A ONU tem autoridade? Um exercício de contabilidade política (1945-2006)
Introdução conceitual
Para tentar responder à questão que motiva esta nossa incursão ' qual seja, "A
ONU tem autoridade?" ', convém, antes, esclarecer-lhe os termos. Por
autoridade, pretende-se aqui a relação bipolar entre o autorizado e o
autorizador. Por se tratar de uma relação, e não de uma entidade, a autoridade
é imaterial e fluida; embora possa se institucionalizar, essa relação [de
autoridade] precede, ontologicamente, a versão reificada ' reconhecida, por
exemplo, na construção do Estado moderno. A autoridade à qual nos reportamos se
constitui entre os elementos que compõem a relação; e não por vínculos
sustentados externamente, por via de coerção1.
Na Modernidade, a autoridade veio a ser concebida como a dinâmica da
autorização entre seres morais e autônomos, capazes de processar juízos de
valor. Diferentemente, portanto, de sua acepção original. A auctoritas,
significante latino para uma modalidade de relacionamento já presente entre os
gregos, aludia ao processo por meio do qual os deuses dotavam de "autoridade"
(esta entendida como "bons auspícios") os humanos bem-aventurados.
Auctoritas deriva do verbo augere (aumentar, ampliar). Aquilo que a auctoritas
' ou os que dela se apossam ' aumenta é o fundamento valorativo, isto é, a base
normativa em que se funda a relação de autoridade. Para compreender mais
concretamente o que significa "gozar de autoridade", vale observar que a
palavra auctores (ou seja, depositários da auctoritas) pode ser utilizada como
o antônimo de artifices (os construtores e elaboradores efetivos). Auctor quer
dizer o mesmo que "autor". Porém, o autor não é aqui o construtor, mas, sim,
"aquele que inspirou toda a empresa e cujo espírito, portanto, muito mais do
que o do efetivo construtor, acha-se representado na própria construção".2
Distintamente do artifex, que simplesmente fez, o auctor é o verdadeiro genitor
do edifício, "autorizado" com um sopro de inspiração pelas divindades.
Na Roma antiga, o poder coercivo da fundação política era, ele mesmo, de
natureza religiosa. A força da autoridade estava intimamente ligada à força
religiosa dos auspices, que, ao contrário do oráculo grego, não sugere o curso
objetivo dos eventos futuros, mas apenas revela a aprovação ou a desaprovação
divina das decisões feitas pelo homem. Os auspices definem se as ações humanas
estão ou não devidamente autorizadas pelos deuses. Eles, os deuses, as
"aumentam" e as autenticam, mas não as guiam. Na mitologia romana, todos os
auspices remontam ao grande sinal pelo qual os deuses deram a Rômulo a
autoridade para fundar a sua cidade. Assim sendo, toda autoridade derivaria
daquele ato de fundação, remetendo ao sagrado início da história romana e
somando, por assim dizer, a cada novo momento singular, o peso do passado.3
A autoridade, derivação da auctoritas romana, requer o "pensar mitológico" para
ser devidamente apreendida. Não existe, per se, a autoridade do "ocupante do
cargo" [office-holder]. Em última análise, quando se faz popularmente
referência a uma "autoridade" (pretendendo-se, então, a pessoa que ocupa uma
posição institucionalizada de poder), está subsumida a relação prévia de
autoridade entre as partes ' o que é autorizado e o que autoriza ', relação
esta que é mediada por uma forma de simbolismo ' o arranjo institucional. A
incapacidade de se identificar tal carga simbólica nas relações contemporâneas
de autoridade tem acarretado, não raramente, perigosos equívocos para o estudo
e a prática da política. O maior deles, talvez, seja a confusão entre a
autoridade (propriamente dita) e o que se convencionou chamar de "exercício da
autoridade". É a equivalente moderna da distinção semântica romana entre o
auctor e o artifex. Não se quer propor aqui uma relação platônica entre um e
outro, entre a idéia e a prática. Antes, parece-nos fundamental, ao estudioso
ou interessado em entender a temática, a capacidade de apartar conceitualmente
o joio do trigo.
Nota metodológica: como conceber a autoridade política da ONU
Há pelo menos duas maneiras de pensar a autoridade onusiana. Uma, mais tendente
às elaborações "clássicas" da Política, avalia a autoridade da ONU por via da
atuação de seu pessoal autônomo ' nomeadamente, o Secretariado e a alta
burocracia do sistema ONU. Afere-se a autoridade da ONU, nesse caso,
conferindo-se a capacidade que esses homens (não constrangidos, pelo menos em
tese, por um mandamento de lealdade a um Estado nacional) demonstram de
inspirar confiança em indivíduos e Estados-membros, por meio de suas idéias e
ações, gerando, por conseguinte, permeabilidade normativa às diretivas da
organização.
Em uma segunda formulação, a ONU pode ser, ela própria, concebida como um
"sistema de autoridade". Por esse prisma ' nitidamente mais "moderno" ', a
Organização das Nações Unidas corresponderia à materialização de princípios e
normas tidos como autoritativos por indivíduos e Estados nas relações
internacionais contemporâneas (e.g., o multilateralismo e o direito
internacional). Essa perspectiva transforma a ONU em veículo da política
internacional, capaz de acomodar um determinado conteúdo ' extraindo justamente
daí a sua "autorização" como ator político (auctor).
A hipótese que norteia o trabalho é de que a Organização das Nações Unidas, ao
contrário do que alimenta o senso comum, é uma organização internacional dotada
de considerável grau de autoridade política no contexto das relações
internacionais contemporâneas, e que o quantum dessa autoridade da qual está
investida a ONU é crescente desde a sua fundação, em 1945.
Há problemas evidentes na metodologia positivista que recorre às correlações
entre variáveis para explicar certos fenômenos das relações internacionais. Por
se tratar de processos sociais ' envolvendo seres humanos ', as pretensas
relações entre variáveis de causa e de efeito não costumam dar-se
unidirecionalmente. O que se quer afirmar é que, para o caso da autoridade da
ONU, dificilmente se poderá dizer, taxativamente, que um percebido aumento dos
níveis de confiança que indivíduos ou Estados depositam na ONU induz ao
incremento da autoridade da organização; e vice-versa. Até porque, vale frisar,
não existe uma unidade conveniente para a mensuração "objetiva" do quantum de
autoridade política de que desfrute uma entidade qualquer. Não obstante,
queremos postular aqui a plausibilidade de uma relação de afinidade e de
alimentação recíproca entre a "autoridade onusiana" e os elementos que serão,
na seqüência, submetidos à apreciação do leitor. Mediante a apresentação desses
dados, pretendemos corroborar nossa hipótese de trabalho acerca da natureza da
autoridade da ONU na política internacional contemporânea.
Propósitos primários e legitimidade
Se a Organização das Nações Unidas ' a sucessora da Liga das Nações ' é julgada
em relação aos propósitos primários para os quais se constituiu, percebemos
desde logo maior adequação entre meios empregados e fins pretendidos. "Quando a
ONU foi estabelecida, no imediato pós-Segunda Guerra Mundial, o seu objetivo
era, acima de tudo, a manutenção da paz" ' expõem Roberts e Kingsbury.4 No
preâmbulo da Carta de São Francisco, encontram-se os dizeres: "Nós, os povos
das Nações Unidas, determinados a salvar as gerações vindouras do flagelo da
guerra, que por duas vezes em nossa existência trouxeram sofrimento indizível à
humanidade". A manutenção da paz, nesses termos, significava impedir a
ocorrência de uma terceira guerra em que estivessem envolvidas as grandes
potências mundiais ' e não, como algumas análises querem fazer crer, impedir
qualquer novo confronto internacional.5 A suposição jacente era de que, com a
criação da ONU ' e a concessão do direito de veto aos Cinco Grandes no Conselho
de Segurança (EUA, Reino Unido, França, China e União Soviética) ', seriam
diminuídos os riscos de ocorrer novo conflito de proporção mundial, envolvendo
potências militares. O Conselho de Segurança simbolizava a solução de
compromisso encontrada pelos Estados vitoriosos da Segunda Guerra para se
exercer uma gestão condominial dos assuntos de segurança internacional dali por
diante. "Não havia, na Carta da ONU, a expectativa de que a contribuição do
Conselho de Segurança para [a manutenção de] a ordem fosse a de regular as
aventuras externas de seus membros permanentes" ' comenta Ian Hurd. "Sem a
proteção do veto, [os 5 donos do veto] nunca teriam concordado com a existência
da ONU (...). O compromisso primordial do Conselho não era o de proteger os
pequenos Estados, mas o de evitar a guerra entre as grandes potências. Nesse
quesito, ele tem-se saído bastante bem".6
Outra interpretação sobre a questão da adequação entre as metas inicialmente
estipuladas e a capacidade da ONU de cumpri-las, foi fornecida por Hedley Bull.
O autor percebe, em primeiro lugar, a difícil convivência entre os ideais da
justiça e da ordem nos limites de uma comunidade internacional de Estados. A
ordem é então compreendida como a perpetuação do sistema vestefaliano de
Estados em que estamos inseridos. A manutenção da ordem constitui a tarefa a
ser desempenhada pelas potências que, por diversos meios (o recurso à força
entre eles), promoveriam a continuidade no status quo. Por sua vez, as demandas
por mudança, geralmente acobertadas pelo mote da "justiça", costumam vir de
Estados fracos, ou das organizações da sociedade civil. O que Bull percebe é
que a ONU, organização erigida para "dar cabo à era de flagelo e preservar as
gerações vindouras do martírio da guerra", teria sido concebida para funcionar
como um mecanismo central de replicação de valores dos Estados hegemônicos.
Após examinar o primeiro capítulo da Carta da ONU, Bull defende a posição de
que, no momento de fundação da organização, não se pretendeu dar conta de
ideais como a "justiça" ou a "eqüidade" em nível global, mas, sim, de manter a
ordem do pós-guerra.7
Se analisamos a questão pelo prisma dos propósitos primários "não-declarados"
da Liga e das Nações Unidas, identificamos outro quesito em que a última
instituição angariou mais legitimidade do que a primeira. Isto porque, como
adverte Inis Claude, há considerável evidência, hoje, de que o objetivo
fundamental da criação tanto da Liga quanto da ONU era induzir os EUA a um
comprometimento claro e inequívoco com a manutenção da ordem mundial, dedicando
o seu poderio militar e econômico à supressão de agressões entre Estados.8 Como
se sabe, embora Wilson tenha sido o grande responsável pela concepção da Liga
das Nações, o país que ele presidia nunca chegou a ingressar no quadro de
membros da citada organização, em função de contingências da política doméstica
americana.
Representatividade
A ONU contou, desde a origem, com a presença dos EUA em seu corpo de membros. O
desenho institucional se beneficiava do aprendizado com a experiência
histórica, e, também por isso, a ONU tornou-se mais bem-sucedida, no quesito de
representação geográfica, do que a Liga das Nações. Dois fatores parecem
fundamentais para explicar a trajetória. O primeiro deles foi a criação de um
órgão ' a Assembléia Geral ' concebido para abrigar todos os Estados
reconhecidos como tais pela comunidade internacional. Por meio do princípio da
estrita igualdade jurídica, a todos os Estados membros da organização é
prevista a prerrogativa da soberania territorial, sem restrição. Essa condição
de igualdade perante os pares implicava o reconhecimento do princípio da não-
ingerência em assuntos domésticos de outros Estados, além da aplicação do
sistema de "um Estado, um voto" nas questões debatidas no âmbito da Assembléia
Geral. Essa talvez tenha sido a grande novidade institucional representada pelo
advento da Organização de São Francisco. O segundo elemento decisivo para a
sobrevivência e o incremento da representação onusiana no mundo parece ser a
composição do seu Conselho de Segurança ' o órgão diretamente responsável pela
manutenção da paz e da segurança internacionais. Em vez de restringir a sua
composição a europeus (nos moldes da Liga pós-1933 e, antes ainda, da Santa
Aliança, de 1815-25), esse novo Conselho conseguiu abranger, no sistema de
representação permanente, América, Europa e Ásia, sem prescindir da presença de
África e Oceania, em bases não-permanentes. Para mais, a composição
(membership) da ONU balizou-se pela Declaração de Moscou (1943), a qual previa
uma organização internacional de caráter geral, quase-universal, que abrangesse
as nações "amantes da paz" que no mundo houvesse.
A ONU foi fundada por 51 Estados-membros, em 24 de outubro de 1945. Uma década
depois, já tinha atingido a marca dos 76 membros. O salto mais impressionante,
porém, deu-se nas duas décadas seguintes: como saldo do processo de
descolonização afro-asiática (que a própria organização ajudou a catalisar), as
Nações Unidas viriam a contar com 144 membros no ano de 1975 ' quase o dobro de
participantes da organização em 1955. A expansão prosseguiu, a despeito das
pressões (típicas da Guerra Fria) pela não-admissão de certos membros, e, aos
cinqüenta anos de idade, em 1995, a ONU continha 185 membros no seu quadro.
Hoje, decorridas seis décadas desde a sua fundação, a Organização das Nações
Unidas pode reclamar para si o estatuto de organização com abrangência (quase)
universal, totalizando 192 membros9 ' um número quase quatro vezes maior do que
o de fundadores, em 1945. Outra informação importante ' que transcende o
critério quantitativo ' é que nunca um membro da ONU se retirou permanentemente
da instituição. O caso solitário de saída temporária de um Estado-membro deu-se
com a Indonésia, que, após anunciar a retirada da organização em 20 de janeiro
de 1965 ' "naquele momento e sob aquelas circunstâncias" ', regressou ao corpo
de membros em 28 de setembro de 1966.
Nagendra Singh percebeu, para além dos avanços institucionais e do aumento
vertiginoso do número de membros da ONU, uma tentativa, no texto da Carta de
São Francisco, de purgar-se o etnocentrismo que marcou a existência da Liga.
Haja vista que o preâmbulo do Pacto da Liga das Nações demandava "respeito
escrupuloso a todos os tratados naqueles negócios que envolvessem os povos
organizados". Pergunta-se: quais eram, então, os povos desorganizados? Que
povos seriam esses com os quais se fazia perdoável desrespeitar tratados e
obrigações constituídas? O etnocentrismo é igualmente perceptível no texto do
Estatuto da Corte Internacional Permanente de Justiça ' datado do início dos
anos 1920 ', no trecho em que se faz menção aos "princípios gerais do direito
internacional, reconhecidos pelas nações civilizadas". A interpretação possível
é: somente as nações que consagram determinadas normas do direito internacional
devem ser consideradas "civilizadas". É o que está sugerido. Em contraste, a
Carta da ONU contém provisões que mitigam esse traço, destacando-se as idéias
de "descolonização dos povos" e de "independência política com integridade
territorial dos Estados-membros". Uma reminiscência do antigo sistema revela-
se, porém, na instituição do Conselho de Tutela, o herdeiro do instituto do
mandato, muito comum na prática colonialista da Liga. Essas mudanças nos textos
legais e na prática política das Nações Unidas vêm da necessidade de ampliar a
concepção de "comunidade internacional" no pós-Segunda Guerra, a fim de se
lograr êxito na contemplação de mais Estados e de mais regiões do planeta.
Autonomização
Quanto mais representativa uma entidade for, tanto mais difícil de ela se
"descolar" das vontades daqueles membros que, em última análise, patrocinam a
sua existência material (os seus membros mais influentes, por assim dizer). O
caso dos EUA segue emblemático. É o país que, além de ser o maior financiador
da organização,10 ainda abriga em seu território os principais órgãos
(Assembléia Geral, Conselho de Segurança, Secretariado etc.). Historicamente,
as Nações Unidas demonstraram dificuldade em, a um só tempo, representar os
interesses dos EUA, e autonomizar-se (quando considerado necessário) em relação
a eles. Jennifer Welsh sugere que os EUA costumam julgar a legitimidade do
Conselho de Segurança da ONU conforme a sua capacidade de fazer avançar uma
concepção estadunidense daquilo que mais efetivamente representa a paz e a
segurança internacionais. "Quando a concepção pode ser conciliada com a posição
da maior parte dos membros do Conselho de Segurança, como nos casos de Somália
e Bálcãs, os objetivos da ONU podem ser aprofundados. Do contrário, há
conseqüências nefastas para a ordem internacional e a legitimidade do
Conselho".11
O movimento de lenta e gradual autonomização da ONU em relação aos EUA data do
fim da década de 1950, tempo em que o quadro de membros da organização
expandiu-se com a independência política dos chamados "satélites" soviéticos '
ex-colônias européias situadas na África, na Ásia e no Oriente Próximo. Michael
Dunne nota que, a partir de então, "os americanos ficaram desiludidos com a
ONU, onde o bloco 'afro-asiático' parecia representar um Terceiro Mundo pouco
confiável politicamente e muito demandante economicamente, e os latino-
americanos não mais eram dependentes [dos EUA]". Japão e Europa Ocidental,
elementos-chave da "esfera de influência" americana, passaram a discordar dos
Estados Unidos em questões pontuais, no âmbito da ONU. Em 1971, a República
Popular de China ingressou na instituição, assumindo o lugar da representação
de Formosa (Taiwan) no Conselho de Segurança. Crescentemente, como descreveu
Daniel Moynihan, a ONU se tornava "um lugar perigoso para os americanos".12
Assim sendo, por décadas a fio, os EUA viraram as costas para a instituição '
que eles não mais conseguiam controlar ', até que, com o fim da Guerra Fria,
ensaiassem um retorno triunfante. O episódio da Guerra do Golfo (1990-1991) e o
chamado a uma "nova ordem mundial" pareceram simbolizar, por um instante, o
efetivo retorno dos EUA à ONU e, mais importante, a convergência de princípios
entre o governo americano e o Secretariado onusiano. As suspeitas de que a ONU
vigoraria, no pós-Guerra Fria, como plataforma de uma única potência hegemônica
se dissiparam rapidamente, em face de dois eventos específicos: a intervenção
da OTAN em Kosovo (1999) e, especialmente, a invasão militar do Iraque (2002-
2003). Em nenhum dos dois casos, os diplomatas americanos foram capazes de
dobrar a ONU aos seus propósitos ' embora tenha havido insistentes tentativas
nessa direção. Em ambos os casos, houve larga manifestação da opinião pública
internacional, com correspondente repercussão nos meios de imprensa.13
A julgar por esses dois vetores (o aumento da abrangência geográfica da
organização e a perda relacional de poder das potências que a constituíram ' os
EUA, em especial), a tendência é de passagem ' cadenciada ' de um arranjo
institucional oligárquico para uma disposição um pouco mais plural de poder. A
tendência se faz acompanhar pelo reforço do princípio (ou da mera prática) do
multilateralismo, em detrimento de ações unilaterais (extralegais) dos membros
que detêm o poder de veto no Conselho de Segurança. A tendência é diagnosticada
com base no aumento dos custos políticos (junto à opinião pública, sobretudo)
que uma eventual ação no sentido oposto daquele preconizado pela ONU pode
acarretar (a julgar, principalmente, pelo episódio envolvendo a invasão do
Iraque de 2003).14 A redução do número de usos do veto, no período pós-Guerra
Fria, e os debates acalorados sobre a expansão da representação no Conselho de
Segurança também servem como demonstrativos dessa trajetória provável.
Exercício de coerção
À turbulência dos anos 1990, sobrevieram oportunidades para a revisão de
algumas questões e a realização de certos debates nunca antes enfrentados no
seio da Organização das Nações Unidas. Um deles, o que mais nos importa
discutir neste tópico, remete à relação entre a autoridade política e o
exercício de coerção por parte da ONU. Um primeiro ponto de importância para o
debate é rever o papel da ONU vis-à-vis o dos Estados no que toca ao legítimo
uso da força. Porque, se um dos elementos que autorizou, historicamente, a
existência de Estados foi a sua faculdade de promover a ordem nas comunidades
políticas (por intermédio da violência organizada), é fundamental ter-se em
mente que o Estado moderno contou, desde os primeiros momentos, com exércitos '
braços armados capazes de "fabricar" essa ordem. Esse monopólio do recurso
legítimo à coerção é inclusive uma das principais fundações da Modernidade ' um
dos fatores que faz possível a noção de Estado moderno.
Por outro lado, a ONU não é, nem nunca foi, dotada de exércitos. Não é um
"superestado", nem está apta, legal ou politicamente, a exercer o "monopólio da
coerção legítima". As ações da ONU no campo da segurança internacional dão-se
sempre por delegação dos Estados ' nomeadamente, os cinco detentores do veto no
Conselho de Segurança. O mais relevante, no momento atual, é que esses Estados
não parecem nem um pouco inclinados a empoderar a ONU para o exercício
eficiente da coerção. Exemplo óbvio do que se alega é a inoperante Comissão de
Estado-Maior, uma das inovações trazidas pela Carta da ONU, concebida para
investir a instituição de São Francisco de um mínimo de capacidade para ação
militar nas contingências, nos termos do capítulo VII. Além do quê, o
dispositivo do artigo 43, que prevê para os Estados-membros a tarefa de
disponibilizar forças para o rápido manejo do Conselho de Segurança, nunca foi
efetivado, e permanece tão ineficaz hoje quanto durante a Guerra Fria.
Apesar disso, no segmento da segurança internacional, fica mais inteligível a
concepção que temos externado ' qual seja, de que poder e autoridade são
fenômenos diferentes em essência. Isso porque, a despeito de todas as
dificuldades enfrentadas pela ONU para fazer cumprir as suas determinações (ou
seja, no que concerne à dimensão do "enforcement", do poder efetivo), ainda
assim parece sustentável a tese de que, sob vários aspectos, a organização teve
um incremento da autoridade política no plano internacional ao longo de sua
existência ' e, mais notoriamente, após o fim da Guerra Fria. Brian Urquhart
percebe, por exemplo, que o capítulo VII da Carta da ONU é muito mais
livremente invocado no pós-Guerra Fria do que antes.15 A tendência leva, dentre
outros, a uma disputa acirrada pela reforma do Conselho de Segurança, a fim de
que este possa expandir-se e contemplar novos países e novas regiões do globo.
Por trás dessa disputa, existe o reconhecimento tácito à autoridade de um fórum
que, noutros tempos, esteve engessado, incapacitado de desempenhar um papel, em
face do confronto bipolar da Guerra Fria. A luta por uma vaga permanente no
Conselho reflete, se nada mais, a crença na relevância do debate político
encenado naquele fórum; e a expectativa de que as principais deliberações da
política internacional do futuro passarão por aquela via institucional. Gareth
Evans assinala ainda que, dada a imprecisão do texto da Carta da ONU e do
direito internacional sobre o que seriam as proverbiais "ameaças à paz e à
segurança internacionais", elas se tornam, na prática, aquilo que o Conselho de
Segurança determina que sejam.16
Em vez de uma aferição da autoridade política da ONU pelo critério do exercício
eficiente da coerção, sugere-se observar o uso simbólico que se tem feito da
insígnia da instituição nas operações de paz pelo mundo (com o ocaso da Guerra
Fria, sobretudo). Fomerand nota como, à ausência do poder efetivo do
Secretariado para implementar certas investidas armadas, tem-se firmado uma
prática de "subcontratação de capacetes azuis" por parte de potências com
capacidade e disposição de agir. Isto quer dizer que a bandeira da ONU tem sido
empregada, algumas vezes, para o propósito da legitimação das ações
empreendidas por determinados Estados. Se não fossem encampadas pelas Nações
Unidas, dificilmente as tais campanhas disporiam de autorização política no
plano internacional. Embora não exatamente consistente com o "espírito" da
Carta de São Francisco, essa tendência revela o juízo, da parte dos tomadores
de decisão dos Estados, de que o simbolismo do endosso onusiano gera maior
permeabilidade normativa nos agentes sujeitos à sua ação.17
A capacidade de adaptação institucional da ONU no campo da segurança
internacional é bem demonstrada pela evolução do que se convencionou chamar de
"capítulo VI e meio" da Carta de São Francisco ' para usar a expressão do ex-
secretário-geral Dag Hammarskjöld. Em face das dificuldades enfrentadas para
exercer a coerção (não raramente impostas pelos próprios Estados-membros), a
ONU desenvolveu um mecanismo de envio de operações de manutenção da paz a focos
internacionais de tensão, o qual se robusteceu no correr dos anos. Desde 1948 '
quando forças de manutenção da paz foram enviadas ao Oriente Médio, por ocasião
da guerra da independência de Israel ', 60 operações do gênero foram
organizadas ' 47 das quais, no período pós-1988.18 O aumento vertiginoso de
demanda por operações de manutenção da paz [peacekeeeping] da ONU nos anos após
a Guerra Fria fez-se seguir pela diversificação e sofisticação das "operações
de paz" da organização. Não tardou para que um departamento dedicado ao
gerenciamento do peacekeeping onusiano fosse criado, além da providencial
desvinculação entre os orçamentos regular e de operações de manutenção da paz
da organização ' que passaram, então, a ser contabilizados separadamente.
Originalmente restrita à diplomacia e aos "bons ofícios" do secretário-geral (o
chamado peacemaking), a performance do Secretariado da ONU no campo da
segurança internacional passou a englobar, além das já referidas "operações de
manutenção da paz", a modalidade mais sofisticada da "construção da paz"
(peace-building) e a assistência eleitoral. A operação de construção da paz
remete "aos esforços para dar assistência a países e regiões em transição da
guerra para a paz, incluindo-se as atividades e os programas de suporte e
fortalecimento dessas transições".19 Tais operações chegam a envolver o envio
de forças militares para a manutenção da paz, a repatriação e a reintegração de
refugiados, a desmobilização e a reintegração de soldados etc. Trata-se, ao
cabo, da tentativa de se estabelecer um novo Estado, com viabilidade técnico-
administrativa e legitimidade sociopolítica. Interinamente, durante o processo
de peace-building, a ONU assume as funções administrativas e de polícia do
próprio Estado. Outro campo em que a ONU tem atuado é na assistência à
realização de eleições em países marcados por algum tipo de instabilidade
política. Desde 1989, quando supervisionou a eleição que levou à independência
da Namíbia, a ONU foi requisitada para executar funções assemelhadas pelos
governos de outros doze países.20
Cabe notar como difere, em relação à eficiência, a performance da ONU nas
operações militares que o Secretariado pode gerenciar (destaque para o
peacekeeping) e naquelas que ele não pode comandar. A dimensão do "fazer
cumprir" extrapola a capacidade onusiana, uma vez que lhe faltam exércitos e o
mandato para recorrer legitimamente à força, por conta própria. Daí a
constatação do terceiro secretário-geral da ONU, U Thant, para quem "não é
surpreendente que a organização seja culpada por falhar na resolução de
problemas que já haviam sido considerados insolúveis por governos".21
A questão que sumariza o debate desta seção, então, é a seguinte: para afirmar
a sua autoridade política, a ONU deve exercer eficientemente a coerção? Se
analisarmos os fundamentos da autoridade de Estados e da ONU, tenderemos à
negativa ' ou seja, tenderemos a corroborar a idéia de que a dimensão da
autoridade política da ONU não se relaciona diretamente com a capacidade de
coerção da organização. Haja vista a hesitação dos próprios Estados-membros em
equipar com recursos militares e de inteligência o Secretariado das Nações
Unidas ' deixando clara a indisposição de estender à ONU a prerrogativa do
exercício da coerção. Nem sequer se menciona a independência militar da
entidade nos debates políticos atuais. Adicionalmente, resta a alegação de que
a força simbólica do secretário-geral provém exatamente de sua imparcialidade,
derivada da falta de engajamento prévio com qualquer parte em contenda. A fim
de manter a credibilidade como "terceira parte", a ONU ' dissociada
identitariamente dos Estados que a integram ' abstém-se, via de regra, de tomar
partido em conflitos.22 Na palavra do ex-secretário-geral assistente da ONU,
Giandomenico Picco, "transformar a instituição do Secretariado [da ONU] em uma
pálida imitação de Estado na gestão do uso da força pode ser uma tática
suicida".23 A esse respeito, John Ruggie, por exemplo, opina taxativamente: "a
ONU e o mundo estarão em melhores condições futuras se baixar o perfil militar
da organização, e se ela não se intrometer no cálculo estratégico dos
Estados".24 Afinal, a ONU não é (nem está municiada para fazer as vezes de) um
Estado ' por acaciano que pareça reafirmá-lo.
Produção normativa
Embora não tenha sido imaginado como um corpo legiferante, o sistema ONU
desenvolveu, nas últimas seis décadas, regulação internacional sobre um amplo
espectro de temas e situações. Mais do que isso, a ONU foi capaz de gerar
normas e padrões que têm balizado, de forma direta ou indireta, o convívio
entre os Estados e demais atores internacionais, transformando-se, para a quase
totalidade dos Estados-nação, na fonte institucional mais preeminente do
direito internacional contemporâneo.25
De uma perspectiva constitucionalista, a Carta da ONU corresponderia ao texto
fundamental das relações internacionais. É a Carta que fornece o corpo de
princípios que vem sendo seguidos pelos Estados (com maior ou menor fidelidade)
ao longo das últimas seis décadas. Para termos um bom índice de quão
autoritativa é a Carta de São Francisco como fonte de direito e da prática
política internacional, conveniente é observar a influência dos valores por ela
preconizados nas relações internacionais da segunda metade do século XX. Singh
analisa a matéria, e percebe a emergência de uma série de princípios de direito
internacional no pós-guerra, dentre os quais: o princípio do não-uso da força
nas relações internacionais e ilegalidade de "direito de conquista" como modo
de aquisição territorial [artigo 2º (3,4)]; os princípios de independência e
igualdade soberana entre os Estados, e o conceito de descolonização; o
princípio da igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos [artigos 1º
(2) e 55]; o princípio da não-intervenção em assuntos domésticos [artigo 2º
(7)]; o princípio da não-discriminação [artigos 1º (3); 13, alínea "b"; 55,
alínea "c"]; o princípio da cooperação internacional [artigo 13, alínea "b"]; o
princípio da boa vizinhança e das relações amigáveis [artigos 1º (2); 55 e 74];
os princípios relativos aos direitos humanos [artigos 1º (3); 13 (1); 55,
alínea "c" e 62 (2)]; o princípio do registro obrigatório de tratados [artigo
102 (1)].26
Embora alguns dos princípios citados antecedam a própria Organização das Nações
Unidas, é somente com a elaboração da Carta que eles ganham uma formulação mais
precisa e um estatuto legal mais sólido. Torna-se redundante, pois, afirmar a
importância histórica que noções como as de "descolonização" ou de
"autodeterminação dos povos" desempenharam na dinâmica política do nosso tempo.
Contribuições importantes da ONU ao campo principiológico das relações
internacionais contemporâneas também vêm da Convenção sobre a Prevenção e a
Punição do Crime de Genocídio, de 1948, que define, tipifica e prevê punição
para práticas genocidas; dos protocolos e convenções universais sobre direitos
humanos (a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, sendo a mais
célebre delas); das conferências organizadas pelas Nações Unidas (destaque para
as conferências sobre temas globais, realizadas a partir dos anos 1970), das
convenções de Viena sobre relações diplomáticas e consulares (1961 e 1963) e
sobre leis dos tratados (1969), etc.
Do ângulo que concede à ONU a condição de fonte prescritiva, incluem-se as
diretivas, escritas ou não, que, pelo fato de emanarem das Nações Unidas,
revestem-se de caráter vinculante, à luz do direito internacional. Leis que
vinculam são aquelas que impõem direitos e obrigações aos seus sujeitos,
podendo ou não ser respaldadas por sanções punitivas. No seio da instituição, a
principal fonte de prescrições é o Conselho de Segurança, o único dos órgãos da
ONU capaz de produzir resoluções vinculantes sobre os Estados-membros ' e de
recorrer à força para fazê-las cumprir.27 Outra prolífica fonte de prescrições
é a Assembléia Geral. Embora as suas resoluções não tenham caráter vinculante
perante o direito internacional, na prática, tais declarações têm
freqüentemente servido de estágio preliminar para a confecção de tratados
multilaterais, eventualmente promulgados sob os auspícios da ONU. Outra
serventia das "recomendações" da Assembléia Geral refere-se à cristalização de
normas (sobretudo, no campo dos direitos humanos) que, depois de ecoarem na
ONU, são incorporadas como leis pelos ordenamentos jurídicos nacionais.
Ademais, conquanto a Assembléia Geral não se pretenda um "poder legislativo
mundial", as suas resoluções não-vinculantes podem servir de instrumento
concreto para dirimir controvérsias referentes à interpretação de normas
internacionais, bem como para inspirar certas práticas governamentais,
considerado o peso político que um documento aprovado em um fórum de pretensão
universalista como a Assembléia pode assegurar.
O direito administrativo internacional trata das normas referentes a poderes,
procedimentos e processos de revisão judicial. No contexto da corrente
discussão, relaciona-se, principalmente, às agências administrativas vinculadas
ao sistema ONU. Desse ponto de vista, as Nações Unidas constituem rica fonte
normativa, dada a sua centralidade nas relações internacionais contemporâneas e
a abrangência das atividades que a entidade desempenha (o que acarreta a
existência de uma gama de agências administrativas sob a sua supervisão).
Assim, a ONU tem contribuído, de forma consistente, para a produção de
legislação administrativa internacional. Destacam-se, nesse processo gerativo,
os aportes do Secretariado (a atuação do secretário-geral, em particular) e das
agências especializadas da organização.
No que toca ao Secretariado e ao secretário-geral, compete notar como uma rede
normativa foi-se tecendo no decorrer dos 60 anos de existência da ONU. Trata-se
de um tipo de legislação que, dado o inédito grau de complexidade do
empreendimento a que se dedica o Secretariado onusiano ' hoje ', é elaborado à
medida que a vida política internacional se desenrola. Em outras palavras, a
emergência de novos atores, fenômenos e processos na cena internacional demanda
novas formas de gestão das relações internacionais, além de, obviamente,
constante renovação da legislação administrativa internacional. Sob a liderança
do secretário-geral, o Secretariado tem-se lançado em missões tais como a
promoção do entendimento pela via da "diplomacia silenciosa", os bons ofícios e
a reconciliação de partes em contenda; criando, assim, precedentes políticos e
normativos na gestão internacional de crises. Outra área em que se observa com
suficiente clareza a força normativa onusiana é no relativo às operações de
manutenção da paz. A ampla margem de discricionariedade em que opera o
Secretariado permite o desenvolvimento de uma doutrina legal de peacekeeping,
bem como de procedimentos e práticas, que acabam sendo transformados em
legislação internacional pela via do direito costumeiro.
Resta ainda que, consistentemente com o artigo 102 da Carta da ONU, "todo
tratado e todo acordo internacional, concluído por qualquer membro das Nações
Unidas depois da entrada em vigor da Carta, deverá (...) ser registrado e
publicado pelo Secretariado". Dispositivo ao qual se faz a seguinte ressalva:
"nenhuma parte em qualquer tratado ou acordo internacional que não tenha sido
registrado de conformidade com as disposições do parágrafo 1 deste artigo
[acima enunciado] poderá invocar tal tratado ou acordo perante qualquer órgão
das Nações Unidas". De sorte que, nos últimos 60 anos, praticamente toda a
produção de legislação internacional escrita foi submetida ao secretário-geral,
registrada e arquivada na ONU. A condição imposta pelo artigo 102 denota, se
nada mais, o papel onusiano de garantir a publicidade e conferir o timbre da
legitimidade aos documentos jurídicos envolvendo pessoas de Direito
Internacional Público (principalmente, os Estados).
A autoridade da ONU como fonte de legislação internacional fica ainda mais
evidente quando se trata de salientar o papel jogado por suas agências
especializadas no estabelecimento de parâmetros e normas de referência na
administração de vários campos de atividade humana. Os exemplos são abundantes
nesse sentido. Citam-se alguns: a FAO (Food and Agriculture Organization) tem-
se incumbido, desde 1945, de fixar os índices nutricionais adequados para o
bem-estar das populações; a Organização Internacional da Aviação Civil, parte
do sistema ONU desde 1947, é responsável pela harmonização de toda a legislação
internacional concernente a serviço meteorológico, controle de tráfego e de
comunicações aéreas, radiodifusão, operações de busca e resgate, etc; a
Organização Internacional do Trabalho, criada em 1919, exerce considerável
influência sobre os padrões trabalhistas internacionais; a União Internacional
de Telecomunicações, fundada em 1865 (e integrada ao sistema ONU em 1947), é
encarregada da regulação internacional sobre todas as formas de comunicação via
rádio, telégrafo, telefone e radiocomunicadores espaciais, além de gerir as
freqüências de rádio de todos os mais de 180 países a ela filiados. E, assim,
sucessivamente, cada agência especializada do sistema ONU desempenha funções de
regulamentação de uma determinada área temática das relações internacionais,
gerando, à medida que exerce as suas atribuições, arcabouço normativo.
Papel do secretário-geral
O secretário-geral é a referência política mais alta das Nações Unidas. Dispõe
de prerrogativas legais que nenhum chefe de Estado no mundo estaria apto a
exercitar. Uma delas, enunciada no artigo 99 da Carta da ONU, dispõe que "o
secretário-geral poderá trazer à atenção do Conselho de Segurança qualquer
matéria que, na sua opinião, possa ameaçar a paz, e requeira o exercício do
julgamento político independente do Conselho de Segurança" (grifo nosso). Na
comissão que conduziu os trabalhos preparatórios até a fundação da ONU, já se
afirmava, à luz do malogro da experiência prévia com a Liga das Nações, que "[o
secretário-geral], mais que qualquer outra pessoa, deverá responder pela ONU
como um todo. Aos olhos do mundo, ele deverá encarnar os princípios e ideais da
Carta à qual esta Organização [ONU] dá efeito". Não surpreende, portanto, que o
artigo 7º da Carta estabeleça o Secretariado ' chefiado pelo secretário-geral '
como o principal órgão onusiano. Essa elevação do estatuto jurídico (e
político) do secretário-geral da ONU, em relação à Liga das Nações, não se deu
por acaso, admite Javier Pérez de Cuéllar:
Esse não foi um desenvolvimento fortuito. Ao contrário, foi ditado
pela experiência da Liga das Nações. O Pacto e a prática da Liga eram
baseados em uma concepção puramente administrativa do posto do
secretário-geral. Os eventos calamitosos que guiaram à Segunda Guerra
revelaram que isso havia sido um equívoco. Um perigoso vazio existia
(...). Sir Eric Drummond, o primeiro secretário-geral da Liga das
Nações, teria dito que, se o artigo 99 da Carta estivesse ao seu
dispor, a influência da Liga sobre os eventos que se sucederam
poderia ter sido diferente.28
O acréscimo de autoridade à instituição do secretário-geral da ONU é mais
perceptível, porém, na prática do que na legislação. Desde Trygve Lie, todos os
secretários-gerais têm afirmado a independência do seu ofício ' alguns mais
vigorosamente do que outros ' e, para tanto, (re)interpretado as provisões da
Carta de São Francisco sempre em favor da expansão do papel do secretário-geral
na condução das crises políticas internacionais. Lie ajudou a instaurar o
"direito" (não previsto pela Carta) de o secretário-geral oferecer opiniões
não-solicitadas ao Conselho de Segurança.29 Dag Hammarskjöld observou, em
famoso discurso, que o artigo 99 permitia ao secretário-geral ampla margem de
discricionariedade para "engajar-se em atividade diplomática informal no que
concerne aos assuntos que ameacem a paz e a segurança internacionais". Inventou
a chamada "fórmula de Pequim", uma alusão à prática ' tornada corriqueira ' de
total distanciamento do secretário-geral em relação às partes em contenda. U
Thant foi um dos responsáveis pelo desenvolvimento da técnica da "diplomacia
silenciosa" do secretário-geral ' a qual foi considerada uma alternativa à
invocação (muito mais dramática) do artigo 99.30 Especificamente sobre a
importância da "diplomacia silenciosa", afirmou o ex-secretário-geral da ONU
Javier Pérez de Cuéllar que "ninguém nunca saberá quantos conflitos terão sido
evitados ou limitados através dos contatos estabelecidos na famosa 'mansão de
vidro', que pode tornar-se ligeiramente opaca quando necessário".31
Kofi Annan atuou, logo que da sua eleição, para ampliar o escopo de atuação
política dos secretários-gerais. Em fevereiro de 1998, negociou diretamente com
Saddam Hussein um memorando de entendimento que autorizava o retorno dos
inspetores de armas ao Iraque. Ao agir de ofício, sem um mandato formal do
Conselho de Segurança, o secretário-geral acreditava escudar-se em um "direito
adquirido", constituído, na prática, pela atividade diplomática de seus
antecessores no cargo. Percebe-se a discricionariedade do secretário-geral
Annan na sua promoção ostensiva de regimes democráticos pelo mundo. A promoção
da democracia não é um dos objetivos explícitos da Carta, embora possa derivar,
em uma hermenêutica ampla e permissiva, da doutrina onusiana de direitos
humanos e do próprio princípio de autodeterminação dos povos ' dois dos
ingredientes constitucionais da ordem internacional construída no pós-Segunda
Guerra. Annan ainda tem sido responsabilizado pela maior atenção destinada a
temas africanos na pauta política da organização ' o que se atribui à sua
nacionalidade ganense.
Ian Johnstone percebe, no entanto, que as distintas interpretações concedidas
ao artigo 99 pelos secretários-gerais da ONU não se tornam autoritativas pelo
simples fato de emanarem de secretários-gerais. O secretário-geral é, para o
autor, apenas um membro influente da comunidade de intérpretes associados às
Nações Unidas que, através de práticas discursivas, contribui para a afirmação
de uma determinada hermenêutica legal. Ele afirma que
Essas [interpretações ao artigo 99 da Carta da ONU] não foram
afirmações unilaterais de autoridade ou exercícios abstratos de
reforma da ONU, mas instâncias de inovação que foram levantadas,
discutidas e aceitas no contexto de disputas específicas que se davam
no seio da instituição. Nos moldes da evolução do direito costumeiro,
essas criativas interpretações do papel do secretário-geral foram
transformadas em norma compatível com a Carta.32
Emergência dos temas globais
No atual estágio das relações internacionais, a emergência de temas globais,
que abrangem potencialmente toda a superfície do planeta, passou a demandar um
novo tipo de gestão pública ' que os tradicionais Estados territoriais têm sido
incapazes de realizar a contento. São questões que requerem uma abordagem
transfronteiriça, uma vez que as suas causas e os seus efeitos já não mais se
adscrevem a um ou outro Estado, região ou conjunto de Estados. Os assim
chamados "temas globais" constituem realidade com a qual poucos agentes
internacionais se credenciam a lidar. A ONU, graças a sua vocação universalista
e representatividade em escala planetária, é talvez a instituição que mais tem
avançado ' apesar dos não raros reveses ' a gestão pública internacional em
campos como os direitos humanos e o meio ambiente. Daí provém parte substancial
da autoridade adquirida no pós-Guerra Fria, em tempo de globalização da
economia e da política internacionais. Outra noção que vem ao encontro do novo
papel político onusiano ' no mundo sob o impacto da globalização ' é a de "bens
comuns globais" (global commons). Está-se a referir aos novos espaços que, em
função, sobretudo, de avanços tecnológicos, passam a transcender a jurisdição
territorial dos Estados. Configuram novas áreas, comumente descritas como
"espaços extraterritoriais", crescentemente sujeitas à regulação do direito
internacional. O alto mar, a atmosfera, as terras glaciais da Antártica, o
espaço sideral e o campo eletromagnético da Terra são considerados espaços
extraterritoriais ' todos eles tutelados legalmente por documentos com o timbre
da ONU.
Nossa avaliação é de que a dinâmica política do mundo contemporâneo ajuda no
alargamento da constituencyda ONU. O que implica reconhecer que a possível
evolução das relações internacionais para um cenário de governança global e a
emergência de fontes de "autoridade privada" (acompanhada pelo relativo
enfraquecimento da autoridade política do Estado territorial moderno),
contribuem para que a ONU venha projetar internacionalmente os valores e as
regras que emergem de um processo de produção normativa cujo centro é ela
própria. Perceber ademais que, na análise da autoridade da ONU na política
internacional, o que está em jogo é menos a capacidade operacional da
Organização das Nações Unidas de intervir efetivamente em todas as questões e
campos mencionados anteriormente (direitos humanos, proteção ambiental, gestão
conjunta de global commons), e mais a autoridade política de que a organização
se encontra investida para agir, para exercer as funções de governança global.
Assim, se há uma entidade autorizada a conceber padrões de comportamento,
parâmetros, metas, regras, estratégias de longo alcance etc. sobre "temas
globais" no mundo de hoje, essa é a Organização das Nações Unidas.33 Pesados os
fatores que importam, a ONU desponta como a instituição politicamente
credenciada para tentar suprir as lacunas deixadas pela atuação dos Estados
nessas diversas áreas das relações internacionais. É, sobretudo, nesse aspecto
particular que se aplica o velho dito segundo o qual, se não existisse, a ONU
teria de ser inventada.
Notas finais (ou "o saldo contábil")
Ameaças à ONU e a sua autoridade política poderiam ser listadas às dezenas.
Elas sempre estiveram presentes, e continuam, ainda hoje, a rondar a
instituição. Falta de autonomia financeira, déficit democrático e de
accountability, ineficiência administrativa, influência de interesses espúrios,
distorção do mandato original da organização, duplos padrões, corrupção,
anacronismo estrutural, campanhas discursivas de difamação etc., embora
configurem desafios nada desprezíveis à integridade da Organização das Nações
Unidas, não foram capazes de fazer ruir a instituição. Tampouco de solapar a
sua autoridade política.
Como já identificado no decorrer do artigo, as fundações dessa autoridade
onusiana residem, mais destacadamente, em quatro características (que comumente
lhe são associadas): (i) a pretensão de universalidade, (i) a pretensão de
imparcialidade, (iii) a vantagem cognitiva comparativa em certas áreas
temáticas (expertise) e (iv) a formatação institucional inclusiva.
Da sua pretensão de universalidade deriva, por exemplo, a defesa da bandeira
dos direitos humanos. A advocacia e a promoção dos direitos humanos, dos
direitos humanitários e dos direitos dos refugiados, por parte da ONU,
alimentam a autoridade política da instituição, não somente aos olhos dos
chefes de Estado e de governo do mundo, senão também dos indivíduos. Essa é,
muito provavelmente, a forma mais efetiva de responsividade (responsiveness)
que a ONU pode executar em escala mundial, na sua relação direta (não
necessariamente mediada por Estados) com os indivíduos.
A sua pretensão de imparcialidade fica bem ilustrada no aumento sem precedente,
havido nos anos 1990, da requisição das intervenções da ONU em zonas de
conflito por todo o globo. Não fosse percebida como uma espécie de agente
demiúrgico, politicamente acima das partes em contenda, dificilmente a
instituição seria tão solicitada após a Guerra Fria. E é dessa alegada
imparcialidade que a organização retira o "salvo-conduto" para ingressar em
conflitos como terceira parte politicamente autorizada.
Da vantagem cognitiva do pessoal onusiano em alguns assuntos ditos "técnicos" '
aliada à imparcialidade e à universalidade da organização ' advém a autorização
política para a emissão de pareceres sobre diversas áreas temáticas, desde as
políticas de ciência e tecnologia de um Estado até os sistemas de detenção
carcerária. Donde a legitimidade com que são recebidos os relatórios de
oficiais da ONU. Isso ajuda a explicar, adicionalmente, a força (e a relativa
insuspeição) das estatísticas tornadas disponíveis pela ONU ou alguma de suas
agências especializadas.
Por fim, é da formatação institucional arrojada ' e, até certo ponto,
vanguardista ' que a ONU (entendida como o "sistema ONU") extrai a
reivindicação de ser a organização internacional mais bem equipada para dirimir
as principais querelas das relações internacionais contemporâneas. Somente em
um ambiente capaz de abrigar, sob o mesmo teto, Estados e atores não-estatais,
faz-se possível alguma gestão dos assuntos internacionais contemporâneas. As
Conferências Sociais da ONU, realizadas ao longo da década de 1990, são
exemplares dessa capacidade de promoção do diálogo e do entendimento em
diversos níveis das Nações Unidas.
Diferentemente do Estado moderno, que contou, desde a sua gênese institucional,
com exércitos fiéis ao governante, capazes de gerar a ordem doméstica e
promover a guerra com outros Estados; e coletores de impostos, incumbidos de
taxar os cidadãos e recolher os tributos que financiariam o aparelho de
governo; a ONU nunca dispôs desses recursos. Nunca teve braços armados
próprios, tampouco os meios de autofinanciamento. Das perspectivas militar e
orçamentária, a ação onusiana sempre dependeu diretamente da concessão dos seus
Estados-membros. Uma entidade com as características da ONU, desprovida de
"dentes" operacionais, não deve aspirar ao papel de enforcerinternacional, nem
deve se orientar pelo ditame da "eficácia" ou ser avaliada pelo critério do
"exercício eficiente do poder". A dimensão conceitual a que a Organização das
Nações Unidas pertence é, por excelência, a da autoridade política. É a dose de
autoridade política de que está investida a ONU o que garante, possivelmente, a
sua continuidade, a sua sobrevivência institucional. E, nesse sentido
específico, poder-se-á afirmar que o saldo onusiano, nos primeiros sessenta
anos de vida, é positivo.
1 Uma versão preliminar (e algo distinta) deste trabalho foi apresentada no
"XXX Encontro Anual da ANPOCS" (Caxambu-MG, 27 de outubro de 2006), ao Grupo de
Trabalho "Ordem Hegemônica, Multilateralismo e Política Externa", sob o título
de "A ONU Tem Autoridade? Reflexões sobre Autoridade, Política e Autoridade
Política". O autor agradece imensamente os comentários feitos, à ocasião, pelos
professores Alcides Costa Vaz e Rafael Villa, dos quais esta versão final
certamente se beneficia. Como de praxe, o autor assume inteira responsabilidade
por todas as carências e limitações que o artigo, porventura, conserve.
2 ARENDT, H. "Que é a Autoridade?", Entre o Passado e o Futuro. São Paulo:
Perspectiva, 1988, p. 164.
3 Id., p. 165.
4 ROBERTS, A. & KINGSBURY, B. United Nations, Divided World. Oxford: Oxford
University Press, 2003, p. 18.
5 Cf. N. Carlos, "A ONU não cumpre seu 1º mandamento", Folha de S. Paulo,
17.7.2006.
6 HURD I. Too Legit To Quit, <http://www.foreignaffairs.org>, acesso em
2.1.2007.
7 BULL, H. The Anarchical Society. New York: Columbia University Press, 1977.
8 CLAUDE JR., I. Swords into Plowshares. New York: Random House, 1971: 79.
9 Após a admissão da República de Montenegro, em 28.7.2006.
10 Em números correntes, os EUA arcam com 22% do total das despesas previstas
pelo orçamento ordinário da ONU.
11 WELSH, J., "Authorizing Humanitarian Intervention" in PRICE, R. &
ZACHER, M. (org.), The United Nations and Global Security, Palgrave Macmillan,
2004, p. 188-9.
12 Apud GROOM, A. J. R. "The United States and the United Nations: Some
Revolting European Thoughts", Journal of International Relations and
Development, 6, 2003, p. 128.
13 Cf. DUNNE, M., "The United States, the United Nations and Iraq:
'multilateralism of a kind'", International Affairs, 79, 2003, p. 257-77.
14 Relembrar os protestos realizados em várias cidades do mundo, em 15.2.2003,
contra a invasão do Iraque, pela coalizão anglo-americana, sem o assentimento
da ONU.
15 URQUHART, B. "The UN and International Security After the Cold War" in
BENEDICT & KINGSBURY, op. cit., p. 86. Notar que, entre os
anos de 1990 e 2002, 93% das resoluções invocando o capítulo VII da Carta da
ONU foram aprovadas (247 das 267 ocasiões).
16 Cf. EVANS, G. "When is it Right to Fight?", Survival, 46, 2004, p. 59-82.
17 Cf. FOMERAND, J. "Recent UN Textbooks: Suggestions from an Old-Fashioned
Practitioner", Global Governance, 8, 2002.
18 Dados referentes a dezembro de 2005.
19 Basic Facts About the UN. NY, 2004, p. 78-9.
20 Dados relativos a 2004.
21 Apud WEISS, T. et al., The United Nations and Changing World Politics.
Boulder: Westview Press, 2001, p. 106.
22 DE CUÉLLAR, J. P. Cyril Foster Lecture. Oxford, 13.5.1986.
23 PICCO, G, "The U.N. and the Use of Force", Foreign Affairs, 73, 1994, p. 15.
24 RUGGIE, J. G. The United Nations and the Collective Use of Force: Whither?
Or Whether?. New York: UN Association of the USA, 1996: 1.
25 Cf. JOYNER, C. (org.). The United Nations and International Law. Cambridge:
Cambridge University Press, 1998; SINGH N., "The UN and the
Development of International Law" in Roberts and Kingsbury, op. cit.
26 SINGH, op. cit., p. 389-92.
27 Entre 1945 e 1996, o Conselho de Segurança adotou cerca de mil resoluções,
das quais 400 eram vinculantes.
28 DE CUÉLLAR, J. P. "The Role of the UN Secretary-General" in ROBERTS &
KINGSBURY, op. cit., p. 128-9.
29 Eventualmente transformado em regra de procedimento provisional.
30 Cf. JOHNSTONE, I. "The Role of the UN Secretary-General: The Power of
Persuasion Based on Law". Global Governance, 9, 2003, p. 441-458.
31 Apud FRANCK, T. & NOLTE, G."The Good Offices Function of the UN
Secretary-General" in ROBERTS & KINGSBURY, op. cit., p. 144.
32 JOHNSTONE, op. cit., p. 444.
33 A fala do secretário-geral Annan é ilustrativa desse entendimento:
"Terrorism is a global menace. It calls for a united, global response. To
defeat it, all nations must take counsel together, and act in unison. That is
why we have the United Nations". UN Press Release, SG, 18.9.2001.