O Brasil e a Argentina entre a cordialidade oficial e o projeto de integração:
a política externa do governo de Ernesto Geisel (1974-1979)
Em 15 de março de 1979, dia da posse do presidente João Baptista Figueiredo, um
encontro de alto nível entre as diplomacias argentina e brasileira selou a
decisão de solucionar o contencioso pela utilização dos recursos hídricos da
Bacia do Prata. Menos de seis meses mais tarde, as chancelarias dos dois países
acordavam a normalização de suas relações, turvadas havia mais de um decênio.
Inesperadamente, um projeto inovador ganhava vida no Cone Sul, ao redefinir o
cenário regional em seus aspectos estratégico-militar, econômico e político.
Tratava-se de um paradoxo: no momento mesmo em que a estratégia do nacional-
desenvolvimentismo brasileiro começava a perder o fôlego devido à crise
financeira da década de 1980, a diplomacia ultrapassava seu último desafio
crucial na região ' a normalização das relações com a Argentina em uma amizade
calcada na concertação política e, em seguida, na integração comercial.
Quais são os antecedentes desse fenômeno? Como foi possível que surgisse um
projeto integracionista fundacional nas relações internacionais do Cone Sul
apenas finda a negociação da hidrelétrica de Itaipu, um dos momentos mais
turbulentos do relacionamento bilateral no século XX? Quais foram os motivos
que levaram a diplomacia brasileira a promover semelhante empresa?
A interpretação aqui proposta sugere que o projeto de integração regional
iniciado na década de 1980 foi o resultado não-intencional da conjuntura
crítica que acometeu a política externa brasileira para a Argentina entre 1974
e 1979, qual fosse a sistemática ruptura dos princípios e concepções que
informaram a atuação diplomática do país para o seu vizinho ao sul desde
princípios do século XX. Argumenta-se que, entre 1974 e 1979, Ernesto Geisel e
seu chanceler, Antônio Francisco Azeredo da Silveira, puseram em xeque o lugar
da Argentina no cálculo estratégico da política exterior brasileira,
questionando a validez do típico marco conceitual do Itamaraty para orientar as
relações com Buenos Aires ' a cordialidade oficial.
A cordialidade oficial representa o conjunto de princípios e concepções1 que
informou a diplomacia brasileira para Buenos Aires com o objetivo primordial de
evitar que a dinâmica entre os dois principais poderes da América do Sul
levasse a uma rota de colisão. Esse apanhado de orientações pode ser resumido
por (a) uma postura tolerante em relação ao elevado perfil da diplomacia
argentina em assuntos regionais, hemisféricos e globais, (b) a sistemática
busca de faixas de cooperação com aquele país no intuito de diluir potenciais
desentendimentos, (c) a inclusão da Argentina nas iniciativas internacionais do
Brasil, e (d) a promoção de bons ofícios entre Buenos Aires e Washington sempre
que o sensível relacionamento entre as duas capitais apontasse para o
confronto2 .
Sustenta-se que a ruptura com o paradigma, durante o governo de Geisel, foi
sistemática, isto é, (i) as quatro dimensões do mesmo foram negadas, (ii)
ocorreu homogeneamente ao longo de todo o mandato presidencial e, (iii) uma vez
finda a administração do general, o Brasil encontrou-se sem marco de referência
no qual racionalizar o vínculo com o vizinho, tarefa à qual se dedicaram os
governos subseqüentes mediante a gestação de um projeto de integração regional.
O processo de mudança teve início, contudo, antes da posse de Geisel, quando,
em 1967, o debate pela utilização dos trechos internacionais da Bacia do Prata
ganhou contornos de discordância frontal entre os dois países3 . Foi sobre o
uso das águas que a validade da tradicional estratégia brasileira para a
Argentina foi revisada.
Imediatamente após a resolução formal do contencioso, em 1979, o Itamaraty de
Ramiro Saraiva Guerreiro (1979-1985) encaminhava os negócios bilaterais a um
equilíbrio calcado em um novo projeto internacional para o Brasil, momento em
que a Argentina ocupou um lugar primordial, senão o mais relevante, na política
externa brasileira. Nascia uma nova racionalidade no marco conceitual da
política externa brasileira e, com ela, um inusitado ordenamento regional a
caracterizar a política internacional da América do Sul na década de 1990.
Este artigo está organizado em blocos. Inicialmente, apresenta o marco teórico-
metodológico no qual foi analisada vasta gama de documentos primários. Em
seguida, a cordialidade oficial é conceitualizada à luz da literatura
especializada sobre o eixo bilateral argentino-brasileiro. Enfocam-se, na
seqüência, os mecanismos que levaram a seu gradual abandono, e passa-se em
revista a incipiente reação argentina aos inesperados movimentos do Brasil, o
processo negociador entre Azeredo da Silveira e Oscar Camilión, o impacto que
sobre ele tiveram a redefinição da política externa norte-americana para a
América Latina, a participação da imprensa brasileira na dinâmica da negociação
e os respectivos processos políticos domésticos. Finalmente, recupera-se a
evolução do lugar da Argentina no quadro conceitual da diplomacia brasileira
nos primeiros anos de 1980 e apresentam-se os mecanismos de produção e
reprodução que alimentaram o projeto bilateral de integração ao longo da década
de 1990.
O estudo sistemático das mudanças: o modelo da conjuntura crítica
O modelo proposto para conduzir esta análise ' a conjuntura crítica4 ' é
oriundo da história comparada e tem por meta oferecer critérios para avaliar
processos de mudança. A sua lógica articula-se de modo a sugerir que só é
possível identificar rupturas significativas ao longo do tempo se as mesmas
conformam um período histórico específico e inauguram, após seu encerramento,
um período substancialmente distinto daquele sobre o qual atuaram
originalmente. Em outras palavras, uma conjuntura crítica é um momento limitado
durante o qual mudanças geram um legado específico.
Segundo essa vertente, os critérios para identificar rupturas de forma
sistemática são três: (a) a existência de uma delimitação temporal da
hipotética ruptura, ou seja, a identificação clara do período em que uma
mudança começa e termina; (b) a ocorrência, identificável, de uma tendência ou
regularidade prévia à ruptura observada, que é a base sobre a qual a mudança
opera; e (c) a ocorrência de legados oriundos da suposta ruptura, ou seja,
fenômenos que têm lugar imediatamente após a conclusão da mudança observada e
instauram padrões inovadores. Caso um desses pré-requisitos esteja ausente, o
processo de transformação fica descaracterizado como tal e pode-se falar apenas
em "inflexão" ou mudança limitada, mas não em ruptura com o passado.
Paralelamente à noção de conjuntura crítica, utilizou-se a categoria de homem
de Estado5 para interpretar a ação internacional das personalidades no
entendimento de que o ideário dessas lideranças impregna sua ação, suas
escolhas e, conseqüentemente, as relações entre as burocracias e os países6 .
O argumento aquí apresentado sugere, portanto, que a ruptura promovida pelo
governo Geisel em relação à Argentina (a conjuntura crítica) fez com que certos
resultados (a parceria estratégica a partir dos anos 1980) tenham sido mais
prováveis naquele momento histórico e com aquela intensidade do que se a
cordialidade oficial não fosse posta à prova.
Fontes intelectuais e evolução da cordialidade oficial
Durante a primeira metade do século XIX, o Brasil utilizou o esforço de guerra
como instrumento recorrente na defesa dos interesses definidos pela corte do
Rio de Janeiro. O cálculo estratégico brasileiro era significativamente moldado
em função das posições defendidas por Buenos Aires, principal poder capaz de
fazer-lhe oposição e turvar o seu horizonte regional. Exemplos disso são os
esforços de guerra empreendidos pelo Brasil na criação do Estado do Uruguai
(1828)7 e na eliminação de Rosas (1852)8 e nas movimentações que desembocaram
na Guerra do Paraguai (1865-1870)9 .
Foi durante esse último conflito armado que a estrutura regional de poder até
então conhecida atravessou as mudanças que consolidariam, pela primeira vez, a
preeminência de Buenos Aires no Prata10 . O fim da Guerra do Paraguai definia
um novo quadro em que a Argentina sobressaía pelo inédito crescimento
financeiro do capital privado, o rearmamento de suas forças e a articulação de
seus interesses na América do Sul mediante uma vasta rede de relacionamentos
bilaterais fluidos11 .
As preocupações impostas à diplomacia brasileira pelo novo perfil da diplomacia
Argentina ganharam o debate público no Rio de Janeiro, onde as questões do
Prata eram tratadas vivamente no Parlamento imperial12 . O homem responsável
por advogar o redirecionamento da política externa brasileira nesse contexto
foi José Maria da Silva Paranhos, o Visconde do Rio Branco13 .
O Visconde advogava que, em assuntos regionais, o Brasil devia mostrar-se
"moderado, benévolo e generoso", sob pena de suscitar desconfianças, entre os
países lindeiros, excessivamente custosas. A proposta visava a diluir a
percepção generalizada, especialmente entre os países menores, de que o Brasil
era um elemento potencialmente hostil ao status quo territorial da América do
Sul. Essa percepção, associada ao estranhamento que o país causava devido ao
lusitanismo e à filiação monárquica em um teatro de repúblicas hispânicas,
deveria ser evitada mediante a construção de interesses comuns facilitados pelo
comércio, as finanças e o amansamento do discurso diplomático. O alvo de suas
recomendações era a política para a Argentina. Em seu pensamento, o fato de a
instabilidade e a competição predatória caracterizarem o cenário político
argentino impunha ao Brasil a responsabilidade de manter uma orientação
compreensiva e generosa capaz de evitar as asperezas inerentes ao
relacionamento entre as duas forças da região14 .
Já nesse momento, estavam dadas as condições intelectuais para a gestação de
duas vertentes da cordialidade oficial: a postura tolerante em relação ao
elevado perfil da diplomacia argentina e a busca sistemática por faixas de
cooperação comercial e política com esse vizinho. Esperava-se diluir, mediante
esses mecanismos, o potencial perturbador que a Argentina exercia sobre a
política externa brasileira no contexto da nova estrutura política da América
do Sul.
A intensificação dessa agenda coube ao Barão de Rio Branco, filho do Visconde,
quem entre 1902 e 1912 procurou definir as bases do eixo Rio de Janeiro '
Buenos Aires sobre um condomínio de poder que permitisse gerenciar uma
estrutura estável de paz abaixo da linha do Equador. Embora sua proposta de um
pacto defensivo entre Argentina, Brasil e Chile tenha fracassado, em 1904,
devido à oposição do governo de Buenos Aires, dez anos depois, em 1914, os três
países assinaram um tratado de cordial inteligência política e arbitragem que
selaria a paz por anos. É plausível supor que, para o Barão, esse fosse um
instrumento de garantia contra o perfil muitas vezes errático e denuncista da
diplomacia argentina. Ao reconhecer interesses paralelos permanentes entre as
duas nações e ao incorporar Buenos Aires e sua tradicional rival, Santiago, em
um arranjo único, ficavam diluídos os possíveis efeitos deletérios da política
exterior de Buenos Aires sobre a política regional do Rio de Janeiro.
O resultado da política do Barão para a Argentina provou ser duradouro e esteve
no centro mesmo da redefinição da diplomacia brasileira para Buenos Aires na
década de 1970: suas bases foram o princípio da liberdade de navegação no
Prata15 e o reconhecimento tácito das relações preferenciais entre Argentina e
Paraguai 16 , por um lado, e Brasil e Uruguai, por outro.
Nascida em finais do século XIX, a cordialidade oficial também foi testemunha
do surgimento da nova potência hemisférica, os Estados Unidos, fenômeno que
viria a condicionar a vida internacional da América do Sul a partir de então.
Os preceitos do Visconde do Rio Branco foram, assim, adaptados para lidar com
uma das interações mais perturbadoras das relações internacionais da região nos
últimos cem anos: as posições divergentes de Argentina e Brasil face aos
Estados Unidos.
Ainda na década de 1880, Buenos Aires e Washington emitiam sinais de que seu
relacionamento seria traumático para o conjunto da América Latina. Tratava-se
da bandeira antiianque içada pela Argentina durante a I Conferência Pan-
Americana (Washington, 1889) no intuito de formar uma plataforma de resistência
à expansão territorial dos Estados Unidos rumo ao Pacífico e à gestação da sua
hegemonia no Caribe17 . Ao opor a Doutrina Drago18 ao Corolário Roosevelt da
Doutrina Monroe19 , a delegação argentina conseguiu elevar-se à qualidade de
interlocutora de primeira linha em assuntos hemisféricos20 . Na resistência aos
Estados Unidos, a Argentina encontrou uma causa internacional suficientemente
dramática para garantir-lhe audiência permanente junto às repúblicas americanas
de maneira mais ou menos homogênea até a década de 1960. Sobre essa lógica
operou a cordialidade oficial. Ao tirar proveito da discórdia argentino-
estadunidense, o Brasil concebeu sua diplomacia como catalisadora do diálogo
entre dois países centrais de seu horizonte externo. De tal sorte, a promoção
dos bons ofícios fez do Itamaraty elemento necessário para a concertação
política em nível hemisférico21 .
A agenda da cordialide oficial ganharia renovado fôlego na década de 1930,
quando adveio a diplomacia do desenvolvimento na América Latina22 , qual fosse
a instrumentalização dos vínculos internacionais em prol do incipiente esforço
de desenvolvimento industrial. Nesse ambiente, Argentina e Brasil fizeram
escolhas internacionais essencialmente díspares, que terminariam por conduzi-
los a resultados substancialmente distintos ao fim do conflito mundial
encerrado em 1945. Enquanto o Estado Novo enterrava a era das oligarquias no
Brasil, o golpe militar na Argentina outorgava o poder aos interesses
agropastoris e punha fim à seqüência de governos liberais. Naquele país, a
vertente externa levou ao abandono da identidade latino-americana conforme
desenhada nos primeiros anos do século XX, assim como ao retorno de relações
preferenciais com a Europa na falida tentativa de emular os sucessos que o
projeto nacional havia experimentado durante a Belle Époque23 .
Os temas em pauta que ocupavam as diplomacias dos dois poderes sul-americanos
não eram novos: o equilíbrio de poder no Prata, a gestação de um ordenamento
regional legítimo e a resolução dos contenciosos comerciais. A resposta
brasileira para esses desafios foi o fortalecimento da cordialidade oficial:
quando o equilíbrio de poder foi sujeito à Guerra do Chaco entre Bolívia e
Paraguai (1932-1935), Argentina e Brasil mantiveram o nível de entendimento
apesar das desconfianças do Rio de Janeiro em relação às verdadeiras intenções
do Presidente Justo24 .
A série de visitas presidenciais devida a esse assunto evidencia ter sido
percepção corrente que a reconstrução da paz dependia da legitimidade que os
dois grandes emprestassem à resolução final do conflito. A legitimidade da
ordem regional, desafiada sistematicamente desde a primeira década do século XX
pelas incessantes erupções do armamentismo, chegava a um fim mediante o
consenso dos grandes e a anuência dos pequenos. Argentina, Brasil, Chile,
México, Paraguai e Uruguai assinavam o Tratado Antibélico de Não-Agressão e de
Conciliação (Rio de Janeiro, 1933), também conhecido como Pacto Saavedra-Lamas.
A sombra da corrida armamentista no Cone Sul era progressivamente dissipada sob
a noção de que o encontro de marcos de referência comuns em assuntos regionais
diminuiria as incertezas inerentes à vida internacional25 .
Ressurgia então a proposta brasileira de uma união aduaneira aberta à adesão
dos vizinhos, agenda que as diplomacias formalizariam mediante tratado
comercial em 1941. Dessa forma, o Brasil respondia ao perfil declaradamente
europeísta da políticia comercial argentina mediante a oferta de um programa
comum de comércio que banisse a tentação das desvalorizações competitivas
(beggar thy neighbour), tão comuns na Europa. Vingava, na política do Itamaraty
para a Argentina, a percepção segundo a qual o caminho das hostilidades, mesmo
restrito ao campo comercial, seria prejudicial aos interesses brasileiros e,
portanto, era dever brasileiro precaver-se mediante fórmulas de consenso com o
vizinho.
O entreguerras constitui, assim, um período no qual a busca insistente por
faixas de coincidência guiou a política do Itamaraty para Buenos Aires. Em um
clima de desconfianças bilaterais e de redefinição dos perfis produtivos e
diplomáticos ' conjuntura na qual a busca de solidariedades é pouco provável '
a concertação política de alto nível constituiu-se como rota possível e
efetivamente procurada pela diplomacia brasileira em sua vertente austral. Em
síntese, à época em que os projetos internacionais dos dois países se
estranhavam, e ganhava forma a diplomacia brasileira para o desenvolvimento, a
cordialidade oficial foi o elemento estabilizador das turbulências inerentes às
relações entre Argentina e Brasil.
Porém, durante a II Guerra Mundial a cordialidade oficial foi contaminada pelo
fenômeno do nacional'populismo. Dos dois lados do Prata, o carisma dos
mandatários foi testado pela força das paixões mobilizadoras que marcam todo o
período. Uma fonte de preocupação para o Rio de Janeiro nesse contexto eram as
táticas utilizadas por Juan Domingo Perón26 para angariar apoios na região.
Pouco a pouco, o guia de atuação para Buenos Aires perdeu a legitimidade nas
práticas do Itamaraty e cedeu às percepções que, simultaneamente, temiam e
evitavam associar o Brasil à Argentina de Perón. Esse período da história do
eixo bilateral foi batizado por Cervo de diplomacia da obstrução27 . Entre 1947
e 1948, o Palácio San Martín, sede da chancelaria argentina, havia estabelecido
densas agendas com Bolívia, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Venezuela,
países em que a diplomacia brasileira acreditava haver ações desestabilizadoras
de Perón. Efetivamente, as legações argentinas nas capitais sul-americanas
incluíam, à época, um corpo de adidos diplomáticos para as áreas militar,
policial, naval e sindical.28 . A atualização da política externa peronista
previa, além disso, o estabelecimento de relações com Cuba, Coréia do Norte,
Vietnã do Norte e Alemanha Oriental, em uma afronta aberta à liderança norte-
americana em assuntos hemisféricos.
A documentação primária disponível oferece indícios de que, no intuito de
esquivar as resistências do Itamaraty ao seu diálogo com Perón, Vargas utilizou
agentes pessoais que serviram de elo. Contudo, as tentativas de Vargas foram
malogradas e, em vez de criar confiança, decepcionaram Perón. Por exemplo,
entre 1945 e 1951, Perón fez quatro propostas de associação com o Brasil e o
Chile em uma reedição do Pacto ABC, dessa vez com conteúdos comerciais, de
complementação econômica e de integração física. Nas quatro ocasiões, a reação
brasileira foi a não-resposta29 , o que terminaria por irritar Perón
profundamente e concorrer para a crise institucional que se abateu sobre o
Brasil nos últimos meses da vida de Vargas (1954)30 .
Em suma, o conflito internacional que abalou o mundo entre 1939 e 1945, impôs
um desafio e uma oportunidade peculiares à política continental do Brasil. Por
um lado, deixou-o na desconfortável e delicada situação de posicionar-se a
favor dos Estados Unidos sem melindrar o relacionamento com a Argentina sob
pena de tornar-se vítima do discurso peronista de caráter redentor. Por outro,
possibilitou ao Rio de Janeiro colocar-se sobre o embate de seus dois eixos
diplomáticos fundamentais, Argentina e Estados Unidos, e ganhar posições face a
esses dois parceiros.
Essa dimensão do comportamento brasileiro ganhou impulso durante a Conferência
de Chapultepec (1945), na qual foi negociado o novo modelo de cooperação
hemisférica e da qual o Departamento de Estado conseguira excluir Buenos Aires.
Segundo a literatura brasileira31 , a diplomacia do Itamaraty trabalhou para
garantir que a Argentina pudesse aderir à Carta da conferência, evento que
criou as condições para que pudesse mais tarde participar das Nações Unidas.
Segundo essa produção, o presidente Eurico Gaspar Dutra (1946-1951) teria se
negado a dar vida a um novo ordenamento sem a participação de Buenos Aires32 .
Parte da literatura argentina, todavia, argumenta que o Brasil foi,
efetivamente, uma força obstrutora das possibilidades internacionais argentinas
no imediato pós-guerra33 . Outros afirmam que toda a América Latina isolou a
Argentina em seu neutralismo, até que vieram em seu resgate nos instantes
finais da Guerra34 .
Mas entre 1956 e 1966, a cordialidade oficial foi voluntariosamente recuperada
pela diplomacia brasileira. O seu retorno foi marcado pela dramática evolução
das políticas exteriores de ambos os países face ao perigo do comunismo na
América Latina e às alternativas que Juscelino Kubitschek (1956-1960) e
Frondizi (1959-1962) ofereceram, sem sucesso, aos Estados Unidos. Mediante duas
iniciativas internacionais de envergadura inédita no Cone Sul, Argentina e
Brasil utilizaram o marco referencial do desenvolvimentismo para conformar um
pólo ideológico e econômico ao sul do Continente. A primeira ' Operação Pan-
Americana (OPA, 1959) ' lançava a proposta de dar um caráter eminentemente
econômico à política internacional das Américas como solução aos desafios
impostos pela União Soviética, sugestão que seria implementada por meio de uma
agenda de concertação política continental ampla e geral35 . Apesar do fracasso
em fundar um novo ordenamento regional, a OPA precedeu a concepção argentino-
brasileira de que o Cone Sul poderia ser, efetivamente, um pólo atrativo da
atenção internacional por oposição ao Caribe, que graças ao novo regime
castrista tornara-se o ponto de gravidade dos assuntos interamericanos. Essa
pauta seria lançada a público por uma segunda iniciativa, que passou à história
das relações bilaterais como o espírito de Uruguaiana (1961)36 .
Três eram os objetivos principais de Uruguaiana: o estabelecimento de uma
sistemática de consulta política de alto nível; a coordenação das posições de
ambos os países em foros internacionais; e a troca de informações sensíveis aos
respectivos projetos nacionais de desenvolvimento. As idéias que originaram a
pauta dos encontros foi desenhada, originalmente, por uma equipe de jovens
diplomatas argentinos ligados diretamente ao novo mandatário. Do fracasso
prematuro de Uruguaiana até o fim da década, a cordialidade oficial minguou no
quadro conceitual da diplomacia brasileira.
Vários fatores contribuiram para isso. Em primeiro lugar, vale mencionar o
avanço do programa diplomático de multilateralização da política externa
brasileira que os governos militares implantaram sistematicamente desde 196737
. Desde aquele ano, a vertente externa do desenvolvimento ' que já vinha sendo
ensaiada desde Vargas ' transformou-se em efetivo instrumento do expansionismo
econômico brasileiro. Após décadas de ensaio, as relações do Brasil com a
região poderiam ser finalmente instrumentalizadas em favor do desenvolvimento
industrial do país38 . A integração física tornava-se uma força permanente na
política externa brasileira39 , motivo pelo qual a América Latina teria que
deixar de ser problema estratégico e passar a ser instrumento de fortalecimento
da economia do país. Não havia espaço para uma postura preventiva em relação a
Buenos Aires.
Outro fenômeno gerador do esgotamento do modelo da cordialidade oficial foi o
crescente pendor do equilíbrio de poder em favor do Brasil. Observando a
evolução da política internacional sul-americana, durante a década de 1960, sob
perspectivas geopolíticas, diplomáticas ou econômicas, conclui-se que a
preeminência no Prata havia sido efetivamente rompida favoravelmente a
Brasília, que poderia atuar na região sem temer um levante hispano comandado
desde o Palácio San Martin40 .
O terceiro sinal que aponta para o encerramento das condições de existência da
cordialidade oficial é a redefinição dos vínculos de Argentina e Brasil com os
Estados Unidos. Quando a questão cubana assumiu dimensões globais, em 1962, o
Presidente argentino Guido respondeu ao pedido de solidariedade de John Kennedy
mediante o envio de destróieres e uma esquadra de aviões para o esforço de
bloqueio à ilha. Evidenciando o crescente desconforto brasileiro com a política
de convergência historicamente alimentada pelo Itamaraty em relação ao
Departamento de Estado, Goulart negou-se a colaborar com forças nacionais para
essa empreitada. Violando a tendência histórica, é a Argentina dos anos
sessenta o país em busca de status de aliado chave dos Estados Unidos na
região41 . A promoção de bons ofícios entre Buenos Aires e Washington, uma das
vertentes que animava a atuação brasileira desde a chancelaria do Barão de Rio
Branco, perdia relevância. A tendência argentina ao alinhamento automático
contrastava com a crescente distância que Brasília procurava em relação ao seu
próprio passado. Não havia mais espaço para que o Brasil temesse os efeitos da
denúncia do intervencionismo, expansionismo ou pró-ianquismo inerentes às
"relações especiais" com os Estados Unidos.
Finalmente, os sinais conjunturais que apontam a década de 1960 como o ocaso da
tradicional vertente diplomática para o vizinho ao sul e, mais especificamente,
o ano de 1966, concentram-se em torno da questão do aproveitamento hídrico do
Prata. Em 1966, o Itamaraty assinou a Ata de Iguaçu com o Paraguai e, dessa
forma, frustrou o argumento jurídico defendido pela Argentina segundo o qual
toda obra hidráulica realizada em um rio internacional deveria ser submetida à
consulta prévia do país a jusante. Seguindo essa idéia, conclui-se que o Brasil
via-se diante de condições concretas para avançar a sua agenda regional, mesmo
que isso envolvesse enfrentar a Argentina. Note-se que a última vez em que a
diplomacia brasileira tinha deparado essa configuração de forças havia sido à
época do Império42 .
Em suma, a cordialidade oficial é fundacional no Brasil: refere-se às
possibilidades mesmas da presença brasileira na região. Se, durante o Império,
as técnicas utilizadas calcavam-se na medição de forças, em ultimatos e em
dinâmicos esquemas de alianças bilaterais, o Brasil republicano ensaiou
administrar o desafio argentino no melhor espírito concertador. O
acompanhamento histórico da mesma revela que essa forma de lidar com os
desafios impostos pela Argentina foi adaptada pelo Itamaraty de forma flexível
ao longo do tempo. Seja no esforço de definição dos mapas nacionais, na
articulação dos interesses do desenvolvimento, na busca de benefícios da Grande
Guerra, na definição do sistema interamericano ou na sua participação na Guerra
Fria.
A exceção à regularidade foi a diplomacia da obstrução (1946-1955), período no
qual o governo brasileiro malogrou em relação às intenções integracionistas do
peronismo e promoveu a não-resposta como guia para o gerenciamento do vínculo
com a Argentina. A diplomacia da obstrução foi uma inflexão na história da
política brasileira para aquele país. Seu alcance e escopo não permitiram
qualificar o período como de ruptura, uma vez que as regularidades prévias a
ela voltaram a permear os princípios de ação defendidos pelo Itamaraty em
relação ao Palácio San Martín a partir de meados da década de 1950. A
verdadeira ruptura histórica ocorreria anos mais tarde, em meio à redefinição
do regime das águas do Prata. É o que se conta a seguir.
A ruptura de uma tendência: a conjuntura crítica
Entre 1967 e 1973, as relações argentino-brasileiras assistiram a um grau de
deterioração raramente visto em sua história. Devido à definição do regime
contemporâneo para a utilização do caudal hídrico da Bacia do Prata, o vínculo
bilateral foi vítima de um confrontacionismo que se espalhou por ambas as
sociedades e terminou turvando os projetos conjuntos de complementação
econômica e cooperação técnica que o espírito de Uruguaiana ambicionara. Ao
longo desses seis anos, ganhou força uma vertente inédita na diplomacia
brasileira contemporânea: a diluição da cordialidade oficial como opção perene
nos negócios com o governo argentino.
A iniciativa brasileira de levar adiante o ambicioso projeto hidrelétrico de
Itaipu transformou os termos do diálogo internacional na região e fez com que
Brasília e Buenos Aires se lançassem à atualização da estrutura do poder do
Cone Sul. Nesse quadro, a Argentina buscava garantir regras rígidas que não
punissem sua condição de australidade e de país a jusante na quase totalidade
de suas fronteiras (há exceções menores na fronteira montanhosa com o Chile)43
. Já o Brasil ambicionava adotar um corpo jurídico abrangente o bastante para
abarcar a sua condição de montante na Bacia do Prata e de jusante na do
Amazonas44 , sem ter com isso que condicionar o seu cronograma de obras à
aprovação de Buenos Aires.
Frustrando a tendência histórica, a primeira atitude do Itamaraty foi a de não
buscar fórmulas conciliatórias com Buenos Aires. Até iniciado o governo Geisel,
em 1977, a diplomacia brasileira não reconheceu que os temas referentes à
construção de Itaipu dissessem respeito à Argentina. Diferentemente, a
Argentina, sim, reagiu como se esperava: o Palácio San Martín denunciou com
virulência a prática não cooperativa brasileira em todos os foros multilaterais
e capitais sul-americanas, acionou suas tradicionais amizades na região e
armou-se de instrumentos jurídicos para isolar o Brasil e falsificar-lhe as
teses.
Para tanto, a diplomacia argentina ventilou um conceito jurídico vago, mas
amplamente aceito em foros internacionais, segundo o qual as construções de
obras civis sobre rios internacionais seriam precedidas por uma consulta do
Estado empreendedor às partes interessadas, consubstanciando o princípio da
consulta prévia. A delegação portenha reclamava ser a consulta prévia a prática
defendida pelos países da região desde o decênio de 1930, quando o próprio
Brasil tomara a dianteira no assunto45 . Mais do que isso, lembravam os
argentinos que, em 1932, o Brasil e a Grã'Bretanha trocaram notas assegurando
que trabalhos sobre as áreas ribeirinhas entre solo brasileiro e a Guiana
Inglesa seriam empreendidos com o "consentimento mútuo de ambos" os Estados. O
mesmo havia ocorrido, em 1933, no Estatuto Jurídico da Fronteira, assinado por
Brasil e Uruguai, dispondo que não se realizariam obras que modificassem o
regime e a qualidade das águas de um rio fronteiriço sem o "prévio acordo" do
outro Estado46 .
A força dos argumentos argentinos era ainda mais significativa quando exposta à
luz da prática brasileira contemporânea. Em 1960, ao subscrever declaração
conjunta referente à construção da represa de Salto Grande sobre o rio Uruguai,
Argentina, Brasil e Uruguai comprometiam-se a consultar os demais ribeirinhos
caso as obras alterassem o regime do rio, "de acordo com a doutrina e a prática
internacional", a pedido do Brasil47 . Além disso, a consulta prévia era
reconhecida pelo Tratado de Versailles48 e pelo Acordo Multilateral sobre o
rio Níger49 .
À época, o homem que representava o Brasil em Buenos Aires não concordava com o
rumo que a política externa de seu país estava tomando no tema dos rios. O
embaixador Pio Corrêa tinha uma postura clara e definitiva em relação à
condução brasileira dos negócios com Buenos Aires. Seu testamento político '
última correspondência enviada ao Itamaraty antes de deixar a diplomacia e
entrar para a atividade privada, em 1969 ' é, ao mesmo tempo, uma carta de
orientação para o governo brasileiro e uma adesão aos preceitos da cordialidade
oficial que ganham tons de manifesto quando se leva em conta que a mesma foi
escrita em um momento de especial tensão entre os dois países. No pensamento de
Pio Corrêa, as relações com a Argentina deveriam ser imediatamente
restabelecidas em um patamar de "bases (...) cordiais no sentido de uma
unificação de pontos-de-vista"50 . As concepções do embaixador sobre o vínculo
bilateral são certeiras: havia somente uma política sensata para guiar o
relacionamento com a Argentina, qual fosse a da complementação industrial mútua
mediante a articulação e o planejamento comum das respectivas políticas de
desenvolvimento econômico. A tática que o Itamaraty deveria abraçar era a
atuação nas "linhas de menor resistência", buscando faixas de confluência. A
postura brasileira demandaria, segundo ele, "tacto e (...) paciência [sic]"51 .
O responsável por explorar uma abordagem alternativa para o desafio argentino
foi o sucessor de Pio Corrêa, Antônio Francisco Azeredo da Silveira52 . Ao
chegar a Buenos Aires como embaixador em 1969, Silveira já tinha uma idéia
formada da Argentina, de sua política externa e dos desafios que a mesma
impunha ao Brasil. Há vários elementos de seu ideário que são relevantes para
esta análise: para ele as tensões históricas da sociedade argentina, como a
incapacidade de absorver as raças e os povos que compunham a nação, a
impossibilitavam de sintetizar um vetor coerente de política externa53 . Além
disso, o país era vítima de uma inversão de expectativas, uma vez que seu
"fausto precoce" no cenário latino-americano cedia lugar em todas as frentes
(industrial, comercial, artística, intelectual etc.), e isso o tornava perigoso
por incentivar uma política externa revolucionária, isto é, ameaçadora do
status quo regional.
O ceticismo de Silveira em relação às possibilidades reais do vínculo Buenos
Aires'Brasília entrou em choque com a política do novo mandatário argentino,
Lanusse (1971-1973).
A diplomacia argentina passava a concentrar suas energias em negociar
declarações que angariassem o apoio dos países sul-americanos à tese da
consulta prévia compulsória. Fez isso de forma ostentosa, dando alta densidade
política aos encontros e obtendo solidariedades em troca de concessões
comerciais. Com Montevidéu, a diplomacia argentina selou o apoio a suas teses
mediante o encerramento dos déficits comerciais na balança de pagamentos
uruguaia, criando concessões tarifárias unilaterais. Apelando para uma prática
pouco comum em documentos dessa natureza, a declaração final trazia um
agradecimento do governo uruguaio ao argentino54 . Mais grave para o Brasil era
o documento celebrado entre Argentina e Bolívia, que não somente definia o
apoio de La Paz às teses portenhas, mas também garantia a Buenos Aires voz em
assuntos amazônicos55 . A Argentina chegou inclusive a outorgar ao Chile (único
país em relação ao qual a Argentina é montante em alguns trechos) a palavra
final sobre um dos temas mais pungentes da sua agenda bilateral dos dois países
até a década de 1990: a administração das águas de fronteira no complexo
geográfico da cordilheira dos Andes. Buenos Aires cedia a Santiago a
prerrogativa de definir o regime para o uso das 14 bacias andinas comuns aos
dois países em troca de apoio à consulta prévia compulsória.
Silveira apressou-se a indicar a Brasília que os últimos acontecimentos
demonstravam que Buenos Aires não estava disposta a negociar nenhum acordo
efetivo e utilizaria todos os métodos a seu alcance para imputar ao Brasil a
responsabilidade pela paralisia das negociações. Para ele, o Itamaraty não
deveria compartimentalizar o relacionamento bilateral em diversas áreas (o que,
na visão de Pio Corrêa, possibilitaria reduzir a importância das áreas de
fricção direta e ressaltar as faixas coincidentes entre os dois países), mas,
ao contrário, condicionar todo o relacionamento bilateral à mudança de postura
da Argentina. Afirma: "Parece-me (...) que, daqui por diante, qualquer aspecto
de nossa política bilateral com a Argentina ' desde o intercâmbio comercial até
o recurso água, por exemplo ' deve ser considerado não apenas em seus aspectos
específicos, mas à luz das atuais diretrizes gerais do governo argentino (...)
sem pactuar com a presente orientação [do mesmo] ou fazer-lhe concessões
(...)"56 .
O fracasso do projeto eleitoral de Lanusse resultou na posse de Campora '
representante de Perón, que se encontrava exilado em Madri ' em 25 de maio de
1973, e uma curta trégua entre a Argentina e o Brasil na questão dos rios
internacionais. O retorno do embate ocorreria meses mais tarde, com o novo
governo de Geisel (1974-1979).
Às vésperas de sua posse, Ernesto Geisel fazia uma avaliação crítica do estado
das relações internacionais do Brasil. Para ele, o país tinha condições de
arquivar as duas experiências históricas que tradicionalmente impuseram limites
estreitos à capacidade brasileira de manobra no exterior: o laço de dependência
política dos Estados Unidos e a postura preventiva nos negócios com a
Argentina. Nos primeiros meses de 1974, Geisel planejou a reversão desse
quadro. Por isso, escolheu para ocupar o Itamaraty um diplomata de carreira com
quem rapidamente estabeleceu relações singulares: o próprio Silveira seria o
responsável por dar coerência ao projeto internacional do presidente, assim
como articulá-lo internamente e resguardá-lo do peso da tradição, que inúmeras
vozes ressuscitaram ' na imprensa, na caserna e na própria chancelaria ' até o
fim da gestão em 1979. Os primeiros discursos oficiais sinalizavam claramente
que haveria uma redefinição de prioridades no perfil internacional do país,
sem, contudo, oferecer detalhes concretos57 .
Coube ao presidente cunhar e anunciar o título ' costume comum à época ' da
nova orientação externa brasileira, o Pragmatismo Responsável58 .
Sinteticamente, é possível sugerir que esse paradigma consistiu na exploração
de oportunidades que emanavam da flexibilização do confronto Leste-Oeste. Na
prática, isso significava: as vantagens de negociar com uma Europa fortalecida
e crescentemente autônoma em relação aos desígnios norte-americanos; a
possibilidade factível de negociar acordos com regimes marxistas, o apoio às
independências africanas e à causa palestina; e a busca da cooperação
horizontal com outras potências regionais, principalmente no campo energético e
científico-tecnológico. A orientação externa do governo Geisel representou o
desenvolvimento do paradigma externo acumulado com mais ou menos intensidade
desde Vargas, qual seja a instrumentalização da diplomacia em busca de insumos
para o projeto nacional-desenvolvimentista59 .
A questão dos rios ocupou o novo governo desde o primeiro dia, como pode ser
visto pela cerimônia de posse de Geisel. Lá estavam presentes Hugo Banzer, da
Bolívia; Augusto Pinochet, do Chile60 ; e Juan Maria Bordaberry, do Uruguai61 .
A presença de Perón, que havia sido cogitada, não vingou, sugerindo que ambas
as chancelarias tinham uma pendência, qual fosse a questão de Itaipu, naquele
momento não reconhecida pelo governo brasileiro como tal62 .
Agravando o clima das relações bilaterais, em março de 1976, as Forças Armadas
argentinas depuseram Isabel Perón e deram início a um programa de intervenção
militar por elas batizado de Processo de Reorganização Nacional. O fenômeno
atingiu diretamente a diplomacia argentina. No dia mesmo do golpe, o Palácio
San Martín foi fisicamente ocupado por tropas da Marinha, e poucos diplomatas
puderam aceder a seus postos de trabalho, sendo que as principais chefias e
departamentos foram confiados a militares daquela Força. A resultante
internacional do regime militar argentino inaugurou padrões inéditos na vida do
país. Pela primeira vez, a política econômica abandonava a industrialização
como instrumento de inserção na economia internacional (entre 1976 e 1983, a
produção industrial argentina caiu 20%), e o governo que assumira o comando
para abrir o mercado nacional ao comércio exterior terminou por fechá-lo ainda
mais63 . Pela primeira vez na história, o país chegou por duas vezes à
iminência de guerra contra o Chile e perdeu uma guerra convencional contra um
poder da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
Também pela primeira vez a diplomacia argentina foi articulada de forma a
construir um projeto de presença regional calcado na tese das "fronteiras
ideológicas", segundo a qual o papel da política externa argentina era combater
o comunismo nas Américas. Dessa forma, Videla repetia o modelo de relações
externas de Castelo Branco64 , e o adensava. Paradoxalmente, e evidenciando
mais uma das profundas contradições que marcaram o período, a estratégia do
regime não impediu Buenos Aires de apoiar Cuba e Líbia em foros regionais e
globais, estreitar relações com a Alemanha Oriental, Coréia do Norte e Vietnã
do Norte, ou mesmo aumentar a participação da União Soviética para 30% em sua
balança comercial65 .
Também foi a primeira vez em que a agenda externa foi moldada sobre as
premissas tradicionais do nacionalismo territorial argentino66 , qual seja a de
que as fronteiras do país foram vilipendiadas pela Coroa espanhola, pelos
vizinhos e por poderes extracontinentais desde tempos imemoráveis. Dessa forma,
o desafio internacional argentino era percebido em 1978 em sete frentes de
"preservação da soberania": as ilhotas do Canal de Beagle, reclamadas também
pelo Chile; a definição da quantidade das águas do Alto Paraná, tomada pelo
Brasil como tema de exclusiva soberania brasileira; a bandeira das Ilhas
Malvinas, em posse do Reino Unido desde o século XVIII; a projeção continental
argentina sobre a Antártida, linhas postas em xeque por Chile, Uruguai e Reino
Unido; fronteiras andinas, trechos montanhosos reclamados pelo Chile; e o
traçado do mar continental argentino, questionado por Brasil, Chile, Uruguai e
Reino Unido67 .
Quando a ditadura militar chegou ao fim, em 1983, a Argentina, que durante
grande parte do século XX ocupara um lugar privilegiado na estrutura regional
de poder, chegava à democracia em um isolamento raramente experimentado. Dias
antes do golpe, o The Buenos Aires Herald publicava editorial denunciando que a
diplomacia portenha havia-se deixado ultrapassar pela Venezuela, que agora
ocupava a tríade latino-americana com Brasil e México. Diferentemente dos três
grandes, a Argentina não tinha nada a oferecer para seus tradicionais
parceiros, nem mesmo para seus vizinhos68 .
Em meados de 1976, o presidente Videla indicou Oscar Camilión para ocupar a
embaixada em Brasília com um projeto diplomático ambicioso69 . Do ponto de
vista das posições domésticas, deveria mostrar à opinião pública de seu país
que era possível negociar com o Brasil retirando a carga negativa que a
imprensa portenha imputava a tudo o que estivesse relacionado com a política
externa brasileira, assim como apaziguar os ânimos que alimentavam certos
setores militares70 . Em relação ao Itamaraty, o principal objetivo de Camilión
era convencer o governo brasileiro de que o aproveitamento do rio Paraná era um
assunto que devia ser negociado com a Argentina sob pena da iniciativa não
contar com legitimidade internacional.
A agenda do embaixador argentino não deixa de assemelhar-se, do ponto de vista
lógico, àquela advogada por ele mesmo havia quinze anos, no contexto dos
acordos de Uruguaiana71
. A proposta incluía a noção de que Buenos Aires e Brasília deveriam
estabelecer sistema de coordenação de posições nos foros internacionais, trocar
informações sensíveis e promover a sistemática prática da consulta bilateral
para assuntos de interesse mútuo72 . Silveira desconfiava que, ao retomar os
princípios de Urugaiana, Camilión estivesse à procura de uma justificativa
teórica para a tese da "consulta prévia". O chanceler brasileiro deve ter
entendido que o perigo da gestão de Camilión residia justamente em promover uma
associação entre a "consulta diplomática" ' mecanismo bastante usual entre
Estados ' e a "consulta prévia compulsória", cujo caráter é suspensivo.
O estilo de Camilión contrapunha-se frontalmente aos modos simples do chanceler
Silveira. Esse diferencial tinha bases intelectuais. Para o chanceler, o
segredo e a reserva eram a essência da atividade diplomática73 . Sua percepção
traduzia-se em certo desconforto diante da imprensa, pois as dinâmicas
negociadoras eram justamente calcadas naqueles dados que não eram notícia74 . A
política publicista de Camilión chegou a provocar o próprio Geisel, que em
discurso no Clube Naval ao corpo diplomático sediado em Brasília, em 10 de maio
de 1977, afirmava: "Não sou dos que acreditam que a diplomacia tradicional
tenha sido superada pela eficiência dos modernos meios de comunicação. Ao
contrário, creio que a própria eficiência desses meios pode iludir-nos,
levando-nos a confundir publicidade com negociações75 ".
Sob a influência de fenômenos assim, Silveira procurou adaptar a diplomacia aos
novos padrões de relacionamento com a opinião pública. Articulou a sua
assessoria de comunicação sob a chefia do então ministro, e mais tarde
chanceler, Luiz Felipe Lampreia. A documentação primária revela que se
preocupou também, de forma sistemática, em acertar as suas declarações públicas
previamente com os parceiros da negociação e dedicou atenção pessoal à
elaboração de press releases sobre as negociações de Itaipu.
Nesse contexto, o Brasil lançou uma aposta regional sem precedentes, ao propor
a celebração de um ambicioso pacto político na América do Sul sem a anuência ou
a participação da Argentina ' o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA). A
formulação do mesmo ocorreu na chancelaria brasileira atendendo à lógica,
dentre outras, de que era chegada a hora de consagrar a doutrina brasileira
para os rios internacionais em toda a América do Sul e afiançar os laços de
amizade com as fronteiras setentrionais do país no intuito de fortalecer as
posições de Brasília vis-à-vis Buenos Aires. A novidade introduzida pelo TCA
era a dimensão política do gesto brasileiro de convidar todos os países
setentrionais da América do Sul a assinar, em Brasília, um instrumento de
convergência regional em uma região em que todos os países ' com exceção do
Brasil ' tinham questões limítrofes pendentes ou haviam sofrido efetivas perdas
territoriais para seus vizinhos76 . Em quinze meses, Silveira havia conseguido
transpor as objeções de Venezuela, Guiana, Suriname, Colômbia, Equador, Peru e
Bolívia.
Diferentemente da época da cordialidade oficial, quando a Argentina era
sistematicamente incluída nos projetos internacionais do Itamaraty, a grande
iniciativa do governo Geisel na América do Sul foi estruturada sob o princípio
da contenção política da Argentina na região. A estratégia sul-americana de
Silveira incluiu ainda acordos com Bolívia e Uruguai, cuja tônica era trocar
vantagens políticas por incentivos econômicos 77 . É de então que datam a
declaração brasileira de apoio às demandas bolivianas por uma saída para o mar
e a assinatura de Tratado da Lagoa Mirim com o Uruguai, importante sinalização
da postura conciliadora do Brasil no tratamento de bens públicos internacionais
como a água78 .
No eixo dos relacionamentos assimétricos, o Secretário Henry Kissinger
compartilhava o ceticismo de Silveira em relação à política externa argentina.
Se, por um lado, o estadista norte-americano não visitou o país austral
deliberadamente, por outro, o chanceler brasileiro descartou a possibilidade da
promoção do diálogo entre o Departamento de Estado e o Palácio San Martín. Já
com o Presidente Jimmy Carter (1977-1981), cujo pensamento internacionalista
opunha-se frontalmente ao de Kissinger, as crescentemente deterioradas relações
brasileiro-estadunidenses não abriram sequer espaço para uma eventual
aproximação entre Buenos Aires e Washington que fosse promovida pelo Itamaraty.
Se, à época da cordialidade oficial, a "aliança não escrita" entre o Brasil e
os Estados Unidos servia como alavanca do vínculo brasileiro-argentino, durante
a conjuntura crítica da década de 1970 esse padrão foi abertamente descartado.
Vale notar que a paralisia das instâncias diplomáticas na promoção de avanços
sensíveis acionou as corporações militares. Há indícios de que tanto o SNI
quanto o Centro de Informações e Segurança do Exército enviaram expedições à
Argentina em 1977 para preparar relatórios sobre a questão dos rios
internacionais79 . Entre abril de 1976 e julho de 1977, militares de primeiro
escalão dos dois países dialogaram em visitas sigilosas a Buenos Aires e ao Rio
de Janeiro para tratar do tema80 . Emílio Massera chegou a afirmar
publicamente: "Devemos estar prontos para corrigir desvios, advertir erros e
evitar astúcias supérfluas que nos afastem dos objetivos transcendentes que
unem o Brasil e a Argentina81 [minha tradução]".
Os encontros parecem ter surtido efeito nas chancelarias porque dias depois dos
últimos encontros as diplomacias voltavam a sentar-se à mesa de negociações sob
a condição de que a Argentina observaria irrestritamente o Tratado de Livre
Navegação assinado entre Argentina e Brasil em 185782 , recentemente
questionado por Videla.
O elemento que deflagrou drasticamente os tempos da negociação, no entanto, foi
uma declaração do embaixador argentino sobre suas percepções em relação ao
programa nuclear brasileiro, afirmando que o mesmo se tratava de iniciativa
pacífica e que não somente não constituía nenhuma ameaça para a Argentina como
abria uma possibilidade ímpar para pensar, em ambos os países, a coordenação
das políticas nucleares de Argentina e Brasil em prol do desenvolvimento do
Cone Sul83 . No Brasil, o depoimento suscitou reações radicais em nível
governamental, quase chegando a valer ao embaixador a declaração de persona non
grata84 . Até mesmo Buenos Aires quase demitiu seu embaixador, pois os
militares argentinos pretendiam que a Argentina fosse o país latino-americano a
ter o monopólio nuclear da região e, segundo Camilión, não viam com bons olhos
a associação ao Brasil nesse campo. Mas não foi assim com a opinião pública.
A imprensa brasileira recebeu o depoimento positivamente, por entender que o
apoio argentino ao projeto nuclear brasileiro era uma credencial a mais para
fazer frente ao "imperialismo ianque". O próprio embaixador Nogueira Batista,
que presidia a Nucleobrás, estava convencido da necessidade de cooperação com a
Argentina para fazer frente à pressão norte-americana85 . Contudo, a vitória de
Camilión no Brasil foi temperada por seu fracasso inicial junto à opinião
pública argentina e a setores de seu próprio governo. A imprensa local acusava-
o de ceder com facilidade aos "pequenos gestos de Silveira", sua estratégia era
denunciada "concessória", e seus poderes, "excessivos"86 . Assim como nos
tempos de Frondizi e Quadros nos anos sessenta, quando tivera alguma
responsabilidade pelo espírito de Uruguaiana, o Camilión dos setentas enfrentou
setores da opinião pública argentina abertamente hostis à idéia de concertar
posições com o Itamaraty87 .
Os acertos técnicos para a assinatura de um entendimento entre Buenos Aires e
Brasília estavam praticamente definidos em outubro de 1978. Nunca o
entendimento havia estado tão próximo. Em conversa telefônica no dia 24 daquele
mês, os dois chanceleres dispunham-se a celebrar algum tipo de acordo que
encerrasse o desentendimento. O mesmo cumpria inteiramente as demandas
brasileiras88 . Faltava apenas definir a forma jurídica que o documento final
teria. Durante a X Reunião de Chanceleres da Bacia do Prata (Punta del Este,
dezembro de 1978), Silveira sugeriu à contraparte argentina a
"trilateralização" das notas reversais trocadas com o Paraguai, como forma de
fugir à fórmula de um acordo e consagrar um entendimento eminentemente técnico.
A delegação argentina não aceitou a proposta89 e, alternativamente, enviou ao
Brasil um emissário com amplos poderes com a intenção de renegociar parâmetros
previamente definidos. Geisel e Silveira decidiram encerrar definitivamente as
conversas com os argentinos, deixando um eventual entendimento para o próximo
governo, que assumiria meses depois.
Em 30 de janeiro de 1979, a diplomacia argentina jogava mais uma vez com as
conjunturas políticas de Brasília. Apesar de saber que o governo de Geisel
resumira as negociações, Buenos Aires aumentou o dissonância com o Itamaraty ao
sugerir publicamente uma nova rodada de negociações. Essa atitude, pela qual a
Argentina aproveitava o fim do mandato de Geisel para dar a entender à opinião
pública que a falta de avanços devia-se à postura arrogante do governo
brasileiro, irritou Silveira profundamente. Seus gestos de frieza em relação à
delegação argentina, durante o último encontro tripartite de sua gestão
(Assunção, Janeiro de 1979), fizeram-no passar para a história com a pecha de
"carnavalesco", "perigoso", "pouco sério", "inconsciente" e "pueril" em
editoriais de Jornal do Brasil, O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo do dia
1º de fevereiro de 1979.
Conclui-se que o governo Geisel desenvolveu uma política intolerante ao perfil
denuncista da diplomacia argentina, respondendo frontalmente a suas acusações;
não buscou faixas de coincidência para diluir o clima de contencioso em torno à
questão dos rios internacionais e, embora o comércio bilateral desse um
significativo salto durante o período, sujeitou todas as áreas da relação
bilateral à dinâmica da negociação do regime fluvial da Bacia do Prata; excluiu
a Argentina das iniciativas multilaterais de Brasília, isolando Buenos Aires
por meio de um renovado sistema de projetos regionais; e, finalmente, não
utilizou o canal privilegiado de comunicação com a Washington de Henry
Kissinger90 para reduzir os atritos entre a Argentina e os Estados Unidos, nem
buscou associar-se à Junta da Casa Rosada para dialogar com Jimmy Carter91 .
O projeto de integração: o legado
O início do governo Figueiredo, em 1979, criou as condições para a reforma
geral da política brasileira em relação à Argentina: era necessário definir um
lugar para o vizinho mais importante nas prioridades diplomáticas do país
depois do fiasco que constituíra a demorada negociação dos rios internacionais.
A restauração do relacionamento bilateral em um novo ponto de equilíbrio
aceitável a ambas as nações demandou um programa intenso de cooperação que se
estendeu ao longo de toda a década de 1980. É nesse período que a diplomacia
brasileira abriu o caminho para a cooperação bilateral em matéria militar,
nuclear e comercial, mecanismos que prepararam as bases para um ambicioso
projeto cooperativo.
A natureza e o escopo da parceria estratégica que então nascia com o vizinho,
entretanto, eram substancialmente diferentes daquelas presentes durante os anos
da cordialidade oficial. Com efeito, tratava-se de um novo paradigma de
relacionamento com Buenos Aires, originado diretamente da conjuntura crítica
que marcou o cálculo estratégico brasileiro para aquele país desde o governo de
Médici. A partir do novo padrão inaugurado por Figueiredo, em 1979, estavam
dadas as bases materiais para o projeto de integração.
O mesmo era alternativa concreta para a voraz reação norte-americana aos planos
autônomos de desenvolvimento energético, os escassos resultados palpáveis da
opção européia92 e a construção de um sistema de comércio no Cone Sul
instrumental aos interesses brasileiros. A parceria com a Argentina começava a
configurar-se como uma contingência praticamente inevitável, caso o Brasil
pretendesse manter a sua ascendência política no campo das relações
internacionais. Portanto, a convergência da política externa brasileira com a
argentina, ao princípio dos anos oitenta, é substancialmente diferente daquela
ocorrida, por exemplo, em 1961, no marco dos acordos de Uruguaiana.
A intensidade outorgada pelo novo mandatário brasileiro à aproximação com a
Argentina constituiu o primeiro mecanismo a dar origem a esse projeto. O perfil
personalista das viagens presidenciais93 inaugurava uma era há tempos
reclamada pela imprensa brasileira e necessária para marcar uma ruptura clara
com o passado recente, gestando assim uma atitude pró-ativa em todos os níveis
do eixo Brasília'Buenos Aires. Devido ao fato de que visitas em nível de chefe
de Estado raramente são ocasiões de negociação, e sim gestos que confirmam ou
reafirmam linhas gerais de ação diplomática, as visitas de Figueiredo revelam o
comprometimento brasileiro com uma nova postura.
Essa orientação deu vida ao segundo mecanismo, qual fosse a manutenção de
relações íntimas em que pesasse a discórdia ideológica dos dois regimes
militares em temas sensíveis como o golpe de Estado na Bolívia, em 1980, e a
política norte-americana para a América Central. No entanto, a quantidade dos
instrumentos assinados naquelas ocasiões, assim como o compromisso político e
pessoal do presidente com os argentinos, não atravessou o período sem testes
significativos. As pressões norte-americanas no tema da proliferação nuclear e
a malfadada invasão argentina às Malvinas puseram o Brasil face a
constrangimentos definidores de sua atuação externa.
Com Figueiredo, não se tratava de tolerar o discurso argentino, de buscar áreas
pouco conflitivas para a aproximação de ambas as chancelarias, de incluir a
Argentina em grandes projetos de Brasília e muito menos de promover bons
ofícios entre o Palácio San Martín e o Departamento de Estado norte-americano.
A questão não era precaver-se dos avanços diplomáticos argentinos e sim
outorgar àquele país, paulatinamente, um lugar preponderante na estratégia
internacional do Brasil.
O marco de referência que, no decênio de 1970, advogava relações especiais com
o mundo desenvolvido como instrumento de redenção do país na cena internacional
cedeu passo à formulação de uma parceria simétrica com a Argentina, refletida
nos protocolos bilaterais de 1986 (Ata para a Integração Argentino-Brasileira)
e no Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento de 1988. Nascia o
princípio segundo o qual Argentina e Brasil deveriam integrar certas unidades
produtivas com a finalidade de promover tecnologias sensíveis em setores
estratégicos para o desenvolvimento econômico.
Mais do que isso, a aproximação entre as duas novas democracias do Cone Sul
constituía uma verdadeira corrida em busca de credenciais democráticas que
permitissem a ambos os países encerrar o seu isolamento em importantes praças
diplomáticas e foros multilaterais devido às vergonhosas situações internas dos
direitos humanos. Os dois governos apressaram-se a aceder ao regime
interamericano de proteção aos direitos humanos, assim como aos pactos e
convenções de consenso sob a égide das Nações Unidas.
Dessa forma, procedia a diplomacia brasileira a estabelecer uma relação
privilegiada no contexto do universalismo alcançado ao longo das últimas
décadas. A qualificação do relacionamento com a Argentina ocorreu, portanto, no
marco das parcerias estratégicas, qual seja (a) a perseguição dos elementos
cruciais que o aparelho de Estado define como desenvolvimento econômico
(mercados, tecnologias, fontes de energia), (b) a promoção da concertação
internacional nos fóruns multilaterais, (c) a articulação de uma alternativa
factível às tradicionais "relações especiais" com os Estados Unidos, (d) o
aumento significativo dos fluxos econômicos, e (e) a consecução de presença
internacional própria94 .
Vê-se que o projeto de integração com a Argentina não retoma os princípios da
cordialidade oficial, isto é, a tolerância com o discurso do outro, a busca de
faixas de convergência para esquivar a discórdia frontal, a inclusão do outro
nas iniciativas da chancelaria e a promoção dos bons ofícios com Washington.
Trata-se, efetivamente, de uma estratégia alternativa para lidar com o desafio
que a Argentina representa para a diplomacia brasileira.
O fracasso do liberalismo aplicado à Argentina95 , fonte de convulsões sociais
e políticas sem precedentes, que ocorre paralelamente ao fim do segundo mandato
de Fernando Henrique Cardoso, sugere que a capacidade de sobreviver às
lideranças é apenas um dos muitos testes de resistência aos quais o projeto de
integração será confrontado nos primeiros anos do século XXI. Trata-se, em
outras palavras, de responder às difíceis perguntas que assolam todo vínculo
dessa natureza: qual é o grau de unidade que se espera do comportamento externo
de cada um, quais os níveis de desentendimento que são toleráveis por ambas as
partes, e qual o espaço que cada um tem para atuar independentemente?
Em quase duas décadas de vida, o projeto de integração regional atualizou as
agendas externas de Argentina e Brasil tão eficientemente que ambos os países o
utilizam como credencial internacional mais importante. Essa parceria
contribuiu significativamente para: democratizar e pacificar o subcontinente,
multiplicar os fluxos de comércio bilateral e fazer da América do Sul um ator
minimamente notado nas relações internacionais contemporâneas.
Conclusão
Neste artigo sugeriu-se que, no contexto prático do embate pela utilização dos
recursos hídricos da Bacia do Prata, a diplomacia de Geisel desestruturou o
ideário tradicional da política brasileira para a Argentina. Por sua vez, a
dramaticidade desse fenômeno terminou por criar o ambiente necessário para a
redefinição do lugar daquele país no marco das relações internacionais do
Brasil, objetivo articulado por Figueiredo e defendido com maior ou menor
sucesso por todos os governos desde então.
Em princípios do século XX, o Barão do Rio Branco tomou para si a tarefa de
estruturar uma orientação preventiva em relação à Argentina. Oito decênios mais
tarde, a diplomacia brasileira redefinia o vínculo bilateral à luz de uma
fórmula de concerto inusitada. O responsável por criar as condições para que
essa mudança ocorresse foi Ernesto Geisel, pois durante seu governo os
princípios e conceitos tradicionalmente utilizados para lidar com o desafio
argentino colapsaram.
Encerrada a negociação sobre Itaipu, a diplomacia brasileira estava em
condições de reavaliar o lugar do vizinho em seu marco conceitual. Assim,
buscou-se uma agenda capaz de refletir os interesses paralelos que ambas as
nações tinham naquela conjuntura e outorgou-se fôlego ao programa de
convergência em assuntos de defesa e política internacional. Se, ao longo do
século XX, a política externa brasileira foi guiada pela necessidade imperiosa
de evitar que o vizinho ' único poder sul-americano capaz de ombrear o Brasil
em oportunidades e responsabilidades no cenário regional e internacional ' lhe
turvasse os horizontes, depois de Itaipu a prevenção como método brasileiro de
administração havia caducado. Não havia mais motivos de angústia para a atuação
diplomática brasileira na América do Sul, mas a Argentina, por seu vulto, ainda
demandava algum tipo de postura. A integração regional foi a resposta.
Além de oferecer indícios para uma interpretação alternativa das relações
argentino-brasileiras ao longo do século XX, este trabalho revelou que a
mudança de estratégia de um país na cena internacional não apenas é causada por
fatores estruturais, mas também pode ser precipitada pelo esforço de suas
lideranças.
Notas
1 Princípios são regras, leis e proposições cujas verdades não são
questionadas. Concepções são as maneiras utilizadas para formular idéias,
projetos ou planos. PRINCÍPIO e CONCEPÇÃO. In: Novo Dicionário Aurélio. 3. ed.
Nova Fronteira: 1998. p.1639 e 519, respectivamente.
2 HILTON, Stanley. Brasil-Argentina: história de um encontro. Revista
Brasileira de Política Internacional, a. 23, nº 89-92, p. 101-118, 1980.
3Depoimento, cassete nº 6, lado B, 18 maio 1979.
4 A categoria foi desenvolvida por COLLIER, David & COLLIER, Ruth. Shaping
the political arena: critical junctures, the labor movement, and regime
dynamics in Latin America. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1991. Trata-se de estudo comparado entre oito países latino-
americanos, que visa a definir qual o impacto da incorporação das classes
urbanas à vida pública dessas sociedades. Conclui-se que, ao longo dos
respectivos períodos de incorporação, houve mudanças significativas nos
sistemas produtivo e político, assim como relações sociais. Dessa forma, os
autores argumentam que a inclusão dessa nova classe constituiu uma conjuntura
crítica na história desses países, uma vez que fez toda a diferença na evolução
posterior dos mesmos.
5 Renouvin, Pierre; DUROSELLE, Jean-Baptiste. Introdução à História das
Relações Internacionais. São Paulo: Difel, 1967. p. 407-434.
Essa categoria é denominada, na politologia, liderança política.
6 Ibid., p. 480.
7 Em 1821, D. João anexou a Província Cisplatina, incorporando-a em seguida ao
Império brasileiro. Três anos mais tarde, contudo, uma declaração de
independência uruguaia inaugurou um período de instabilidade regional que levou
Buenos Aires a incorporar a Cisplatina. O imperador D. Pedro, por sua vez,
reagiu com uma guerra e um bloqueio naval contra a capital portenha. O
resultado das negociações entre as diplomacias de Buenos Aires e Rio de
Janeiro, sob mediação inglesa, foi a criação do Estado uruguaio e a garantia da
liberdade de navegação no Prata, em 1828. Cervo, A.mado; BUENO, Clodoaldo. A
política externa brasileira (1822-1985). São Paulo: Ática, 1986. p. 36-37.
8 Em meados do século XIX, a diplomacia brasileira no Prata enfrentava o
desafio imposto pelo caudilho argentino Juan Manuel de Rosas, que punha em
questão a independência do Uruguai de 1828, a do Paraguai, a liberdade de
navegação no Prata, as fronteiras sulinas do Brasil e, ainda, era percebido por
certas vozes do parlamento imperial como um homem à procura da restituição a
Buenos Aires das fronteiras originais do Vice-Reinado do Prata (englobando
Bolívia, Paraguai e Uruguai). A resposta brasileira ocorreu mediante uma
complexa associação de táticas para eliminar Rosas: alianças com os países do
Pacífico e da Bacia do Prata (inclusive as províncias de Corrientes e Entre
Rios), a diplomacia familiar de D. Pedro para assegurar a neutralidade inglesa
no assunto, a força das finanças do Barão de Mauá e as armas. Isso, somado às
inamizades que Rosas cultivara nas províncias argentinas, terminou por levá-lo
ao exílio em 1852. CERVO, Amado; BUENO, Clodoaldo. História da política
exterior do Brasil. São Paulo: Atica, 1992, p. 98-104.
9 No início da década de 1860, o Paraguai ressentia-se de haver perdido,
paulatinamente, a capacidade de mobilização do sistema subregional. A sua
estratégia, porém, continuava a mesma de outrora, que consistia na promoção de
um equilíbrio de forças que preservasse os pequenos (Paraguai e Uruguai) da
intervenção dos grandes (Argentina e Brasil). Na prática, isso significava a
eventual criação de um Estado que reunisse Uruguai, Paraguai, Corrientes, Entre
Rios e, quiçá, as missões rio-grandenses. A instabilidade que se seguiu
resultou na intervenção brasileira no Uruguai que, por sua vez, levou o
Paraguai a invadir territórios argentinos e brasileiros. Nessas circunstâncias,
o Império financiou com recursos de seu Tesouro e de empréstimos ingleses a
longa Guerra do Paraguai ou da Tríplice Aliança (1865'1870), auxiliando
inclusive o argentino Mitre com empréstimos de vulto. CERVO; BUENO.
História..., p.107-112.
10 BANDEIRA., Moniz. As relações regionais no Cone Sul: iniciativas de
integração. In: CERVO, Amado; RAPOPORT, Mario (Orgs.). História do Cone Sul.
Rio de Janeiro e Brasília: Renavan e Universidade de Brasília, 1998, p. 292-
295.
11 Paradiso, J. Debates y trayectoria de la política exterior argentina. Buenos
Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1993. p. 17-61.
12 Para uma síntese de como o Prata constituiu um "laboratório da inteligência
nacional", ver CERVO, Amado L. Intervenção e neutralidade: doutrinas
brasileiras para o Prata nos meados do século XIX. Revista Brasileira de
Política Internacional, a. 26, n.101-104, p. 101-114, 1983.
13 Ministro dos Negócios Estrangeiros entre 1855-1857, 1858-1859 e 1868-1871.
De 1871 a 1875, comandou o "Gabinete Rio Branco" (presidente do Conselho de
Ministros). Ver HIRST, M. A diplomacia brasileira. Disponível em <http://
www.mre.gov.br/acs/diplomacia/portg/arquivo/crob001.htm> .
14 CERVO. Intervenção..., p. 116.
15 BANDEIRA. As relações regionais... p. 216-217.
16 DORATIOTO, Francisco M. A política platina do Barão de Rio Branco. Revista
Brasileira de Política Internacional, a.43, nº 2, 2000, p. 133.
17 CONDURU, Guilherme. O subsistema americano, Rio Branco e o ABC. Revista
Brasileira de Política Internacional, a.42, nº 2, 1998, p. 63.
18 Em 1902, a Venezuela, que havia cessado o pagamento de sua dívida pública,
enfrentou o bloqueio de suas costas, a apreensão de sua frota marítima e o
bombardeio de um de seus portos por Inglaterra, Alemanha e Itália, com o
consentimento expresso dos Estados Unidos. A Argentina, por meio de seu
chanceler Luís María Drago, condenou a postura da Casa Branca por entender que
o emprego da força para a cobrança de dívidas era ilegítimo. Na América do Sul,
a condenação veemente da Argentina não mobilizou o Rio de Janeiro, que preferiu
um "silêncio oficial". Para interpretações sobre este tema ver CERVO; BUENO.
História..., p. 173-176 e PARADISO, José. Debates y trayectoria de la política
exterior argentina. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1993, p. 50.
19 A Doutrina Monroe é o fundamento da diplomacia dos Estados Unidos oriundo da
mensagem do presidente James Monroe ao Congresso em dezembro de 1823, advogando
três pontos: a) não se permitiria nenhum novo intento de colonização européia
no Novo Mundo; b) os Estados Unidos se absteriam dos assuntos referentes à
Europa e, em contrapartida, c) a Europa não interviria nos governos do
hemisfério ocidental. O corolário que dela emana resultou de uma série de
declarações do presidente Theodore Roosevelt (1901-1909) entre 1901 e 1902,
quando o mesmo afirmava que os Estados Unidos desempenhariam função de polícia
na América Latina no intuito de garantir que essas nações cumprissem suas
obrigações internacionais. MONROE DOCTRINE. In: ENCYCLOPEDIA Brittannica
(Micropedia). 15. ed. Chicago: University of Chicago, 1978. vol. VI. p. 1007 e
THEODORE ROOSEVELT. In: ENCYCLOPEDIA Brittannica
(Macropedia). 15. ed. Chicago: University of Chicago, 1978. vol. XV. p. 1143.
20 Respondendo ao lema de "América para os Americanos", Saenz Peña (Presidente
entre 1910 e 1914) propunha a "América para a Humanidade", calcada na idéia de
que "nenhum estado americano tem direto a falar em nome de um hemisfério".
BANDEIRA, Moniz. O eixo Argentina-Brasil: o processo de integração da América
Latina. Brasília: Universidade de Brasília, 198, p. 19.
21 Burns, E. The unwritten alliance: Rio Branco and Brazilian-American
relations. New York: Columbia University Press, 1966. p. 175.
22 CERVO. Relações internacionais..., p. 102-103.
23 Ver PUIG, Juan Carlos. Política internacional argentina. In: PERINA, R. M. e
RUSSEL, R. (Orgs.). Argentina en el mundo,1973-1987. Buenos Aires: Grupo Editor
Latinoamericano, 1988. p. 11-45.
24 DORATIOTO, Francisco. As políticas da Argentina e do Brasil em relação à
disputa boliviano-paraguaia pelo Chaco, 1926-1936. In: FUNDAÇÂO ALEXANDRE DE
GUSMÂO. A visão do outro: seminário Brasil-Argentina. Brasília: FUNAG, 2000, p.
446-458
25 O presidente Justo visitou o Rio de Janeiro em 1933 para assinar o Pacto
Saavedra-Lamas. Vargas, por sua vez, foi a Buenos Aires em 1935 por ocasião da
Conferência de Paz do Chaco. Ver FRAGA, Rosendo. Los Acuerdos Vargas-Justo,
1933-1935. In: FUNDAÇÃO ALEXANDRE DE GUSMÃO. Op. Cit., p. 401-422.
26 Presidente argentino entre 1946-1951, 1951-1955 e 1973-1976.
27 CERVO, Amado. Relações internacionais da América Latina: velhos e novos
paradigmas. Brasília: FUNAG e IBRI, 2001. p. 211-228.
28 CERVO. Relações internacionais..., p. 160-161.
29 LANÚS, Archibaldo. De Chapultepec al Beagle: política exterior argentina,
1945-1980. 2.ed. Buenos Aires: Emecé, 2000, p. 313.
30 BANDEIRA., Moniz. Estado nacional e política internacional na América
Latina: o continente nas relações Argentina-Brasil, 1930-1992. e. Ed. Brasília:
Universidade de Brasília e Ensaio, 1995, p. 93.
31 MOURA, Gerson. A segurança coletiva continental: o sistema interamericano, o
TIAR e a Guerra Fria. In: ALBUQUERQUE, J. A. G. (Org). Sessenta anos de
política externa brasileira, 1930-1990: crescimento, modernização e política
externa. São Paulo: Editora Vox, 1996. v. 1. p. 163.
32 HILTON. The argentine factor in XX century: Brazilian foreign policy
strategy. Political Science Quarterly. V. 100, n.1, spring 1985, p. 38.
33 LANÚS. Op. Cit., p. 22-23.
34 PUIG. Politica internacional..., p. 27.
35 CERVO, Amado L. (Org.). O desafio internacional. Brasília: Universidade de
Brasília, 1994. p. 40.
36 Espírito de Uruguaiana foi o nome dado ao conjunto de acordos assinados por
Jânio Quadros e Arturo Frondizi, discriminados a seguir: Convênio de Amizade e
Consulta; Declaração Presidencial Conjunta; Declaração Econômica; e Declaração
sobre Intercâmbio Cultural, celebrados na cidade fronteiriça de Uruguaiana (Rio
Grande do Sul) entre 20 e 22 de abril de 1961. A esses documentos, somam-se a
Declaração Conjunta, o Tratado de Extradição e a Convenção sobre Assistência
Judiciária Gratuita que o chanceler San Tiago Dantas assinou com seu par
argentino, Miguel Cárcano, em novembro do mesmo ano, em Buenos Aires.
37 A tese sobre a multilateralização da política externa brasileira durante o
regime militar (1964-1985) é defendida por VIZENTINI, Paulo Fagundes. A
política externa do regime militar brasileiro. Porto Alegre: Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, 1998.
38 Ainda nos primeiros anos do governo Castelo Branco, o Itamaraty propôs
complementação industrial e colaboração no desenvolvimento da Bacia do Amazonas
a Colômbia, Equador e Peru, ensaiando a procura da liderança mediante a
exploração de elementos de aproximação que marcariam a política brasileira para
seus vizinhos sul-americanos na década de 1970.
39 CERVO. Relações internacionais... p. 211-235 e 241-243.
40 Cf. Cit.; COSTA, Op. Cit.; BANDEIRA, As relações regionais...
41 BANDEIRA. Estado nacional..., p. 191.
42 BANDEIRA. As relações regionais..., p.324
43 A Argentina defendia acertos multilaterais rígidos para garantir que: a) não
fossem causados prejuízos ao Estado a jusante com as obras de engenharia sobre
rios internacionais; b) os Estados interessados fossem previamente consultados
sobre os projetos de engenharia sobre rios internacionais; c) "Estado
interessado" fosse considerado toda unidade soberana que pudesse ser afetada
pela execução de trabalhos em rios internacionais. LANÚS. Op. Cit., 297-317.
44 Em 1965, o Parecer do Consultor Jurídico do Itamaraty esboçava uma
orientação geral sobre o tema. Recomendava ao governo brasileiro que: a) o
regime regulador das águas internacionais deveria limitar-se a definir
princípios gerais sobre os quais as partes pudessem negociar entendimentos
específicos; b) tais princípios deveriam incluir o de "não-imposição de
prejuízos" aos demais ribeirinhos; c) os ribeirinhos interessados deveriam ser
notificados (por oposição a previamente consultados) da realização de obras
sobre o leito dos rios internacionais; d) o status de rio internacional valeria
apenas para o rio, e não para seus afluentes; e) o conceito de "Estado
ribeirinho" deveria ser diferente de "Estado interessado", cabendo apenas ao
primeiro tipo o princípio da soberania compartida. Cf. Parecer do Consultor
Jurídico do Ministério das Relações Exteriores, Brasília, 6 de janeiro de 1965,
AAS, 1969.01.15. CPDOC/FGV.
45 Ainda em 1932, a Comissão Permanente de Direito Internacional Público do Rio
de Janeiro (foro composto por proeminentes internacionalistas brasileiros tais
como Clóvis Benvilacqua, Epitácio Pessoa, Eduardo Espínola e Prudente de
Moraes) sustentava que, se um rio fosse fronteiriço, nenhum Estado poderia
alterar seu curso sem consultar e obter o consentimento dos outros Estados
afetados. Um ano mais tarde, esse princípio deu forma à Declaração de
Montevidéu sobre a Utilização Industrial e Agrícola dos Rios Internacionais,
que o Brasil não somente assinou como patrocinou. Ver CANO, G. J. Argentina,
Brazil and the de La Plata River Basin: a summary review of their legal
relationship. Natural Resources Journal,1976. p. 863-881. Segundo Maria Regina
de Soares Lima, o Brasil teria assinado essa Declaração porque não existiam
ainda condições técnicas de realizar construções significativas sobre o leito
dos rios internacionais que cortam o Brasil, além de que naquela conjuntura
particular o Brasil era mais fraco do que a Argentina. Ver LIMA, M. R. S. de,
The political economy of Brazilian foreign policy: nuclear policy, trade and
Itaipu. 1986. Tese (Doutorado) ' Vanderbilt University. p. 361.
46 LANÚS. Op. Cit., p. 299-300.
47 COSTA, L. A. P.; RUDA, J.M. Derecho Internacional Público. Buenos Aires:
TEA, 1979. Apud. LANÚS. Op. Cit., p. 316.
48 Assinado em 28 de junho de 1919, estabelecia que a perturbação da navegação
nos trechos internacionais por parte de obras sobre os rios Oder, Elba, Niemen
e Danúbio poderiam levar a Corte Pernamente de Justiça Internacional a
suspender os trabalhos. LANÚS. Op. Cit., p. 315.
49 Subscrito em 1963 entre Camarões, Chade, Daomé (Benin desde 1976), Guiné,
Costa do Marfim, Mali, Níger, Nigéria e Alto Volta (Burkina Faso desde 1984),
afirma que os países se comprometem a cooperar "no estudo e execução de
qualquer projeto que possa ter efeito apreciável sobre qualquer aspecto do
curso do rio Níger, seus tributários, suas condições de navegação, exploração
agrícola e industrial, condições sanitárias das águas e as características
biológicas de sua fauna e flora [minha tradução]". Apud. LANÚS. Op. Cit., p.
315.
50 Pio Corrêa ao MRE, telegrama confidencial, Brasília, 24 de janeiro de 1969,
nº 349, AAS, 1972 a 73. CPDOC/FGV.
51 Ibid.
52 Silveira (1917-1990) ingressou na carreira diplomática aos 26 anos de idade
e a deixou aos 68. Serviu como terceiro e segundo secretário nas embaixadas de
Havana (1945-1949) e Buenos Aires (1949-1950), foi primeiro secretário em
Madrid (1954-1956) e Roma (1957-1958) e Cônsul em Florença (1956-1957). Ocupou
diversos cargos na administração do Itamaraty, dos quais destaca-se a chefia do
Departamento de Administração (1959-1961 e 1963-1966). Entre 1966 e 1968
chefiou a delegação brasileira em Genebra. Foi embaixador em Buenos Aires
(1969-1974), em Washington (1979-1982) e em Lisboa (1982-1985). Entre 1974 e
1979 foi ministro de Estado das Relações Exteriores.
53 Depoimento, cassete nº 1, lado A, 10 maio 1979.
54 La Prensa, 10 de julho de 1971.
55 Ver MRE à legação em Buenos Aires, telegrama secreto, Brasília, 22 de julho
de 1971, nº 535, AAS, 1969.01.15. CPDOC/FGV; Silveira ao MRE, telegrama, Buenos
Aires, 22 de novembro de 1971, nº 2097, AAS, 1969.09.02. CPDOC/FGV. O texto
menciona que é objetivo comum impulsionar a integração física de ambos países,
que seriam "parte da zona andina da Bacia do Plata [minha tradução]".
56 Silveira ao MRE, telegrama secreto urgentíssimo, Buenos Aires, 26 de julho
de 1971, nº 1237, AAS, 1969.01.15. CPDOC/FGV.
57 O discurso de Geisel na primeira reunião de gabinete, em 19 de março de
1974, já traz esses elementos. O mesmo ocorreu com Silveira em seu discurso de
posse, no qual prenunciou os novos tempos ao afirmar que "o Brasil não se
contém apenas no inventário de suas dimensões presentes, mas antes se completa
na perspectiva fecunda da superação do que é hoje ( ) Por isso, [o Itamaraty]
tem feito e continuará a fazer ajustamentos sistemáticos na sua capacidade de
atuar". BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Resenha de Política
Exterior. Brasília: MRE. nº 1, mar/abr/maio/jun 1974, p. 9 e 19-20. Nessa mesma ocasião Silveira afirmou a seus colegas que "a melhor
tradição do Itamaraty é saber renovar-se". À luz do Depoimento, é praticamente
impossível saber se essa construção tinha por objetivo contemporizar a postura
do ministro com eventuais críticas dos setores mais conservadores da Casa ou se
foi uma ironia do ministro endereçada a esses grupos. Provavelmente tratou-se
de uma conjunção das duas alternativas.
58 Segundo Silveira, o texto por ele preparado para leitura do mandatário
durante a primeira reunião de gabinete, em 19 de março de 1974, trazia a noção
de "pragmatismo responsável", mas não definia a expressão ' tarefa que ficou
por conta de Geisel. Inclusive, para o diplomata teria sido melhor se a
expressão a qualificar a política externa brasileira houvesse ressaltado o lado
ecumenista do projeto, e não o pragmático. Depoimento, cassete nº 2, lado A, 10
maio 1979.
59 Passim. CERVO, O desafio... e VIZENTINI, A política externa...
60 Há indícios de que Pinochet teria realizado esforços para ser convidado à
festa, que foi sua primeira viagem internacional oficial. Geisel e Silveira
teriam evitado encontros com o presidente chileno ao longo de todo a gestão,
uma vez que isso associava o mandatário brasileiro ao brutal golpe de Estado
perpetrado pelo colega em 1973. CHIARELLI, Marilena. Entrevista concedida ao
autor. Brasília: 15 de agosto de 2001. (Marilena Chiarelli
foi a jornalista responsável, da Rede Globo, pela cobertura da política externa
durante o governo Geisel).
61 Os entendimentos diplomáticos de caráter econômico já existiam com Bolívia e
Uruguai. A ocasião serviu para que Geisel propusesse pesada agenda econômico-
comercial, ver Merquior a Embaixador Pereira de Araujo, memorando confidencial,
Brasília, 2 de abril de 1974, AHMRE, caixa C-01.
62 Esse boato foi difundido nas imprensas argentina e brasileira, ver La
Opinión, Buenos Aires, 28 de fevereiro de 1974, e O Estado de
S. Paulo, 17 e 23 de março de 1974.
63 ACUÑA, C. La nueva matriz política argentina. Buenos Aires: Nueva Visión,
1995. p. 13
64 CERVO. Relações internacionais p. 245-247.
65 PUIG. Op. Cit., p. 39.
66 Para Carlos Escude, o "nacionalismo territorial argentino" é uma
característica cultural daquele país, assentada sobre a percepção de que,
durante a história da formação nacional, houve perda real de território para
outros países. Ver ESCUDÉ, C. El Nacionalismo Territorial Argentino. In:
PERINA; RUSSEL, Op. Cit., p. 241.
67 Siete Días, 19 a 25 de janeiro de 1978.
68 NEILSON, J. Editorial. The Buenos Aires Herald. Buenos Aires, 11 mar. 1976.
69 Oscar Hector Camilión nasceu em Buenos Aires, em 1930. Foi professor da
Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires, onde ocupou o cargo de
Secretário Geral e iniciou a carreira política (1955). Ensinou política
internacional no Instituto Argentino de Cultura Hispânica (1967-1971) e no
Curso Superior de Defesa Nacional da Escola Nacional de Guerra (1973). Aos 28
anos era chefe da Divisão de Pessoal da chancelaria argentina (1958), cargo que
acumulou mais tarde como Chefe de Gabinete do Ministro (1959). No auge do
governo de Arturo Frondizi, foi Subsecretário de Relações Exteriores e Ministro
na embaixada argentina no Rio de Janeiro (1959-1962). Entre 1965 e 1972 foi
Chefe de Redação de El Clarín. Entre 1976 e 1979 foi embaixador argentino junto
ao governo do Brasil. Em 1981 foi alçado ao cargo de ministro das relações
exteriores do governo Viola (1981). Ao longo da década de 1980 foi enviado
especial do Secretário Geral das Nações Unidas para o Chipre. Deixou esse cargo
para ocupar o Ministério de Defesa na gestão Menem.
70 Ao chegar à embaixada em Brasília, Camilión ouviu do adido militar argentino
que, caso não houvesse um avanço significativo nas negociações, "seria
necessário bombardear Itaipu". CAMILIÓN, Oscar. Memórias Políticas: de Frondizi
a Menem, 1956-1996. Buenos Aires: Planeta, 1999, p. 205-208.
71 Espírito de Uruguaiana foi o nome dado ao conjunto de acordos assinados por
Jânio Quadros e Arturo Frondizi, discriminados a seguir: Convênio de Amizade e
Consulta; Declaração Presidencial Conjunta; Declaração Econômica; e Declaração
sobre Intercâmbio Cultural, celebrados na cidade fronteiriça de Uruguaiana (Rio
Grande do Sul) entre 20 e 22 de Abril de 1961. A esses documentos, somam-se a
Declaração Conjunta, o Tratado de Extradição e a Convenção sobre Assistência
Judiciária Gratuita que o chanceler San Tiago Dantas assinou com seu par
argentino, Miguel Cárcano, em novembro do mesmo ano. Cf. Capítulo 1.
72 Sobre a autonomia de Camilión, vale notar que ele afirma nunca ter recebido
nenhuma diretriz da Junta ou do chanceler argentino. Atribui isso ao fato de
que o governo de Buenos Aires sabia que à medida que o relacionamento
argentino-chileno se deteriorava, era necessário manter uma postura positiva
com o Brasil, CAMILIÓN, Memórias p. 193. Adiante, mostra-se que efetivamente
Camilión gozava de menos autonomia do que as suas Memórias sugerem.
73 SILVEIRA, A. F. A. da. O Brasil e a nova ordem internacional. Revista
Brasileira de Política Internacional, ano 18, nº 69/72, 1975. p.8.
74 Depoimento, cassete nº 12, lado B, 1 jun. 1979, 1 jun. 1979.
75 Em um ato curioso, senão constrangedor, o núncio apostólico, que
representava as delegações presentes, respondeu ao Presidente fazendo defesa do
caso argentino. "[Hoje] a teoria dos Estados estanques fatalmente cede o posto
à do intercâmbio universal. A individualidade deu lugar à coletividade ( ) em
virtude disso, os acontecimentos de um país, favoravelmente ou não, causam
reflexos sobre os outros, a ponto de tanger o conjunto total do mundo". In:
GEISEL: alarde não ajuda diplomacia. O Estado de S. Paulo, 11 maio 1977.
76 Ver exposição feita na Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos
Deputados pelo ministro Rubens Ricúpero, Chefe da Divisão da América
Meridional-II do Ministério das Relações Exteriores, 9 de maio de 1979. In:
Relações Internacionais, nº 5, vol. 3, junho, 1980.
77 BANDEIRA, O eixo
78 Em relação à Bolívia, vale notar a ratificação do Acordo de Cooperação e
Complementação Industrial (22 de maio de 1974). Com o Uruguai, o Tratado da
Lagoa Mirim (20 de maio de 1974), o Tratado de Amizade, Cooperação e Comércio
(Tratado de Rivera, 12 de junho de 1975), o Acordo sobre Trigo (7 de março de
1975) e a viagem oficial de Geisel àquele país em 24 de janeiro de 1978.
BRASIL. Resenhas de Política Exterior do Brasil. Brasília: MRE. nº 1, 3, 4, 5 e
16 (1974, 1975 e 1978).
79 GÓES. O Brasil , p. 54 e CONDE, C. Militares assumem a ação diplomática. O
Estado de S. Paulo, 10 jul. 1977.
80 LA VISITA de um Almirante y la "cruzada" del Brasil. Revista Confirmado,
maio 1976.
81 Política Internacional, ago/sep, 1977.
82 FOULKES. Haroldo. Buenos Aires-Brasília: eje torcido, rueda loca. Revista
Panorama, agosto 1977. p. 14-16.
83 CAMILIÓN. Memórias..., p. 202.
84 Ibid. p. 203.
85 Id.
86 Dizia o influente Última Clave: "O camilionismo desacreditou com
simplicidade inexplicável a tese que recomendava uma maior contundência em
nossas relações com o Brasil e com os países que operavam como satélites do
grande sol de Brasília (...) o camilionismo fracassou peremptoriamente em sua
tentativa de docificar as relações bilaterais. Sua alquimia, que consiste em
transformar vinagre em mel [resultou em] desprezos públicos e patentes aos
esforços de alto nível por juntar Geisel com Videla e fortes pressões sobre
Mendez e Stroessner para que abandonassem definitivamente a idéia de apostar
parte de seu capital político em Buenos Aires [minha tradução]". Um editorial
da revista Cabildo chegava a afirmar que Camilión tinha sido irresponsável ao
sugerir uma cota de reagente de 104 metros, ao apoiar a doutrina brasileira de
fazer de Itaipu um fato consumado e fazer de Stroessner, mandatário de uma
nação menor, o mediador entre Buenos Aires e Brasília. NUESTRA politica
exterior. Última Clave, Buenos Aires, 18 junio 1977, p. 5-8; COINCIDENCIAS y
disensos internacionales. Última Clave, Buenos Aires, 27 junio 1977, p. 5-7; e
ANTE un grave peligro. Revista Cabildo, abril 1978, p. 5-6.
87 Conforme apresentado no Capítulo II, Frondizi foi acusado de "entreguista"
por certos setores argentinos que sugeriam ser os convênios de Uruguaiana um
instrumento do Itamaraty para forçar Buenos Aires a uma postura "mais
neutralista" face à revolução cubana.
88 Silveira a Geisel, informação secreta exclusiva para o Senhor Presidente da
República, Brasília, 15 de agosto de 1978, nº 219, AAS. CPDOC/FGV.
89 AS DUAS turbinas da discórdia. Isto É, 31 out. 1978. p. 13-14 e ITAMARATY
fracassa outra vez em Itaipu. Isto É, 28 de fevereiro de
1979. p. 10-11.
90 Henry Kissinger foi Assessor para a Segurança Nacional do presidente norte-
americano Richard Nixon entre 1969 e 1972. Em seguida, foi alçado ao posto de
Secretário de Estado, no qual permaneceu durante todo o governo de Gerald Ford
(1973-1977).
91 Presidente norte-americano entre 1977 e 1981.
92 LESSA, A. C. A diplomacia universalista do Brasil: a construção do sistema
contemporâneo de relações bilaterais. Revista Brasileira de Política
Internacional. a. 41, número especial 40 anos, 1998, p. 35.
93 A mobilização dos dois governos ao tempo das viagens de Figueiredo à
Argentina, assim como as demonstrações de admiração da população argentina nas
ruas e nos eventos públicos, relembra os picos de entendimento bilateral dos
únicos dois mandatários brasileiros a visitar oficialmente o país vizinho ao
longo do século XX: Campos Sales (1902) e Getúlio Vargas (1935). GUERREIRO. Op.
Cit., p. 97 e 98.
94 Esses são os critérios contra os quais se mensura, segundo Lessa, a formação
de uma parceria estratégica, que são: "Relações políticas e econômicas
prioritárias reciprocamente remuneradoras, constituídas a partir de um
patrimônio de relações bilaterais universalmente configurado. A construção de
parcerias estratégicas é fruto da compatibilização da vocação histórica do
Brasil para a universalidade com a necessidade de aproximações seletivas, o que
abre a possibilidade para movimentos de adaptação aos nichos de oportunidade e
aos constrangimentos internacionais que se apresentam conjunturalmente". LESSA.
A diplomacia universalista , p. 30.
95 BERNAL-MEZA, R.; QUINTANAR, S. Argentina: entre o Mercosul e a Alca. Revista
Brasileira de Política Internacional. a. 44, nº 2. 2001. p.153.
* Este artigo é extensivamente baseado em minha dissertação de mestrado,
Ruptura e Legado: o colapso da cordialidade oficial e a construção da parceria
entre o Brasil e a Argentina (1967-1979). Universidade de Brasília. 2002.