pertencentes às camadas baixas e média-baixas da sociedade, de manterem contatos internacionais e se sentirem cidadãos do mundo, ligados a países tidos de Primeiro Mundo como os europeus. Assim, da mesma forma que historicamente o pentecostalismo permitiu a muitas pessoas o acesso à leitura, à política e às mídias, ele abre hoje aos seus membros os horizontes da Europa e do mundo. O pentecostalismo seria, assim, como sublinham Ruiz e Michel, um dos espaços privilegiados de produção do global (2012:15; tradução livre).

Mas ainda outro significado inscrito no imaginário da missão invertida para a Europa conduzida pelas igrejas de Porto Alegre, a saber: sua utilização enquanto recurso simbólico de legitimação num contexto religioso concorrencial local.

De fato, como sabemos, as relações entre as centenas de igrejas evangélicas e pentecostais, independentemente do seu tamanho, são de concorrência, aberta ou velada, pela conquista das almas35. Ora, na atual conjuntura de abertura ao global, o investimento na circulação internacional pelos países europeus tornou-se um destino preferencial de líderes religiosos, para que eles e as igrejas adquiram junto à membresia em geral umplus de legitimidade. Isto se deve à imagem construída sobre a Europa neste e em outros meios religiosos, tida como moderna, berço do cristianismo e origem de muitos revivalismos religiosos.

Assim, as igrejas que enviam missionários para a Europa e os pastores que fazem pregações em cidades europeias nutrem um sentimento de elevação destatus, e não somente junto aos seus fiéis. Isso se nota pela ênfase local dada aos fluxos missionários na Europa, que ganham espaço nos cultos e, especialmente, nos jornais e páginas virtuais das igrejas. Neste contexto, igrejas e pastores estão persuadidos a ganharem pontos nas disputas simbólicas e disputas de fiéis que mantêm com outros pastores e igrejas locais que não possuem parcerias globais. Sendo assim, este significado da missão invertida ajuda a compreender o não recuo do envio de missionários para a Europa, mesmo quando este exige altos custos por parte das igrejas locais.

Portanto, as igrejas pentecostais abrem-se para o global para se reforçarem no local, para ganharem pontos aqui, diante da concorrência local. Além da articulação entre o local e o global, pode-se sugerir que exista, neste caso, uma certa instrumentalização do global pelo local. Se esta análise está correta, podemos então traduzir a expressão nativa conquistar espiritualmente a Europa por conquistar legitimidade local.

É importante sublinhar que esta mesma lógica que recorre à transnacionalização religiosa em direção da Europa como recurso simbólico de elevação destatus num contexto religioso local concorrencial também ocorre com as demais igrejas pentecostais brasileiras que atuam no exterior, especialmente as megachurches neopentecostais. Porém, enquanto estas últimas tendem a valorizar e potencializar a sua condição de igrejas implantadas em muitos países de todos os continentes, as primeiras tendem a enfatizar a sua presença na Europa pelas razões apontadas anteriormente. Ambas, porém, acionam o imaginário da globalização como estratégia simbólica de reforço da legitimidade, visando, assim, elevar o seu prestígio e atrair mais fiéis locais.

Fica claro, portanto, que a missão invertida para a Europa realizada pelas igrejas locais utiliza as parcerias como estratégia para deslanchar a transnacionalização que, na realidade, cumpre sentidos múltiplos, entre os quais um anunciado o de recristianizar a Europa e outros não ditos (talvez subentendidos), como o interesse econômico, a abertura para o global e a elevação de prestígio no ambiente concorrencial local. Como em todas as situações semelhantes, são provavelmente estes últimos que impulsionam e garantem a energia da transnacionalização para a Europa. Outro aspecto associado à missão invertida diz respeito às tensões vividas pelos missionários brasileiros na Europa devido, segundo eles, às diferenças culturais, especialmente à importância que a emoção assume no pentecostalismo brasileiro e suas restrições neste meio religioso no continente europeu36.

TENSÕES E CONFLITOS Os depoimentos dos brasileiros que possuem experiência missionária na Europa dão conta de que a sua ação pastoral às vezes se obstaculiza, chegando a gerar tensões e até conflitos em razão de choques resultantes das diferenças culturais. As culturas são totalmente diferentes, afirmou o pastor Dilermando (Igreja Maanaim). Por isso mesmo, falando de si próprio quando esteve no País de Gales em 2009, afirma que o choque cultural foi muito grande. E quanto à sua estadia na Romênia, em 2013, disse que o choque cultural não foi um choque para mim; foi um susto terrível. Também o pastor Luiz Bazerque (Igreja Batista Brasa) destaca que apesar da sua igreja estar fazendo um bom trabalho [na Inglaterra], a maior barreira continua sendo a cultura. Recordemos, com Roy Wagner_(2010:34), que o choque cultural, ao mesmo tempo que torna visível a cultura, também mostra a inadequação da ideia do eu contra o pano de fundo do seu novo ambiente.

Os pastores brasileiros estranham, inicialmente, a formalidade e o rigor que vigoram na Europa também no campo religioso. Assim, pastor Dilermando relata que no País de Gales, em 2009, em sua primeira pregação ouviu do intérprete a recomendação de que o culto iria das 19 às 20 horas, devendo finalizar pontualmente às 20 horas. Conta que estava pregando e às 19h57 ouviu do intérprete o apelo: Amém pastor, amém!. Porém, como não havia ainda finalizado a sua mensagem, continuou. Disso resultou, continua ele, que eram oito e cinco e todo mundo estava indo embora. Não entende, arremata, como aquelas pessoas se sujeitam ao tempo, mas não à palavra de Deus. O formalismo é tanto na Europa, continua Dilermando, que agendam visitas até entre parentes. Esta rudeza dos europeus, segundo a sua apreciação, torna-os menos sociáveis do que os brasileiros e repercute também no campo religioso.

A formalidade e o autocontrole que vigoram na Inglaterra são apontados por Luiz Bazerque como um elemento prejudicial à atração de jovens nas igrejas. É por isso, diz ele, que as igrejas inglesas são frequentadas majoritariamente por idosos. Porém, acrescenta que os pastores brasileiros, ao esbanjarem alegria, atraem os jovens pela música, por esse jeito dos brasileiros serem.

Mas é a presença da emoção na prática ritual e litúrgica que põe o maior problema, tornando-se a mais importante fonte de tensões entre os agentes religiosos brasileiros e europeus. Segundo os missionários brasileiros, a emoção não é bem aceita pelas igrejas europeias. Assim, para Bazerque, na Inglaterra não pentecostalismo com barulho, como ocorre aqui. Na igreja inglesa não tem barulho. Também não expressão pública da emoção. Aqui no Brasil, continua o pastor, nas igrejas as pessoas se abraçam, se beijam; os ingleses firmam o braço pra tu não chegar muito perto, ? Te seguram bem assim, para que tu não chegue. Também o pastor Isaias destaca que [na Europa] a gente não pessoas chorando, batendo palmas, se abraçando como aqui no Brasil. Os europeus são muito frios, arremata. Por sua vez, o pastor Joel Lucas, da Assembleia de Deus, também destaca que a ênfase na questão pentecostal (emocional, aduzimos nós), que os missionários imprimem na Europa, não é muito aceito , junto às igrejas tradicionais. Esta é, segundo ele, uma das razões que impedem a boa relação entre missionários brasileiros pentecostais e pastores de igrejas evangélicas locais, o que conduz, com o tempo, os primeiros a acabarem abrindo um trabalho independente, vinculado aqui [ao Brasil].

Sobre esses tópicos levantados, vejamos agora os argumentos de um pastor italiano, que fala a partir da perspectiva europeia. Segundo Ugo Sottile37, na Europa os horários dos cultos precisam ser cumpridos à risca e não podem exceder a duas horas, diferentemente do Brasil, onde podem durar três horas ou mais. Isto porque, justifica: Os italianos são muito organizados. Se precisam acordar cedo, vão dormir cedo. Isto não acontece com outros povos, entre os quais os brasileiros. Esta é uma mentalidade própria dos europeus. Então, durante a semana não se pode fazer cultos muito longos (...). O ritmo da vida aqui e é diferente. Por isso tem que haver uma adaptação.

Ainda segundo o pastor italiano, outro tópico que é motivo de desentendimentos entre brasileiros e europeus é o pedido de ofertas durante os cultos, algo recorrente no Brasil, mas que não é bem aceito na Itália. Afirma, neste sentido: os italianos não estão assim tão dispostos a dar ofertas. Se diz: ofertem, ofertem, ofertem, não vai para a frente. Nota-se aqui um aspecto que é central no pentecostalismo brasileiro e latino-americano, mas que encontra resistências na Europa. Trata-se da Teologia da Prosperidade, que aproxima o religioso e o econômico, sacralizando de certa forma o mercado e os bens materiais, especialmente o dinheiro. Esta perspectiva não é bem acolhida no pentecostalismo europeu, no qual prevalece a mentalidade que tende a separar o religioso do econômico, assim como o religioso do político.

Ainda de acordo com Ugo Sottile, os italianos não concordam sobretudo com a ênfase posta na emoção, dominante no pentecostalismo brasileiro. Segundo a sua ótica, pregar a cura e os prodígios num país como a Itália, usando da emocionalidade, não certo. A adoração não agrada muito ao italiano, porque o cansa. Em sua perspectiva, haveria uma relação entre pobreza, emocionalidade e prodígios (curas, milagres), algo observável num país como o Brasil, mas não na Itália.

Como explicar a resistência europeia em aceitar o pentecostalismo emocional? Segundo o sociólogo italiano Giuseppe Trombetta_(2013:23, tradução livre), esta dificuldade resulta, em primeiro lugar, de uma longa hegemonia das igrejas católica, protestante e ortodoxa, que produziram umhabitus que respeita em grande medida o modo pelo qual a religião é definida pelas elites religiosas, dotando as pessoas de categorias cognitivas capazes de permiti-las distinguir o que é religião do que é falsificação. Nesta perspectiva europeia, torna-se difícil aceitar a mistura entre corpo e espírito, e exaltação psíquica, liturgia e espetáculo, assim como a relação entre religião e trabalho, religião e saúde, religião e economia, religião e bem-estar psíquico, presentes no modo de ser religioso do pentecostalismo em geral. Em segundo, prossegue o autor, falta à Europa o esforço de reapropriar-se da própria história, que é uma das matrizes do sucesso pentecostal nos países ex-coloniais (idem), ou seja, o desejo de recuperar, graças à religião, os traços culturais que os colonizadores subordinaram ou condenaram. No caso da Europa, ocorreu ao longo da história uma domesticação daqueles traços por parte das igrejas estabelecidas, contribuindo, desta forma, para o preconceito etnocêntrico que se observa neste continente em relação à reevangelização proposta pelas igrejas pentecostais de imigrantes (Carranza,_2013).

Como proceder diante deste quadro marcado pelas diferenças culturais e religiosas constatadas entre as práticas pentecostais conduzidas pelos brasileiros e pelos europeus? O pastor italiano é de opinião que os missionários brasileiros precisam respeitar as culturas locais, e não impor a sua própria cultura religiosa. Em suas palavras: eles [os pastores brasileiros] não podem chegar na Itália ou em algum outro país europeu, que são antiquíssimos, históricos, e dizer nós no Brasil, na América, fazemos desta maneira e vocês devem fazer da mesma forma. Isto porque cada um tem a sua própria mentalidade, sua própria organização, certo? O pastor Luiz Bazerque (Igreja Batista Brasa) também defende a necessidade de adaptação dos pastores brasileiros à cultura europeia. Segundo ele, tem que entrar no sistema do dono da casa... tem que respeitar as regras deles. Para tanto, sua igreja procura preparar os seus missionários, estimulando-os a frequentar a escola de missiologia, sobretudo a cadeira de missiologia intercultural, para conhecerem o povo que se vai trabalhar, porque, por exemplo, por mais pentecostal e renovado que seja o inglês, a fleuma do inglês vai continuar e então vai ter problema.

Diferentemente das posições acima, o missionário gaúcho Locatelli, da Assembleia de Deus, sublinha a necessidade de haver uma adaptação cultural mútua, dos brasileiros e dos europeus. Diz ele: os brasileiros precisam aprender com os europeus a colocar ordem nas coisas, porque tudo é organizado. Na Inglaterra tudo é cronometrado, tudo é organizado. Se diz que um culto termina às seis, tem que terminar às seis, entendeu? (...) Os europeus também precisam aprender com os brasileiros. A gente ensina o calor humano, a receptividade, a se interessar pelo próximo. Isso não existe, cada um é pra si e Deus por todos, entendeu? É uma cultura muito individualista. A gente ensina muito esse calor humano brasileiro, essa relação, essa amizade, o companheirismo, se interessar pelos problemas dos outros, entendeu? Eles ficam admirados, ficam admirados como a gente consegue ser assim, entendeu?.

Nota-se que os agentes religiosos de ambos os lados do Atlântico são detentores de uma visão essencialista das culturas nacionais. Representam os brasileiros como sendo portadores de entusiasmo, alegria, emoção, e os europeus como formais, impessoais, controlados e racionais38. Além disso, os agentes religiosos sugerem que a transnacionalização religiosa implica em acomodações e adaptações, em movimentos centrípeto e centrífugo, que desencadeiam uma retroalimentação mútua, como também destacaram Carranza e Mariz em seu estudo sobre a expansão da Canção Nova para fora do país, sobretudo para Portugal (2013:29)39.

CONCLUSÃO Vimos, por um lado, que a celebração de parcerias com agentes e igrejas europeias constitui o recurso estratégico utilizado pelas igrejas de Porto Alegre para dar início à transnacionalização religiosa em direção à Europa, tendo na recristianização da mesma o principal mote desencadeador do processo.

Porém, a eficácia desta iniciativa é reduzida, o que permite supor que outras razões concomitantes para a missão invertida para a Europa, entre as quais o fator econômico, a abertura para o global e a elevação de prestígio num contexto sociorreligioso local. Neste caso, destaca-se o imaginário do global e, mais particularmente, a grandiosidade da evangelização da Europa para se fortalecer no local. Por outro lado, vimos que as parcerias podem ser prejudicadas e, às vezes, até mesmo sucumbir diante das tensões atribuídas às diferenças de códigos culturais, geralmente essencializados, existentes entre a dita cultura brasileira e a cultura europeia, com repercussão no campo religioso.

Enfim, dois aspectos permanecem problemáticos nas relações transnacionais que envolvem o pentecostalismo rio-grandense quiçá o brasileiro e o latino- americano e o europeu. Em primeiro lugar, a questão dos diferentes campos sociais, percebidos como relacionados na mentalidade pentecostal do subcontinente americano e como autônomos no meio pentecostal europeu; e, em segundo, a questão da emoção, que se torna uma espécie de górdio ao qual os pentecostalismos dos dois lados do Atlântico veem-se atados, dada a importância que ela ocupa no pentecostalismo brasileiro e latino-americano e a resistência que encontra no europeu.

Os dados apresentados favorecem a compreensão de aspectos tidos por vezes laterais pelas teorias que consideram a globalização num longo alcance. Os encontros culturais proporcionados por um pentecostalismo que se deseja globalizado acabam por lançar organizações de pequena escala e sujeitos em dilemas provenientes desse encontro, explorados aqui sob a forma de tensões e conflitos. Neste artigo, nos ocupamos de movimentos tipicamente transnacionais, entre os quais revela-se crucial a questão da adaptação cultural, sendo a transnacionalização apenas uma das modalidades de deslocamento. Caberia, ainda, uma última reflexão sobre a capacidade interpretativa das classificações de movimentos dentro do processo de globalização aqui expostos.

Como todo movimento e toda emergência são observáveis em relação a um referencial no espaço ou no tempo, os fluxos globais deveriam ser vistos sempre em relação a referenciais e a unidades de análise discerníveis. Uma igreja que se transnacionaliza por contatos pessoais possui estratégias de difusão da mensagem religiosa diferentes de uma megachurch que se internacionaliza, pois aqui formas de organização social da produção simbólica distintas, embora a mensagem possa ser considerada semelhante. Isso não quer dizer que uma igreja internacionalizada não se transnacionalize em algum outro nível, dependendo da unidade de comparação. Um caso excelente para interpretação é o da Igreja Universal do Reino de Deus na França (Aubrée,_2003), a qual encontrou seu público-alvo entre comunidades africanas em diáspora, recrutando pastores africanos e absorvendo os códigos simbólicos acerca dos malefícios (bruxaria, feitiçaria). Assim, essa igreja internacional em sua organização se transnacionaliza em sua prática do sermão e de cura das almas dirigida a uma comunidade imigrante não brasileira. vezes em que o inverso acontece: um modelo organizacional se transnacionaliza sem que igreja alguma se desloque.

Tome-se, como exemplo, a organização de igreja em células ou modelo celular originária das Assembleias de Deus da Coreia do Sul, reinterpretada na Colômbia e difundida na América Latina em tonalidades absolutamente variáveis e locais.

A sistematicidade em nossas formas de interpretação dos fluxos poderá levar, futuramente, a bases seguras para a comparação desses fenômenos. Além disso, poderá tornar mais precisas as linhas de força relacionadas à dimensão cultural e geopolítica das relações internacionais (pensamos aqui na atuação do Brasil como país hegemônico econômica e culturalmente frente aos países pobres da América Latina e da África), trazendo um benefício aos intérpretes contemporâneos que não prescindem do nacionalismo metodológico característico dos estudos sobre globalização. Por ora, buscamos, através de duas formas de atenção (teórica e empírica), contribuir com os estudos sobre globalização e religião na contemporaneidade.


transferir texto