Relações entre o Brasil e a África subsaárica
O Chanceler Luiz Felipe Lampreia tem reiterado que a África é um objetivo
insubstituível da política externa brasileira. Elemento essencial na formação
econômica e na construção da identidade nacional, as relações com o continente
africano são responsáveis por páginas expressivas da história de nossa
diplomacia e configuram ponto de apoio estratégico da inserção internacional do
Brasil.
No entanto, quando conferimos o quadro do relacionamento atual, não escapamos
da constatação de que dificuldades existem. Diagnosticar suas causas e definir
meios e modos de superá-las é um exercício permanente da diplomacia. As
conjunturas brasileira, africana e internacional criam continuamente novas
oportunidades e desafios, que uma política externa conseqüente não pode
ignorar.
A rigor, dificuldades existirão sempre nas relações com qualquer país e
qualquer região. Ao repercutirem internamente, geram, entre outras, reações de
setores técnicos, que apresentam alternativas de ação, ou políticos, que cobram
atitudes do Governo. Ocorre, contudo, que os temas africanos têm entre nós uma
trajetória peculiar. Suas repercussões são episódicas e emocionais. Talvez por
isso, as percepções mais difundidas sobre as relações do Brasil com o
continente africano em geral oscilam entre dois pólos extremados, um
decididamente nostálgico, outro catastrófico.
Nostálgicos e catastrofistas
Os nostálgicos costumam sublinhar as nossas responsabilidades históricas e se
queixam de que já não há uma política africana com brilho e ousadia comparáveis
à dos anos 70. Proclamam que o Governo tem obrigação de fazer mais, em
decorrência de nossa dívida irresgatável para com a África.
Os catastrofistas brandem estatísticas e vociferam que o Brasil não tem mais
nada a fazer com os africanos. Salientam que no espaço de 40 anos a África
subsaariana foi palco de dezenas de conflitos, causadores de 10 milhões de
mortos e 20 milhões de refugiados; a mortalidade infantil africana é 11 vezes
superior à européia e a expectativa de vida abaixo dos 50 anos; 71% dos
infectados pela AIDS no mundo estão na África, onde também se originou o ebola;
o Banco Mundial já estimou que, ao ritmo do início dos anos 90, serão
necessários 40 anos para que a África negra recupere o nível dos anos 70; o
mesmo BIRD avalia que, de 1989 até 1995, foram gastos na África aproximadamente
US$ 4,5 bilhões em armas, enquanto que para educação e saúde foram canalizados
apenas US$ 1,8 bilhão; segundo o World Resources Institute, dois em cada cinco
cidadãos africanos atuam diretamente em conflitos militares ou interétnicos;
60% dos combatentes têm entre 13 e 18 anos; o número de mutilados é de quase 4
milhões de pessoas; muitos países são governados por regimes militares e vários
estão em guerra civil em maior ou menor escala e/ou têm grupos guerrilheiros
ativos.
Os números são impressionantes, mas o que distingue, de fato, os catastrofistas
é a descrença em que os africanos possam reverter esse quadro. Há gradações de
racismo indisfarçáveis em seu pretenso realismo.
Nenhum desses pólos examina a situação em sua inteireza. Aos nostálgicos,
conviria lembrar que também nos anos 70 a política externa pretendia expandir
laços concretos, e a possibilidade de levá-la adiante fundamentava-se na
capacidade de ação governamental e de projeção da economia brasileira, como
demonstra Gelson Fonseca Jr. A crise do petróleo tornou estratégico o
relacionamento com produtores como Argélia e Nigéria, e a prioridade então
atribuída à promoção de exportações e à ampliação de mercados justificava
tentativas, impulsionadas por financiamentos de um Estado que se considerava
onipresente indutor do desenvolvimento, de implantação de empresas brasileiras
em países africanos. Em retrospecto, verificamos que nem todos os esforços dos
anos 70 foram bem sucedidos; a dívida remanescente, que dificilmente será
remida por vários devedores, sinaliza a necessidade de prudência em novos
empreendimentos. Paralelamente, o fim do bipolarismo, a prevalência das noções
de mercado e a virtual eliminação do conceito de desenvolvimento da pauta
internacional alteraram substancialmente as possibilidades de ação solidária.
Por sua vez, na África, as perspectivas otimistas de três décadas atrás
definharam, as lideranças não se renovaram e, sem a muleta ideológica, perderam
expressão, as economias, em grande número, involuíram e os Estados se
debilitaram.
É curiosa a insistência em uma política africana, que pareceria sugerir uma
repartição eqüânime dos meios da diplomacia brasileira entre parceiros tão
díspares como Angola e Burquina-Fasso, África do Sul e Ruanda, Nigéria e
Djibuti. Ora, com a mesma naturalidade com que se admite que Alemanha,
Luxemburgo, França e Portugal oferecem oportunidades específicas, que demandam
respostas individualizadas, não necessariamente generalizáveis sob o rótulo de
"política européia", também na África cumpre aplicar os nossos recursos com
critério. Seletividade não significa desinteresse pelas grandes causas comuns a
todos os africanos de resto, a toda a humanidade como a busca da paz, o
desenvolvimento econômico, a democracia, os direitos humanos. Denota, apenas,
pragmatismo na alocação de recursos limitados.
As teses catastrofistas parecem ainda mais deslocadas da realidade. Em seu
imediatismo, desvalorizam as oportunidades abertas pela qualidade do nosso
trânsito diplomático com os países africanos e descuram do fato de que vários
deles vêm obtendo, desde 1994, taxas anuais de desenvolvimento econômico
superiores a 5 %, com alguns desempenhos individuais destacados, acima de 10%.
Incentivar essa tendência é do interesse de toda a comunidade internacional,
pois, de um lado, o crescimento africano redundaria em lucros também
extrazonais e, do outro, os custos sócio-econômicos de uma regressão caótica do
continente africano seriam imensos e não se limitariam à África. Basta imaginar
os agravos à consciência e a intranqüilidade política que fortes surtos
migratórios de africanos flagelados provocariam nos países de destino.
A crise africana
Para entender a crise africana em toda a sua complexidade, convém investigar-
lhe as causas. Christopher Clapham propõe a tese de que a era pós-colonial
somente agora está terminando na África. Lançados à independência há cerca de
40 anos, com fronteiras desenhadas de forma quase randômica, desatentas das
zonas ecológicas e dos padrões sociais autóctones, em geral desprovidos de
coerência interna e carentes de infra-estrutura, os Estados subsaáricos eram
candidatos improváveis à sobrevivência. Em retrospecto, muitos deles fizeram
até mais do que se poderia esperar. As estruturas políticas formais deixadas
pelos colonizadores, impraticáveis, na maioria dos casos, dadas as condições
nativas, foram absorvidas pelo que Patrick Chabal denominou de "sistema
neopatrimonial", sob cuja égide as elites locais se asseguraram de certos
privilégios e em troca admitiram a autoridade do Estado.
A Organização da Unidade Africana priorizou, hobbesianamente, o reforço da
soberania dos Estados membros e a regulamentação das relações entre eles. As
superpotências, a princípio sem maiores interesses na África, deixaram às
antigas metrópoles a transmutação das colônias em Estados. O ambiente
internacional permaneceu razoavelmente seguro para os novos países africanos
nas duas décadas subseqüentes à independência.
Na virada dos anos 70, porém, o neopatrimonialismo entrou em colapso e os
dirigentes africanos pretenderam compensar pela força o que não mais conseguiam
pela persuasão. A doutrina da soberania irrestrita, de início conveniente para
a consolidação dos frágeis Estados, gerou um mecanismo pernicioso, que
estimulava regimes autocráticos a recorrerem à ajuda militar dos seus
patrocinadores internacionais, ao invés de negociarem soluções endógenas. A
resistência interna intensificava os temores das metrópoles, potencializados
pela lógica da Guerra Fria. Assim, estavam dadas as condições para uma intensa
militarização do continente.
A partir dos anos oitenta, instituições financeiras internacionais, lideradas
pelo FMI e pelo Banco Mundial, impuseram os programas de ajustamento
estrutural, que os Estados africanos absorveram, seja pela fragilização
decorrente do endividamento externo, seja pelo hábito de recorrer ao
receituário ocidental. Enquanto o ajustamento estrutural pretendia criar as
condições para que o livre mercado sanasse a incompetência e saneasse a
corrupção, as ONGs supunham-se capazes de suplementar ou substituir os governos
africanos em quase todos os setores de atividade, as ênfases episódicas
ziguezagueando do combate à desnutrição à proteção de elefantes e rinocerontes.
Nas brechas deixadas pelo declínio do comunismo, procurava-se complementar a
reforma econômica com o liberalismo político.
Essa tentativa de reconstruir a África a partir da premissa simplista, mesmo se
bem intencionada, de que todas as sociedades seguiriam o mesmo padrão de
transformação econômica e sócio-cultural não vem tendo sucesso. Uma década e
meia de ajustes estruturais não produziram sinais de transformação econômica,
nem de estabilidade política na África.
Clapham sugere dois motivos básicos para o fracasso. Em primeiro lugar, o
ajustamento estrutural embutia condicionalidades complexas, de delicado
monitoramento, que dificilmente poderiam ser implementadas pelos governos que
estavam sendo "aperfeiçoados". Em segundo lugar, foram sempre insuficientes os
recursos que os países ocidentais se dispuseram a consignar, decorrência do
baixo nível de prioridade política dos projetos. Os países ocidentais não
estavam dispostos a se empenhar a fundo em áreas de interesse marginal.
Ênfases diplomáticas brasileiras
No Brasil, a década dos 80 também foi de crise, da qual emergiu a consciência
da necessidade de atualizar a inserção mundial do país. Os anos 90, além das
mudanças no mundo, trouxeram a consolidação político-institucional, a ênfase
nos direitos humanos, o redimensionamento do Estado e a abertura econômica,
evolução necessária para adequar o país aos anseios de seus eleitores e às
conveniências do cenário internacional. No Governo Fernando Henrique Cardoso,
as relações com Estados Unidos e Europa atingem níveis qualitativos
excepcionais e, enquanto se avança em direção ao aprimoramento das relações com
a Ásia, o sucesso do Mercosul faz as atenções do empresariado convergirem para
os vizinhos continentais. Nesse contexto, a posição relativa da África perde
atrativos.
A política externa não se detém, contudo, no curto prazo. A diplomacia
brasileira reconhece o potencial africano e, por isso, empenha-se, no âmbito
externo, para alavancar apoio às causas africanas e, no interno, para persuadir
setores influentes da sociedade brasileira a se engajarem na ampliação do
relacionamento com a África. Nesta última tarefa, os interesses econômico-
comerciais assumem relevância fundamental. Ao falar nas perspectivas das
relações Brasil-África, impõe-se conferir, portanto, uma atenção muito especial
às oportunidades e desafios da vertente comercial do relacionamento.
As relações comerciais
Nesse exercício, há que distinguir os problemas genéricos, enfrentados por
empresas de todos os países, daqueles específicos das empresas brasileiras em
seu esforço para concorrer com as estrangeiras, sobretudo européias, já há
muito estabelecidas abaixo do Saara.
Os primeiros vinculam-se à recorrente instabilidade política e econômica da
maioria dos países africanos e são de molde a produzir dificuldades para a
instalação e operação das empresas no terreno. Dizem respeito, essencialmente,
ao "custo África".
O economista nigeriano Adebaio Adedeji sustenta que "a crise africana atual,
embora com conseqüências econômicas devastadoras, é essencialmente política". O
tribalismo latente, o mau funcionamento das instituições do Estado e a falta de
mecanismos políticos capazes de acomodar pacificamente os diversos interesses
em conflito encontram-se no cerne da instabilidade nos países africanos.
A instabilidade gera um ambiente econômico de reduzida previsibilidade que,
junto com as deficiências em infra-estrutura e com o baixo poder aquisitivo dos
mercados africanos, desencoraja investimentos. Daí o "custo África" montante
extra de investimento requerido para superar deficiências estruturais, como
falta de segurança; precariedade dos sistemas financeiro, de saúde, de
transportes e de comunicações; baixa produtividade dos recursos humanos locais
e elevados níveis de corrupção. O "custo África" erode o interesse pelo
continente, afastando os países africanos das rotas dos capitais privados na
atual fase de globalização da economia.
Estatísticas do Banco Mundial indicam que os fluxos financeiros líquidos para
os 47 países da África subsaárica apresentaram uma queda real de 16,9% entre
1980 e 1993. Em 1995, a região captou menos de 3% dos investimentos
estrangeiros diretos realizados em países em desenvolvimento e participou com
apenas 1,4% do total das exportações mundiais.
Soma-se a isso a crise dos organismos financeiros multilaterais que foram peça
chave do crescimento econômico africano nos anos 70. A ajuda externa vem sendo
considerada pelos próprios governos africanos como uma dying industry, incapaz
de reagir diante das necessidades de investimento naquele continente. Enquanto
os capitais privados aumentaram em US$ 60 bilhões no biênio 1995-1996, a
assistência oficial ao desenvolvimento, provinda de instituições multilaterais,
caiu em cerca de US$ 12 bilhões. Ora, na África subsaárica a ajuda oficial era
responsável, em 1993, por 91% dos fluxos líquidos totais.
A partir dos anos 80, começou a ser questionada a utilização de recursos
multilaterais para financiar investimentos estatais em modelos de
desenvolvimento centrados na substituição de importações e na proteção ao
mercado interno. Essa tendência vem ditando um comportamento crescentemente
austero por parte dos países doadores. Em conseqüência, os investimentos brutos
nos países africanos, vinculados basicamente a aportes das agências
multilaterais, diminuíram 22% entre 1980 e 1994, passando de 18,6% para 10,8%
do PIB.
A queda das receitas das exportações tradicionais, determinada pela
deterioração dos preços das commodities, gerou a acumulação de atrasados nos
pagamentos da dívida externa, hoje uma variável crítica. Os países mais pobres
altamente endividados (highly indebted poorer countries HIPCs) encontram-se
predominantemente na África: dos 41 HIPCs, 33 são africanos e entre os 20 HIPCs
para os quais a situação do endividamento foi avaliada como insustentável, 16
estão na África subsaárica. A realidade atual do continente, em particular a
realidade dos HIPCs, combina dívidas crescentes e estagnação econômica,
revelando que todos esses anos de políticas de ajustes estruturais não foram
suficientes para dar partida ao crescimento sustentado na África.
Por sua vez, as dificuldades específicas do empresariado brasileiro estão
ligadas a: questões subjetivas, como o desconhecimento mútuo e a preferência
africana pelas empresas européias e seus produtos; escassez de transporte
direto entre o Brasil e a África; práticas indevidas, como protecionismo,
subsídios e reserva de mercados, em detrimento de empresas brasileiras;
deficiências nos mecanismos de crédito e seguros para exportações de bens e
serviços brasileiros.
Excluídas algumas grandes empresas, que procuram consolidar presença no
continente, o setor privado brasileiro não está familiarizado com as diferenças
entre os diversos países africanos, tendendo a julgar a África como um todo em
função dos aspectos negativos ressaltados pela imprensa.
No sentido inverso, os africanos também desconhecem a qualidade de nossos
serviços e produtos. As intensas ligações com a Europa e a longa tradição de
produtos e empresas européias criaram vínculos quotidianos de informações que
providenciam a atualização constante dos consumidores africanos. Por
conseguinte, desenvolve-se de modo subliminar a confiança e a simpatia do
africano por determinadas empresas e produtos europeus.
As empresas européias, implantadas há longo tempo nos países africanos,
participam do mercado de bens e serviços com conhecimento do terreno semelhante
ao de uma empresa local. Isto traz competitividade em termos de custos de
instalação e mobilização. As empresas possuem equipamentos já alocados aos
projetos do país, equipes com quadros africanos e conhecimento das exigências
legais e do funcionamento da burocracia local.
Tais aspectos acabam por determinar, em uma relação ao mesmo tempo de causa e
efeito, fluxos comerciais constantes com a Europa, os quais favorecem, por sua
vez, o estabelecimento de rotas aéreas e de navegação, cuja existência influi
positivamente nos custos. No caso brasileiro, ao contrário, a insuficiência de
ligações diretas com o continente africano reduz a capacidade de concorrência
em matéria de preço e prazo de transporte.
O protecionismo, os subsídios e as reservas de mercado são especialmente
relevantes quando estão em jogo concorrências internacionais para obras de
infra-estrutura. Freqüentemente, os bancos de desenvolvimento de países
europeus concedem financiamentos subsidiados aos países africanos com a
contrapartida de que os projetos beneficiados sejam realizados por empresas dos
países financiadores. Este é o caso, por exemplo, de instituições como FED
(Fundo Europeu de Desenvolvimento), CED (Caisse Française de Dévélopement) e
KFW (Fundo Alemão de Desenvolvimento). Além dos europeus, os fundos árabes, ao
concederem financiamentos, normalmente exigem proteção para a empresa árabe ou
islâmica que esteja participando da concorrência.
Outro complicador é a participação nas concorrências públicas de empresas
estatais, notadamente de países socialistas ou ex-socialistas. Tais empresas
beneficiam-se de subsídios dos respectivos Governos, provocando "dumping" nos
preços e alijamento de empresas que não se valem dessa indevida proteção.
Em outros casos há, ainda, interferência direta de Governos, principalmente
europeus, em favor de empresas de seus países, por meio de pressões políticas e
"trade-offs" junto aos dirigentes africanos.
Finalmente, constata-se um desequilíbrio no tocante aos instrumentos de
financiamento e seguro às exportações de bens e serviços. Alguns países
europeus mantêm seguro de risco político, o que permite cobertura a empréstimos
ou realizações em obras e serviços de suas empresas. Isto dá maior segurança às
empresas européias, bem como aos seus fornecedores e sub-empreiteiros, no
planejamento de suas propostas e na decisão sobre investimentos a serem feitos.
Apesar dos obstáculos, as estatísticas comerciais brasileiro-africanas dos
últimos vinte e cinco anos apresentam quadro relativamente positivo. De 1970 a
1984, excetuadas breves descontinuidades nos períodos de 1975-77 e 1982-83, o
comércio bilateral cresceu em níveis constantes, partindo de US$ 130 milhões e
superando os US$ 3 bilhões. De 1985 a 1996, a despeito da crise econômica e da
"década perdida", os fluxos comerciais anuais médios, nos dois sentidos, foram
da ordem de US$ 1,8 bilhão.
Em 1999, importamos da África um total de US$ 2.222.163,30 e exportamos US$
1.336.446,20. Com relação a 1998, deu-se uma queda nas exportações da ordem de
19,1%, devida principalmente a um acentuado declínio das vendas de açúcar, o
que causou perdas de cerca de US$ 147 milhões em receita. Por sua vez, o bloco
africano aumentou suas vendas em 22,2%, devido sobretudo às nossas aquisições
de petróleo e derivados da Argélia e da Nigéria. O déficit de US$ 885,7 milhões
sugere a conveniência de iniciativas que compensem o aumento das importações
com maiores compras de produtos brasileiros.
Esse objetivo é perfeitamente exeqüível. Dadas as afinidades culturais e a
familiaridade estimulada por condições semelhantes de terreno e clima, as
empresas brasileiras possuem vantagens comparativas para participar no
desenvolvimento africano. O patamar tecnológico de nossas empresas permite
atuação em setores de média complexidade, dotados de capacidade indutora, como
a formação profissional, a construção civil, a agricultura, e outros.
Em seminário na FIRJAN, o Dr. Eduardo Eugênio Gouveia Vieira aventou a hipótese
de o BNDES analisar a viabilidade da abertura de linhas de crédito para
empresas brasileiras que fossem produzir na África. A sugestão mereceria uma
avaliação generosa dos novos diretores do Banco.
A par disso, a experiência de integração entre economias de nível industrial
médio, vivida no Mercosul, credencia o Brasil e seus parceiros sul-americanos a
desenvolver uma cooperação com entidades de porte semelhante na África, gerando
um efeito multiplicador sobre o relacionamento econômico-comercial.
A parceria sul-africana
Projeto dessa natureza está em gestação com a África do Sul. Em sua recente
visita àquele país, o Ministro Luiz Felipe Lampreia levou minuta de acordo
visando à efetiva integração das economias brasileira e sulafricana, a partir
da liberalização do comércio recíproco. As negociações prevêem a participação
dos nossos sócios no Mercosul, para evitar perfurações na tarifa externa comum.
A idéia é conduzir o tema em três etapas. De início, deverá ser assinado um
acordo-quadro, que definirá cronogramas e critérios de negociação de um
posterior acordo de preferências tarifárias fixas (nomenclatura, prazos de
desgravação, disciplinas comerciais, outras matérias). Para o acordo de
preferências tarifárias fixas, antecipa-se uma duração de cerca de dois anos.
Um acordo de livre comércio culminaria o processo.
A gradual abertura dos mercados permitirá a identificação dos produtos a serem
negociados, uma vez que o comércio Mercosul África do Sul não tem ainda
volume que permita antecipar com clareza as sensibilidades comerciais de lado a
lado. Além disso, facilitará a aceitação do esquema pelas respectivas
comunidades empresariais, que terão mais tempo para identificar seus
interesses.
O intercâmbio comercial com a África do Sul ainda é modesto, em torno de meio
bilhão de dólares nos dois sentidos. Representa pouco menos de 1% do comércio
total sul-africano e algo em torno de 0,5% do brasileiro. Em 1999, o Brasil
obteve um superávit de US$64 milhões, alterando o perfil do último qüinqüênio.
A pauta do intercâmbio já é sofisticada, sendo os principais produtos, do lado
das exportações brasileiras, veículos (21%), caldeiras e máquinas (12%) e
aparelhos elétricos (6%). Os novos acordos darão renovado ímpeto a essa
tendência do relacionamento.
Há muitas outras áreas de expansão no relacionamento com a África do Sul, como
os entendimentos diplomáticos sobre a reforma da ONU, o meio ambiente, a OMC
pós-Seattle e o desarmamento nuclear, a cooperação cultural (as co-produções
cinematográficas gerando expectativas atraentes) e técnica, científica e
tecnológica, a colaboração nos setores da saúde (em especial na prevenção da
AIDS) e militar, o combate ao narcotráfico. A agenda é farta, até porque os
dois países se assemelham no que têm de bom e de mau. São nações multirraciais,
democracias recentes, economias pujantes. São, também, sociedades injustas, que
convivem com índices lamentáveis de distribuição de riqueza.
Desde 1994, com a eleição de Nelson Mandela, sobretudo desde 1996, ano da
visita do Presidente Fernando Henrique Cardoso, o relacionamento vem assumindo
ritmo acelerado. Recupera-se o tempo em que as relações governamentais ficaram
reprimidas pela recusa brasileira a colaborar com o regime do apartheid. O
Brasil deposita confiança nos dirigentes sul-africanos e discorda das previsões
alarmistas que costumam surgir às vésperas de cada etapa da evolução
institucional do país. A transição tranqüila da presidência de Mandela para a
de Thabo Mbeki acrescenta razões para acreditar na competência das lideranças
do Congresso Nacional Africano.
A parceria angolana
O Governo brasileiro está convencido de ter razão também no que diz respeito ao
encaminhamento da questão angolana. Angola é um país rico. Dispõe de petróleo,
diamantes e terras férteis, além de água, recurso de que carece a maioria dos
países africanos. Fatores estruturais de aproximação são os vínculos
históricos, a afinidade cultural e a singular contribuição angolana à formação
do povo brasileiro.
Desde 1975, quando reconheceu o MPLA como o governo legítimo de Angola, o
Brasil vem dando apoio a Luanda. Não se trata de uma aposta caprichosa, nem de
uma opção inconseqüente. A decisão decorre de um diagnóstico ponderado, que
leva em conta o fato de Angola ter sido uma das grandes vítimas da Guerra Fria
e o MPLA a agremiação política local capacitada a manter a integridade do
território angolano.
Além de enviar para Angola, no âmbito da UNAVEM, o maior contingente militar
brasileiro no exterior desde a II Guerra Mundial, o Governo Fernando Henrique
Cardoso Brasil vem multiplicando sinais de solidariedade, da qual um exemplo
recente é a instalação, nas proximidades de Luanda, do Centro Móvel de Formação
Profissional, com capacidade para formar centenas de profissionais de nível
médio por ano. Em contrapartida, o Governo angolano retribui com impecável
regularidade nos pagamentos da dívida externa e com acolhedora simpatia pelos
produtos e empresas brasileiros. A Braspetro, que há anos atua no país, é
candidata a novas licitações; dada a qualidade e amplitude dos serviços que vem
prestando, inclusive na formação profissional de técnicos angolanos, não temos
dúvida de que manterá a condição de âncora da cooperação bilateral. Por sua
vez, a Odebrecht desenvolve projetos na hidrelétrica de Capanda, na mineração
em Lusamba e Katoka e na construção de bairro residencial em Luanda. Várias
outras de nossas empresas lá operam com ampla margem de sucesso.
No plano internacional, há muito o Brasil dedica esforços ponderáveis à
conscientização de países amigos para os riscos de deixar-se a situação
angolana à deriva. Esse trabalho continua na ordem do dia. Parceiros poderosos
ainda hesitam em assumir um papel determinante na eliminação da pendência
militar entre o Governo de Luanda e a UNITA de Jonas Savimbi. A síndrome da
"fadiga com a África" contribui para confundir, na percepção do observador
comum, as vicissitudes de Angola com as de tantos outros países africanos. O
"fator CNN" passa ao largo dos problemas angolanos, talvez por não terem sido
afetadas em maior medida as grandes empresas norte-americanas ou européias, que
extraem petróleo off shore.
A ação diplomática brasileira baseia-se no diagnóstico de que o principal
responsável pelo fracasso do Protocolo de Lusaka foi Savimbi. Cabe
responsabilizá-lo por sua rebeldia. O Conselho de Segurança das Nações Unidas
(CSNU) não pode mais deliberar sobre o assunto com base em uma premissa de
eqüidistância entre as partes. Para preservar a própria autoridade do Conselho,
é necessário manter a questão na ordem do dia e aumentar as pressões no sentido
da plena implementação das sanções. A caracterização da UNITA como "movimento
rebelde" abriu perspectivas de êxito para essa estratégia, reforçada,
posteriormente, pelo endosso do CSNU ao relatório do Presidente do Conselho de
Sanções, o Embaixador canadense Robert Fowler, que instou os Estados membros a
tomar medidas adicionais para o aperfeiçoamento das sanções.
Recente estudo do Conselheiro Paulo Roberto Campos Tarrisse da Fontoura
constata que as sanções do CSNU à UNITA se enquadram na nova tendência das
Nações Unidas para limitar o alcance das punições a alvos precisos, de modo a
minimizar impactos humanitários e efeitos sobre terceiros Estados. A Resolução
864 (1993) proíbe a exportação de armamento e material correlato, bem como de
petróleo e produtos derivados à UNITA e a seus agentes. A de número 1127 (1997)
veda a entrada e o trânsito de militares da UNITA e de seus familiares nos
Estados membros, além de determinar o fechamento dos escritórios de
representação do movimento rebelde no exterior e a imposição de um embargo de
transporte aéreo e marítimo. A Resolução 1173 (1998) reprime a importação de
diamantes procedentes de Angola que não tenham um certificado de origem emitido
pelas autoridades governamentais angolanas, bem como o fornecimento de
equipamentos e serviços de mineração. Determina, igualmente, o bloqueio dos
fundos e recursos financeiros do movimento rebelde.
Essas sanções, aprovadas com o decidido apoio do Brasil, buscam identificar,
estigmatizar e isolar a UNITA e suas lideranças, sem causar sofrimento
desnecessário à população civil e sem impor ao Governo angolano amarras que
inibam esforços em prol do desenvolvimento econômico e da superação dos
problemas provocados pela guerra. Não obstante, durante a vigência dessas
sanções, a UNITA adquiriu, por vias ilegais, armamentos em volume e qualidade
capazes de sustentar um conflito prolongado, e tem mantido canais de contatos
com o mundo exterior. Pondera Tarrisse que isso demonstra a necessidade de uma
reflexão, por parte das Nações Unidas e particularmente do CSNU, sobre a
estratégia em curso, com base na premissa de que a aprovação das Resoluções
864, 1127 e 1173 impõe aos Governos dos Estados membros o dever de empenhar-se
para o estabelecimento de um regime capaz de funcionar na prática.
Não se pode ainda marcar data para o fim da crise angolana. Há, contudo, sinais
de evolução positiva. O Presidente José Eduardo dos Santos convocou eleições
para o próximo ano e se engajou em um programa de reforma econômica que já
começa a apresentar resultados. Paralelamente, em uma demonstração de
sensibilidade política, o Governo de Luanda se recompõe com as Nações Unidas e
parece disposto a limar as arestas com os vizinhos regionais. Por sua vez, a
empresa De Beers, gigante da mineração e comercialização de pedras preciosas,
comprometeu-se a adquirir somente diamantes certificados pelo governo angolano.
A pressão dirige-se agora a outros centros vendedores das gemas, acuados pela
determinação do Embaixador Fowler de name and shame os violadores das sanções.
Angola readquire otimismo e esperança de que cesse enfim a intranqüilidade que
susta há quatro décadas o desenvolvimento do país e corrói o bem estar do povo.
As condições estão dadas para que o relacionamento bilateral receba notável
impulso quando esse momento chegar. Projeções desse tipo começam a ser
consideradas por setores do empresariado brasileiro, persuadidos de que chegou
a hora de demarcar espaço no mercado angolano.
A parceria nigeriana
É tempo de conquistar posições também no mercado nigeriano. A Nigéria é o maior
parceiro comercial do Brasil na África negra. Há dois anos, o fluxo nos dois
sentidos atinge volume em torno de US$ 1 bilhão, a despeito do relativo
esfriamento das relações com o Brasil e com a maioria dos países ocidentais
durante os quase cinco anos de governo do General Sani Abacha (novembro de 1993
a junho de 1998).
A eleição, no ano passado, do Presidente Olusegun Obasanjo, político habilidoso
e conciliador, abre perspectivas de ampliação do relacionamento bilateral em
múltiplos quadrantes. Obasanjo visitou o Brasil, ainda como Presidente-eleito,
pouco antes de tomar posse, em maio de 1999. Foram então alinhavados os
movimentos iniciais do processo de reaproximação, que contemplam, no corrente
ano, a ida de missão comercial brasileira à Nigéria e a realização no Brasil de
uma reunião multissetorial de alto nível.
Como se sabe, a sociedade nigeriana é particularmente complexa. Seus 120
milhões de habitantes dividem-se em pelo menos 250 etnias (entre as quais a dos
iorubás, predominantes na região sudeste, os ibos, a leste e os hausas e
fulanis, ao norte) e religiões (50% islâmicos, 35% católicos, 15% animistas).
As tensões regionais, recorrentes desde a independência, alcançada em 1960,
levaram os ibos a proclamar a "República Independente de Biafra", seguindo-se a
guerra civil, de 1967 a 1969. Desde então, sucedem-se os golpes militares.
A Nigéria é, por outro lado, um país com uma elite refinada, uma diplomacia
atuante e um exército bem treinado e equipado. Foi instrumental na criação, em
1975, da "Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO ou, em
inglês, ECOWAS, como prefere a nossa imprensa). Exerce notória ascendência
sobre o entorno africano, haja vista a derrota diplomática imposta a Mandela,
que advogou, sem nenhum sucesso, a imposição de sanções da OUA ao governo
Abacha, na seqüência da execução do escritor Ken Saro-Wiwa e outros oito
líderes da minoria ogoni, em novembro de 1995. Na esteira desse episódio,
realizamos consultas com os vizinhos da Nigéria. Estes, temerosos das
conseqüências políticas, econômicas e militares de um isolamento da Nigéria,
sem exceção recomendaram que mantivéssemos a Embaixada em Lagos em pleno
funcionamento, ao invés de fechá-la em sinal de protesto, como preferiam os
integrantes da Commonwealth.
Os desmandos de Abacha incentivaram a corrupção e o narcotráfico. Foi nesse
contexto que a VARIG suspendeu o vôo Rio de Janeiro Lagos. Também aumentaram
consideravelmente, desde essa época, os casos de "fraude 419", praticadas por
falsos empresários que oferecem, por meios de cartas ou correio eletrônico,
vantagens mirabolantes a empresários estrangeiros gananciosos e mal informados
(419 é o número do artigo do Código Penal nigeriano que tipifica o delito).
Fica o alerta.
A cultura nigeriana mereceu sempre a atenção de centros afro-brasileiros;
existe projeto de ensino do idioma iorubá em algumas de nossas universidades e,
recentemente, o Governo da Bahia concedeu espaço para a instalação, no
Pelourinho, de uma Casa da Cultura da Nigéria. Em 1998, a Braspetro assinou
dois contratos de risco para a prospecção de petróleo no delta do Níger; em
breve, a empresa deverá instalar escritório local e intensificar sua presença
em território nigeriano. Os entendimentos político-diplomáticos também
prosperam e prevê-se para breve a realização de uma reunião multissetorial de
alto nível, seguida de visita ao Brasil do Vice-Presidente Alhaji Abubakar.
A natural atração exercida pela África do Sul, Angola e Nigéria não exclui a
cooperação com outros países, em geral assentada sobre um projeto-âncora ou uma
idéia-força. Entre esses, incluem-se o Cameroun, país em que a Andrade-
Gutierrez mantém empreendimento promissor; o Gabão, onde poderá ser instalada
uma mini-siderúrgica pela ISCOM; Gana, que se tem distinguido no interior da
CEDEAO pelo equilíbrio da atuação diplomática e pelo estímulo à integração
econômica; o Congo Brazzaville e a Guiné Equatorial, com os quais a Braspetro
desenvolve negociações; o Mali, alvo de atenções do Banco Mundial e para o qual
a CODEVASF desenhou interessante projeto; a Namíbia, que oferece condições
excepcionais para a entrada de produtos brasileiros em território africano e
com a qual a Marinha do Brasil mantém exemplar cooperação. E, evidentemente,
não pode faltar nessa lista uma especial menção aos países lusófonos, nossos
sócios na edificação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa CPLP.
A CPLP
A comunidade tem raízes na imaginação criadora de pensadores da estirpe de
Silvio Romero e Gilberto Freyre. A base de sua arquitetura foi construída pelo
Presidente José Sarney, ao criar o Instituto Internacional de Língua Portuguesa
IILP, em 1989. Mas seu maior entusiasta foi, sem dúvida, o Embaixador José
Aparecido de Oliveira, que impeliu o movimento cuja institucionalização só se
verificaria, entretanto, sob o Governo Fernando Henrique Cardoso.
Da gênese se infere uma primeira dificuldade para a gerência do projeto. Entre
a concepção e a criação, lembra Eliot, há sempre sombras. Os sonhadores
encontram sempre defeitos na versão possível do sonho para a realidade.
Os Chefes de Estado e de Governo de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau,
Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe, reunidos na Conferência de Lisboa
de julho de 1996, convieram na criação de um mecanismo com três funções
básicas: a concertação político-diplomática, a valorização da língua portuguesa
e a cooperação técnica, científica e tecnológica. Para tanto, acordaram
encontrar-se a cada dois anos em reuniões de cúpula, de onde partiriam as
diretrizes gerais para a atuação do organismo e determinaram que seus
Chanceleres conferenciariam anualmente, para imprimir os rumos do Comitê de
Concertação Permanente CCP, formado pelos Embaixadores dos sete países
membros em Lisboa, e do Secretariado-Executivo (também sediado,
provisoriamente, em Lisboa).
Como órgão de concertação político-diplomática, a CPLP teve seu batismo de fogo
em 1998, na crise da Guiné Bissau. Ao negociar o fim das hostilidades entre as
partes em conflito, ao articular-se com a CEDEAO, órgão regional com evidentes
responsabilidades no caso e, sobretudo, ao evitar a repartição do território
guineense, sem violência e sem a militarização de seus métodos, a CPLP passou
com louvor no teste, conforme reconheceram, entre outros, o Secretário-Geral da
ONU e os governos dos EUA e da França.
O fenômeno já foi constatado: a globalização está levando países em todo o
mundo a desenvolverem uma consciência mais aguda de sua individualidade. Sendo
a língua portuguesa o traço de união que confere identidade aos membros da
CPLP, é natural que a Comunidade se dedique a valorizá-la e difundi-la. A
implementação do IILP e do Acordo Ortográfico são etapas cruciais dessa tarefa.
Das três vertentes da CPLP, a cooperação técnica é, talvez, a mais premente
para a maioria dos membros africanos. O Brasil vem se empenhando para garantir
uma base operacional adequada à cooperação intracomunitária. Já foi assinado um
Acordo Geral, definindo regras comuns a todos, negociado um Fundo Especial, ou
seja, um "trust fund" vinculado a projetos específicos, e estabelecida a área
prioritária de ação, que é a da educação e formação profissional.
Um aspecto saudável a ressaltar é o expressivo número de iniciativas que vêm
sendo tomadas, espontaneamente, com vistas à cooperação nos mais variados
setores. A CPLP não é um arranjo exclusivista entre chancelarias. Para ser
efetiva, deve empolgar todas as áreas dos governos e das sociedades dos países
membros. São, assim, bem-vindas as múltiplas iniciativas em curso congregando
Tribunais de Contas, Ministérios da Agricultura, Educação, Meio Ambiente,
Justiça, Telecomunicações, Trabalho, e ainda dos Correios, organizações
cooperativistas, entidades municipais, juristas, jornalistas, associações
empresariais, estudantis, assistenciais e a lista não é exaustiva. As
resoluções emanadas desses encontros agregam substância à pauta da CPLP.
Tendo em vista que o Brasil havia sido o impulsionador da idéia comunitária,
julgou-se, em alguns círculos, que o primeiro Secretário Executivo deveria ser
um brasileiro. Mas o tempo vai demonstrando que foi sábia a opção pelo
preenchimento do cargo por um critério neutro de ordem alfabética. Dadas as
características da Comunidade, composta por seis antigas colônias, cinco das
quais africanas e uma ex-potência colonial, nada mais natural do que confiar a
tarefa a um africano. Além disso, a circunstância de Marcolino Moco ter sido
Primeiro Ministro angolano é expressiva. Uma Angola pacificada e atuante será
um fator de fortalecimento da CPLP.
Em julho próximo, chegará a vez de um brasileiro assumir a chefia do
Secretariado Executivo. Encontrará um arcabouço normativo bastante avançado,
prioridades de ação definidas e mesmo uma razoável base financeira com que
trabalhar, mercê de recursos recém-aprovados pelo Congresso Nacional. Deverá
dedicar-se à divulgação das metas da CPLP, dar organicidade às várias
iniciativas que se desenvolvem sob o guarda-chuva comunitário, ampliar o
diálogo com organismos internacionais e associá-los a projetos conjuntos, a fim
de maximizar a eficácia dos recursos escassos. Precisará de sensibilidade para
lidar com as conseqüências do desequilíbrio entre as exigências da opinião
pública em Portugal, onde os assuntos dos países lusófonos fazem manchetes todo
dia, e o silêncio no Brasil, onde a mídia não tem intimidade com as questões
comunitárias. E será convocado a desempenhar um papel político de crescente
importância, pois a CPLP já tem maturidade bastante para pronunciar-se sobre
temas como democracia e direitos humanos.
A CPLP não é o remédio para todos os males. Trata-se de um instrumento
político-diplomático, destinado a promover a aproximação entre os seus membros
e forjar parcerias. Não substitui, mas sim complementa e fortalece a ação
bilateral. Seus objetivos são de longo prazo, suas regras democráticas, seu
espaço aberto à colaboração de outros parceiros, públicos ou privados, intra e
extrazona. Está dando certo na medida em que vem se firmando sem precipitações,
não se transformou em "chasse gardée" de nenhum país, nem em caixa de
ressonância para reivindicações dos mais carentes, nem em mais uma burocracia
amarrada a projetos paroquiais. Para prosseguir no caminho correto, deverá
ater-se a metas exeqüíveis, maximizar a equação custo/benefício e, sobretudo,
consolidar consensos. Dessa maneira, servirá cada vez melhor aos seus sete
integrantes oito, muito em breve, quando se der a plena incorporação de Timor
Leste.
A necessária ação multilateral
Ao considerar as questões da África, convém manter em mente a observação de
Abedaio Adedeji de que um processo de alteração profunda e durável no panorama
africano deve ser informado por uma concepção política abrangente.
O estancamento das crises que persistem em várias regiões africanas é o tipo de
missão capaz de conceder um renovado destaque às Nações Unidas, organização que
dispõe da amplitude de ação necessária à abordagem integrada dos problemas no
continente. No entanto, as decisões no âmbito da ONU refletem o que pensam, ou
pelo menos aquilo a que não objetam os países mais poderosos. Na interação
entre as múltiplas soberanias, anotou Celso Lafer, a anarquia dos significados
é freqüentemente equacionada com base na visão dos mais fortes, embora haja
espaço para acomodações, uma vez que mesmo os membros permanentes do CSNU
sentem-se compelidos a se legitimarem, balizando-se pelos princípios éticos da
Carta de São Francisco.
Realisticamente, as Nações Unidas pouco avançarão, se além do empenho dos
próprios africanos não houver o comprometimento das principais potências com a
construção de um futuro melhor para a África. Por isso, é digna de nota a
movimentação em curso na Europa e nos EUA nesse particular.
A Cúpula Euro-Africana, realizada no Cairo, em abril do corrente ano, reuniu 52
países africanos e 15 europeus em torno de uma agenda negociada exaustivamente,
na qual a questão da dívida africana, hoje avaliada em US$ 350 bilhões, recebeu
atenção especial. Acordou-se destinar um bilhão de euros ao Fundo de
Desenvolvimento Europeu para reduzir os efeitos do endividamento sobre os
HIPCs. França e Alemanha foram além e anunciaram o cancelamento parcial dos
débitos dos países africanos mais pobres. No balanço final dos trabalhos,
constatou-se que, de lado a lado, existe hoje uma consciência mais objetiva dos
pecados e limites individuais. Há também uma preocupação crescente com a
objetividade.
Nos EUA, após a viagem do Presidente Bill Clinton, no primeiro semestre de
1998, a seis países africanos, parece estar em andamento uma significativa
inflexão política. Em março do ano passado, a US-Africa Ministerial Conference:
Partnership for the XXI Century juntou em Washington representantes de 46
países subsaáricos, que ouviram do próprio Presidente Clinton promessas de
empenho na redução da dívida dos países mais pobres. Embora não responda às
expectativas empresariais africanas, o African Growth and Opportunity Act no
mínimo indicará, se aprovado pelo Senado norte-americano em setembro próximo,
um renovado interesse da classe política dos EUA no encaminhamento das questões
africanas.
Uma bem avisada participação dos países mais ricos seria essencial na
canalização de recursos para investimentos destinados a ampliar e modernizar os
sistemas produtivos em países africanos. Investimentos com seguro e condições
de pagamento adequados são necessários para assegurar os aperfeiçoamentos da
infra-estrutura e o estímulo à eficiência em setores chave da economia
africana. Além de eficazes, investimentos dessa natureza são democráticos e têm
potencial mais duradouro do que programas assistenciais.
A questão do acesso ao crédito assume, igualmente, papel estratégico na ruptura
do círculo vicioso da falta de investimentos redução da eficiência riscos
ampliados dificuldade de obtenção de créditos para investimentos.
O aperfeiçoamento dos recursos humanos é fator que reclama atenção especial.
Neste ponto, é necessário não estimular "evasão de cérebros" nem gerar
"reservas de mercado" para profissionais dos próprios países doadores. A
cooperação atrelada a contrapartidas do interesse de empresas dos países
doadores já demonstrou sua insuficiência como motor de desenvolvimento. Seria
ainda aconselhável arquitetar iniciativas tri ou multilaterais, estimulando,
nos projetos entre doadores desenvolvidos e recipiendários africanos, a
participação de outros países, como o Brasil, sem recursos, no curto prazo,
para investimentos na África, porém capacitados humana e tecnicamente a prestar
assistência.
Os processos de integração política e econômica merecem incentivos. Processos
dessa natureza contribuem para a diminuição das divergências interétnicas e,
além de ampliar a escala, fomentam a estabilidade dos mercados.
A organização de eventos de alcance internacional direcionados à divulgação dos
aspectos positivos e das potencialidades africanas nos âmbitos cultural e
artístico seria igualmente oportuna para a melhoria da imagem (e da auto-
imagem) do continente.
Na viabilização dessas medidas, um elemento relevante há de ser o estímulo a
ações de caráter positivo, ao invés do recurso ao big stick ou a ameaças de
punição. Será mais produtivo contribuir para o aperfeiçoamento das forças
policiais e judiciárias dos países africanos do que votar resoluções de
condenação por desrespeito aos direitos humanos; apoiar governos engajados em
programas políticos construtivos, ao invés de aplicar seletividade somente na
pressão sobre rogue countries.
Conclusão
Os três paradigmas clássicos da convivência internacional sistematizados por
Martin Wight oferecem moldura conceitual utilíssima para a compreensão da
problemática africana e da posição brasileira diante dela. O realismo do poder,
preconizado por Maquiavel e Hobbes, marca presença no cenário africano desde o
Congresso de Berlim e se infiltra no abandono subliminarmente autorizado pela
noção de failed states. O potencial de sociabilidade que torna possível, no
modelo de Grócio, conceber a política internacional como um cenário de
entendimentos mutuamente proveitosos e não como um jogo de soma zero, vem
orientando tentativas de aproximação, da catequese missionária aos esquemas de
cooperação europeus. Neste fim de século, abrem-se enfim as portas para que as
relações do mundo com a África rejam-se também por uma "razão abrangente", na
tradição kantiana.
Como já observou Rubens Ricupero, a política externa se desenvolve em um mundo
áspero e é nessa arena que precisamos operar a nossa inserção não a inserção
ideal, que requereria um mundo ideal e um país ideal, mas a necessária, a
resultar do ponto de interseção entre as oportunidades e as limitações do
sistema internacional e do próprio Brasil.
Não dispondo de excedentes de poder, como lembrava Saraiva Guerreiro, o Brasil
não poderia interagir com o sistema internacional a partir de fórmulas de
imposição da força. Assim, em nossas relações com a África, desde os anos 70
preferimos explorar o potencial de racionalidade e desenvolver os interesses
recíprocos. Hoje, em uma época histórica em que o mercado tornou-se o remédio
internacionalmente receitado para os males do desenvolvimento, permanece
legítimo e adequado que a política externa brasileira sublinhe a dinâmica
grociana e destaque a premência da ampliação do comércio, as potencialidades de
certas parcerias e a dinâmica da cooperação. Atrelada no cotidiano ao possível,
a nossa ação diplomática não deixa, porém, de se bater nos foros pertinentes
para a desejável convergência de atenção e recursos necessários à superação dos
problemas econômicos e sociais africanos.
A solidariedade não foi, entretanto, a palavra de ordem dos anos 90. A lógica
da cooperação, que se presumiria reforçada em uma era de globalização, vem
sendo corroída por impulsos de fragmentação nas mais variadas latitudes. Pelo
menos na fase atual, que se supõe transitória, o império do livre mercado aguça
desequilíbrios, ao desacreditar mecanismos de correção, como a ajuda externa,
reduzida a níveis sem paralelo com aqueles aplicados durante décadas aos países
africanos. Em conseqüência, ao invés de integração, vê-se multiplicarem-se os
focos de tensão em Angola, Eritréia, Etiópia, Libéria, República Democrática do
Congo, Serra Leoa, Somália, Zimbabue, em uma lista de "a" a "z" que a mídia
parece aumentar todo dia.
Percebem-se, porém, sinais de crescente mobilização da comunidade internacional
em favor de um resgate da África. Esses sinais provêm sobretudo dos EUA e da
Europa. Isso pode sugerir motivações maquiavélicas, mas como a realidade tende
sempre a agregar ingredientes grocianos e kantianos ao realismo do poder, e
tendo ainda em vista que os impulsos gerados pelos grandes centros em geral têm
fôlego para contagiar o resto do mundo, é de supor que estejamos em vias de
presenciar um novo movimento internacional em favor do desenvolvimento
econômico-social, da democracia, dos direitos humanos e da efetiva paz na
África.
O foro por excelência para a legitimação dos ideais grocianos e kantianos,
relembra Celso Lafer, é a Organização das Nações Unidas. Na avaliação de prós e
contras e na proposição de soluções viáveis para os problemas da África, as
Nações Unidas estão sendo chamadas a desempenhar mais uma vez um papel de
relevância, seja para as nações africanas, seja para a credibilidade da própria
Organização. Essa tendência se encaixa perfeitamente com as preferências do
Brasil, que tem a experiência, a sensibilidade, as condições materiais e o
interesse em dar uma contribuição efetiva a essa tarefa, decerto um dos grandes
desafios que a comunidade internacional terá de enfrentar nesse início de
século.
Em paz e democratizada, com regras do jogo estáveis e previsíveis, a África
potencializará oportunidades para o Brasil, pela facilidade de nosso diálogo
com várias nações africanas, por nossa capacidade técnico-científico-
tecnológica em escala com as carências continentais, pela afinidade de
experiências históricas. Somos percebidos por muitos de nossos vizinhos da
outra margem do Atlântico como um modelo, encarado com estimulante simpatia
pela maioria dos 53 países subsaáricos eis aí um considerável capital
diplomático em debates e votações nos foros mundiais. A comunidade
internacional aprecia o nosso trânsito diplomático com os parceiros africanos e
nossa capacidade para forjar consensos dinâmicos entre os países mais ricos e
os mais pobres. A solidariedade para com a África se apresenta, nesse contexto,
como um objetivo insubstituível, que agrega valor e substância à política
externa do Brasil.
Maio de 2000