Bayle e o ceticismo antigo
Apresentação geral do ceticismo antigo
Suspensão do juízo, método das antinomias e racionalidade
Bayle, no seu Dicionário histórico e crítico,1 atribui dois princípios ao
pirronismo: "que a natureza absoluta e interior dos objetos nos é escondida e
que somente podemos estar seguros de como eles [os objetos] nos parecem a
certos respeitos" ("Pirro" txt, p. 734). O primeiro diz respeito à parte
crítica do pirronismo, em que se denunciam as pretensões dogmáticas, enquanto o
segundo apresenta sua parte positiva. Para compreender adequadamente o
ceticismo, é preciso entender sua atitude diante da pretensão filosófica de ter
um conhecimento absoluto da natureza das coisas, bem como sua doutrina sobre o
que é possível dizer sobre as coisas.
Uma característica essencial do ceticismo, para Bayle, é a suspensão do juízo
com relação à natureza absoluta das coisas, mas não com relação a como essas
nos aparecem nas suas diversas relações e circunstâncias. "Ainda que ele
[Pirro] não tenha sido o inventor desse método de filosofar, este não deixa de
levar seu nome: a arte de disputar sobre todas as coisas, sem jamais tomar
outro partido senão o da suspensão do juízo, se chama pirronismo" ("Pirro" txt,
p. 732) Desse ponto de vista, não há diferença entre céticos acadêmicos e
pirrônicos. Bayle diz que Arcesilau "se fixou na inconstância pirrônica, só lhe
faltava o nome de pirrônico" ("Arcesilau" B, p. 284b) e "que Carnéades voltava
sempre à epoché" ("Carnéades" B, p. 58b).
O método empregado para alcançar a suspensão do juízo com relação à natureza
absoluta das coisas também era comum a pirrônicos e acadêmicos. Nos dois casos,
argumenta-se dos dois lados de uma questão, exibem-se os argumentos a favor e
contra os dois lados, para, estabelecendo a igualdade de força entre ambos,
suspender o juízo. "Ele [Pirro] encontrava por todas as partes razões para
afirmar e razões para negar e é por isso que ele retinha seu assentimento
depois de ter bem examinado o a favor e o contra" ("Pirro" txt, p. 732).
Segundo Bayle, o método de Arcesilau consistia em "disputar contra tudo o que
lhe era proposto" ("Arcesilau" E, p. 285a). Também a esse respeito Carnéades
teria se mostrado um fiel discípulo de Arcesilau. Seus famosos discursos em
Roma, um sobre a existência da justiça, outro sobre a existência da injustiça,
revelam a prática da argumentação in utramque partem. "Era o comum dos
acadêmicos: sua especulação estava suspensa entre dois contrários" ("Carnéades"
G, p. 61b).
Segundo Bayle, esse método das antinomias ou procedimento cético é fruto do
exercício pleno da racionalidade, que somente a parcialidade dogmática
impediria. Crisipo, o grande filósofo estóico, teria explicitado "o espírito
geral dos dogmáticos", a saber, "ele queria que aqueles que ensinam uma verdade
falassem sobriamente apenas das razões do partido contrário (...) ele queria
que eles passassem rapidamente pelas razões favoráveis ao outro partido e
capazes de abalar a persuasão do ouvinte ou do leitor" ("Crisipo" G, p. 169a).
Esse procedimento dogmático distorce a situação e transforma, à maneira da arte
ilusionista do sofista, a causa pior em melhor. "Cada um conta a coisa de tal
modo a seu favor que, a acreditar nele, ele não comete o menor erro; é que ele
suprime tudo o que lhe é contrário e tudo o que é favorável a seu inimigo"
("Crisipo" G, p. 169b). Desse ponto de vista, os dogmáticos assemelham-se a
advogados, que defendem uma causa e não buscam a verdade de maneira eqüitativa.
"Aqueles, ao provar suas opiniões, escondiam tanto quanto podiam o ponto fraco
de sua causa e o ponto forte de seus adversários" ("Crisipo" G, p. 169b).
No procedimento dos céticos, o respeito à argumentação dos lados opostos exigia
sua exposição com fidelidade. Como veremos mais adiante, esse procedimento dos
céticos é guiado pelo amor à verdade, e não pela defesa de uma causa. "Estes, a
saber, os céticos ou os acadêmicos, representavam fielmente e sem nenhuma
parcialidade o forte e o fraco dos dois partidos opostos" ("Crisipo" G, p.
169b). Assim, os acadêmicos "propunham com a mesma força os argumentos dos dois
partidos" ("Crisipo" G, p. 169a). Procedendo dessa maneira, os céticos se
assemelhavam "aos relatores de um processo" ("Crisipo" G, p. 169b), isto é,
aqueles que, sem defender nenhuma causa, somente apresentavam o que os
advogados dos dois partidos alegavam.
Poder-se-ia interpretar essa argumentação in utramque partem como uma espécie
de aniquilação da razão, uma vez que, por meio de uma argumentação racional,
não se concluiria nada. O cético seria, assim, um inimigo da razão. La
Placette, por exemplo, sustenta que o pirronismo "é a extinção total não
somente da fé, mas também da razão" ("Pirro" C, p. 724a). Ao examinar
criticamente as opiniões e os supostos conhecimentos, o que a razão deixaria em
pé? Seu poder corrosivo talvez seja mais difícil de controlar do que pareceria
à primeira vista.2 Surge, assim, a idéia de que a razão humana não constrói
nada, apenas destrói. "A razão humana é muito frágil para isso. É um princípio
de destruição, não de edificação" ("Maniqueístas" D), que pareceria envolver
até mesmo a negação dos princípios lógicos. Na observação B do artigo "Pirro",
Bayle mostraria como a teologia cristã reforça o ceticismo, questionando a
existência de um critério de verdade e destruindo princípios básicos do
silogismo, como o de que duas coisas iguais a uma terceira são iguais entre si
("Pirro" B, p. 732b). Além disso, Bayle atribui explicitamente a Carnéades
("Carnéades" C, p. 59ab) a negação do princípio que fundamenta o silogismo.
Longe de ver, no ceticismo, uma atitude francamente contrária à razão, Bayle
vê, no método das antinomias, o pleno exercício da razão, já que nenhuma
doutrina será excluída do seu exame. Percebe-se que essa argumentação cética
dos dois lados é extraída do próprio dogmatismo, mas ampliada e estendida.
Quando o cético relata o forte e o fraco dos dois partidos, ele freqüentemente
apenas retoma aquilo que os próprios dogmáticos, atuando como advogados,
alegaram em favor de suas causas e contra os demais, sem isentar qualquer
teoria.
O artigo "Zenão" mostra claramente uma forma de procedimento dogmático e como o
cético corrige a parcialidade dogmática. Existiriam somente três teorias para
explicar a realidade da extensão: ou a extensão é infinitamente divisível
(teoria 1) ou a divisão termina num ponto; esse ponto pode não ter nenhuma
dimensão e ser matemático (teoria 2) ou pode ter alguma dimensão e ser físico
(teoria 3). Os dogmáticos raciocinam empregando um silogismo disjuntivo: ou T1
ou T2 ou T3; ora, nem T1, nem T2; portanto, T3. Assim, atacando-se as demais
teorias, é-se levado a aceitar uma delas.
Mas é possível usar os argumentos de uma teoria contra as demais, sem exceção,
de forma que nenhuma teoria ficaria excluída dos ataques das demais. A teoria
que se aceita, entretanto, é excluída de um exame crítico e os ataques
adversários são ignorados ou desconsiderados por algum motivo. O cético poderia
empregar um silogismo hipotético: se A (a extensão é real), então B (ou T1 ou
T2 ou T3); ora, não-B (nem T1, nem T2, nem T3); portanto não-A (a extensão não
é real). É da generalização desse procedimento dogmático, incluindo a própria
doutrina nesse exame crítico a que os filósofos dogmáticos submetem as demais
filosofias, que o ceticismo emerge como a postura mais racional. Somente
motivos não racionais conduziriam os dogmáticos a rechaçar os ataques dos
demais dogmáticos.
Mas, em segundo lugar, o ceticismo nega os princípios racionais? Ora, uma
leitura atenta da observação B do artigo "Pirro" revela que quem deveria negar
os princípios lógicos (e morais) é o cristão, não o cético, pois os
pressupostos da argumentação que destrói a evidência e o critério de verdade
são dogmas cristãos. Não á a suspensão do juízo que implica o fim da
argumentação racional, mas a aceitação, pela fé, de certos dogmas
incompreensíveis para a razão. Para evitar as conseqüências desastrosas, o
cristão é obrigado a recorrer à distinção entre a razão humana e a divina.
"Você me dirá que os deveres do criador não devem ser medidos com a vara de
nossos deveres" ("Pirro" B, p. 733a). Essa é a concessão que o cético esperava
do cristão, pois é nesse preciso momento que o cético triunfa, já que o cristão
introduz uma distinção filosófica crucial e admite que não conhecemos o
absoluto. "Mas se você faz isso, você cai na rede dos seus adversários. É aí
onde eles o querem, seu grande objetivo é provar que a natureza absoluta das
coisas nos é desconhecida e que somente conhecemos certas relações" ("Pirro" B,
p. 733a). Ora, os céticos não têm interesse em negar os princípios lógicos,
como o de não-contradição, nem questionar as formas válidas de silogismo,3 mas
somente em mostrar que a natureza absoluta das coisas escapa à nossa
compreensão e somente podemos relatar como as coisas aparecem relativamente.
Esses são, afinal, os princípios do pirronismo.4
Finalmente, Bayle entende que o cético poderá usar sua razão em sua vida
cotidiana. Todos nós, em nossa vida cotidiana, estamos sujeitos às
circunstâncias e reagimos a estas de modos muito diversos. Nossa razão nos
auxilia a lidar com as inconstâncias da vida, pois raciocinamos cada vez de uma
maneira, em função de nossa própria conveniência, conforme as mudanças da vida
nos obrigam a fazê-lo. Os céticos não são exceção. "Seria preciso não usurpar
seus direitos e deixar-lhes o privilégio de raciocinar dia-a-dia" ("Pirro" F,
p. 735a). Assim, o cético, como qualquer homem, poderá raciocinar e mudar de
opinião de acordo com o que lhe parecer correto ou razoável naquele momento ou
circunstância. Pirro citava com freqüência uma bela metáfora de Homero, segundo
a qual os homens são inconstantes como as folhas ao vento, mudando sua opinião
e sendo levados ao sabor dos ventos ou de nossas paixões. "Isso encaixa-se
maravilhosamente na hipótese pirrônica: eles investigam sempre, não se fixavam
em nada e, a todo momento, sentiam-se prontos para raciocinar de uma nova
maneira, segundo a variação das ocorrências" ("Pirro" F, p. 735a).5
A origem do ceticismo
Para Bayle, percorrendo os mais diversos caminhos, a reflexão filosófica parece
desembocar com freqüência no ceticismo.6 Mas é possível identificar, na
interpretação de Bayle, ao menos dois compromissos filosóficos que estariam na
origem do ceticismo. De um lado, o ceticismo parece resultar de maneira quase
inevitável de uma distinção crucial que a filosofia traçou, desde o seu começo,
entre o "ser" e o "aparecer", que nos condenaria a estarmos para sempre
confinados ao reino do aparecer em oposição ao inalcançável reino do ser.7 De
outro, a clássica distinção epistemológica entre "conhecimento" e "crença", com
a correspondente idéia de que o filósofo ou sábio não crê ou opina, mas somente
sabe ou conhece, parece implicar inexoravelmente que o filósofo ou sábio está
condenado a suspender o juízo.
O dogmatismo eleata traçou, pela primeira vez, a distinção entre o ser e o
aparecer, posteriormente incorporada e elaborada por Platão, e por este legada
de modo definitivo, embora recebida com diferentes comentários e
interpretações, para toda a filosofia subseqüente. Parmênides e seus
discípulos, Melisso, Xenóphanes e Zenão, teriam forjado, assim, a forma em que
toda a filosofia se desenvolveria e, sem o saber, aberto as portas para o
ceticismo. Xenóphanes, em particular, ao sustentar a unidade de todas as
coisas, encaminhou-se decididamente em direção à acatalepsia e à
incompreensibilidade8 de todas as coisas, ainda que não tenha tirado
explicitamente essa conclusão. Bayle afirma, a respeito da unidade de todas as
coisas, que é esse "dogma que me parece ser o grande caminho da
incompreensibilidade" ("Xenóphanes" L, p. 524a). Dessa forma, as duas vertentes
do ceticismo antigo, "a seita dos acatalépticos [céticos acadêmicos] e a dos
pirrônicos tiveram o seu berço no princípio da unidade imutável de todas as
coisas sustentado por Xenóphanes" ("Xenóphanes" L, p. 523b)9.
De que modo esse dogma implica o ceticismo, ainda que seus defensores não
tenham extraído dele suas conclusões necessárias? Uma vez aceito que o Ser é
uno, imutável e infinito ' e Xenóphanes parece ter usado os mesmos argumentos
de Parmênides e Melisso para chegar a essa conclusão ', levanta-se uma objeção
óbvia: a experiência e os sentidos nos mostram que o universo não é um único
ser, nem que não há mudança. A essa objeção, Xenóphanes respondeu que os
sentidos nos enganam e não nos conduzem à verdade. Mas essa resposta não
resolve a questão, já que, contra Xenóphanes, poder-se-ia dizer que, se as
aparências dos sentidos mudam, então nossa alma muda e não é a mesma, ao menos
a parte passiva da alma por meio da qual esta recebe as falsas aparências dos
sentidos. Se há falsas aparências dos sentidos, então mesmo a alma muda, já que
ao menos uma parte da alma é mutável, e Xenóphanes estaria errado ao sustentar
que nada muda.
Segundo Bayle, a essa segunda objeção, Xenóphanes não poderia senão dizer que
"nossa Razão é tão enganosa quanto nossos sentidos, tudo lhe é incompreensível"
("Xenóphanes" L, p. 523b). Se a razão se apóia em princípios evidentes e não
extrai conclusões verdadeiras, então "a verdade é uma coisa incompreensível e
impenetrável" ("Xenóphanes" L, p. 523b). Ora, a razão, apoiando-se na noção
evidente de que do nada nada se cria, conclui a imobilidade e a imutabilidade
de todas as coisas. Logo, deveria ser verdade que todas as coisas são imutáveis
e imóveis. Mas essa conclusão é falsa, pois a experiência dos sentidos e das
paixões mostra que a alma é mutável. Logo, a razão não é capaz de destrinchar a
verdade e a acatalepsia se impõe. "Xenóphanes tinha princípios que o levavam
necessariamente, como acabo de provar, a sustentar a incompreensibilidade"
("Xenóphanes" L, p. 523b).
A segunda distinção traçada pelos filósofos, que está na base do ceticismo, é
entre "crença" e "conhecimento". Vimos, mais acima, que a motivação para o
comportamento de Arcesilau, que consistia em argumentar dos dois lados de uma
questão, era o ideal do sábio, que não deveria jamais assentir, exceto quando
tivesse conhecimento do assunto, e não mera opinião. Esta, com efeito, não era
digna do assentimento do sábio ("Arcesilau" E, p. 286a). Essa idéia estóica e
acadêmica é retomada na filosofia moderna, na forma de um preceito cartesiano.
Para fazer um bom uso de nossa razão, não devemos aderir a um partido, enquanto
a evidência das provas não estabelecer de maneira definitiva a verdade de um
dos lados da questão. Quando a questão permanece aberta, "esse bom uso consiste
em suspender o juízo, até que a evidência das provas se apresente" ("Nicolle"
C, p. 503b). Aqueles que assentem apressadamente, sem argumentos incontestáveis
e sem ter examinado cuidadosamente todas as alegações de ambas as partes, são
pejorativamente chamados de opinadores. Assim, não basta ao sábio, ou filósofo,
dar o assentimento a uma verdade, mas é preciso que ele disponha também de uma
razão conclusiva para fazer de sua opinião um conhecimento digno desse nome.
Bayle cita uma passagem de Nicole, em que este expõe, com todas as letras, a
postura epistemológica do dogmatismo: "Não somente os filósofos, mas todo o
mundo em geral, deve convir com essa máxima: 'não basta dizer a verdade, para
não ser temerário: é preciso ainda saber que se diz a verdade'" ("Nicolle" C,
p. 503b). Na ausência de uma prova convincente de que estamos de posse da
verdade, deve-se suspender o juízo.
Ora, o ceticismo mostra precisamente que não temos demonstração de nada, que
jamais atingimos uma certeza completa em nossos raciocínios, que sempre é
possível descobrir pontos fracos nos sistemas filosóficos. Não há, assim,
conhecimento, mas tão-somente opinião. Entretanto, os próprios filósofos se
proíbem de opinar ou meramente crer. Seguindo o preceito cartesiano, que nada
mais é do que a pretensão dos filósofos dogmáticos em geral, deve-se reter o
juízo e não assentir a nenhuma proposição filosófica, para não correr o risco
de afirmar alguma coisa meramente provável e possivelmente errada.10
O ceticismo é, assim, uma conseqüência das próprias pressuposições e
procedimentos filosóficos. O ceticismo não inventa nada (o domínio do Ser, em
oposição ao domínio do Aparecer é uma invenção dogmática), nem faz exigências
desmesuradas, já que são os dogmáticos que exigem um conhecimento absolutamente
certo e rejeitam a crença e opinião. Nesse sentido, os acadêmicos preservam o
ideal do sábio e a integridade intelectual, sem jamais opinar, enquanto os
estóicos (e demais dogmáticos), ainda que tenham promovido as exigências de uma
estrita racionalidade e de um conhecimento absolutamente certo, não cumprem
suas próprias exigências. O ceticismo é o reconhecimento de que estamos
confinados, no linguajar dogmático, às aparências e às opiniões prováveis sobre
as coisas, sem atingirmos a natureza absoluta das coisas ou uma verdade
absolutamente certa.
Aparência e representação
O que são, entretanto, a "aparência" pirrônica e a "probabilidade" acadêmica?
Uma interpretação seria vincular o ceticismo antigo ao moderno, já que a
aparência, ou a existência ideal da extensão e movimento, seria entendida à luz
da nova filosofia, isto é, à maneira cartesiana, como uma modificação da alma
ou uma representação mental. A solução dos paradoxos de Zenão e daqueles que
Bayle avança em nome de Zenão é clara: movimento e extensão não podem ser
propriedades objetivas das coisas, mas somente podem existir na mente ("Zenão"
G). Do mesmo modo, a nova filosofia mostra que as qualidades secundárias
existem apenas na mente; por razões similares, devemos dizer, então, que também
as qualidades primárias existem apenas na mente ("Pirro" B, p. 732ab). Assim,
Bayle estaria claramente se encaminhando para uma filosofia idealista, em que o
mundo material seria incognoscível para nós. Tudo o que poderíamos conhecer são
as aparências, entendidas como modificações de nossa mente.11 Há razões,
entretanto, para desconfiar dessa interpretação.
Uma conseqüência da interpretação bayleana da origem do ceticismo é a
continuidade entre o ceticismo antigo e o ceticismo moderno. Embora longe de
ver uma identidade entre ambos, Bayle percebe que a seita dos céticos pode
florescer novamente após as grandes mudanças introduzidas pela nova filosofia.
Por isso, faz a suposição de que "se Arcesilau voltasse a este mundo..."
("Pirro" B, p. 732a) ou "se Zenão conhecesse o que aceitam os novos matemáticos
(Newton e Huygens) (...) o ceticismo antigo seria ainda mais formidável"
("Zenão" G). Os aportes da nova filosofia somente reforçam as objeções antigas
contra o conhecimento da natureza absoluta das coisas ou o conhecimento das
coisas em si mesmas, aprofundando o ceticismo, mais do que o gerando.
Não se deve, portanto, interpretar a existência ideal do movimento e da
extensão como se fosse uma idéia na mente, segundo o dualismo cartesiano. Ao
contrário, a distinção cartesiana entre representação mental e mundo exterior é
somente mais uma das diversas maneiras filosóficas de entender a oposição
básica da filosofia entre aparecer e ser. Bayle, embora reconheça a grande
novidade e os méritos da nova filosofia, não parece atribuir-lhe uma guinada
decisiva na filosofia, mas apenas inscrevê-la como outra hipótese para
explicação do mundo, em pé de igualdade com muitas outras. Assim, ele se
permite discutir o problema da existência do mundo exterior no interior de
discussões minuciosas sobre doutrinas antigas, como as de Zenão e Pirro. O
problema do mundo exterior seria somente mais um capítulo, com novas feições,
no vetusto problema do mundo. É possível duvidar da existência do mundo como um
todo, sem precisar, necessariamente, entendê-lo como um "mundo exterior".
A observação K do artigo "Zenão" esclarece de maneira decisiva sobre o caráter
não cartesiano da expressão "tem existência apenas na mente", pois Bayle
atribui aos filósofos eleatas essa doutrina. "Assim, era seriamente e por
doutrina de sistema, e não por jogo de espírito, que eles [Parmênides, Melisso,
Xenóphanes e Zenão] negavam o movimento e sustentavam que sua existência era
somente mental" ("Zenão" G). Como atribuir aos eleatas uma concepção cartesiana
do mental? O "idealismo" eleata, se é que se pode falar assim, teria
características muito diferentes do idealismo moderno. Bayle, não raro,
identifica ou vê continuidades entre as filosofias antigas e modernas, nesse
caso a filosofia moderna aprofundaria o ceticismo antigo.
A continuação da observação confirma essa interpretação. Citando a passagem de
Sexto Empírico sobre o sofista Diodoro, que, por ter deslocado o ombro, foi se
consultar com o médico Heróphilo, Bayle traça a distinção entre o movimento
aparente e o movimento real. Ora, esse movimento aparente não é um movimento
mental, no sentido de um movimento subjetivo, pois é um movimento do ombro. O
movimento aparente é o deslocamento de uma parte do corpo, e não uma
modificação meramente mental.
Uma última observação de Bayle encerra a discussão. No final da observação G
desse artigo, diz que, mesmo sendo incapaz de resolver as dificuldades
levantadas por Zenão, "não deixa de seguir a opinião comum". Essa era a posição
dos céticos antigos. Suspendendo o juízo sobre questões filosóficas sobre a
natureza absoluta das coisas, pirrônicos e acadêmicos seguiam a opinião comum
dos homens. Ora, a opinião comum é a de que os corpos se movimentam. Assim, nem
Bayle, nem os céticos antigos aceitam a tese filosófica, muito específica e
controversa, de que o movimento é mental e subjetivo.
A aparência não se reduz, pois, a modificações na mente. O que é ela, então?
Não devemos pensar a aparência como um tipo de coisa, como se o que a definisse
fosse seu estatuto ontológico. Conseqüentemente, tampouco devemos pensá-la como
ilusão, em oposição à Realidade do Ser, como fazem os dogmáticos. O que
caracteriza a aparência é o seu caráter epistemológico: as coisas aparecem
relativas a nós e às suas circunstâncias. Por essa razão, Bayle lembra que, no
pirronismo, o modo da relação é aquele que é o mais geral e do qual os demais
são espécies ("Pirro" B, p. 733a, nota 19).
Uma última observação sobre a noção de aparecer. Esse aparecer não se limita às
aparências sensíveis, aos objetos que se manifestam para os sentidos, mas
também se pode falar de um aparecer inteligível, isto é, de concepções e idéias
que aparecem e se manifestam para a razão. Essa interpretação é confirmada pelo
que Bayle diz a propósito de sua interpretação de Xenóphanes, já que este
filósofo é obrigado a reconhecer que não somente os sentidos nos enganam, mas
também a razão, de forma que também se pode falar das aparências inteligíveis
("Xenóphanes" L). O aparecer não se restringe ao sensível, porque não é somente
nessa esfera que as coisas aparecem para nós. Ver-se-á, mais adiante, que leis,
costumes e, mesmo, hipóteses científicas também aparecem para nós.
Acatalepsia e busca permanente da verdade
É tradicional a disputa para saber se o ceticismo acadêmico e o pirronismo
consistem em duas formas de ceticismo ou se, no fundo, são uma só. Há, no
entender de Bayle, somente uma pequena diferença entre ambos. De um lado, vimos
que Bayle diz que Arcesilau era um pirrônico, faltando-lhe somente essa
denominação ("Arcesilau" B, p. 284b), e que foi instruído no pirronismo por
Sócrates e Platão ("Arcesilau" E, p. 285a), o que sugere que os laços entre
essas duas vertentes são muito estreitos. Além disso, deve-se notar que, nos
artigos consagrados ao ceticismo antigo, Bayle passa dos acadêmicos para os
pirrônicos, e vice-versa, sem nenhuma cerimônia. Assim, por exemplo, ao
discutir a moral de Arcesilau, Bayle nota que os pirrônicos tinham uma teoria
favorável à virtude ("Arcesilau" K, p. 288a), ao afirmar que a vida civil nada
tem a temer dos pirrônicos, mistura a regra de conduta dos pirrônicos (seguir
os costumes do país) e a probabilidade de Carnéades ("Pirro" B, p. 732a); e, no
famoso discurso em defesa do pirronismo, o abade supõe que, se Arcesilau
revivesse, estaria em condições ainda mais favoráveis ("Pirro" B, p. 732a).
De outro lado, Bayle examina as possíveis diferenças entre as duas vertentes e
diz que "prefere deixar entre eles alguma diferença" ("Pirro" A, p. 731a). Mas
aquela apontada por Sexto Empírico não lhe parece satisfatória ("Pirro" A, p.
731b). Sexto disse que, para Arcesilau, a suspensão do juízo é naturalmente boa
e a afirmação, naturalmente má, enquanto os pirrônicos não se teriam
pronunciado dogmaticamente sobre o valor da suspensão e da afirmação. Mas é
fácil mostrar que ambos têm uma posição similar, pois se, de um lado, o
pirrônico também sustenta que a suspensão é aparentemente boa, e aparece-lhe
que a afirmação é má, de outro, o acadêmico não fazia afirmações dogmáticas
sobre a suspensão e a afirmação. Tudo isso testemunha que Bayle entendia que a
nova academia era uma forma de ceticismo, e não de dogmatismo, como supunha
Sexto Empírico.
Percebe-se uma real distinção entre as duas formas de ceticismo quando
concentramos nossa atenção na acatalepsia. Pode parecer que Pirro teria
sustentado, como Arcesilau, a acatalepsia, pois "seus sentimentos quase não
diferiam das opiniões de Arcesilau, pois lhe faltava bem pouco para que, como
este, ensinasse a incompreensibilidade de todas as coisas" ("Pirro" txt, p.
731). Mas, segundo Bayle, "o espírito pirrônico não supõe formalmente a
incompreensibilidade" ("Pirro" A, p. 731a). Diferentemente do ceticismo
acadêmico, que, por julgar que tudo é incompreensível, não mais investiga a
verdade, o pirrônico entende que é possível encontrar a verdade e, por isso,
continua a investigá-la. Por isso, os pirrônicos definem-se como examinadores e
investigadores, diferenciando-se dos acadêmicos. Para Bayle, essa é a única
diferença entre acadêmicos e pirrônicos. "Em tudo o mais, eles se assemelham
perfeitamente" ("Pirro" A, p. 731b).
A marca característica do pirronismo, que o diferencia do ceticismo acadêmico,
é a investigação permanente da verdade, uma vez que a suspensão do juízo não
implicava a interrupção da busca da verdade. Pirro "reduzia todas as suas
paradas a um non liquet, seja mais amplamente investigado" ("Pirro" txt, p.
732, grifos no original). Os próprios nomes "cético" e "zetético", que os
pirrônicos se atribuíam a si mesmos, significam que são examinadores e
investigadores ("Pirro" A, p. 731a). Justamente porque a suspensão do juízo
resumia-se a uma exortação a mais investigações, e não o término da
investigação, Pirro, de maneira coerente, "buscou, portanto, por toda a sua
vida, a verdade" ("Pirro" txt, p. 732). No entanto, essa busca pirrônica da
verdade como uma investigação constante, segundo Bayle, adquiriu uma
característica peculiar. Pirro cuidava de que a verdade nunca seria encontrada
e de que a investigação permanente nunca se encerrasse. Assim, a busca da
verdade, entendida como uma investigação permanente, acabava por ser uma
investigação que, paradoxalmente, evita descobrir a verdade. "Mas ele [Pirro]
sempre preparava para si recursos para não concordar que a tinha encontrado"
("Pirro" txt, p. 732). A argumentação de ambos os lados acabou por se tornar
uma "arte de disputar sobre todas as coisas, sem jamais tomar partido outro
senão o da suspensão do juízo" ("Pirro" txt, p. 732).
Os acadêmicos, por sua vez, parecem ter preservado melhor o ideal de sábio e a
integridade intelectual na busca da verdade. Arcesilau argumentava de um lado e
de outro porque buscava a verdade. "Note que um dos interlocutores de Cícero
sustentou que Arcesilau aderiu ao partido da epoché, não para contradizer
Zenão, mas pelo desejo de encontrar a verdade" ("Arcesilau" E, p. 286a).
Desempenha um papel fundamental, nessa adesão à suspensão e à argumentação dos
dois lados de uma questão, o ideal do sábio, já que este não deverá opinar, mas
somente afirmar, apoiado em razões concludentes, aquilo que sabe ser verdade.
"Ele [esse interlocutor] pretende que Arcesilau foi o primeiro que descobriu e
aprovou essa proposição: 'é possível que um homem não afirme, nem negue nada
sobre os assuntos incertos, e esse é o dever do homem sábio'" ("Arcesilau" E,
p. 286a). Assim, em relação aos pirrônicos, a atitude dos céticos acadêmicos ou
acatalépticos parece ter preservado melhor o espírito de busca da verdade.12
Os acadêmicos, entretanto, não teriam comprometido seu ceticismo com a
acatalepsia e a conseqüente interrupção da busca da verdade? Ora, a acatalepsia
parece efetivamente um "dogma" ("Xenóphanes" L, p. 524a), pois consiste numa
afirmação sobre a natureza das coisas, ao dizer que essa natureza é
incompreensível. Bayle atribui a Arcesilau o dogma da incompreensibilidade de
todas as coisas sem rodeios e nessa forma claramente afirmativa: "tudo é
incerto". Bayle entende que o "dogma" da acatalepsia não transforma a filosofia
acadêmica numa forma de dogmatismo, mas que esta permanece estritamente cética
quando sustenta que "tudo é incompreensível". Por que o dogma da
incompreensibilidade de todas as coisas não trai a suspensão do juízo?
Em primeiro lugar, note-se que Arcesilau fazia essa fórmula aplicar-se a si
mesma, de forma que sequer é certo que tudo é incerto. "Ele [Arcesilau] não
quis mesmo confessar, como Sócrates, que ele sabia que não sabia nada"
("Arcesilau" E, p. 286a). Ainda assim, Arcesilau teria formulado a acatalepsia
de maneira excessiva, indo além dos seus predecessores. "Ele [Arcesilau] foi
quem ensinou a acatalepsia, ou incompreensibilidade, mais formalmente do que
jamais se tinha feito (...) é certo que Arcesilau somente estendeu e
desenvolveu o que tinha sido dito pelos maiores mestres" ("Arcesilau" E, p.
286a-b). O próprio Carnéades também fazia a expressão voltar-se contra si
mesma.
Você vê que ele [Carnéades] ensinava que aqueles que dizem que não se
pode compreender nada e que não há nada certo devem dizer por uma
conseqüência necessária que essa mesma proposição "nada é certo, não
podemos compreender nada" é incerta, incompreensível. Ora, ele era um
dos que diziam que não se pode compreender nada; logo, ele ia tão
longe quanto Arcesilau ("Carnéades" B, p. 58a).
Embora a formulação dada por Arcesilau à acatalepsia tenha ares dogmáticos, o
conteúdo da expressão "tudo é incompreensível" não é dogmático, como deixa
claro a aplicação da fórmula a si mesma. Mas isso não foi suficiente para
retirar-lhe a aparência de dogmatismo. Como Arcesilau não foi capaz de dar-lhe
uma formulação satisfatória, "Carnéades, que teria podido sustentá-la melhor
que ele, viu-se obrigado a conferir-lhe alguma modificação" ("Arcesilau" E, p.
286a). Assim, Carnéades foi obrigado a buscar uma formulação menos afirmativa
para a acatalepsia, uma vez que Arcesilau tinha se excedido, tendo negado a
existência de verdades. Carnéades teria introduzido uma inovação ao defender, a
respeito das verdades, não a sua inexistência, mas nossa incapacidade em
descobri-la. "Ele [Carnéades] não negava, como Arcesilau, que não existiriam
verdades, mas sustentava que não podemos discerni-la com certeza" ("Carnéades"
B, p. 58b). Essa inovação, longe de constituir um abandono da acatalepsia,
representou uma melhoria no interior mesmo dessa seita, pois, preservando-a,
deu-lhe contornos mais precisos. "Tudo bem considerado, é a mesma coisa dizer
'não há verdades' e dizer 'existem, mas não temos regras para discerni-las da
falsidade'" ("Carnéades" B, p. 59a).
Não é óbvio que essas duas proposições sejam equivalentes, e a idéia de Bayle é
que a segunda explicite adequadamente o conteúdo da primeira, quando esta é
corretamente entendida, uma vez que sua formulação esconde o sentido que
Arcesilau lhe atribuía de fato.
Se Arcesilau sustentou a primeira dessas duas proposições, dever-se-
ia compará-lo aos cavalos fogosos que seguem sua impetuosidade até o
fundo dos precipícios. Mas tenho dificuldade em crer que ele tenha
negado absolutamente a existência de verdades. Ele se contentava,
parece-me, com sustentar que essas eram impenetráveis ao espírito dos
homens. O calor da disputa impediu-lhe de se expressar tão
prudentemente quanto se fez depois na Academia de Carnéades
("Carnéades" B, p. 59a).
Assim, Carnéades teria sido fiel a Arcesilau, pois, preservando a acatalepsia,
interpretou-a de maneira mais rigorosa, extraindo-lhe seu significado preciso,
que teria escapado a seu mestre, visto que este, num arroubo momentâneo, deu-
lhe uma formulação imprudente.13
Aspectos do ceticismo
Tendo dito que é fácil pôr acadêmicos e pirrônicos de acordo em quase tudo,
exceto na questão da acatalepsia e da investigação permanente, Bayle combinará
as doutrinas acadêmicas e pirrônicas nos demais assuntos, sem se preocupar
excessivamente com a fidelidade histórica. No artigo "Pirro" (B), Bayle afirma
que "é com relação a essa divina ciência [a teologia] que o pirronismo é
perigoso, pois não se vê que ele guerreia, nem com relação à física, nem com
relação ao Estado". Tratemos, pois, desses três assuntos.
Ciência
Normalmente, o ceticismo é visto como um inimigo do conhecimento científico,
porque combate o dogmatismo e, ao traçar os estreitos limites do entendimento
humano, mostra que não podemos descobrir as verdades naturais. Mas isso, diz
Bayle, "importa pouco" ("Pirro" B, p. 732a), sustentando que a ciência moderna
é, em grande parte, cética.
Estou bastante seguro de que há muito poucos bons físicos em nosso
século que não estão convencidos que a natureza é um abismo
impenetrável e que suas molas são conhecidas somente por quem as fez
e as dirige. Assim, todos esses filósofos são, a esse respeito,
acadêmicos e pirrônicos ("Pirro" B, p. 732a).
Bayle fornecerá uma interpretação cética da ciência moderna e está de acordo
com o que pensam os próprios cientistas sobre a natureza de suas investigações.
A ciência moderna, no entender de Bayle, não busca verdades e, por isso, a
argumentação cética contra a descoberta de verdades não atingiria o
conhecimento científico. Os céticos, por outro lado, admitem que se pode
recorrer a probabilidades e à experiência para nos orientarmos em nossas vidas.
Ora, é precisamente isso que faz a ciência moderna: recorrendo à experiência,
formula hipóteses explicativas com maior ou menor grau de probabilidade.14
"Deve bastar-nos que nos esforcemos em buscar hipóteses prováveis e recolher
experiências" ("Pirro" B, p. 732a). Assim, o tipo de conhecimento admitido
pelos céticos é precisamente aquele que os bons físicos praticam, o ceticismo
configurando-se, portanto, numa boa chave para a interpretação da ciência
moderna.15
Carnéades foi quem introduziu, no ceticismo acadêmico, a teoria da
probabilidade. "Pretende-se também que Arcesilau teria negado que existam
coisas prováveis. Carnéades não o negou e quis mesmo que a verossimilhança nos
determina a agir, desde que não se pronuncie sobre nada de maneira absoluta"
("Carnéades" B, p. 58b). Com base na probabilidade, um sábio poderia opinar.
"Ele tinha ainda mais indulgência e permitia ao sábio opinar em algumas
circunstâncias" ("Carnéades" B, p. 58b). O fato de que o cético suspende o
juízo sobre a natureza absoluta das coisas não o impede de lançar hipóteses
prováveis, apoiadas em raciocínios, sobre como as coisas nos parecem. A razão
desempenha um papel fundamental na ciência, formulando hipóteses e propondo as
mais prováveis.
Encontramos em Bayle uma referência à idéia de que os pirrônicos seguem as
aparências e vivem de acordo com elas. O artigo "Zenão" insiste na idéia de que
não conhecemos as propriedades reais das coisas e que, se supusermos que a
matéria tem realmente as propriedades da extensão, do movimento, da
impenetrabilidade e da continuidade, então caímos nos paradoxos de Zenão. Para
evitá-los, devemos supor que essas são propriedades aparentes das coisas. Nesse
caso, podemos conhecê-las e ter uma física tal como nos propõem os "novos
matemáticos", isto é, Newton e Huygens, ainda que essas hipóteses enfrentem
dificuldades metafísicas e, mesmo, físicas. A ciência estuda, não a natureza
absoluta das coisas, mas como essas nos aparecem.
Há, ainda, uma característica do ceticismo que Bayle julga ser-lhe
indispensável: a honestidade intelectual e a busca da verdade. Bayle extrai,
dessa característica, uma tarefa essencialmente descritiva das filosofias como
sistemas articulados, baseada numa obrigação de tolerância e paciência na
interpretação dos pensamentos alheios. Em primeiro lugar, o cético é uma pessoa
que não emite juízos, nem toma partido, mas somente relata o estado da arte,
por assim dizer. Ora, essa é a tarefa que Bayle assume diante da filosofia, a
tarefa do historiador.16 A idéia de que o cético somente relata o que os outros
pensam acerca de uma questão, sem julgar, parece conduzir naturalmente à
concepção de que o cético, diferentemente do filósofo, adota a perspectiva de
um historiador. A história, como um campo de conhecimento, está aberta às
investigações céticas. Neste campo, como atesta o "Projeto", é possível um
conhecimento provável e, mesmo, às vezes, certo.
Com efeito, Bayle emprega, inúmeras vezes, a expressão "relatar" para descrever
sua atividade no Dicionário histórico e crítico. Por exemplo, Bayle relata a
conversa entre os dois abades sobre o pirronismo ("Pirro" txt, p. 732) e, pouco
adiante, relata o que Pirro teria dito sobre a morte ("Pirro" E, p. 734b). Ao
expor a doutrina de Carnéades, que a muitos teria causado desgosto, Bayle
afirma que ele preferiu "fazer-se copista, para a utilidade daqueles que, sem
sair de seu lugar, estão bem à vontade para se esclarecer historicamente das
opiniões dos antigos e para ver os originais das provas, quero dizer, os
próprios termos dos testemunhos. Eis o meu princípio em mil outras ocasiões"
("Carnéades" B, p. 59a). Esse esclarecimento histórico deve ser fiel na medida
do possível, e nossa opinião não deve distorcer deliberadamente a exposição da
opinião dos demais. Talvez não por acaso, Sexto Empírico seja fonte importante
para as filosofias antigas, já que, como um cético, relatava-as fielmente.
Vida pública
Acusou-se o ceticismo de comprometer a distinção entre virtude e vício. Com
relação a Arcesilau, Bayle admite que "seus dogmas invertem todos os preceitos
da moral" ("Arcesilau" txt, p. 288). Cícero, por exemplo, achava que Carnéades
destruía a existência de um direito natural ("Carnéades" H, p. 61b), e poder-
se-ia sustentar que o triunfo do pirronismo é a aniquilação dos princípios
morais ("Pirro" B). Assim, tanto o ceticismo acadêmico, como o pirrônico,
aboliriam a distinção entre virtude e vício.
Bayle pensava exatamente o contrário, reconhecendo o exemplar comportamento
moral dos céticos antigos. Em primeiro lugar, "observa-se, contudo, que ele
[Arcesilau] os observava [os preceitos morais]" ("Arcesilau" txt, p. 288).
Várias são as características que Bayle atribui a Arcesilau: bondade
("Arcesilau" txt, p. 287), ternura boa e honesta pelos discípulos, docilidade,
respeito e gênio ("Arcesilau" B, p. 284a), amante da verdade ("Arcesilau" E, p.
286a), liberalidade ("Arcesilau" I, p. 287b), modéstia e ausência de inveja
("Arcesilau" txt, p. 288). Também Lacides, seu discípulo, será elogiado como
alguém que conduzia sua vida de maneira justa ("Lacides"). Referindo-se a uma
observação de Quintiliano, Bayle diz que "Carnéades não deixava de se conduzir
de acordo com a justiça, ainda que raciocinasse a favor da injustiça. Era comum
dos acadêmicos: sua especulação estava suspensa entre dois contrários, mas sua
prática se fixava em um dos dois" ("Carnéades" G, p. 61b). Também Pirro fora um
homem virtuoso, e a tal ponto que sua cidade o isentou de pagar impostos. Com
ironia, Bayle chega mesmo a dizer que a conduta dos céticos antigos estava de
acordo com os preceitos cristãos.17
Poder-se-ia dizer que essa era somente a prática dos céticos, mas não sua
doutrina, e que, entre a teoria e a prática, abre-se um abismo insondável.18
Nas passagens anteriormente citadas, vimos que os dogmas de Arcesilau conduziam
à inversão dos preceitos morais, embora sua conduta fosse correta; que
Carnéades argumentava a favor da injustiça e mantinha-se teoricamente entre a
justiça e a injustiça, embora praticasse a justiça; e que Pirro não preferia
nada, sendo aparentemente insensível à justiça e aos deveres morais. É comum,
em Bayle, apontar esse descompasso entre o que se pensa e o que se faz. "Todo o
mundo mora aí: não vivemos segundo nossos princípios" ("Carnéades" G, p. 61b).
Bayle, entretanto, não parece ver um descompasso entre a prática e a teoria
céticas. Ao contrário, a conduta moralmente correta dos céticos está
fundamentada numa doutrina cética. A suspensão do juízo não implica a
indiferença entre o bem e o mal, mas somente em seguir as aparências e as
probabilidades. "Note que, na doutrina dos maiores pirrônicos, havia uma teoria
favorável à virtude, pois, qualquer que fosse segundo eles a essência mesma das
coisas, ensinavam que para a prática da vida era necessário se conformar às
aparências" ("Arcesilau" K, p. 288a). Pirro não negava a distinção entre
virtude e vício, mas apenas discutia sobre sua origem, pois "não se deve
duvidar que ele ensinava que a honra e a infâmia das ações, sua justiça e sua
injustiça, dependiam unicamente das leis humanas e do costume" ("Pirro" txt, p.
734). Portanto, o cético pode viver segundo seus princípios e levar uma vida
virtuosa. "Não sabemos se essa ação é honesta em si mesma ou por sua natureza,
somente cremos que a respeito de um tal, com relação a certas circunstâncias,
ela tem o exterior de honestidade" ("Pirro" B, p. 733a). Assim, a aparência é
suficiente para nos indicar que curso de ação tomar e qual a vida correta. Não
é preciso aceitar valores absolutos para adotarmos uma conduta virtuosa.
Também a doutrina da probabilidade de Carnéades é invocada para explicar sua
conduta virtuosa. Trata-se, como vimos, de uma inovação importante no interior
da academia cética, mas que não o afasta da suspensão do juízo. Se, de um lado,
a incompreensibilidade é "seu princípio favorito" ("Carnéades" G, p. 61a), de
outro "seu grande princípio" é "que somente existem probabilidades ou
verossimilhanças no espírito do homem, o que faz com que, entre duas coisas
opostas, pode-se escolher indiferentemente esta ou aquela, como assunto de um
discurso ora negativo, ora afirmativo" ("Carnéades" G, p. 61a). Discutindo essa
inovação de Carnéades, Bayle conclui que "ele retinha o fundo do dogma de
Arcesilau, mas que por política e para tirar dos seus adversários os pretextos
mais especiosos de declamar e torná-lo ridículo, ele aceitava graus de
verossimilhança que deviam determinar o homem sábio a escolher tal ou tal
partido na prática da vida civil" ("Carnéades" B, p. 59a). Assim, embora ele
argumentasse dos dois lados, "sua prática o fixava num dos dois" ("Carnéades"
G, p. 61b), de acordo com a probabilidade ou verossimilhança.19
Bayle distinguia uma tendência naturalista, por assim dizer, na moral cética
acadêmica. Arcesilau "seguia demais a inclinação da natureza, e isso até o
excesso vergonhoso" ("Arcesilau" txt, p. 288). Na observação a esse comentário,
Bayle afirma que "os vícios e as virtudes conhecem a arte de se aliar" e que
Arcesilau não era exceção, já que em sua pessoa as boas qualidades se encontram
reunidas com as más ("Arcesilau" L, p. 288a). Também Carnéades, em sua moral,
ressaltava a dimensão natural do homem. "O fim último do homem, ele dizia, é
fruir os princípios naturais" ("Carnéades" K, p. 62a). Correspondentemente, ele
"limitava a felicidade à fruição do bem natural" ("Carnéades" K, p. 62b).
Fideísmo
Uma das questões mais controversas sobre Bayle é a questão do fideísmo. De um
lado, inúmeras são as passagens em que Bayle parece afirmar que o ceticismo é
um caminho para a fé,20 e, de outro, também não são poucas as passagens em que
o ceticismo é apresentado como o inimigo da religião e da fé.21 Como conciliar
essas passagens? Talvez a conciliação seja possível se distinguirmos dois
pontos de vista diferentes.22
Do ponto de vista filosófico, que é o ponto de vista do cético, o ceticismo é
um dos grandes inimigos da religião, isto é, se consideramos o ceticismo em sua
intenção e no seu significado filosófico, vemos que o ceticismo visa, entre
outras coisas, à destruição da religião e da fé. "É com razão que ele [o
ceticismo] é detestado nas Escolas de Teologia" ("Pirro" txt, p. 732). "Pirro"
B se dedica a mostrar essa oposição entre o ceticismo e a fé religiosa.
"Portanto, somente a religião deve temer o pirronismo; ela deve estar apoiada
na certeza, seu fim, seus efeitos, seus usos, caem assim que a firme persuasão
de suas verdades é apagada da alma" ("Pirro" B, p. 732a).
Pode-se, entretanto, pensar o ceticismo de um ponto de vista que lhe é externo,
conferindo-lhe um sentido que originalmente não tem. Assim, de um ponto de
vista teológico, pode-se afirmar que o ceticismo é um caminho para a fé, entre
outros caminhos possíveis. "Mas ele [o ceticismo] pode ter seus usos para
obrigar o homem pela sensação das trevas a implorar o socorro do alto e se
submeter à autoridade da Fé" ("Pirro" txt, p. 733). Haveria, assim, um uso
possível do ceticismo, que não faz parte do ceticismo, nem é com este
consistente, sendo mesmo contrário ao que o cético propõe.
Tendo distinguido entre esses dois pontos de vista, pode-se entender melhor o
pensamento de Bayle sobre o ceticismo. Se esse uso do ceticismo como uma
preparação para a recepção da fé é feito por um teólogo, então, certamente,
Bayle não endossa esse uso, porque a perspectiva teológica não é a perspectiva
de Bayle. Não há, pois, razão para dizer que Bayle aceita uma espécie de
fideísmo cético. A suposta conclusão fideísta da observação B do artigo
"Pirro", que anuncia a observação C, é explicitamente atribuída a um "sábio
teólogo" ("Pirro" B, p. 733b).
Parece-me que Bayle aplica, na crucial observação C do artigo "Pirro", o
princípio cético de argumentar de ambos os lados de uma questão a fim de
suspender o juízo, somente relatando o que dogmáticos propuseram. Bayle, assim,
abstém-se de emitir um juízo, guardando-se cuidadosamente de dar uma opinião.
Em nenhum momento, Bayle fala em nome próprio, mas somente cede a palavra a
outros filósofos. Em primeiro lugar, ele cede a palavra àqueles filósofos que
defendem que o ceticismo é um caminho para a fé, citando La Mothe Le Vayer,
Pascal e, finalmente, Calvino. Após essa sucessão de citações em favor de um
fideísmo cético, Bayle imediatamente começa um discurso em sentido contrário.
"Seja como for, existem pessoas hábeis que sustentam que nada é mais oposto à
religião que o pirronismo" ("Pirro" C, p. 734a). Bayle, então, cita La
Placette, Vossius e, talvez não sem ironia, novamente o próprio Le Vayer. Há um
perfeito equilíbrio entre os dois lados, que contam, cada um, com três
autoridades. Se Bayle não adota uma posição cética, é patente que a pratica de
maneira fiel, suspendendo o juízo, dada a igualdade de forças dos dois lados da
questão. Conclui-se, dessa maneira, que Bayle não endossa um fideísmo cético,
mas apenas o relata como uma posição possível.
Se houver opinião de Bayle a esse respeito, deveremos encontrá-la numa
comparação dos dois lados da questão. Nas frases que introduzem as observações
B e C há uma oposição, introduzida por um "mas": de um lado, afirma-se que o
pirronismo é contrário à religião, mas, de outro, pode ser usado a favor da fé.
Ora, o texto deixa bem clara a preferência de Bayle pela contrariedade entre
pirronismo e religião, pois é "com razão" que o pirronismo é detestado pelas
escolas de teologia, mas, quanto ao seu uso pela teologia, Bayle somente se
limita a dizer que esse uso é "possível".
O ponto é controverso e importante, merecendo uma digressão mais longa. Numa
passagem aparentemente fideísta, Bayle diz que
Os teólogos não devem ter vergonha de confessar que não podem descer
à arena com esses contendores [os pirrônicos] e que eles não querem
expor a um tal confronto as verdades evangélicas (...) Agradou ao
Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, devem dizer os cristãos, nos
conduzir pelo caminho da Fé, e não pelo caminho da ciência ou da
disputa. Eles são nossos doutores e diretores, não poderíamos nos
desencaminhar sobre esses guias, e a razão mesma nos ordena a
preferi-los à sua direção (item II, p. 642).
A própria razão sugeriria que devemos abandoná-la em favor da fé. Mas todo esse
discurso é feito em nome dos teólogos e dos cristãos, isto é, daqueles que se
submetem ao Tribunal da Revelação, e não ao Tribunal da Filosofia. Em suma,
todo o esclarecimento não tem outra finalidade senão a de mostrar que, para
quem já aderiu ao cristianismo, o pirronismo não deve ser temido.
Após discutir a via da autoridade e a via do exame, rejeitando ambas e
afirmando que "o sr. Nicolle somente fomentou a irresolução dos espíritos
indiferentes e deu novos pretextos aos céticos sobre religião" ("Nicolle" C, p.
504a), Bayle parece apelar para uma conclusão fideísta.
Mas, como as coisas têm duas faces, há alguma esperança que os
espíritos bem formados (bien tournez) aproveitarão de uma
controvérsia tão deplorável. Eles aprenderão a conter nos limites a
máxima de Descartes com relação à suspensão do juízo. Eles aprenderão
a desconfiar das luzes naturais e a recorrer à conduta do Espírito de
Deus, visto que nossa razão é tão imperfeita. Eles aprenderão quanto
é necessário agarrar-se à doutrina da graça e quanto nossa humildade
agrada a Deus, visto que ele nos quis mortificar até na posse de suas
verdades, não tendo permitido que as discerníssemos pelas vias de um
exame filosófico, pelas quais chegamos à ciência de certas coisas
("Nicolle" C, p. 504a).
Salta aos olhos, nessa formulação, que Bayle atribui o fideísmo "aos espíritos
bem formados" e que "eles" aprenderão uma série de coisas. Em nenhum momento
Bayle se inclui entre esses "espíritos bem formados".
A passagem que se encontra no artigo "Zenão" parece comprometer Bayle com o
fideísmo, já que ele fala em primeira pessoa. "Estou mesmo persuadido de que a
exposição desses argumentos pode ter grandes usos com relação à religião, e
digo a respeito das dificuldades do movimento o que disse o sr. Nicole sobre
aquelas da divisibilidade infinita" ("Zenão" G, fim). Após citar um trecho de
Nicole, Bayle remete o leitor à observação C do artigo "Pirro". Bayle,
portanto, se compromete somente com o que se diz em "Pirro" C: que o ceticismo
podeter um uso religioso. Uma comparação mais minuciosa dos dois textos pode
revelar um resultado surpreendente. Nicole diz que "é contrário à razão se
recusar a crer nos efeitos maravilhosos da potência infinita de Deus, que é de
si mesma incompreensível, por essa razão que nosso espírito não os pode
conhecer" ("Zenão" G, fim). Assim, Nicole traça a distinção entre um absoluto
incompreensível e a razão humana, falível e limitada. Ora, é precisamente a
concessão dessa distinção por parte do teólogo que reforçava o ceticismo num
contexto cristão, tornando-o ainda mais fabuloso do que na antiguidade.
Portanto, Bayle sustenta precisamente a idéia oposta: em vez de o ceticismo
conduzir à religião, era a religião que conduzia ao ceticismo! Longe de
constituir uma defesa contra o ceticismo, a resposta de Nicole é o passo
decisivo para dar a vitória ao cético.
Assim, podemos ver que, em diferentes contextos, Bayle recorre a diferentes
expedientes para afastar-se do fideísmo e de um uso teológico do ceticismo. Um
deles é o de restringir o fideísmo a uma perspectiva teológica, que claramente
não é a de Bayle. Pode-se ainda dizer que, do ponto de vista filosófico, Bayle
afirma categoricamente que o ceticismo é um dos piores inimigos da religião.
Outro expediente é o de equilibrar as opiniões sobre a relação entre ceticismo
e religião sem tomar nenhum partido. Essa interpretação, para ter uma validade
mais ampla, deveria passar pelo crivo de muitas outras passagens aparentemente
fideístas, pois me limitei aos artigos do Dicionário que lidam direta e
extensamente com o ceticismo antigo.23