Do humanismo ridículo: a crítica da prefectibilidade humana em Pascal e Lutero
Instalei a construção e ela parece bem-sucedida. Por fora é visível
apenas um buraco, mas na realidade ele não leva a parte alguma,
depois de poucos passos já se bate em firme rocha natural. Não quero
me gabar de ter executado deliberadamente essa artimanha, o buraco
era muito mais o resto de uma das várias tentativas frustradas de
construção, no final, porém, pareceu-me vantajoso deixá-lo destapado.
Evidentemente, existem ardis que de tão finos liquidam a si mesmos,
sei disso melhor que ninguém, e sem dúvida é temerário chamar a
atenção, através do buraco, para a possibilidade de que aqui exista
alguma coisa digna de ser investigada. (Kafka, 1998, p. 60; grifos
meus.)
O termo "humanismo" é de largo uso entre nós. Podemos ouvi-lo desde as hostes
empresárias ' "por uma empresa mais humana!" ' até em espaços supostamente mais
críticos ' "por uma sociedade mais humana!", significando, geralmente, uma
sociedade menos "técnico-dependente" e centrada no "humano", isto é, "humano"
aqui seria antes de tudo um "tipo ideal" regulador pseudoweberiano. A filosofia
e sua história estão excluídas dessa discussão (que não passa de puro senso
comum, ainda que possa se dar dentro dos muros da Academia), na medida em que a
filosofia é apenas uma das demais atividades profissionais praticadas, e que
dentro deste seu asfixiado espaço de ação, não se encontra a função de corrigir
usos semânticos ou pragmáticos (a prática filosófica hoje não se caracteriza
por nenhum exercício social de "consciência semântica"). Em outras palavras,
nada teríamos a dizer, como filósofos profissionais, sobre o que os seres
humanos entendem por "humanismo". Enquanto isso, somos todos, evidentemente,
"humanistas". Como se rigor (a higiene pela qual nos recolhemos) e asfixia
fossem atitudes noéticas gêmeas. Quando nos debruçamos sobre a história
conceitual deste termo, percebemos que, se hoje ele é parte do jargão dos
"recursos humanos" e da consultoria existencial, ele já foi objeto de violentos
debates filosóficos e teológicos ' aliás, uma das suas mais fundamentais raízes
nasce precisamente no choque entre esses dois campos de saber.
O termo "humanista" não é uma evidência, pelo contrário, trata-se de um caso
claro de instabilidade semântica e pragmática. Quando o utilizamos, o fazemos,
normalmente, por aproximação e concessão. "Humanismo", "humanista", "anti-
humanismo" remetem a controvérsias que nos levam ao período usualmente
denominado de Renascença, ainda que, a rigor, não possamos afirmar simplesmente
que os autores renascentistas usassem tais termos do modo que hoje nos é
aparentemente evidente (ou mesmo que fizessem uso deles). Sua consistência
filosófico-histórica1 é, antes de tudo, uma polêmica acerca da "natureza
humana" ' conceito em franco declínio em termos de estabilidade semântica e
pragmática nas ciências humanas, foco de agressivas controvérsias entres os
sócio-simpatizantes e bio-simpatizantes. Veremos que, precisamente, trata-se de
uma discussão acerca da consistência da vontade humana, isto é, sua autonomia e
validade. Se a abordagem de tal termo exige cuidados de uma arqueologia
obsessiva do conceito, sua relação de implicação filosófico-histórica com o
mito moderno de "Homem" salta aos olhos: o mito do "humano" (esse universal
tardio, refugo da navalha nominalista) é uma construção a serviço de nossa
"auto-imagem", isto é, o orgulho. Essa suspeita está na raiz da recusa da
Reforma clássica e do jansenismo (esse calvinismo manqué) da "dogmática
humanista".
Acredito que as críticas do reformador Lutero e do jansenista Pascal ao
"humanismo" nascente são úteis para um diálogo com essa construção. O
vocabulário de partida desses autores é a herança agostiniana da teologia da
graça e os embates internos ao cristianismo "humanista" posterior. O
"desencaixe" da filosofia da sua condição de "serva" da teologia a partir da
Paris do século XIII é uma outra referência importante. O Renascimento (a
discussão em Pico de La Mirândola especificamente) é um terceiro marco
essencial desse processo. Minha intenção aqui não é, evidentemente, abarcar
essa discussão na totalidade, mas simplesmente tentar compreender o foco da
crítica luterana e pascaliana ao mito do "humano" suficiente.
Da construção
Inversamente, compreende-se que um esforço de conhecimento do homem
que se apóie na experiência humana e nos dados da pesquisa filosófica
não encontre, no seu esforço de elucidação, nada que venha confirmar
esta doutrina da "queda" do homem. Se a filosofia não tem o papel de
se opor a teologia ou de combatê-la, é seu papel, entretanto, afirmar
a distinção radical entre a questão filosófica da perfeição do homem
e os pressupostos teológicos acerca da correção e da queda de nossa
natureza. (Faye, 1998, p. 24)
A discussão medieval (século XIII) e renascentista, tal como apresenta Faye na
sua obra sobre a perfeição possível da natureza humana, é especialmente
elucidativa dessa questão na medida em que opõe duas idéias que supostamente
implicam-se: a afirmação dogmática da teologia a respeito da corrupção
inevitável da natureza humana devido à queda, por um lado, e por outro, à
afirmação de que a filosofia, a partir dos instrumentos que lhe são
característicos (pesquisa elucidativa e experiência humana, segundo Faye), não
encontra nenhum dado empírico (acrescento eu) que negue necessariamente a
possibilidade da perfectibilidade humana. Segundo Faye, a questão filosófica
acerca da perfeição possível não encontra na apreciação teológica nenhuma
consistência deslegitimadora a priori. Ao libertar-se da negatividade
teológica, a filosofia do homem torna-se capaz de respirar a possibilidade da
indefinição redentora: o verdadeiro ganho aqui não é da ordem de um empirismo
positivo (a negação do a priori teológico não implica a afirmação de nenhum a
priori que lhe seja simetricamente oposto), mas apenas da ordem de umideal.
Evidentemente que, se não há evidências definitivas sobre a queda, também não
há evidências definitivas sobre a perfectibilidade humana. A liberação
"descoberta" aqui é da ordem da ausência de predeterminação sobrenatural. O
conceito de perfectibilidade, entretanto, necessita, parece-me, de uma idéia de
processo que implica a auto-superação de condições previamente definidas como
parâmetro a legitimar o ganho em perfeição: da caverna ao avião, ou do
sacrifício humano à democracia do consumo feliz, por exemplo. Diria que, antes
de tudo, o "verdadeiro avanço" da filosofia tardo-medieval e renascentista
nesse caso se dá com relação à tutela teológica falsamente necessária, e não
com relação a um campo de evidências que apresentaria uma legitimidade livre de
dogmas ou mitos. A indefinição da natureza humana (supostamente) sustentada na
pesquisa elucidativa e na experiência humana deságua numa construção e não numa
evidência simetricamente oposta ao obscuro mito da queda. Vejamos alguns
instantes dessa construção.
O "desencaixe" referido acima tem como referência fundamental o processo que
vai dos artiensde Siger de Brabant no século XIII parisiense a autores como
Pico de La Mirândola no século XV ou Charles de Bovelles no início do XVI (e
aos "humanistas" renascentistas em geral): trata-se de um elogio à dignidade da
filosofia ("humanizada") em si.
Há entretanto algo que caracteriza propriamente os filósofos artiens
do séc. XIII: seu ascetismo e sua valorização absolutamente exclusiva
da vida do intelecto (...). A este respeito, a corrente filosófica
que vai se manifestar na França no séc. XVI trará uma concepção mais
completa da perfeição do homem, considerando prioritariamente o
conjunto de virtualidades de sua natureza, de uma só vez corporal e
espiritual. (Cf. Faye, 1998, p. 27.)
Essa idéia de "virtualidades da natureza humana" será central, assim como o
processo de compreensão do intelecto como uma faculdade que não demanda
conteúdos sobrenaturais para sua realização plena, virtude maior para os
artiens. A idéia de dignidade da vida filosófica pura encontra aí seu locus
conceitual: dignidade descreve uma virtude, não uma evidência. A defesa dos
artiens parisienses do intelecto per se abrirá espaço para "uma concepção mais
completa da perfeição do homem" no Renascimento, segundo Faye. Vemos que é
antes de tudo o parti pris da imperfeição teologicamente predeterminada que
está no foco do "desencaixe". Como parte desse movimento, a idéia de
suficiência (autonomia) do conjunto dessas "virtualidades naturais do Homem"
lança suas bases. O "pessimismo" da Reforma atacará precisamente essa idéia de
exclusão da eficácia transcendente restrita. "Concepção mais completa da
perfeição" se refere exatamente às "virtualidades" corporais e espirituais em
questão. Vemos, portanto, que o que normalmente chamamos de "humanismo"
renascentista é um termo equívoco (isto é, semanticamente polissêmico, no
mínimo): neste caso refere-se a uma exclusão da teologia da queda como hipótese
determinante na antropologia filosófica, e por sua vez afirma, idealmente, uma
autonomia desse conjunto de "virtualidades". Não me parece que possamos opor
uma mitologia "javista" a uma empiria"humanista".2 De um ponto de vista
estritamente neopragmático, diria que se trata de uma meraredescrição
supostamente autovalorativa. Os agostinianos modernos veriam aqui uma
sofisticadíssima elaboração da terceira concupiscência, o orgulho. O foco da
discussão é a perfeição e a dignidade postuladas, não uma descrição
justificada. Trata-se de um "enunciado" moral e não conceitual-empírico. Se o
mito teológico é um fantasma, o "humano" também o é.
É por isso que eu propus renunciar um termo anacrônico e problemático
para focar a pesquisa na terminologia própria da época, estudando a
maneira como a dignitas hominis foi historicamente pensada (...).
Se abstrairmos de fato cada autor particularmente para considerar a
questão da dignidade do homem de maneira geral, percebemos que esta
noção (...) obedece sempre historicamente o mesmo motivo maior,
aquele do livre-arbítrio. Não há nada aí de propriamente
renascentista. (Cf. Faye, 1998, p. 31)
Vemos que o topos da dignitas hominis é na realidade a discussão acerca do
livre-arbítrio. Os medievais ' Duns Scotus, Bernard de Clairvaux, Richard de
Saint Victor, entre outros ' já pensavam essa dignidade humana, mas ela estava
necessariamente condicionada pela capax Dei do Homem, isto é, sobrenaturalmente
determinada. A diferença renascentista em termos teoréticos (morais e
ontológicos) para com os medievais reside na exclusão da temática da corrupção
do livre-arbítrio, bem exemplificada pelo tormento da De miseria humanae
conditionis(Lotário, mais tarde Papa Inocêncio III) recusada por autores como
Pico, entre outros.3 Esta é a característica essencial da mitologia
"humanista": a identificação do virtuallivre-arbítrio com a real possibilidade
humana de ser livre de qualquer disfunção moral a priori. Evidentemente que
temos aqui um argumento teológico em jogo (nos medievais), mas não me parece
tão evidente que o abandono do vocabulário explicitamente teológico resolva a
questão a favor da mitologia "humanista". Penso que uma apreciação empírica
pode não necessariamente justificar a posição renascentista naive.
O argumento renascentista4 não é (ou, pelo menos, não evidentemente) que haja
uma perfeição a priori da natureza humana ' isto é, de sua dignidade enquanto
ser capaz de um livre-arbítrio suficiente ', mas sim que existe uma
potencialidade infinita (virtualidade) não predeterminada por qualquer
incapacidade necessária restritiva. Essa restrição era o argumento da
corrupção.
A verdadeira distinção consiste, aliás, no fato dele não ter qualquer
propriedade fixa, mas ter o poder de partilhar de todas as
propriedades de todos os outros seres, de acordo com sua própria
escolha livre. (Cf. Kristeller, 1956, p. 218)
Segundo Kristeller é precisamente esta emancipação com relação à hierarquia
medieval dos seres que liberta o Homem da restrição (fixadora de propriedades)
presente na idéia de um pecado condicionante. Ouçamos o próprio Pico:
3. (...). Ele, portanto, tomou o homem como uma criatura de natureza
indeterminada (...) A natureza de todas as outras coisas é limitada e
restrita às fronteiras das leis prescritas por Nós. Vós, restrito por
nenhum limite, de acordo com vosso próprio livre-arbítrio, (...)
ordenará (sic) por si mesmo os limites de vossa natureza. (...).
4. (...). Para ele é garantido ter o que quer que ele escolha, ser o
que quer que ele deseje. (Cf. Mirândola, 1956, 224-225)
A idéia de indefinição na realidade vem sustentar a idéia de potência infinita
sem condições. Percebe-se na argumentação da Oração uma marcada tendência a
negar a própria noção de condição humana(no caso específico, o condicionamento
restritivo teológico): sua condição mínima é ser livre para qualquer coisa, ele
poderá degenerar em besta ou alçar vôos aos anjos, logo, seu livre-arbítrio é a
instância determinadora de seus possíveis condicionamentos vividos. Sua escolha
é causa. É evidente que a discussão e o vocabulário de Pico são de viés
teológico. Ele descreve uma benção recebida pelo Homem, benção esta que se
caracteriza pelo livre-arbítrio indefinido. A filosofia "humanista" de Pico é
"teologia" sem restrição condicionante.5 Nesse sentido, o "desencaixe" ao qual
fazia referência acima se revela mais uma vez como exclusão da condição
corrompida do livre-arbítrio e da eficácia estrita do Transcendente com relação
ao "humano". Trata-se de uma controvérsia interna a concepção divinizante do
Homem, mas que rompe com o infeliz argumento da miséria. Essa hipótese da
indefinição é o núcleo da dignitas hominis, core da idéia de suficiência da
natureza humana que se realiza plenamente na produção da cultura.
A idéia de indefinição (apresentada na Oração) será fundamental para
entendermos a passagem de uma concepção puramente histórica da posição
"humanista" no Renascimento para uma discussão filosófica. Todavia, a definição
estritamente histórica, isto é, "humanismo" como erudição clássica que recupera
a tradição greco-romana não cristã, não deixará de ter um importante papel na
construção6 da mística do "humano": indefinição, dignidade, nobreza, natureza-
cultura e suficiência.
Qual é exatamente a noção que operou a passagem do sentido histórico
(clássico) ao sentido filosófico, que conduziu dos humanistas
historicamente determinados ao humanismo constituído em categoria
filosófica?
(...) O humanismo é "o que se poderia chamar de misticismo da nobreza
(de caráter) humana" (...) "é exatamente o mesmo misticismo da
grandeza humana que sustenta o homem da Renascença e o humanista".
(...) "Pode-se definir o humanismo como uma ética da nobreza humana".
(Cf. Gouhier, 1987, p. 17)
Citando Augustin Renaudet,7 Gouhier elenca definições que se tocam precisamente
no caráter ideal da dignidade humanista. Sendo uma ética, se por alguma razão o
argumento teológico da corrupção tiver consistência, a ética revelar-se-á
fantasmática. Se não há qualquer restrição empírica para se romper com a
hipótese sombria da Queda, também não há qualquer restrição empírica para se
suspeitar da fantasmática da dignidade humanista. É a suspeita agostiniana
quanto ao impulsointelectual que estaria na base do "humanismo" (de efeito
claramente crítico): a ética fantasma serve a mentira antropológica acerca do
próprio Homem, alimentando a disfunção (o orgulho estrutural, o amor pelo nada
da criatura) que ela mesma denega ao excluir o argumento sombrio. Mas, antes de
nos lançarmos à negatividade da construção, acompanhemos esta última, e longa
citação, que, acredito, resume de modo preciso o core do argumento "humanista"
e que também ilumina o foco da crítica anti-humanista agostiniana moderna.
(...) à idéia confusa de "grandeza", propõe-se substituir a idéia
distinta de "suficiência", permitindo reconhecer o humanismo em três
caracteres precisos:
1º Humanismo significa uma certa suficiência do homem (...) o homem
pode qualquer coisa, pelas únicas forças que o fazem homem, razão e
vontade especificamente.
2º O que significa: pelas únicas forças de sua natureza. Não é de
modo algum por acaso que a noção de natureza sempre esteve ligada a
de humanismo (...). A suficiência que o humanismo reconhece é, de
fato, aquela da natureza. Ora, para que ela é suficiente? Trata-se da
natureza poder realizar-se: sua suficiência significa então que,
dentro de certos limites, ao menos, a natureza é capaz de reconhecer
e atingir o bem; dito de outra forma, ela implica uma relativa
bondade da natureza.
3º Esta natureza do homem tem como particularidade de se realizar na
e pela cultura. Não é de modo algum por acaso que a noção de cultura
sempre esteve ligada a de humanismo: vemos isso bem hoje quando se
fala de "humanismo moderno" ou de "humanismo técnico". (...)
Suficiência, natureza, cultura são três termos complementares;8 (...)
lá onde eles não se encontrarem, deve-se falar de anti-humanismo.
(Cf. Gouhier, 1987, p. 20-21)
A relação com a cultura é, portanto, posta já na raiz do culto da dignidade
humana a priori. O caráter naive é evidente: não seria a história um desfile de
horrores? O que há de determinantemente belona "cultura"? Facilmente pode-se
cair em denial com relação a essa razoável evidência, basta alimentarmos aquilo
que jamais deve ser ferido (nossa auto-estima ontológica ou soberba), diriam os
reformadores modernos. Creio que essa atmosfera mítica permanece entre nós,
apenas recusamos sua consciência pragmática e semântica.
Esta glorificação do homem era um dos temas favoritos da literatura
da jovem Renascença. Durante o séc. XVI isso produziu uma reação
violenta. A ênfase na total depravação encontrada na teologia da
primeira Reforma protestante pode ter sido uma resposta ao exagerado
louvor ao homem comum na literatura humanística do tempo deles. (Cf.
Cassirer; Kristeller; Randall Jr., 1956, p. 19)
Na continuação deste trecho, Cassirer, Kristeller e Randall afirmam que o que
esta por detrás da violenta reação contra os exageros das orações humanistas é
a concepção agostiniana de Homem. Eles o fazem referindo-se a Montaigne, esse
renascentista pouco"humanista". Todavia, segundo nossos scholars, o que
caracteriza a abordagem crítica de Montaigne é pensar a partir dessa concepção
agostiniana só que "desteologizada" ou "humanizada", isto é, sem referências às
crenças dogmáticas (redundância?). Interessante lembrar que com Montaigne
estamos em solo cético. A concepção agostiniana sem seu componente teológico
"redentor" deságua necessariamente em crítica cética e pessimismo antropológico
agressivo, traços de uma atitude noética que por ser saturada de realismo (no
sentido oposto a idealismo), aparentemente asfixia. Argumentos de efeito cético
usualmente revelam-se poderosos em termos empíricos.
Da negação
A verdade não é primeira, ela é da ordem da desilusão; ela é sempre
uma desmistificação que supõe a mistificação que a funda e que ela
desnuda. Toda sociedade sobrevive pela auto-mistificação de seu
funcionamento, a fim de assegurar sua perenidade e pelo desejo de
mascarar seu caráter extraordinariamente auto-destrutível. (Cf.
Quignard, 1996, p. 65)
A descrição do processo de aquisição da "verdade" deste jansenista
contemporâneo (Quignard), comentando um outro jansenista (Esprit), este do
século XVII, carrega nos tons típicos da reação agostiniana ao culto da
suficiência humana da Renascença: desilusão como transcendental epistêmico.
Qual ilusão específica? A construção vaidosa. As raízes dessa reação, no campo
da antropologia filosófico-teológica, estão na reflexão de Agostinho sobre o
livre-arbítrio. Não se trata de negar a possibilidade de se usar o termo
"dignidade" para o ser humano em qualquer que seja a situação, trata-se sim de
questionar a consistência da oração ao livre-arbítrio, ou seja, o culto da
autonomia moral auto-evidente. O resto conceitual filosófico dessa crítica é a
idéia de uma disfunção cognitiva e volitiva no Homem.
Que tens que não tenhais recebido? E se foi recebido, por que te
glorificas como se não tiveste recebido como dom? Isto é: Por que te
glorificar, como se tiveste recebido de ti mesmo um dom que, se não o
tiveste recebido, tu não poderias possuir por ti mesmo? (...). Mas
vale possuir menos do que pedimos a Deus do que possuir mais do que
atribuímos a si mesmo. (Cf. Sto. Agostinho, 1994, p. 50-51, 10)
E mais:
Mas para ir em direção ao pecado, o livre-arbítrio é suficiente, com
o que ele estragou a si mesmo; ao contrário, para retornar à justiça
ele necessita de um remédio pois ele está doente. (...). Muito pelo
contrário, ao defender a natureza como se ela fosse suficiente a si
mesma para ser justa, assumindo que só ela intervém, é contra a graça
do Cristo, pela qual nós somos justificados, que ele se eleva de uma
forma manifesta (...). Isso, um espírito orgulhoso não pode
compreender. (Cf. Sto Agostinho, 1994, p. 290-295, XXIII/XXV)
Agostinho ataca a idéia de suficiência defendida por Pelágio por considerá-la
orgulho. E mais, o mesmo orgulho é levado à categoria de transcendental
epistêmico negativoque inviabiliza a compreensão da sua crítica: exemplo da
submissão do espírito (intelecto) à vontade orgulhosa. Ainda que o termo seja
anacrônico ' já o é para o Renascimento em si! ' a suficiência pelagiana é uma
idéia de natureza humana que em muito se aproxima da oração humanista.
Agostinho negará a suficiência afirmando a estrita necessidade da graça eficaz
e contingente (não está submetida à economia racional dos méritos humanos) para
que o livre-arbítrio escape do peso da gravidade do pecado. Ao longo da
argumentação,9 Agostinho descreve as misérias empíricas humanas como prova de
que a hipótese da queda explica melhor a condição humana do que a tentativa vã
' ainda que, reconhece Agostinho, em certa medida justificada pela revolta de
Pelágio em ver o lachismo moral dos cristãos que responsabilizava o pecado pelo
estado lastimável da condição humana, numa espécie de maniqueísmo perverso ' de
sustentar uma possível autonomia moral. Agostinho opõe a realidade de uma
condição empiricamente dada (a natureza humana parece atoladanuma repetição
monótona de atos condicionados pelo amor à criatura, a começar pelo amor por si
mesmo) à possibilidade de um descondicionamento gerado pelo livre-arbítrio.
Agostinho vê esse condicionamento como a corrupção teologicamente descrita pelo
pecado. Pelágio, por sua vez, aposta na viabilidade desta condiçãoser mera
retórica existencial (em ternos contemporâneos) para preguiça moral. Agostinho
reconhece o valor da luta contra a preguiça, mas chama a atenção para não
tentarmos resolver essa preguiça falsamente: a solução pelagiana é uma chamada
ao orgulho humano "estoicizante", ao reconhecimento de uma dignidade da
liberdade humana, isto é, a troca da retórica da desculpabilização pela
retórica do orgulho construtivo da personalidade(obviamente que, de novo, num
vocabulário contemporâneo). Este núcleo de temas (falsa suficiência, erro,
vaidade,10 etc.) será retomado pela Reforma e pelo jansenismo em geral, ainda
que guardando diferenças importantes em se tratando de Lutero e Pascal.
Agora, este livro deveria ter um título (para indicar) que foi
escrito contra o livre-arbítrio. Pois o livro inteiro tende a mostrar
que as opiniões, planos e empreitadas dos homens são todos em vão e
estéreis, e que eles sempre têm uma solução diferente do que nós
desejamos e propomos. Assim sendo, Salomão nos ensinaria a esperar em
confiança e deixar que Deus sozinho faça tudo, acima e contra e sem
nosso conhecimento e opinião. (Cf. Lutero, 2002, p. 68; grifos meus)
Para Lutero, o Eclesiastes11 não deve ser entendido como uma desqualificação da
Criação em si, mas sim uma crítica à idéia do Homem como causa racional e
moral. O reformador vê como sabedoria o reconhecimento de que Deus não leva em
conta nosso saber para conduzir sua Criação. Percebemos aqui um modo duro de
exclusão do que poderíamos denominar a dinâmica do humano, mas o core dessa
exclusão é o livre-arbítrio, pois para Lutero, como veremos na seqüência, a
situação humana é tal como descreve Agostinho. Esse prefácio foi escrito na
mesma época (1524) em que Erasmus de Rotterdam preparava De libero arbitrium
(publicado na Basiléia) e contra quem Lutero escreverá sua Da vontade cativa.
Nas palavras sintéticas de um comentador, que julgo bem precisas na definição
da postura luterana:
A condenação final de Erasmo, da parte de Lutero, é feita com as
palavras iniciais do livro. As formulações são cortantes, têm tom de
juízo final e caracterizam a diversidade de pressupostos de ambos. Do
lado de Erasmo há suma inteligência que, no entanto, foge de toda
decisão. Do lado de Lutero há a verdade insofismável do Deus santo e
maravilhoso, pelo qual a razão e a vontade se deixam cativar em
obediência e humildade. (Cf. Dreher, 1993, p. 16)
Sofisma: a posição que cultua a autonomia funcional da vontade e da razão é
vista como jogos inteligentes de palavras, por isso sem valor para Deus (ele
age contra e acima desses jogos), mas que são inconsistentes no sentido
decisório, logo, nada valem. Seu valor é apenas a repetição do amor por si
mesmo, orgulho da criatura. Essa percepção de que a defesa da autonomia humana
é retórica vazia contra a empiria que nega a consistência dessa retórica
percorre todo o agostinismo lido pela Reforma e pelo jansenismo.12 No Prefácio
a Carta aos Romanos (versão de 1546), Lutero aprofunda seu ceticismo:
Portanto, todos os homens são chamados mentirosos no Salmo 116 (:11)
porque ninguém guarda ou pode guardar a lei de Deus nas profundezas
do coração. Pois todo mundo encontra em si mesmo desprazer no que é
bom e prazer no que é mau. Se, então, não há prazer desejante no bem,
o íntimo do coração não está estabelecido na lei de Deus. (...)
Acostume-se, então, com esta linguagem, que fazer as obras da lei e
realizar a lei são duas coisas bem diferentes. A obra da lei é tudo
que se faz ou se pode fazer, com relação a guardar a lei a partir do
seu próprio livre-arbítrio e por seus próprios poderes. Mas uma vez
que em meio a estas obras e ao longo delas permanece no coração um
desprazer com a lei (...), estas obras são todas desperdiçadas e não
têm nenhum valor. (...) Portanto, você pode ver que (...) os sofistas
praticam o engano quando ensinam aos homens a se prepararem por si
mesmos para a graça por meio das obras. Como pode um homem preparar a
si mesmo para o bem por meio das obras, se ele faz boas obras
unicamente com aversão e má vontade no seu coração? Como agradará a
Deus uma obra se ela procede de um coração relutante e resistente?
(...)
Fé não é a noção e nem o sonho humano que algumas pessoas chamam fé.
(...) Isto se deve ao fato que quando eles ouvem o evangelho, eles se
ocupam e por meio de seus próprios poderes criam uma idéia em seus
corações que diz "eu creio"; eles assumem isso como sendo a
verdadeira fé. Mas isso é ilusão e uma idéia que nunca toca as
profundezas do coração, nada provém dele, e nenhum aperfeiçoamento se
segue daí. (Cf. Lutero, 2002, p. 90, 92 e 94)
Nesta longa citação, na qual Lutero retoma a clássica crítica paulina ao
behaviorismo das obras,13 percebe-se um encadeamento de argumentos que vai da
recusa da execução vaidosa e exteriorizante da vontade de Deus (a Lei) à
definição do caráter essencialmente invisível desta Lei. Se lembrarmos que a
Lei no judaísmo é a manifestação da vontade de Deus, e que não há teologia
ontológica a rigor no judaísmo bíblico mas apenas teologia moral ' monoteísmo
ético14 ', lembraremos que a discussão luterana toca em profundidade o que
poderia ser o princípio de qualquer relação entre o Homem e Deus. Segue-se daí
que não há relação entre o Homem e Deus sem que este tome a iniciativa ' talvez
aqui esteja uma das razões dos católicos acusarem Lutero de "hebraização" do
cristianismo, por tornar Deus "excessivamente" transcendente. O exílio
ontológicoé representado pela inconsistência moral estrutural e não meramente
conjuntural (assumindo a condição caída como estrutura). Segundo Lutero, o
coração humano não é capaz de sentir prazer verdadeiro na busca de realizar a
vontade de Deus ' logo, não é capaz de realizar a ética de Deus, a única
dimensão do Ser divino que conhecemos ' pois este coração está perdido na
retóricagestual, isto é, na mímica muda. Mais adiante, Lutero passa do abismo
que rasga o humano ' sua fratura interna entre retórica gestual do visível e
sua inconsistência moral profunda ' ao abismo ontológicoentre natureza e
sobrenatural: aquilo que psicologicamente (termo meu) entendemos quando
produzimos enunciados como "creio" não é a realidade da fé verdadeira. O
coração humano, locus da vontade desgarrada de Deus, campo de um hedonismo da
criatura, é incapaz de produzir um salto de consistência moral ' logo,
ontológica, em se tratando de judaísmo ou cristianismo ' diferencial: a
verdadeira fé, assim como o estar em sintonia com a vontade de Deus, é fruto de
uma causaque não tem lugar na dinâmica natural humana. Percebe-se que Lutero
está criticando a idéia de que possa existir uma suficiência do sistema ético
humano. Qualquer que seja a suficiência humana, será unicamente a da monotonia
do pecado. Não há "humanismo" aqui, mas sim uma suspeita profunda de que o
"humanismo" da dignidade natural humana ' a exclusão do Transcendente estrito '
nada seja além do que parte do gestual que desenha a visibilidade de uma
dinâmica em queda. Sendo a queda uma queda na pureza infeliz da criatura, e
sendo esta devorada ontologicamente pelo nada, é natural que Lutero considere
um texto que fala das nuvens de nadas (Eclesiastes) como sabedoria profunda
acerca da ilusão orgulhosa humanista. No comentário a Gálatas, Lutero resume
sua crítica: "Tudo que está na nossa vontade é mal, tudo que está na nossa
inteligência é erro. É por isso que no que se refere às coisas divinas, o homem
não tem nada além do que puras trevas, erros, malícia, perversidade da vontade
e da inteligência." (Cf. Lutero, 1958, p. 186)
Há um efeito de ampliação por precisão do alcance da miséria aqui: mergulhado
na condição denegada pela oração humanista, o Homem aos olhos de Lutero é um
sonâmbulo. Trata-se de um discurso que teologicamente fala do pecado, e que
filosoficamente ilumina a condição humana com suspeitas de disfunção
ontológica. Argumentos céticos, quando não estão a serviço de uma retórica
puramente formal e cínica, são usualmente sombrios para as técnicas da vaidade.
Karl Barth, grande teólogo protestante do século XX, define assim a
antropologia reformada: "A perversão do pecado se produz no fundo e no centro
da existência humana, no coração humano; e o estado de perversão pecaminosa que
daí resulta se estende à totalidade de sua maneira de ser sem exceção de
nenhuma de suas determinações." (Cf. Barth. Dogmatique IV,Cahier, p. 58)
As palavras de Barth apontam para a mesma ampliaçãoda temática luterana: trata-
se de uma antropologia crítica de apelo empírico, fruto da aplicação filosófica
de uma dogmática teológica. Aperfectibilidade do humano, preparada pelo
"desencaixe" referido acima, mesmo tendo excluído pragmaticamente o
vocabulárioteológico, terá que enfrentar seu resto filosófico.
Pascal15 não era luterano, e escreveu parte de seus Écrits sur la grace16
contra a Reforma. Todavia, as relações entre o jansenismo e a Reforma (Lutero e
Calvino) permanecem um campo de estudo a ser enfrentado. Talvez as contínuas
acusações por parte do molinismo jesuíta de protestantismo com relação à
interpretação jansenista de Agostinho não sejam totalmente infundadas.17
Entretanto, meu interesse aqui não são as particularidades que distanciam
Pascal de Lutero ' isto é, a crítica pascaliana com relação à afirmação de
impermeabilidade à graça eficaz que segundo ele haveria nos erros luteranos e
calvinistas, contra sua posição (de Pascal) que o Homem permanece permeável à
graça eficaz, mas que ele jamais é causa eficiente e suficiente da ação dessa
graça ', mas a crítica que ambos fazem à oração humanista, e nesse sentido, na
medida em que a causa da relação possível entre Homem e Deus é sempre não
humana, e que por definição o homem é disfuncional moralmente quando não sob
ação de Deus. Essa posição implica que qualquer idéia de perfectibilidade
humana possível ou é divina, ou é erro e desgraça revivida. O "desencaixe"
antroponômico seria nesse sentido um erro evidente: o homem pelo homemé sempre
miserável pois sua condição é a de um animal circular.
(...) ao considerá-las nos seus efeitos, se podem identificar as
causas, as primeiras sendo as causas meritórias das segundas, e as
segundas as causas finais das primeiras; mas ao considerá-las todas
em comum, não há nenhuma causa além da vontade divina (...). (Cf.
Pascal, 1991, p. 658)
Neste pequeno trecho temos um exemplo da argumentação pascaliana que define a
causa ética como sendo Deus, ainda que aparentemente não de modo evidente. Na
localidade da teia causal ética parece haver uma causa outra que não a graça
eficaz, mas quando a perspectiva transcende o provincianismo cognitivo,
percebe-se que esta causa é sempre secundária.18 A argumentação pascaliana é
mais marcadamente filosófica ' no sentido de ter maior autonomia em se tratando
de vocabulários de raiz não proximamente teológica (Revelação). Todavia,
seguindo o próprio Pascal na citação acima, também podemos aplicar a percepção
epistêmica diferencial entre um olhar local e uma ampliação da visão dos
argumentos-causas que sustentam a teia conceitual geral, e aí perceberemos que
seu pensamento é essencialmente religioso19 ' assim como os de Lutero.
Citaremos três conceitos em particular (que não estão diretamente relacionados
à controvérsia moral-teológica) como exemplo da crítica antropológica
pascaliana à viabilidade da oração daperfectibilidade: o par divertissement x
ennui(divertimento x angústia/tédio/aborrecimento), a faculdade da
contingência, isto é, a imaginação e seus efeitos perversos, e a natureza
disjuntiva humana devido à heterogeneidade das ordens constituintes do ser
humano. Ao final da argumentação pascaliana, resta-nos um Homem disfuncional a
priori, no qual a desqualificação da idéia de dignitas hominis rompe a
fronteira de uma discussão meramentemoral.
Angústia20
Nada é tão insuportável ao homem quanto estar em pleno repouso, sem
paixões, sem negócios, sem divertimentos, sem atividades. Ele então
sente seu nada, seu abandono, sua insuficiência, sua dependência, sua
impotência, seu vazio. Imediatamente sairá do fundo de sua alma a
angústia, o negrume, a tristeza, a aflição, o despeito, o desespero.
(Cf. Pascal, La 622)
Nesse fragmento Pascal faz sua análise existencial do Homem. Seu argumento, na
realidade, é que, quando não se movimenta (se diverte), o Homem necessariamente
se afoga naquilo que, sendo sua essência estrutural, brota do seu coração.
Pascal nega que o Homem possa existir, quando o movimento auto-alienante cessa,
sem experimentar angústia, desespero, tristeza. O foco da sua análise parece
desviar-se de uma argumentação eminentemente moral para um cenário psicológico
profundo. O gestual retórico da perfectibilidade seria, nesse sentido, um modo
de desviar-se da agonia essencial, negando o condicionamento teológico, mas
permanecendo presa da inevitável angústia ontológica. Seria possível negar essa
autopercepção negativaprofunda, apontada por Pascal, e que nos remete à
sensação de insustentabilidade estrutural em termos precisamente empíricos
(doença, envelhecimento, falhas cognitivas contínuas, inércia da miséria moral
ao longo da história), isto é, sem lançarmos mão de recursos desviantes? Na
maioria das vezes, Pascal parece dizer que não há como escapar dessa dinâmica
do desespero sem a intervenção de Deus. Essa temática é a fenomenologia da
conversão, que ele trata nas suas correspondências espirituais, e que deságua
numa reflexão acerca do déchirement (dilaceramento), e que fala do afastamento
do desejo humano do mundo das criaturas, experimentado como agonia que rasga
interiormente a estrutura humana, amante da criatura.21 E mais: em estado
dedéchirement, no nível dos afetos, não há uma substituição da angústia por
delírios de prazer. Pascal parece pensar que do ponto de vista estritamente
humano restaria unicamenteo enfrentamento da angústia que se instala quando o
movimento desviante cessa: suspensão de mecanismos de auto-ilusão, haveria
assim algum oxigênio para a negatividade em termos estritamente humanos. Isto
é, o humano que não mente é, necessariamente, um melancólico. De qualquer modo,
uma oraçãoà perfectibilidade seria uma mentira diante dessa condição profunda
experimentada por qualquer ser humano quando se dobra sobre si mesmo e apreende
seu nada ontológico. Estamos diante de uma definição mínima: a
insustentabilidade estrutural tornada consciente.
Imaginação
É essa parte dominante no homem, essa senhora de erro e falsidade,
tão velhaca que nem sempre o é, pois ela seria regra infalível da
verdade se o fosse da mentira. Ainda ' mas sendo o mais
freqüentemente falsa, ela não dá qualquer sinal de sua qualidade,
marcando com o mesmo caráter o verdadeiro e o falso. Eu não falo dos
loucos, eu falo dos mais sábios, e é entre eles que a imaginação tem
o grande direito de persuadir os homens. A razão pode muito bem
gritar, mas ainda assim ela não consegue dar o valor às coisas. (Cf.
La 44)
Trata-se da clássica temática pascaliana de como a razão produz infelicidade
enquanto a imaginação é a senhora da alegria. A amplitude da crítica aqui toca
a epistemologia, que não é nosso foco no presente ensaio. A faculdade que marca
tudo com o mesmo sinal, isto é, a contingência da adesão imaginada, dissolve
todos os critérios. Sua ação perversa é maior entre os "sábios" na medida em
que o orgulho intelectual aí é maior, o que tende inexoravelmente à diminuição
da atividade epistêmica do indivíduo ' a tendência agostiniana de fazer da
moral um transcendental epistêmico é evidente em Pascal. A desarticulação
promovida pela imaginação faz da oração à perfectibilidade um ato ridículo, na
medida em que o Homem jamais sabe o que pensa que sabe ' seja esse saber do
campo estritamente cognitivo, seja do campo moral-valorativo. A afirmação final
é excepcionalmente cética com relação ao alcance humano: resta o grito inútil.
Nos Lafuma 308 e 933, famosos fragmentos nos quais Pascal retoma a temática
agostiniana das três concupiscências (matéria/corpo, espírito/conhecimento,
vontade/orgulho/caritas ou Deus) para fazer delas três ordens ontológicas
gerais, vemos um aprofundamento de viés ontológico estrutural da dignidade
ridícula. Nas palavras do scholarpascaliano Jean-Luc Marion, comentando esses
fragmentos:
(...) mas sobretudo estabelece que ele não os reúne senão para
separá-los (disjoindre); na realidade, longe de constituir um sistema
(...) aqui, na retomada pascaliana, uma "distância" os separa
definitivamente. (...) infinito significa aqui a incomensurabilidade;
"a distância infinita" (...) abole de uma só vez toda relação
comensurável, dir-se-ia toda ordenação (...); nem ordo, nem mesura
asseguram uma seqüência sistematizada. (Cf. Marion, 1986, p. 327)
Marion fala da relação que Pascal estabelece entre os elementos da metafísica
cartesiana e as ordens pascalianas. Sua intenção é mostrar que os sinais de
sustentação de um sistema metafísico organizador do mundo são despedaçados pela
disjunção cósmica pascaliana ' esse é o sentido do "enlouquecimento" dos
conceitos que fala Marion na mesma obra. O Homem bem como o cosmos não compõem
a idéia de natureza mínima, logo não são fundados metafisicamente. O alcance
dessa metafísica negativa fere a dignidade imaginada na mesma medida em que o
universo é definido pela indefinição, logo, louco: uma distância heterogênea
infinitamente infinita produz abismos onde deveria haver sistema. O infinito é
signo não de potência interminável (indefinidacomo na Oraçãode Pico), mas de
exílio no nada da estrutura. Trata-se de um infinito negativo: não há
hierarquias nem propriedades fixas, só espaços infinitos e vazios de quaisquer
relações sustentáveis.
Resto
Aos olhos de nossos críticos do humanismo da perfectibilidade, a construção da
oraçãoridícula não é somente fruto de uma decisão consciente do pecador, é
muito mais (em termos filosóficos e teológicos) o resto de um sonambulismo da
mecânica disjuntiva do Homem, exilado da sua causa fundante, afogado na
contingência interna, asfixiado num coração que mente o tempo todo, um animal
do medo. A dignidade nunca pode ser fundada por um ser que em si é sem
fundamento, como uma sombra que tenta agarrar a si mesma. O pensamento da
dignidade não instaura dignidade. O Homem não funda valor: esta sim é uma
experiência humana, fruto de uma pesquisa elucidativa razoável. Talvez, nós,
pós-modernos, possamos experimentar melhor do que os renascentistas essa
consciência negativa da oração risível. Não me parece estranho o fato que
tardiamente a oração esteja cada vez mais próxima (e necessitada) de uma
retórica publicitária.