A ordem mundial e o Brasil
A busca de uma ordem mundial
O século XX assistiu a um processo de mundialização sem precedentes dos mais
diversos aspectos da vida quotidiana, antes percebidos como questões
essencialmente nacionais. Ampliou-se assim o próprio conteúdo das relações
internacionais e, conseqüentemente, percebeu-se a necessidade de um
disciplinamento mais abrangente - em termos geográficos e substantivos - de
tais relações. As dúvidas e divergências em torno do assunto tinham menos a ver
com a noção mesma de uma ordem mundial do que com a sua forma. Em última
análise, que aspectos da atividade dos Estados estariam sujeitos a alguma
disciplina, que normas seriam estabelecidas, quem delas se beneficiaria e quem
controlaria a sua aplicação. Tais questões, ainda não resolvidas de forma
satisfatória, continuam no centro do debate relacionado com o estabelecimento
de uma ordem mundial justa e democrática.
O processo de efetivo balizamento da conduta externa dos Estados tomou
particular impulso a partir da II Guerra Mundial, e inicialmente teve como
principal objeto os aspectos mais tradicionais das relações internacionais.
Num mundo que, em pouco mais de três décadas, fora vitimado pelas duas guerras
mais sangrentas e destrutivas da história da humanidade, formou-se, entre os
líderes das grandes potências, a consciência de que era preciso encontrar meios
de evitar a repetição de cataclismas semelhantes. Em tais circunstâncias, era
natural que, ainda durante a II Guerra Mundial, os Estados Unidos, como maior
potência econômica e militar, tomasse a iniciativa de promover o
estabelecimento de um sistema normativo capaz de disciplinar a conduta
internacional dos Estados, tanto no terreno político como no econômico. Tal
desiderato, louvável em tese, suscitava, na prática, problemas de dificílima
solução. Para as grandes potências, o desafio era, em última análise,
estabelecer um sistema capaz de evitar conflitos armados entre elas sem, porém,
comprometer-lhes os interesses fundamentais ou impor restrições consideradas
inaceitáveis à sua liberdade de ação. Para os demais, dada a reconhecida
necessidade de ordenar a vida internacional, o problema era como, aceitando o
objetivo geral, minimizar a falta de eqüidade implícita nas idéias defendidas
pelos mais fortes, inclusive buscando assegurar que as normas de conduta a
serem acordadas fossem respeitadas também pelos grandes.
Esse esforço de estabelecer e fazer respeitar uma codificação das normas de
conduta internacional dos Estados veio a ser complicado por outras tendências
da vida internacional no pós-Guerra. Por um lado, a globalização - aqui
entendida no sentido amplo de aceleração do crescimento dos vínculos de
interdependência mundial - tornou substantivamente mais complexo e
geograficamente mais abrangente o conjunto de normas necessário para
disciplinar a vida internacional. Em outras palavras, para ser eficaz o sistema
normativo teria de abranger um número crescente de campos da atividade humana e
ser aplicável a toda a comunidade internacional. Por outro, a enorme
concentração do poder em uns poucos Estados e a crescente capacidade desses
mesmos Estados de projetá-lo a grandes distâncias tornava no mínimo
problemático o estabelecimento de um sistema internacional aplicável a todos.
Democracia e excessiva concentração de poder convivem mal, tanto nas relações
entre os Estados quanto no âmbito interno de cada um.
É uma problemática que tem importância crescente para o Brasil, cujo peso
internacional tende a aumentar e cuja atual política externa se quer mais
assertiva.
O pós-Guerra e a ordem internacional
Ao encerrar-se a II Guerra Mundial, o mundo estava claramente a requerer um
processo de reengenharia político-econômica capaz de levantá-lo dos escombros
deixados pelo conflito e de evitar, sobretudo entre as grandes potências,
outros enfrentamentos bélicos que, pela evolução técnica dos meios de
destruição, seriam ainda mais arrasadores do que o anterior. Com exceção dos
Estados Unidos e do Canadá, o que hoje conhecemos como mundo desenvolvido
estava em ruínas. As antigas grandes potências européias tinham simplesmente
deixado de sê-lo: viviam da esperança de uma recuperação da antiga relevância
política, que nenhuma delas poderia conseguir isoladamente, e de uma retomada
da prosperidade econômica que só poderia ser alcançada com a ajuda americana.
Era, além disso, um continente dividido, onde os países da parte ocidental,
tanto os vitoriosos como os vencidos, se sentiam diretamente ameaçados pela
União Soviética, cujas tropas já ocupavam a Europa oriental e central. As
metrópoles européias de velhos e vastos impérios coloniais transoceânicos, como
a Grã-Bretanha e a França, já não tinham condições de manter seus domínios, nos
quais a efervescência independentista se fazia cada vez mais forte. A África e
boa parte da Ásia era constituída de países que ainda não haviam conquistado a
própria independência (recorde-se, exemplificativamente, que a Índia só a
alcançou em 1947). Assim, o número de Estados independentes era menos de um
terço do atual, mas a opinião pública - nas colônias, nos Estados Unidos e, em
boa medida, nas próprias metrópoles - já não aceitava a perpetuação do
colonialismo.
Nesse mundo onde a guerra já acarretara profundas mudanças na estrutura de
poder e onde outras mais se tinham tornado inevitáveis, os Estados Unidos,
maior potência militar do planeta e única grande economia que não fora
destroçada (em verdade crescera) no conflito, defrontava-se com enormes
desafios. Eles eram de tal magnitude que mesmo a grande potência americana não
poderia enfrentá-los sozinha, apesar da sua poderosa máquina bélica e dos
recursos de uma economia que respondia por algo entre um terço e a metade do
produto mundial, conforme o método de cálculo utilizado. Por um lado, era
preciso conter a ameaça estratégica representada pelo poderio militar e
político da União Soviética, que ameaçava tornar-se a potência hegemônica na
Eurásia e, portanto, um desafio direto à preeminência política americana no
mundo. Por outro, era mister contrarrestar o "poder brando" de Moscou,
representado pela penetração da ideologia soviética, tanto na Europa ocidental,
onde vários partidos comunistas nacionais exibiam notável vigor, quanto nos
movimentos nacionalistas que lutavam pela independência das colônias européias
e, logicamente, tinham uma predisposição anti-ocidental.
Enfrentar essa vasta problemática significava, em última análise, reordenar o
mundo. Tratava-se de reunir vencidos e vencedores do último conflito numa vasta
coalisão capaz de, sob a liderança dos Estados Unidos, conter a expansão
política e militar da União Soviética. Para que tal aliança tivesse condições
de alcançar seus objetivos, cumpria, porém, reconstruir as economias daqueles
países aliados que tinham sido devastadas pela guerra, especialmente as da
Europa ocidental e do Japão. Cabia também estimular a criação de instrumentos
políticos regionais capazes de assegurar que antigas animosidades - como a
rivalidade franco-alemã ou, mais amplamente, a preocupação da Europa ocidental
com um eventual ressurgimento do militarismo germânico - não comprometessem o
adequado funcionamento da nova aliança. Mais ainda, cumpria estabelecer um
quadro institucional tendente a assegurar um razoável equilíbrio entre os
grandes e, entre grandes e pequenos, um grau de desequilíbrio que estes últimos
pudessem aceitar sem excessivo azedume. Para tanto, era também mister
encaminhar o processo de descolonização de maneira formalmente eqüitativa e
que, na área econômica, as novas instituições favorecessem os interesses das
economias mais avançadas, porém de maneira pouco ostensiva. E era ainda
indispensável que se coibissem aquelas práticas - como o protecionismo
exagerado e as desvalorizações cambiais competitivas - que, no entre-guerras,
tanto haviam contribuído para a depressão e, em última análise, para os
desenvolvimentos que tinham culminado na II Guerra Mundial.
O resultado de tais condicionantes foi o estabelecimento, sob a impulsão
política de Washington, de um número de instituições políticas e econômicas
internacionais que, em seu conjunto, deveriam, em tese, submeter os principais
aspectos das relações entre os Estados a um grau de disciplina nunca antes
experimentado.
No topo desse vasto arcabouço institucional - cujas linhas gerais ainda se
mantêm - encontrava-se a Organização das Nações Unidas, "baseada no princípio
da igualdade soberana de todos os seus membros", à qual caberia, entre outras
coisas, "manter a paz e a segurança internacionais" e fomentar, entre as
nações, relações fundadas "no respeito ao princípio da igualdade de direitos e
ao da livre determinação dos povos"1. Apesar de princípios e propósitos tão
louváveis, as assimetrias de direitos e deveres entre os membros da Organização
são sobejamente conhecidos, sobretudo no tocante aos privilégios dos membros
permanentes do Conselho de Segurança. Em última análise, a Carta de São
Francisco estabeleceu um sistema que, na medida em que seja respeitado, veda o
uso da força contra qualquer membro permanente daquele órgão, ao mesmo tempo em
que permite tal recurso contra os demais, desde que aprovado pelo Conselho por
maioria qualificada e sem o veto de qualquer dos Cinco Grandes. Assim,
conseguiu-se, num mesmo instrumento jurídico, proclamar a igualdade soberana de
todos os membros das Nações Unidas e submetê-los à tutela de cinco dentre eles.
E mais extraordinário, conseguiu-se que tal instrumento fosse assinado por
todos, tutores e tutelados.
No campo econômico, foram vários os organismos criados para orientar as
relações internacionais e, em parte por isso, o formato da desigualdade é
formalmente menos ostensivo, mas o resultado final, especialmente para os
países em desenvolvimento, não é muito distinto. Um dos motivos de tais
diferenças é que, enquanto na área política interessava a Washington manter a
maior concentração possível de poder em suas mãos, no campo econômico,
possíveis aspirações hegemônicas tinham de ser matizadas em razão dos objetivos
estratégicos da própria potência maior. Assim, a recuperação econômica da
Europa ocidental e do Japão era indispensável à contenção da União Soviética.
Da mesma forma, dentro do objetivo de contrarrestar o poder brando de Moscou,
era necessário dar, ainda que de forma parcimoniosa, alguma satisfação às
aspirações dos países em desenvolvimento. E foram justamente a recuperação
econômica daquelas duas áreas e o crescimento de um certo número de países em
desenvolvimento que levaram a uma considerável diluição internacional do poder
econômico. Em suma, enquanto na área política a centralização do comando era
fundamental, no terreno econômico uma certa difusão da prosperidade - e
conseqüentemente do poder - era essencial à consecução do objetivo maior de
contenção da União Soviética. Tudo isso contribuiu para dar ao sistema
institucional criado para a área econômica características diferentes daquelas
que teriam os organismos políticos internacionais. Além disso, ainda durante a
Guerra Fria, mudanças que afetaram diretamente as economias centrais - como a
deterioração das contas externas americanas, que levou, em 1971, à
inconversibilidade do dólar em ouro - e a pressão dos países em desenvolvimento
conduziram a importantes modificações no quadro institucional acordado na
década de 1940. Bem mais do que ocorreu formalmente na área política.
Ainda durante o conflito, a idéia já aceita por Washington e Londres era
estabelecer um sistema internacional capaz de promover o movimento livre e
multilateral de bens e de capital. Tratava-se de algo que favoreceria os
vanguardeiros da economia mundial e evitaria o protecionismo e as desordens
monetárias e cambiais subseqüentes à I Guerra Mundial. Dentro dessa orientação
geral, foram criadas as instituições de Bretton Woods - o Banco Internacional
de Reconstrução e Desenvolvimento (Bird) e o Fundo Monetário Internacional
(FMI) - e o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt), organismos que se
complementavam e reforçavam mutuamente. Este último promoveria a progressiva
liberalização do comércio internacional, através da pronta eliminação das
barreiras não-tarifárias e da negociação da redução, com base em concessões
recíprocas, de tarifas de importação que seriam estendidas a todas as partes
contratantes através da cláusula de nação mais favorecida. Por sua vez, o FMI,
garantia da estabilidade cambial, oferecia também apoio a países com
dificuldades de balanço de pagamentos, desde que fizessem os ajustes econômicos
consentâneos com o sistema econômico internacional acordado, isto é, desde que
não recorressem a medidas protecionistas abusivas ou a desvalorizações
monetárias predatórias. Ao Bird cabia a assistência econômica de sentido mais
estrutural, destinada, como indicado pelo próprio nome da instituição, a
promover a reconstrução e o desenvolvimento dos países que o integram.
A concordância geral quanto aos objetivos econômicos essenciais a serem
perseguidos - a estabilidade cambial e a liberalização comercial - não
significa, porém, ausência de divergências quanto à maneira de atingi-los.
Dentro do próprio grupo dos países centrais, havia uma rivalidade entre "o
velho imperialismo inglês e o emergente norte-americano para definir as novas
regras de jogo do sistema financeiro internacional"2. Em essência, enquanto
Londres, como os demais governos europeus, procurava meios de promover a
correção de uma situação de balanço de pagamentos catastrófica sem ter de
enfrentar uma aguda depressão, Washington buscava estabelecer normas que
contribuíssem para a projeção do seu poder econômico. Assim, enquanto, do lado
americano, o plano White propunha lançar sobre os países deficitários o ônus
dos ajustes necessários para reequilibrar suas contas externas, Keynes, pelo
Reino Unido, insistia numa divisão de responsabilidades com os superavitários,
isto é, essencialmente os Estados Unidos. Assim, nas circunstâncias da época, a
vitória da tese americana isentou Washington da necessidade de prestar contas
da sua política econômica. Da mesma forma, os Estados Unidos propuseram
restabelecer o ouro na sua velha posição de instrumento de reserva
internacional. Como a quantidade disponível daquele metal era, porém,
insuficiente para sustentar a desejada recuperação do comércio internacional,
aceitou-se que qualquer moeda nacional, desde que conversível em ouro, poderia
ser utilizada como meio de pagamento externo. Na época, entretanto, só a moeda
americana preenchia tal condição, de modo que a solução encontrada em Bretton
Woods transformou o dólar, na prática, em moeda de reserva obrigatória no
sistema internacional.
No tocante à outra grande instituição financeira, o Bird, as divergências foram
menores, dizendo respeito, sobretudo, à importância relativa a ser dada a cada
um dos dois objetivos a ela atribuídos - reconstrução e desenvolvimento.
Previsivelmente, os Estados Unidos e os europeus defendiam o primeiro e alguns
países em desenvolvimento, o segundo.
Por sua vez, o comércio internacional passou a ser regulado pelo Gatt, que
buscava promover a liberalização do comércio internacional através da
eliminação de barreiras não-tarifárias, como quotas e licenças de importação, e
da redução das tarifas de importação, a ser negociada por meio de concessões
recíprocas e estendida a todas as partes contratantes através da cláusula de
nação mais favorecida. Do ponto de vista dos países em desenvolvimento, tal
esquema tinha dois defeitos graves. Por um lado, o tratamento formalmente igual
dispensado a países de pesos econômicos muito distintos levava a uma clara
assimetria de resultados. Por outro, a forma de negociação adotada era algo
paradoxal para um organismo que pregava a liberdade do comércio internacional,
pois tratava como "concessões" as medidas de liberalização a serem adotadas
pelas partes contratantes. Isso levou a que fosse mais beneficiado o comércio
daqueles países que, pelo seu peso econômico e comercial, tinham melhores
condições de pagar pelas "concessões" dos respectivos parceiros. O resultado
faz-se sentir ainda hoje, apesar das modificações feitas no texto inicial do
Gatt para favorecer as economias em desenvolvimento e da substituição do Acordo
Geral pela Organização Mundial de Comércio, já na década de 1990: "as tarifas
aplicadas pelos países ricos às categorias de bens que as nações pobres
produzem são, em média, quatro ou cinco vezes mais altas do que as incidentes
sobre bens usualmente importados de outros países ricos"3.
Em suma, o quadro institucional que emergiu da II Guerra Mundial, isto é,
aquilo que, pelo menos formalmente, definia na época a nova ordem mundial,
proclamava a igualdade entre os Estados, mas criava mecanismos que, na
realidade, tenderiam, se mantidos e respeitados, a consolidar a desigualdade.
Conforme comentado acima, a disparidade entre os princípios acordados e os
mecanismos institucionais estabelecidos é flagrante na área política, sobretudo
no tocante ao funcionamento do Conselho de Segurança das Nações Unidas. No
terreno econômico, o problema era menos de desigualdade ostensiva do que da
falta de eqüidade resultante da igualdade formal aplicada a parceiros
desiguais. Como diria um diplomata indiano na década de 1960, equal treatment
is only equitable among equals.
Assim, a ordem mundial proclamada ao encerrar-se o grande conflito partia de um
discurso idealista, que defendia a igualdade e o direito à autodeterminação dos
povos e condenava o colonialismo, para, na prática, tratar de assegurar, no
dizer de Araújo Castro, o "congelamento da estrutura do poder mundial"4.
Entretanto, apesar de todas as cautelas para assegurar a continuada
preeminência político-econômica dos mais fortes, as mudanças da realidade
internacional levaram as próprias grandes potências a abandonar muito do que
elas mesmas haviam construído.
Na área política, a recuperação de economias como a alemã e a japonesa, bem
como o aumento da relevância internacional de alguns países em desenvolvimento,
tornaram claramente anacrônica a composição do Conselho de Segurança. Além
disso, durante a Guerra Fria, o recurso ao veto recíproco pelas duas
superpotências - ou a simples possibilidade do seu uso - e o aumento do número
de países em desenvolvimento na Assembléia Geral levaram a um certo imobilismo
e relativo desprestígio das Nações Unidas. As grandes questões internacionais
continuaram a ser objeto de discussão nas instâncias da ONU, mas a organização
tornou-se essencialmente o palco onde, no quadro da rivalidade entre Washington
e Moscou, os países menores buscavam exercer pressão sobre os líderes de cada
uma das duas grandes alianças. Assim, direta ou indiretamente, aquelas questões
passaram a ser efetivamente tratadas no quadro do confronto entre os blocos
liderados pelos Estados Unidos e pela União Soviética. Era esse confronto que,
em última análise, definia a ordem mundial.
No terreno econômico, o edifício financeiro construído em Bretton Woods tornou-
se insustentável a partir do momento em que Washington, a braços com o forte
déficit das contas externas americanas, viu-se obrigado, em agosto de 1971, a
suspender a conversibilidade do dólar em ouro, o que levou à desvalorização
daquela moeda e ao fim do sistema de paridades fixas. Era a conseqüência
inevitável da relativa difusão do poder econômico internacional: tal como
originalmente concebido, o sistema de Bretton Woods só poderia subsistir num
mundo em que a economia americana mantivesse o peso relativo que tinha ao
término da II Guerra Mundial. Paralelamente, no Gatt, sentindo suas indústrias
tradicionais ameaçadas pela competitividade do Japão e de vários países de
industrialização recente, as grandes potências industriais passaram a adotar
práticas protecionistas que procuravam respeitar a letra, mas certamente feriam
o espírito, do Acordo Geral. Foi o caso das chamadas restrições "voluntárias" a
exportações, de instrumentos como o Arranjo Multifibras ou do uso especioso de
medidas antidumping, por exemplo. Por outro lado, frente à necessidade política
de fazer algum gesto em relação aos países em desenvolvimento, que pressionavam
por um tratamento mais eqüitativo, aceitaram mudanças nas regras originais,
possibilitando a concessão de tratamento mais favorável às economias em
desenvolvimento e a criação de um sistema geral de preferências. Na prática, os
benefícios não corresponderam, porém, às expectativas dos países favorecidos.
De maneira muito menos dramática, mas não menos profunda do que ao término da
II Guerra Mundial, o fim da Guerra Fria, com a implosão do bloco e
posteriormente do próprio Estado soviéticos, colocou a comunidade internacional
diante do desafio de repensar a ordem mundial. Talvez mais ainda do que na
década de 1940, a realidade internacional da de 1990 aconselhava pensar em
termos de uma continuada e abrangente regulamentação da vida internacional,
política e econômica. As assimetrias da nova estrutura do poder mundial
tornavam, porém, extremamente problemático pôr em prática o bom conselho.
O fim do bipolarismo político-militar, que condicionara as grandes linhas da
vida internacional durante mais de quatro décadas, deixara à superpotência
remanescente um tremendo desafio. Na ausência de um adversário à altura, seu
imenso poderio militar passava a carecer de objetivo, a menos que optasse por
usá-lo para afirmar sua autoridade sobre o resto do mundo ou por fomentar um
estado de tensão internacional permanente, no qual os demais se veriam na
contingência de chamá-la a exercer o papel de polícia da comunidade
internacional. A primeira hipótese esbarrava, porém, numa base econômica
insuficiente para sustentar, sem o apoio de outros Estados, a hegemonia
política para a qual os Estados Unidos estavam militarmente equipados. Em 1991,
a Guerra do Golfo ilustrou o problema. Foi uma operação liderada politicamente
por Washington e executada com instrumentos bélicos dominantemente americanos,
mas largamente financiada por outros países5. A segunda hipótese suscitaria
implicações políticas mais amplas, a algumas das quais faremos menção adiante.
Fundamentalmente, o problema é que, em contraste com a década de 1940, havia,
ao término da Guerra Fria, uma enorme diferença entre a concentração do poder
militar e a do econômico. Como assinala Joseph Nye, enquanto é possível falar
de um mundo unipolar no campo militar, existe, no econômico, uma situação mais
próxima do multipolarismo6. Na verdade, como potência militar hegemônica, os
Estados Unidos sofrem hoje de uma forma peculiar de vulnerabilidade externa.
Com déficits fiscal, comercial e de contas correntes de cerca de 5% do PIB7,
uma redução substancial do ingresso de capitais externos lançaria a poderosa
economia americana numa forte recessão, que quase certamente comprometeria o
continuado exercício de uma liderança política do mundo, pelo menos na forma
autoritária como o governo Bush parece entendê-la. Uma recessão profunda nos
Estados Unidos afetaria, porém, tão negativamente a economia mundial que, na
medida do possível, os governos dos demais países ricos provavelmente
preferirão cooperar no sentido de evitar tal desfecho. Em outras palavras, é
bem possível que, politicamente, prefiram, dentro de certos limites, continuar
a financiar a liderança dos Estados Unidos sobre eles mesmos. A curto e médio
prazos, é uma hipótese plausível, mas sua sustentabilidade por um período maior
é altamente discutível.
No dizer de Lawrence Summers, Secretário do Tesouro no governo Clinton, "a
economia mundial está voando com um só motor", no caso, a demanda assegurada
pelo mercado americano. Como assinala The Economist, "desde 1995, quase 60% do
crescimento cumulativo do produto mundial tem vindo da América, quase o dobro
da participação americana no PIB do mundo. Essa contribuição desproporcional
para o crescimento global reflete uma extraordinária elevação de gastos nos
Estados Unidos", onde a demanda interna tem crescido, no período, a uma taxa
anual média cerca de duas vezes maior que a do resto do mundo. No futuro
previsível não há substitutos claros para esse papel de locomotiva da economia
mundial. Existe, pois, um evidente interesse do mundo em que a economia
americana não entre numa forte recessão, mas para tanto seria necessário que os
Estados Unidos encontrassem meios de reduzir seus déficits fiscal e de contas
correntes de maneira gradual, mas significativa, de modo a não causar
excessivas turbulências na economia internacional. Alternativamente, seria
preciso que o resto do mundo continuasse indefinidamente a financiar tais
saldos negativos em condições sustentáveis para a economia americana e para os
investidores. Por motivos que não caberia examinar aqui, a primeira hipótese é
de difícil realização e a segunda, praticamente inviável. Em todo caso, o
passado recente não autoriza otimismos. O orçamento americano passou de um
saldo positivo de mais de 2% do PIB em 2000 para um déficit estimado em bem
mais de 4% este ano, ou seja, uma deterioração de quase 7% do PIB. Na ausência
de uma considerável mudança na distribuição da demanda internacional -
improvável nas atuais condições das economias européia e japonesa - há
estimativas de que uma significativa melhora das contas externas americanas
poderia exigir uma depreciação do dólar da ordem de 40%. E a participação dos
investidores privados estrangeiros na cobertura do déficit em contas correntes
americano tem caído, sendo substituídos sobretudo por bancos centrais
asiáticos.8
O quadro geral que vimos examinando até aqui suscita duas grandes questões
estreitamente interrelacionadas, uma econômica, outra política. A primeira é a
medida em que os responsáveis pelas grandes economias mundiais - sobretudo a
americana, a da União Européia e a japonesa - encontrarão a disposição e os
meios de estabelecer, em condições hoje muito menos favoráveis, o tipo de
coordenação econômica que permitiu, na década de 1980, sair de uma crise algo
semelhante. A segunda é se Washington terá a habilidade necessária para
conduzir a própria política externa de forma a liderar e encorajar tal espírito
de cooperação econômica, em vez de dificultá-la com seu excessivo
unilateralismo na área política. Na ausência de uma ameaça externa comum,
solidariamente percebida como tal - como foi o caso da União Soviética durante
a Guerra Fria - a noção do que os aliados de Washington considerariam aceitável
já não é a mesma. Dentro dessa ótica, não é surpreendente que os responsáveis
pela política externa americana se inclinem por encontrar uma nova ameaça
externa comum - ou por criá-la.
A busca de um inimigo comum
De um ponto de vista ocidental, a vitória sobre o império soviético teve um
lado profundamente irônico: pode ter sido o fim do Ocidente, no sentido
político-militar que a expressão adquirira durante o então chamado conflito
Leste-Oeste. Esse o sentimento, filho da frustração de uma liderança abalada,
que se reflete, p. ex., de forma contundente, nas primeiras linhas de um estudo
recente de Robert Kagan: "Já é tempo de parar de fingir que os europeus e os
norte-americanos têm a mesma visão do mundo ou que habitam o mesmo mundo. Na
importantíssima questão do poder, da eficácia do poder, da moralidade do poder,
da vontade de poder - as perspectivas norte-americana e européia divergem."9
Com o desaparecimento da ameaça representada pelo bloco soviético, os países
que integram a Otan readquiriram a capacidade de divergir do seu líder sem
porem em risco a própria segurança. Assim, a liderança americana no Ocidente
foi abalada pela própria vitória, e a grande aliança militar iniciou o
questionamento dos seus objetivos no novo cenário internacional. Para os
europeus, tal questionamento se fazia no contexto de uma certa reaquisição de
autonomia, enquanto para Washington, ele ocorria numa situação paradoxal, em
que a recém-adquirida supremacia mundial vinha acompanhada de uma diluição de
autoridade entre os seus próprios aliados. Em última análise, para seus sócios
na aliança atlântica, os Estados Unidos deixaram de ser o protetor necessário
para se tornarem uma espécie de primus inter pares,importante, mas já não
indispensável à sobrevivência dos demais.
A nova conjuntura aconselhava Washington a adotar um novo estilo de liderança,
no qual o peso da sua economia e seu incontrastável poderio militar - pela
relevância de ambos para o bem de uma coalisão cujos membros continuavam a ter
muito em comum - poderiam ser usados como instrumentos de persuasão, mas já não
de coação. E inicialmente essa parece ter sido a inclinação do governo
americano, que em outubro de 1990, proclamava nas Nações Unidas sua visão de
uma nova ordem mundial: "...uma nova parceria de nações que transcenda a Guerra
Fria. Uma parceria baseada em consulta, cooperação e ação coletiva,
especialmente através de organizações internacionais e regionais. Uma parceria
unida por princípios e pelo império da lei, e apoiada numa divisão eqüitativa
de custos e compromisso."10
Essa disposição inicial não resistiu, porém, às realidades da política
internacional, inclusive - ou sobretudo - à relutância dos próprios Estados
Unidos em pautar sua política externa "por princípios e pelo império da lei"
internacional. Assim, a idéia de uma "nova ordem mundial", inicialmente muito
comentada, foi prontamente abandonada, tendo a própria expressão caído em
desuso. Seguiu-se uma aparente tendência a agir seletivamente através da Otan,
levando aquela organização a assumir atribuições que a Carta das Nações Unidas
reserva ao Conselho de Segurança, como ocorreu na Iugoslávia. Às vezes, porém,
fora da Europa, nem à Otan se recorria, como foi o caso do estabelecimento de
zonas de exclusão aérea pelos Estados Unidos - com o concurso da Grã-Bretanha
e, inicialmente, da França - no norte e no sul do Iraque, com a finalidade
ostensiva de proteger os curdos e os xiitas. Era o viés unilateralista que
progressivamente assumia a política externa de Washington, até então com o
beneplácito das principais potências européias.
Tratava-se, entretanto, do que poderíamos chamar de unilateralismo brando, que,
embora criticado, não chegava a chocar a opinião mundial e era apoiado por
alguns dos principais aliados dos Estados Unidos. Em última análise, ele ainda
não se distanciava muito da prática - embora não do discurso político -
tradicional de Washington. Claramente não era, entretanto, a orientação
preferida pelo ainda candidato George W. Bush e aqueles que se tornariam seus
principais assessores em matéria de política externa. Em artigo publicado em
fevereiro de 2000, Condoleezza Rice, hoje responsável por assuntos de segurança
nacional na administração americana, criticava o fato de muitos nos Estados
Unidos se sentirem pouco à vontade com as noções de "política de poder, grandes
potências e equilíbrios de poder", atitude que, em sua forma extrema, levava a
um "apelo reflexo a noções de direito e normas internacionais, e à percepção de
que o apoio de muitos Estados - ou ainda melhor, de instituições como as Nações
Unidas - é essencial ao exercício legítimo do poder." Tudo isso, segundo a
autora, teria levado à substituição do "interesse nacional" por "interesses
humanitários" ou pelos interesses da "comunidade internacional". Nesse sentido,
faz uma crítica específica à tradição wilsoniana e à política externa do
presidente Clinton, que em parte a ela se filiaria, por negligenciar os
interesses americanos em sua preocupação com "o direito e as normas
internacionais"11. O artigo era, em alguma medida, o ovo da serpente - através
dele já se podia antever o sentido geral da política externa do governo Bush.
Na verdade, Washington nunca permitira que sua preocupação com o direito
internacional chegasse a interferir com a defesa daquilo que percebia como o
interesse nacional americano. Tinha, porém, a cautela de não adotar um discurso
de poder, tratando antes de manter uma retórica coerente com os valores
fundamentais da sociedade americana, o que resultava numa atitude ambivalente,
na qual coexistiam o louvor aos ideais de uma sociedade democrática e o efetivo
respeito à raison d'état.Os Estados Unidos foram assim, durante a Guerra Fria,
os líderes e defensores do "mundo livre", ao mesmo tempo em que promoviam e
sustentavam alguns dos regimes mais opressivos e detestáveis daquela época. Em
suma, as coisas freqüentemente se passavam como se a defesa da democracia nos
Estados Unidos e nos demais países desenvolvidos exigisse e justificasse,
frente à ameaça à liberdade representada pela União Soviética, o seu sacrifício
no Terceiro Mundo. O discurso idealista permitia assim confundir a promoção do
interesse americano com a defesa da liberdade no mundo não-soviético. Quando,
portanto, Condoleezza Rice opina que a "persecução dos interesses nacionais
[pelos Estados Unidos] depois da II Guerra Mundial levou a um mundo mais
próspero e democrático", fica-se sem saber se ela acredita no discurso-
camuflagem do passado, o que pareceria improvável. E quando ela afirma que
"isto pode acontecer de novo", fica-se em dúvida sobre se, alternativamente,
ela acharia viável manter as práticas da Guerra Fria na ausência de uma forte
ameaça externa. Seja como for, os atentados de 11 de setembro parecem ter sido
percebidos como a oportunidade de persuadir os demais países de que estavam
diante de uma ameaça exógena comparável àquela antes representada pela União
Soviética. Tal ameaça, originada a nível infra-estatal, estaria sendo
alimentada por alguns Estados fora da lei (a serem apontados como tais por
Washington), que deveriam ser tratados como inimigos. Ainda mais importante,
caberia confrontar o povo americano com o fato de que estava agora exposto a um
ataque à sua própria segurança interna, algo que não ocorrera mesmo durante a
Guerra Fria. Na medida em que tal interpretação dos acontecimentos fosse aceita
interna e externamente, Washington recuperaria frente aos seus aliados -
inclusive agora a Rússia - as vantagens políticas associadas à percepção de uma
ameaça externa comum, sem a necessidade de recorrer às ambigüidades do discurso
político anterior.
Num primeiro momento, a tática pareceu funcionar. Chocado com a violência
efetiva e simbólica dos atentados, o mundo solidarizou-se com os Estados
Unidos, parecendo inclusive tolerar sem repugnância o discurso maniqueísta do
primeiro mandatário americano, que praticamente lançou um ultimato ao resto do
mundo: aos demais países caberia escolher entre Washington e o terror, ser a
favor ou contra os Estados Unidos, sem meio termo. O líder da maior potência
democrática do mundo negava à comunidade internacional o direito democrático de
divergir - de ser contra o terror sem, por isso, concordar com as opções
americanas de política externa. E o mundo aquiesceu quase unanimemente,
inclusive no ataque ao Afeganistão, cuja geografia intratável tornaria a
operação praticamente inviável sem o concurso de países vizinhos.
Embalado pelo êxito, Washington lançou-se contra o segundo alvo, o Iraque,
apontado como um Estado fora da lei, desrespeitador de resoluções do Conselho
de Segurança, detentor de armas de destruição em massa e dominado por um regime
ditatorial. Evidentemente, acusações semelhantes poderiam ser feitas contra
países com os quais os americanos mantêm boas relações ou contra os quais, pelo
menos, não pensam em agir militarmente. Mas a comunidade internacional,
desperta do primeiro impulso de solidariedade incondicional, negou a Washington
seu apoio e o necessário respaldo das Nações Unidas a uma operação bélica. Foi
um momento decisivo da atual política externa dos Estados Unidos. Cabia-lhe
escolher entre respeitar o sistema internacional e renunciar, pelo menos no
imediato, à guerra contra o Iraque ou, alternativamente, proclamar o seu
unilateralismo, atropelar a ONU e atacar, com a ajuda do Reino Unido e de quem
mais decidisse desafiar igualmente o direito internacional. A opção do governo
Bush foi pela segunda hipótese, chegando a declarar que a ONU se tornaria
irrelevante caso não adotasse medidas de força contra Bagdá. Invertia-se dessa
forma a ordem normal das coisas: em vez de a política externa de Washington
ajustar-se às normas do sistema internacional, era o sistema que devia ajustar-
se àquela política, sendo declarado irrelevante na medida em que assim não
fizesse. Os Estados Unidos assumiram assim o que poderíamos chamar de atitude
imperial, no sentido do comentário de Henry Kissinger, para quem "impérios não
têm interesse em operar dentro de um sistema internacional; eles aspiram a ser
o sistema internacional"12.
A nova orientação de política externa só surtiria efeito, porém, na medida em
que Washington continuasse a dispor de um poder militar incontrastável e que
pudesse usá-lo, preventiva e seletivamente, contra Estados declarados "fora da
lei". Agir somente em reação a um ataque seria inútil, já que, como Estados, os
"fora da lei" jamais atacariam os Estados Unidos. Agir contra todos eles seria
inconveniente, já que, em alguns casos, tal ação poderia não ser considerada
aconselhável ou oportuna, como bem ilustra o caso da Coréia do Norte. Em suma,
só a liberdade de agir discricionariamente interessava a Washington. A
"Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos", enviada ao Congresso
pelo Presidente Bush cerca de um ano depois dos atentados do 11 de setembro de
2001, formalizou tais objetivos, convertendo-os em política oficial do governo
americano.
A meta de uma superioridade militar permanente é ostensivamente declarada:
"Nossas forças serão suficientemente fortes (sic) para dissuadir potenciais
adversários de buscarem um poderio militar na esperança de ultrapassarem ou
igualarem o poder dos Estados Unidos". A norma estabelecida na Carta das Nações
Unidas, segundo a qual um Estado só pode usar a força contra outro em casos de
legítima defesa ou por determinação do Conselho de Segurança, é explicitamente
rejeitada: "Não podemos deixar nossos inimigos atacarem primeiro. (...)
Defenderemos os Estados Unidos, o povo americano e nossos interesses em casa e
no exterior, identificando e destruindo a ameaça antes que ela alcance nossas
fronteiras." E o unilateralismo era reafirmado: "Embora os Estados Unidos
pretendam constantemente buscar o apoio da comunidade internacional, não
hesitaremos em agir sozinhos se necessário."13
A intenção não poderia ser mais clara - os Estados Unidos, para usar a frase de
Kissinger, passariam a "sero sistema internacional".
Para fazer opção política tão ambiciosa, é de supor que os planejadores
políticos de Washington tenham avaliado que possuem os meios necessários para
manter indefinidamente a sua superioridade militar e recursos próprios para
usá-la, independentemente de apoio externo. Ou alternativamente, que seus
aliados se teriam convencido de que o terrorismo internacional seria de fato a
ameaça global pintada pelo Governo Bush e, conseqüentemente, estariam
dispostos, como durante a Guerra Fria, a continuar financiando a liderança dos
Estados Unidos, agora sobre uma coligação de forças ainda mais ampla. Nessa
última hipótese, Washington teria conseguido criar a percepção de uma ameaça
externa comum, necessária à consecução dos seus objetivos. Até o momento em que
escrevo, nenhuma das duas hipóteses parece, entretanto, confirmar-se.
No primeiro momento, o mundo solidarizou-se com os Estados Unidos e a
existência de uma resistência armada ao governo talibã permitiu levar a bom
termo a ação militar, com o emprego de efetivos americanos muito reduzidos e um
número de baixas muito pequeno para a envergadura da operação. A primeira parte
do empreendimento foi, pois, bem sucedida, política e militarmente. A
reconstrução política, econômica e administrativa do país vem, entretanto,
marcando passo.
No caso do Iraque, a situação é pior. Tendo o Conselho de Segurança se recusado
a determinar uma ação militar contra Bagdá, Washington decidiu agir
praticamente sozinho, tendo como único apoio significativo o do Reino Unido. A
operação puramente militar foi um êxito, mas o seu lado político, econômico e
administrativo beira o fiasco. As forças de "libertação" da coligação anglo-
americana são vistas pela população local como uma tropa de ocupação; o número
de americanos mortos desde que foi declarado o encerramento das atividades
bélicas é maior do que o da fase anterior; ainda não foi possível estabelecer
um governo iraquiano, o que, além do impacto político negativo, inviabiliza a
ajuda de agências internacionais como o Banco Mundial; o fornecimento de
serviços básicos, como água e luz, continua precário; a própria representação
da ONU, aparentemente associada à imagem do estrangeiro invasor, foi alvo de um
ataque mortífero, no qual perderam a vida vinte e dois funcionários
internacionais, entre os quais nosso compatriota Sérgio Vieira de Mello. Diante
de tantos percalços e dos custos crescentes do pós-guerra (há pouco, o governo
Bush pediu ao Congresso um crédito adicional de US$ 87 bilhões para cobrir
aqueles gastos), a administração americana voltou às Nações Unidas. Tenta agora
um passe de prestigiação diplomática que lhe permita, sem abrir mão do controle
da operação, dividir com a comunidade internacional os ônus diplomáticos e
financeiros da empreitada que, contra o melhor alvitre daquela comunidade,
Washington insistiu em levar avante. Até o momento em que escrevo, não foi
possível negociar um texto de resolução capaz de conciliar as posições
divergentes.
À luz de tais desenvolvimentos, parece que o governo Bush cometeu um erro de
cálculo. Dado o peso político, econômico e militar dos Estados Unidos, trata-
se, porém, de um equívoco de graves conseqüências potenciais para a comunidade
internacional. Como diz Emmanuel Todd, "os Estados Unidos estão se tornando um
problema para o mundo. Estávamos acostumados a ver neles uma solução."14
Sintetizando, poderíamos, pois, dizer que:
Até 1989, a ordem política mundial foi largamente definida pela
rivalidade entre a duas superpotências, o que dava aos Estados
Unidos, como baluarte do bloco ocidental, a preeminência diplomática
entre os seus aliados.
A implosão do império soviético e o conseqüente desaparecimento da
ameaça externa comum deixaram Washington com um poder bélico
incontrastado em âmbito mundial, mas uma liderança diplomática algo
diminuída no seu próprio bloco - situação agravada pela relativa
diluição do poder econômico internacional ocorrida ainda durante a
Guerra Fria.
Isso colocou os Estados Unidos frente ao dilema de aceitar uma
posição de primus inter pares na comunidade internacional ou criar
condições que lhe permitissem, num novo contexto mundial, restaurar
sua liderança política com base em sua indiscutível hegemonia
militar.
Os atentados de 11 de setembro de 2001 pareceram oferecer a
oportunidade de criar tais condições: caberia convencer o mundo -
especialmente, mas não apenas, os países ocidentais - de que estava
diante de uma ameaça comum, e que para debelá-la cumpria seguir a
liderança política e militar de Washington.
Até o momento, a comunidade internacional, em sua ampla maioria,
tem-se mostrado pouco convencida, o que cria um impasse entre ela e a
maior potência econômica e militar do planeta, com desdobramentos
ainda imprevisíveis para ambos.
Na área econômica, a situação é distinta, porém não mais animadora. Como já
assinalado, não há aqui uma potência hegemônica, mas um grupo de países
desenvolvidos que buscam promover ativamente seus interesses naqueles setores
em que são mais competitivos e proteger, a expensas dos próprios consumidores e
dos produtores de países em desenvolvimento, aqueles em que não o são. Embora
não haja plena unidade dentro de qualquer dos lados em confronto, existe
considerável convergência entre os Estados Unidos e a União Européia, de um
lado, e um grupo muito expressivo de países em desenvolvimento, de outro. Isso
ficou evidente no fracasso da recente reunião ministerial da Organização
Mundial de Comércio, em Cancun. É possível que as conseqüências de um eventual
debilitamento da OMC leve à reflexão e à genuína busca de fórmulas de
conciliação, mas é igualmente possível que Bruxelas e Washington optem por
priorizar os acordos bilaterais e regionais de comércio, em detrimento do
sistema multilateral. O representante americano para negociações comerciais,
Robert Zoellick, insinuou claramente tal possibilidade. É um risco
particularmente palpável no momento em que a União Européia se concentra nos
problemas ligados à sua ampliação para o leste da Europa e os Estados Unidos
revelam significativo pendor protecionista.
Em suma, ao meditar sobre os desenvolvimentos recentes da ordem mundial, tem-se
a desconfortável impressão de uma certa impaciência dos grandes com o
multilateralismo e com as legítimas aspirações econômicas e políticas dos
países médios. No caso de Washington, isso é particularmente perceptível na
área política, onde a superioridade militar parece aguçar-lhe a consciência da
própria força e a disposição de projetá-la politicamente. Paralelamente, na
área econômica, a Europa nada fica a dever ao seu aliado do outro lado do
Atlântico.
A ordem mundial e o Brasil
Para grandes países periféricos, como o Brasil, a ordem mundial, tal como hoje
se apresenta, oferece um duplo desafio. A curto e médio prazos, como superar os
obstáculos que ela coloca quotidianamente aos seus interesses. A mais longo
prazo, como promover o surgimento de uma nova ordem, mais justa e democrática.
São desafios particularmente evidentes no caso de um governo que se elegeu
tendo como compromisso central de sua política externa "garantir uma presença
soberana do Brasil no mundo"15 e, para tanto, pretende, nas palavras do nosso
Ministro das Relações Exteriores, "ser muito afirmativo na busca de maior
democratização das relações internacionais."16 Tudo isso será mais viável na
medida em que seja possível, na expressão do Presidente em seu discurso de
posse, "estimular os incipientes elementos de multipolaridade da vida
internacional contemporânea". O problema é que tal percepção do interesse
nacional nos coloca em frontal divergência não só com a atual ordem mundial,
porém, mais diretamente, com a política do governo Bush, cujo objetivo parece
ser a consolidação de um sistema politicamente unipolar e, portanto, de
relações internacionais menos - e não mais - democráticas.
Vê-se, pois, o Brasil numa situação diplomática complexa. Demasiado grande para
aceitar passivamente uma ordem mundial flagrantemente injusta e
antidemocrática, mas não grande bastante para sobre ela influir direta e
significativamente, tem na cooperação com países afins a única forma de
responder efetivamente àqueles desafios. Essa foi a rota anunciada pelo
candidato Luiz Inácio Lula da Silva, que se propôs desenvolver "um
bilateralismo forte" com países como China, Índia e Rússia, bem como
estabelecer com eles linhas comuns de atuação em organismos multilaterais. Da
mesma forma, no âmbito continental, propõe-se fortalecer o Mercosul e, mais
abrangentemente, a cooperação com os demais países sul-americanos, de modo a
ter melhores condições de negociar uma possível área hemisférica de livre
comércio. Não é, porém, um caminho fácil ou seguro. No âmbito multilateral,
tanto a situação do Iraque, na área política, como, na econômica, a recente
reunião ministerial da OMC, em Cancun, ilustram algumas das suas
potencialidades, mas também seus limites.
Na luta política de Washington para conseguir a autorização do Conselho de
Segurança para atacar o Iraque; a Alemanha, a França e a Rússia foram seus mais
ativos opositores. Agora, quando os Estados Unidos - defrontados com o custo
político e econômico do pós-guerra, aparentemente subestimado - pedem ajuda à
comunidade internacional, Berlim e Moscou parecem mais inclinados a
restabelecer a harmonia com Washington, deixando Paris relativamente isolada. É
uma boa ilustração das dificuldades de manter a coesão de qualquer grupo frente
aos desígnios e à capacidade de pressão de uma superpotência. No caso, o Brasil
deixou clara sua discordância com a política americana, mas, não sendo membro
do Conselho de Segurança, não esteve diretamente envolvido nas escaramuças
multilaterais.
No caso dos países em desenvolvimento - muito mais numerosos, muitos deles
economicamente dependentes de algum país desenvolvido e geralmente menos
equipados para o processo negociador - a dificuldade é levá-los além do apoio a
teses e reivindicações genéricas e do confronto retórico com os grandes.
Transformar uma solidariedade pouco mais do que simbólica em participação
efetiva num processo concreto de negociação é extremamente árduo, como tivemos
ocasião de comprovar, no passado, em nossa experiência com o Grupo dos 77.
Agora, na reunião de Cancun, lideramos, juntamente com China e Índia, um
reduzido grupo de países em desenvolvimento, o chamado G-21. Seu objetivo
precípuo era promover a liberalização do comércio internacional de produtos
agrícolas e o fim dos subsídios concedidos pelos países ricos aos seus
agricultores. Foi provavelmente o caráter compacto do grupo e a especificidade
de suas reivindicações que lhe permitiram manter-se coeso e, na avaliação
insuspeita de The Economist, "bem organizado e profissional", "negociando
ativamente tanto com a América quanto com a Europa"17. O grupo tornou-se assim,
segundo o mesmo observador, uma voz poderosa na reunião. Isso não permite
ignorar, porém, os problemas da cooperação operacional entre países
supostamente afins. É significativo, p. ex., que o G-21 tenha contado com a
participação de apenas dois países africanos (Nigéria e África do Sul).
Presumivelmente, muitos dos demais estavam mais interessados em problemas
específicos (subsídios americanos ao algodão, p. ex.) ou em suas preferências
comerciais na União Européia, não vendo por que erodi-las através de uma
eventual redução erga omnes das barreiras tarifárias na Europa. E não é certo -
nem talvez desejável - que exatamente o mesmo grupo se mantenha em outras
negociações.
Essas debilidades da negociação em grupo, decorrentes de limitações internas,
são ainda mais relevantes na medida em que a oposição dos beneficiários da
ordem atual é tenaz, às vezes brutal. Defrontado com o fracasso de Cancun, o
principal negociador americano não hesitou em responsabilizar por ele os países
em desenvolvimento e em deixar claro que os Estados Unidos têm outros recursos,
como os acordos bilaterais ou regionais de comércio. A ameaça implícita era que
a maior economia do mundo poderia, se contrariada em seus objetivos, reduzir
seu apoio ao sistema multilateral, geralmente percebido como particularmente
importante para os países em desenvolvimento, que têm menor poder de barganha.
Em tudo isso há o mesmo desprezo que, na área política, Washington já
manifestara pelas instâncias multilaterais, que se tornariam "irrelevantes" na
medida em que não se amoldassem aos objetivos e táticas da política externa
americana. A diferença é que, no campo econômico, os Estados Unidos não contam
com a posição hegemônica que, em função de sua indiscutível superioridade
militar, se consideram em condições de manter no terreno político. Trata-se,
entretanto, de uma diferença que só limitadamente favorece os países
periféricos.
O antagonismo das percepções básicas do Brasil e dos Estados Unidos no que se
refere ao quadro institucional que formalmente define a ordem mundial ficou
muito claro na primeira aparição do Presidente brasileiro perante a Assembléia
Geral das Nações Unidas. Para o mandatário brasileiro, "o aperfeiçoamento do
sistema multilateral é a contrapartida necessária do convívio democrático no
interior das nações. Toda nação comprometida com a democracia no plano interno
deve zelar para que, também no plano externo, os processos decisórios sejam
transparentes, legítimos, representativos. As tragédias do Iraque e do Oriente
Médio só encontrarão solução num quadro multilateral, em que a ONU tenha um
papel central."18 Assim, para o Brasil, o multilateralismo, menosprezado por
Washington, é praticamente um dever da política externa dos países democráticos
- um corolário da sua opção interna pela democracia. A solução para a situação
do Iraque e a crise no Oriente Médio, que os Estados Unidos procuram encaminhar
com o mínimo de interferência das Nações Unidas, tem de ser encontrada no
âmbito daquele organismo. E para melhor assegurar as desejadas transparência,
legitimidade e representatividade do processo decisório da própria ONU, o
Presidente brasileiro defendeu o fortalecimento da Assembléia Geral, que deve
inclusive "assumir suas responsabilidades na administração da paz e da
segurança internacionais". Seria o reforço do órgão mais democrático da ONU
frente àquele mais oligárquico, que hoje é o Conselho de Segurança. Da mesma
forma, segundo o Presidente brasileiro, cabe "devolver ao Conselho Econômico e
Social o papel que lhe foi atribuído pelos fundadores da organização", que
assim poderá "participar ativamente da construção de uma ordem econômica
mundial mais justa."
Paralelamente a essas escaramuças em torno de questões multilaterais de alcance
mundial, o Brasil, na mesma linha de entendimento com países presumivelmente
afins, trata de fortalecer os laços de cooperação e de integração econômica com
os demais Estados sul-americanos. É uma linha estratégica intrinsecamente
importante para a nossa política regional, mas também para as negociações da
Alca e para a nossa aspiração de integrar, como membro permanente, um Conselho
de Segurança das Nações Unidas ampliado. Nos dois últimos casos, a percepção de
uma suposta afinidade regional de interesses pode, entretanto, provar-se apenas
parcialmente válida. No tocante à Alca, alguns governos do continente,
inclusive do Mercosul, já deixaram clara sua preferência por acordos bilaterais
com os Estados Unidos, o que tende a debilitar nossa base de atuação
diplomática frente a Washington, como se viu na recente reunião de Trinidad e
Tobago. Isso é particularmente sério no momento em que os Estados Unidos acenam
com a possibilidade de priorizarem os acordos regionais e bilaterais. No que se
refere à reforma do Conselho de Segurança, teríamos de atentar para a posição
do conjunto da América Latina, e não apenas da América do Sul. E em distintas
ocasiões, os dois outros grandes países da região, Argentina e México - este
último ainda bem recentemente -, já deixaram claro que não favorecem a escolha
do Brasil como membro permanente daquele órgão da ONU. Se tais rivalidades
regionais não puderem ser superadas, iremos defrontar-nos com sérias
dificuldades na nossa aspiração a um lugar permanente naquele Conselho.
Assim, tanto no âmbito mundial como no regional, a coordenação operacional com
países afins oferece importantes possibilidades, como demonstrado em Cancun,
mas também consideráveis limitações, ligadas tanto à dificuldade de conciliar
ou contornar divergências dentro do grupo como a diferenças na disposição de
cada um para resistir a pressões externas. Tais limitações tornam ineficazes os
grandes blocos constituídos para a defesa de objetivos amplos e imprecisos,
como, p. ex., uma nova ordem econômica mundial ou um sistema internacional mais
justo e democrático. Blocos dessa natureza poderiam, pelo seu número, dar uma
impressão ilusória de força, mas contribuiriam para um clima inútil de
confrontação e seriam operacionalmente ineficazes. Em contraste, será útil,
dentro de grupos reduzidos de países setorialmente significativos, a cooperação
em prol de objetivos precisos e limitados, mas que possam contribuir para a
consecução do objetivo último de melhoria da ordem mundial. Em certo sentido,
foi o que se tratou de fazer na reunião ministerial da OMC, em Cancún.
Sumário e conclusões
O século XX viu o surgimento de algo que, pela primeira vez, se
poderia denominar com propriedade de ordem mundial, no sentido de um
balizamento geográfica e substantivamente abrangente da conduta
externa dos Estados.
Tal abrangência não significa, porém, necessariamente participação
adequada de toda a comunidade internacional na ordem estabelecida nem
repartição eqüitativa dos benefícios dela decorrentes.
Assim, ao término da II Guerra Mundial, quando o esforço de
disciplinamento das relações políticas e econômicas internacionais
tomou particular impulso, criou-se, sob a liderança dos Estados
Unidos, um sistema normativo-institucional cujo funcionamento - tanto
na área política como na econômica - favorecia um número limitado de
países mais fortes.
No terreno político, o sistema então criado, embora proclamando-se
baseado na igualdade dos Estados, estabelecia claramente a oligarquia
dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. A ordem
originalmente estabelecida sofreu poucas alterações formais, porém as
modificações na estrutura do poder mundial diminuíram-lhe a
relevância prática. A ordem política mundial passou a ser determinada
sobretudo pela rivalidade entre Washington e Moscou. O bipolarismo
tornou-se mais relevante do que o multilateralismo.
Na área econômica, a assimetria formal de poder era menos
ostensiva, mas os resultados práticos do funcionamento do sistema não
eram mais justos ou eqüitativos do que no campo político. As
modificações introduzidas no sistema inicial - bem mais
significativas do que as ocorridas nos organismos políticos - podem
ser, quase todas, agrupadas em duas categorias com objetivos
antagônicos. A primeira era a daquelas que visavam a dar alguma
satisfação às reivindicações dos países em desenvolvimento, sem
erodir a posição preeminente de que efetivamente gozavam os países
centrais. A segunda, ao contrário, era a daquelas destinadas a
proteger setores menos competitivos nos países industrializados ou a
promover ativamente os interesses desses países em áreas de especial
relevância para eles, como investimentos, propriedade intelectual e
serviços.
O fim da Guerra Fria teve um duplo efeito sobre a ordem mundial.
Por um lado, guindou os Estados Unidos à posição de única
superpotência, política e militarmente hegemônica. Por outro, ao
eliminar a grande ameaça externa que pesava sobre o bloco ocidental,
enfraqueceu a coesão daquilo que fora a aliança anti-soviética e a
liderança de Washington entre seus próprios aliados. Para estes,
tornara-se mais fácil discordar do líder sem pôr em risco a própria
segurança.
Para os Estados Unidos, colocou-se o dilema de resignar-se à
posição de primus inter pares dentro da antiga aliança político-
militar ocidental ou de procurar manter uma posição de hegemonia
política, com base em seu incontestável poderio militar. A primeira
opção teria de passar por um reforço do multilateralismo, com a
necessária reforma das instituições políticas internacionais, de modo
a adaptá-las à atual estrutura internacional de poder. A segunda
levaria a mais um dilema. Por um lado, na ausência de uma clara
ameaça externa comum, o apoio dos aliados tornara-se mais incerto,
sobretudo no caso de empreendimentos militares decididos por
Washington. Por outro, o exercício solitário da hegemonia, além de
desvantagens políticas evidentes, defronta-se com cerceamentos
econômicos, como ilustrado pela Guerra do Golfo, em 1991, e pelos
desenvolvimentos mais recentes no Iraque.
Apesar de tais dificuldades, a atual administração americana, nada
inclinada ao multilateralismo, optou pela segunda hipótese. Ela era,
porém, de difícil sustentação sem uma ameaça externa comum que
restituísse a Washington o tipo de liderança política que exercera
durante a Guerra Fria. Os atentados de 11 de setembro de 2001 foram,
pois, apresentados à opinião americana e mundial como a evidência de
que a comunidade internacional estava novamente colocada diante de
uma tal ameaça.
Ao primeiro momento de solidariedade, que permitiu o ataque ao
Afeganistão, seguiu-se, entretanto, o ceticismo da maioria da opinião
mundial quando se tratou da guerra contra o Iraque. E a oposição à
política americana só fez aumentar quando os Estados Unidos
atropelaram o direito internacional, declararam a ONU irrelevante e
foram à guerra contra a opinião dominante no Conselho de Segurança.
Apesar de tal oposição, a ordem internacional passara, na prática, a
ser a ordem de Washington.
É um estado de coisas particularmente difícil para os grandes
países periféricos, entre os quais o Brasil. No nosso caso, um
governo comprometido com uma política externa assertiva e com a luta
por uma ordem internacional mais justa e democrática, mas sem a
capacidade de, sozinho, influenciar significativamente o sistema
vigente, enfrenta uma situação complexa: a orientação correta que se
traçou, de defesa do interesse nacional, coloca-o em divergência
estratégica com a ordem dominante e, mais especificamente, com a
política da atual administração americana.
Isso leva à necessidade de desenvolvermos uma ampla atividade
diplomática, com vistas a criarmos fortes vínculos bilaterais com
países afins e a estabelecermos com eles, em distintas áreas,
estreita coordenação em organismos multilaterais. As dificuldades de
toda negociação em grupo, inclusive as divergências inevitáveis mesmo
entre países ditos afins, desaconselham, entretanto, a formação de
qualquer bloco amplo, de composição uniforme, na defesa de alguma
causa abrangente e de definição imprecisa. Trata-se antes de, para
casos diferentes, organizar grupos distintos, relativamente pequenos,
de países setorialmente significativos, para promover interesses
limitados e bem definidos. Foi o que fizemos, p. ex., na recente
reunião ministerial da OMC, em Cancún.
Em certo sentido, é também o que estamos tentando fazer na América
do Sul, tratando de fortalecer o Mercosul e de criar novos vínculos
com os demais países da região, com vistas às negociações da Alca.
Aqui se mesclam, porém, considerações bilaterais, regionais sul-
americanas e continentais, as quais, por sua vez, se ligam à
problemática multilateral da OMC. A recente reunião em Trinidad e
Tobago, no quadro das negociações da Alca, onde os latino-americanos
e mesmo os sul-americanos se dividiram, deixou clara a dificuldade da
negociação em grupo, sobretudo frente a uma superpotência. Esse é um
desafio de longo prazo, com o qual teremos de conviver.
Outubro de 2003
1 Carta das Nações Unidas, arts. 1 e 2.
2 LICHTENSTEJN, Samuel e BAER, Mônica. Fundo Monetário Internacional e Banco
Mundial - estratégias e políticas do poder financeiro. Editora Brasiliense, São
Paulo, 1987.
3 The Economist, 6 de setembro de 2003, pág. 61. Tradução
minha.
4 ARAÚJO CASTRO, J. A. de. Relações Brasil-Estados Unidos da América à luz da
problemática mundial. Exposição aos estagiários da Escola Superior de Guerra,
em 22/6/1974, mimeo.
5 A guerra teria custado cerca de US$76 bilhões, dos quais os Estados Unidos
teriam arcado com aproximadamente 12%, a Arábia Saudita com 29%, o Kuwait com
26%, a Alemanha com 16%, o Japão com 10% e os Emirados Árabes Unidos com 7%. O
Globo, 31/12/2002, pág. 26.
6 V. NYE Jr., Joseph. O Paradoxo do Poder Americano por que a única
superpotência do mundo não pode prosseguir isolada. Tradução de Luiz Antônio
Oliveira de Araújo, Editora Unesp, 2002.
7 Segundo dados de The Economist(13/9/2003, pág. 97), o déficit comercial dos
doze meses até junho último foi de US$ 529,6 bilhões; o de contas correntes é
estimado, para este ano, em 5,2% do PIB, com previsão de aumento em 2004; o
orçamentário, também para este ano, é estimado pela OCDE em 4,6%.
8 As citações e dados contidos nesse parágrafo são de "A survey of the world
economy", publicado em The Economist, 20/9/2003.
9 KAGAN, Robert. Do paraíso e do poder: os Estados Unidos e a Europa na nova
ordem mundial. Tradução de Jussara Simões, Rio de Janeiro, Rocco, 2003, pág. 7.
10 Presidente George Bush, "The U. N.: World Parliament of Peace", discurso
perante a Assembléia Geral das Nações Unidas, 1 de outubro de 1990, citado em
KISSINGER, Henry. Diplomacy. Simon & Schuster, Nova York, 1994, pág. 804-5. Tradução minha.
11 V. RICE, Condoleezza. Promoting the National Interest. Foreign Affairs.
January/February 2000, pág. 47.
12 KISSINGER, Henry. Diplomacy. Simon & Schuster, New York, 1994, pág. 21.
13 Jornal do Brasil. 21/9/2002, pág. 33.
14 TODD, Emmanuel. Depois do Império. Rio de Janeiro, Editora Record, 2003,
pág. 9.
15 Carta Internacional, no. 114, ano X, agosto de 2002, pág. 9.
16 Gazeta Mercantil, 16/12/2002, pág. A-5.
17 The Economist, 20/9/2003, págs. 27 e 28. Tradução minha.
18 Discurso do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva na abertura da 58ª.
Assembléia Geral da ONU. O Globo, 24/9/2003, pág. 8.