A cidade, o verdadeiro e o falso em Parmênides
a Antonio Capizzi
in memoriam
Sobre os grandes filósofos existem, com freqüência, lendas que são transmitidas
através dos séculos; não somente as lendas que acompanham a sua vida e seus
episódios, mas também as que fixam as coordenadas do seu pensamento e da sua
reflexão teórica. Assim aconteceu também com Parmênides, do qual foi bem
depressa construída uma imagem que imobilizou sua doutrina em caracteres bem
precisos, "falsificando-a" de maneira mais ou menos arbitrária. E isso acontece
desde o início, se é verdade ' mas não há razão para duvidar ' que seu grande
aluno Zenão teve que defender a doutrina do mestre dos numerosos opositores que
a criticavam e deformavam.2 Parmênides aparece, pois, bem depressa como um
filósofo "isolado", fora do contexto cultural no qual atuava, ao qual suas
teses pareciam estranhas e inusitadas. Para Platão, que já o considerava um
"antigo", cuja palavra era difícil de ser compreendida plenamente porque
parecia que falava como "acima das nossas cabeças"3, ele era um "pai venerando
e terrível"4, mas um pai incômodo, com o qual era difícil acertar as contas,
que talvez fosse necessário matar5, mas somente para fazê-lo renascer, e,
portanto, salvá-lo. Depois de Platão, Aristóteles fixou as características da
sua doutrina na imagem do stasiotes, do imobilizador da realidade6, e com estas
características a imagem de Parmênides viajou da Antigüidade até nós.
Mas quais são essas características? Uma filosofia que nega a multiplicidade
dos fenômenos para sustentar a unicidade e a imobilidade de uma realidade
sempre imutável e estática; que considera também a realidade fenomênica como
uma simples aparência privada de qualquer valor gnosiológico e ontológico; que
sustenta a existência somente do "ser", um ser entre outras coisas dificilmente
compreensível e interpretado desde a Antigüidade das maneiras as mais diversas,
como uma entidade ontologicamente separada e abstrata, quase divina, ou como
expressão de uma simples forma verbal; que estabelece uma fratura insanável
entre verdade e opinião e, logo, entre razão e sensibilidade, instaurando
também uma nítida dicotomia de valores entre um plano e o outro; uma filosofia,
por isso que está na origem, ao mesmo tempo, do racionalismo, do antiempirismo,
da anticientificidade, do pensamento metafísico e, logo, da "metafísica
ocidental", e assim por diante. É verdade que, especialmente na historiografia
filosófica da segunda metade do século XIX, existiram muitos trabalhos de
estudiosos que se empenharam em redimensionar esta imagem e em remeter o
pensamento de Parmênides às mais concretas exigências culturais da sua época e
do seu ambiente, mostrando o estreito liame que a elas unia o filósofo de
Eléia. Pessoalmente, creio que esta seja a linha historiográfica a ser
perseguida, e que no seu interior muito haja ainda para esclarecer e
interpretar. Porque este tipo de investigação não somente "historiciza" melhor
o seu pensamento, enraizando-o em um mundo concreto de debates, de polêmicas,
de tomadas de posição sobre problemas gnosiológicos, mas também de
epistemologia, de astronomia, de física, de biologia, de embriologia, de
política; mas, principalmente, porque desse modo se faz sobressair melhor a sua
originalidade e a sua força especulativa. O fato de que sua originalidade e sua
força foram certamente grandes impressionou não somente um Platão e um
Aristóteles, mas também um Hegel e um Einstein.
A partir deste trabalho de "desestratificação" e de redimensionamento das
doutrinas parmenídicas, o poema do Eleata, nos cerca de 160 versos que nos
foram conservados dele, ganhou nova luz e, ainda que alguns detalhes possam
parecer fugidios e desbotados, o esboço geral da obra nos é bastante claro. Há
uma introdução, elevada e inspirada, um prólogo no estilo da tradição épica,
que narra uma experiência intelectual extraordinária, a "revelação" de uma
deusa. Mas uma revelação que não tem nada de místico ou de "mistérico" e que
não é nada mais do que o delineamento de um ambicioso programa de pesquisa que
possa conduzir a conhecer todas as coisas, em todos os sentidos, em todos os
campos do saber humano. Há, em seguida, uma aguda discussão sobre a "via" que
conduz a esse saber, isto é, uma discussão sobre o método com o qual se pode
construir esse saber e que distingue nitidamente o homem que sabe dos homens
que nada sabem, que têm peitos e mentes indecisos, que se deixam arrastar,
surdos e cegos, pelos tortuosos caminhos da vida, que não sabem julgar. Há,
depois, a grandiosa intuição da relação que une e distingue a experiência de
todos os dias, o mundo polimorfo das coisas que acontecem e sobre as quais não
há certeza e o mundo abstrato e formalizado da verdade científica, aquele mundo
da verdade sem contradições: o coração da verdade bem redonda que somente a
poucos é dado alcançar. Há, enfim, o cenário grandioso e solene no qual se
movem os astros e a terra, as estrelas e os homens, com seus desejos e suas
paixões, suas aspirações e seus pensamentos, seus corpos e suas mentes. O todo
mesurado pela inflexível lei de uma Necessidade racional e eterna, que sustenta
no interior dos seus potentes liames toda a identidade e todas as diferenças
das coisas que nascem, que são e deixam de ser.
Reconduzir Parmênides ao seu tempo, portanto, "historicizar" Parmênides não
significa fazer uma obra de "restauração" em um pensamento já sepulto e que não
tem mais nada a nos dizer, mas colher, tanto quanto possível, o pensamento
vivo, concreto, de um homem que não foi somente um filósofo, mas também um
cientista e um político de grande relevância; definitivamente, quando essa
"historicização" de grandes figuras não é feita por pura erudição, ela
significa que se pode experimentar hoje o interesse que ainda tem para nós um
pensamento, uma intuição, uma doutrina. Tentarei aqui esboçar em linhas gerais
essa obra de redimensionamento da figura de Parmênides a partir de um tríplice
ponto de vista, filosófico, científico e político.
1. Se a grande filosofia grega leva os nomes de Platão e de Aristóteles e o seu
drama se desenrola em Atenas, centro do mundo grego, existiram também pólos não
menos grandiosos, a Leste e a Oeste daquele centro, sem os quais aquela luz não
teria sido acesa. No Oriente houve o pensamento científico dos milesianos, mas
também a inquietante e ambígua palavra de Heráclito. No Ocidente apareceram
dois poemas que lançaram as bases e delinearam os contornos daquelas que foram,
a partir de então, a filosofia, a filosofia da natureza e a metodologia
científica: em Eléia, o livro de Parmênides; mais ao Sul, na Sicília
meridional, um pouco mais tarde, o livro daquele extraordinário filósofo,
cientista, visionário e poeta, que vivia na dourada cidade de Akragas. Entre o
Oriente e o Ocidente se moviam os Pitagóricos: Parmênides teve um contato
particularmente íntimo com as doutrinas pitagóricas, que foram transmitidas do
extremo oriente do mundo grego, no fim do século VI, à Grécia ocidental; nelas
ele foi iniciado, provavelmente, pelo seu mestre Amínias, um pitagórico pobre,
mas nobre e probo e em honra do qual ele, riquíssimo, construiu um santuário.7
Tal como os Pitagóricos, também Parmênides individualizou dois princípios
contrários (tanantia),8 "fogo" e "noite", dos quais "tudo é pleno uma vez que
cada coisa resulta do conjunto dos dois".9 Mas Parmênides não foi um simples
repetidor de doutrinas pitagóricas, antes as criticou especialmente e
fortemente em um ponto capital. Como fica explicitamente claro pelas teses
polêmicas do seu grande aluno Zenão, mas também tal como já resulta de seus
versos, Parmênides pensou o cosmo segundo o paradigma da continuidade: à
descontinuidade de uma realidade composta e estruturada por números-unidades,
sustentada pelas antigas doutrinas pitagóricas, ele contrapõe uma concepção do
cosmo que tem as características do oulomelés do hene do synechés,10 isto é, da
compacidade, da unidade e da continuidade. A importância dessa polêmica, que
nasce na Grécia de 2500 anos atrás, a polêmica acerca do continuum-discretum
que opunha na Antigüidade Parmênides aos Pitagóricos, torna-se evidente se
pensarmos no fato de que, ainda hoje, as discussões entre os que sustentam
teorias ondulatórias e os que sustentam teorias corpusculares não parecem ter
encontrado um acordo definitivo; basta mencionar os grandes nomes de Planck, de
De Broglie, de Einstein, de Heisenberg ou de Schrödinger.
A figura de Parmênides torna-se, assim, perfeitamente inserida em um vivo
debate científico sobre um problema determinado, bem distante, porém, daquela
imagem do filósofo empenhado em dissertações abstratamente metafísicas e que
desprezam a experiência. De resto, que Parmênides se insira plenamente no
contexto daquele comportamento científico geral do século V a.C. no que
concerne à especulação sobre o homem, resulta claramente dos testemunhos
autorais de Aristóteles e de Teofrasto, além de uma longa série de testemunhos
antigos, aos quais se deu pouca importância, justamente porque desde então era
"vencedora" uma outra imagem.11 No livro IV da Metafísica, num discurso que
quer refutar o relativismo gnosiológico de Protágoras, um discurso preocupado
em criticar o estreito liame que une phronesis a aisthesis, a inteligência, o
pensamento à sensação, Aristóteles,12 como defensor de tais doutrinas, cita
Parmênides junto com Empédocles, Demócrito e Anaxágoras, e os liga diretamente
a Homero, que, em um famoso passo da Ilíada (23, 698), havia dito que o herói,
delirante pela ferida, "jazia com pensamentos alterados na sua mente". Também
Teofrasto, em um discurso centrado na sensação, e preocupado em distinguir
aqueles que admitiam que ela ocorre segundo o princípio do "semelhante com o
semelhante" (Parmênides, Empédocles e Platão) daqueles que sustentavam que ela
advém segundo o princípio do "contrário" (Anaxágoras e Heráclito), também ele,
em substância, testemunha que, para Parmênides, não somente a dianoia é sempre
symmetria, mas existe uma identificação direta de aisthanesthai e de phronein,
isto é, precisamente de sentir e pensar.13
Mas sobre este ponto, felizmente, dispomos dos versos originais de Parmênides,
que os mesmos Aristóteles e Teofrasto citam para confirmar as próprias
argumentações. Tratam-se dos quatro versos do importantíssimo fragmento 16, que
dizem o seguinte:
E, de fato, conforme a relação que em cada um se instaura entre as
partes móveis que o constituem, assim nos homens se determina a
mente; uma vez que é sempre o mesmo aquilo que nos homens pensa: a
natureza das suas partes constituintes, em todos e em cada um. O
pensamento é, de fato, o conjunto de todas estas relações.
O fragmento se apresenta, nos quatro versos que nos chegaram,
extraordinariamente compacto na sua estrutura lógica e sintática e extremamente
claro na sua formulação conceitual. Ao ligar estreitamente o pensamento e o
pensado à natureza das partes constituintes do corpo, se é que para cada homem
resulta uma unidade incindível de corpo e pensamento, esta é uma prova ulterior
da impossibilidade de se separar e contrapor, em Parmênides, racionalidade e
sensibilidade. Existe uma estreita relação entre os mélea, as partes
constituintes de cada homem, e o seu noos, seu intelecto. O sentido dessa
relação é que é sempre a physis meleon, isto é, a configuração particular que
assume em cada homem a síntese entre as suas partes constitutivas, que
determina o seu pensamento. É sempre ela, de fato, aquilo que pensa, nos
homens; e, de fato, o noema exprime, assim, a totalidade do homem (to pleon),
sendo a significação mais forte do seu ser no sentido mais pleno.
Mas se Parmênides se encontra na origem da origem da filosofia, ele está,
também, na origem do problema da verdade. Também a propósito desse problema
gostaria de me deter, em particular, para mostrar como se torna muito mais
interessante aproximar-se do texto parmenídico, prescindindo da imagem vulgata
de sua filosofia. Como é notório, se quis ver por séculos uma fratura no
interior do poema parmenídico, fratura que seria assinalada nos versos 50-51 do
fragmento 8: "Com isso interrompo o discurso certo e o pensamento / em torno da
verdade; doravante aprende as opiniões dos homens". Sobre essa base se
construiu uma improvável dicotomia entre as duas partes do poema, a primeira
dedicada à "verdade", a segunda às "opiniões". Na primeira, Parmênides exporia
as linhas de uma filosofia "verdadeira" do ser (o que quer que deva significar
esse ser); na segunda, as linhas de um enganoso quadro das opiniões dos homens
e, portanto, toda uma cosmologia e uma antropologia, em suma, uma filosofia da
natureza fundamentalmente "falsa". Desse modo, de maneira muito simplista, se
resolvia o problema da verdade em Parmênides: verdadeiro é o ser, e, portanto,
o discurso sobre o ser; falsas são as opiniões, e, portanto, todo discurso
sobre as opiniões. Mas a historiografia filosófica mais atenta desmantelou
desde então esse quadro, não somente "costurando" as duas partes do poema
parmenídico e conferindo, portanto, densidade e dignidade filosófica também ao
discurso sobre as opiniões, mas, ainda, aprofundando os estreitos laços
teóricos que existem entre as duas partes. Nesse quadro não somente de
revalorização da doxa parmenídica, mas também de reconsideração do sentido da
unicidade do seu pensamento, me movi, também eu, com um volume escrito
aproximadamente há 30 anos.14 Aquilo que, ao contrário, gostaria de tentar aqui
é uma análise do sentido e das condições da verdade em Parmênides, para mostrar
como a sua posição não é de fato monolítica, mas contém no seu interior brechas
teóricas que, tendo sido sabiamente utilizadas pelos sofistas, em particular
por Protágoras e por Górgias, Platão, em seguida, tentará recompor em um
contexto difícil de fidelidade e, ao mesmo tempo, de superação da perspectiva
do Eleata.
Com efeito, a verdade é um problema também para Parmênides. Problema porque,
mesmo sendo bastante claras as coordenadas teóricas nas quais se situa a sua
perspectiva, não é fácil esclarecer seu significado e suas implicações. O
fragmento 3 ("de fato é a mesma coisa pensar e ser"), lido fora de todo
horizonte neoplatônico ou idealista, no qual nos foi transmitido a partir de
Plotino, nos fala somente de uma coincidência, de uma identidade ou de uma não-
cindibilidade. Mas enquanto o "pensar" é de fácil entendimento, mais difícil se
torna entender o campo semântico do einai, do "ser". Como se pode notar, ao
indicar o objeto da sua pesquisa, Parmênides não usa o termo "ser", mas antes
to eon, o ente, "aquilo que é". O problema se complica porque, ao lado de
"aquilo que é" aparece também um to me eon, um não-ente, "aquilo que não é", e
dele se diz explicitamente que não é cognoscível, nem exprimível (B 2.7-8: oute
gnoies oute frasais) não sendo, portanto, evidentemente, pensável. Há, pois,
uma estreita relação entre a seqüência: ser ' pensar ' conhecer, e, de modo
especular, a outra: não ser ' não pensar ' não conhecer. As duas seqüências
poderiam também verossimilmente se enriquecer, respectivamente, de um "exprimir
' dizer" e de um "não exprimir ' não dizer", com base, por exemplo, no verso 1
do fragmento 6, no qual o legein, o dizer, é necessariamente ligado ao noein,
ao pensar.15
Ora, todos os semata, os "sinais", de B8 dizem respeito "àquilo que é":
ingênito, indestrutível, compacto, imutável, e assim por diante, em suma, os
"sinais" "daquilo que é" são as modalidades nas quais ele pode ser pensado/
dito. Vejamos. O fragmento 6 e o fragmento 8, 8-9 dizem o seguinte: "é preciso
dizer e pensar que aquilo que é existe"; "[aquilo que não é] não é dizível, nem
pensável uma vez que não existe". Portanto, o plano semântico "daquilo que é",
como delineado no fragmento 8, é o plano da realidade física, existencial,
formalizado precisamente na forma lingüística to eon; essa indica o todo, o
cosmo das coisas existentes, mas que é visto através de um movimento de
abstração do pensamento, na sua unidade que prescinde da multiplicidade dos
fenômenos particulares que nele se manifestam. Digamos logo que esta não é uma
perspectiva original de Parmênides: desde Tales, se é verdadeira a sua
afirmação que diz hena ton kosmon16 ' mas não há nenhum motivo para duvidar que
o seja ', a unidade e a unicidade do cosmo (que não excluem obviamente a
multiplicidade dos mundos possíveis que o constituem) são doutrinas dominantes
na reflexão grega. É o que testemunha com autoridade Aristóteles, para "todos
aqueles que primeiro filosofaram"17, acrescentando que nessa perspectiva "nada
nasce e nada se destrói", tal como já havia poetizado Xenófanes naquelas duas
afirmações, só aparentemente contraditórias, nas quais, por um lado, se diz que
nada nasce, nem se destrói, nem se move, uma vez que o uno-todo é isento de
mudança18 e, por outro lado, que tudo aquilo que nasce é perecível.19
Também para Parmênides o uno-todo é precisamente ingênito, indestrutível,
compacto, contínuo, homogêneo (B8), enquanto "as coisas que são", os fenômenos
particulares, nascem e terão um fim (B19). Antes e depois de Parmênides, com
Anaximandro, Anaxímenes, Melisso, Filolau, Heráclito, Empédocles, Anaxágoras e
Demócrito, se disse e se repetirá que o nascimento e a morte são nomes de
acontecimentos que se referem a fenômenos particulares que se desenrolam na
realidade, mas não concernem em nada e não podem ser aplicados à realidade
entendida como uno-todo.20
Os dois aspectos absolutamente novos em Parmênides são, ao contrário, por um
lado, a demonstração lógica e formal das duas teses que se desenvolve
fundamentalmente nos versos centrais do fragmento 8, e, por outro lado, a clara
teorização do método ou da "via de pesquisa" (B2'B7), através da qual se podem
alcançar as duas ordens de afirmações. O segundo desses aspectos é precisamente
aquele que diz respeito de perto ao problema da verdade. Afirmada a identidade
entre pensar e ser, podemos entender essa identidade no sentido de que cada vez
que se pensa, se pensa algo que é, isto é, que existe, enquanto não se pode
pensar algo que não é, isto é, que não existe. Assim, B 8.34: "e é a mesma
coisa o pensar e aquilo que é pensado".21 Isso significa não somente que o
pensar está inseparavelmente conectado ao pensado, pela evidente razão que não
pode ocorrer um pensamento que não seja pensamento de alguma coisa, mas também
pela razão mais profunda segundo a qual o pensamento se enraíza no ser, no
sentido de que não é concebível um pensamento que não seja da realidade ou '
mas dá no mesmo ' que há sempre uma realidade que se exprime no pensamento.
Assim, de fato, nos versos seguintes: "já que sem aquilo que é, nos limites do
qual é expresso, não encontrarás o pensar; nenhuma outra coisa de fato existe
ou existirá fora daquilo que é".22 O pensar se enraíza, portanto, no ser, está
encadeado aos limites da realidade, para usar a forte expressão do verso 31,23
e cada vez que se pensa e, portanto, se diz algo pensado, se pensa, e,
portanto, se diz uma realidade. De modo especular não existe, nem se pode
pensar, e, portanto, não se pode dizer, uma não-realidade, alguma coisa que não
é.
Tudo isto é bastante claro. O problema surge quando o ser e o pensar se
conjugam precisamente com a "verdade". Pensar e dizer o ser, ou seja, algo
real, é evidentemente pensar e dizer a verdade. Todo discurso sobre to eon,
sobre a realidade, com todas as suas demonstrações, seus princípios lógicos, a
explicação das características e das determinações "daquilo que é", é
explicitamente um discurso amphi alethéies que se move no reino e nos confins
da verdade.24 A verdade, para Parmênides, está estreitamente ligada à
persuasão; o caminho da persuasão, de fato, "segue" a verdade:25 tudo o que foi
dito sobre to eon é, de fato, não somente um discurso verdadeiro, mas também um
pistos logos, um discurso digno de fé, logo, crível.26 É preciso sublinhar, o
que não sempre é feito, essa estreita conexão em Parmênides, como depois em
Górgias e, naturalmente, em Platão, entre verdade e persuasão: um discurso
verdadeiro é sempre um discurso que convence, que persuade. Esse é, acima de
tudo, o discurso sobre to eon, o discurso sobre a realidade entendida como uno,
como todo, na determinação lógica e necessária das suas características
fundamentais. Mas a verdade do discurso sobre to eon é, ao mesmo tempo, o
constituir-se mesmo desse discurso: em outras palavras, o método ou aquilo que
Parmênides chama de hodos dizesios, a via de pesquisa. É somente a via de
pesquisa que persegue to eon que constitui um caminho (kéleuthos) rumo à
verdade, enquanto aquela que pretende falar de to me eon é um atarpòs, uma
senda de todo intransitável, porque "aquilo que não é" não se pode nem conhecer
nem exprimir.27 Como indiquei anteriormente, essa ótica parece monolítica em
sua tentativa de estabelecer diferenças, conexões e exclusões nítidas, mas
monolítica ela não é, justamente pela introdução do fator "persuasão".
Se o reino da verdade coincide com o reino do ser, isto é, da realidade, o
reino do não ser, isto é, do não real, deveria ser aquele da falsidade:
portanto, se dizer a verdade significa dizer coisas que são, dizer a falsidade
deveria significar dizer coisas que não são. O problema é que essas equações
não são nunca afirmadas explicitamente por Parmênides, mesmo se, no que diz
respeito à primeira, ela pode ser deduzida bastante legitimamente, como vimos.
Aquilo que, ao contrário, é explicitamente negado é precisamente que se possa
pensar e dizer aquilo que não é. Os primeiros dois versos de B7, que são
justamente aqueles citados por Platão no Sofista,28 dizem que "nunca se poderá
impor pela força isto, que existem as coisas que não existem.29 Mas tu afasta o
pensamento dessa via de investigação." Já vimos que "aquilo que não é" não pode
ser dito nem pensado, a partir do momento que não existe, e que algo de
impensável e de inexprimível não seja nem mesmo "verdadeiro" é reforçado logo
depois, nos versos 17-18 do mesmo B8: uma das vias de investigação é
"impensável e inexprimível (não é a verdadeira via, de fato), enquanto a outra
existe e é autêntica (etetymon)", sendo que o termo etetymon oferece uma
significativa remissão, seja ao plano da realidade, seja àquele da verdade.
Portanto: se não é possível pensar e dizer aquilo que não é; se só é possível
pensar e dizer aquilo que é; e se, cada vez que se pensa e se diz aquilo que é,
se pensa e se diz a verdade, a conseqüência do ditado de Parmênides deveria ser
precisamente aquela que dela deduzem os sofistas, em particular Protágoras e
Górgias, ou seja, que, cada vez que se diz, se diz sempre a verdade, e,
portanto, que todos os discursos são verdadeiros. Mas seria mesmo assim?
Com efeito, essa potente perspectiva, que liga a verdade ao ser, proclamando
pensável e dizível somente o ser, e que, todavia, estabelece, em termos nossos,
uma analogia, ou uma identidade, entre as leis do real e as do pensamento,
pressuposto que foi e é fundamental para o desenvolvimento do pensamento
científico e filosófico, apresenta no seu interior fissuras perigosas, muito
antes que as refinadas análises de um Górgias o mostrassem e o divulgassem.
Parmênides, de fato, convida a bem refletir ("faça tesouro do discurso que
ouve"), em B2, sobre as "únicas vias de pesquisa pensáveis",30 uma das quais
ouk esti me einai, ou seja, não pode não existir, e é precisamente o caminho da
verdade que não pode não gerar persuasão, enquanto a outra é de todo não
transitável. Esta via intransitável é, evidentemente, aquela (ou aquelas) de
B6, sobre a qual se movem os homens "de duas cabeças", que afirmam o ser e o
não ser, o existir e o não existir como tauton, a mesma coisa. Isso significa
que um discurso sobre aquilo que não é, portanto, um discurso não verdadeiro,
pode de toda maneira ser feito: em B8, 50, de fato, se põe fim ao discurso
certo e ao pensamento em torno da verdade, mas não por isto o discurso cessa:
se inicia um outro, que, se não é verdadeiro, não é de maneira alguma menos
importante para o vasto programa do saber prenunciado nos últimos versos do
fragmento 1: "É necessário que tu aprendas todas as coisas, seja o fundo
imutável da verdade sem contradições, seja as experiências dos homens, nas
quais não há certeza verdadeira. Mas a todo preço também essas aprenderás, uma
vez que as experiências devem ter um valor próprio, para aquele que indaga tudo
em todos os sentidos".31
O discurso sobre as opiniões, isto é, sobre as experiências dos homens, que
certamente não tem o grau de verdade daquele sobre to eon, é parte
indispensável da construção do conhecimento humano: é um discurso "não
verdadeiro", mas nem por isto é um discurso "falso". Em B2, a via de
investigação, se não é uma verdadeira e própria hodòs, é de alguma maneira um
atarpòs, umkéleuthos, e mesmo se não é transitável (é antes de tudo
intransitável), pode de algum modo ser pensada, a partir do momento que faz
parte das únicas vias que podem ser pensadas (noésai). Logo, pode-se pensar e
dizer também o falso, como fazem não somente os dikranoi de B6, 5, que é gente
que não sabe julgar (akrita phyla) e que mistura nos próprios discursos o ser e
o não ser, o existir e o não existir, mas como fazem também aqueles que falam
sem método da natureza. Aqueles, de fato, confundindo as vias, atribuem "àquilo
que é" os nomes "nascer", "morrer"32 e "mudar", que rigorosamente não podem ser
atribuídos a ele, uma vez que são características não "daquilo que é", mas das
"coisas que são" e, logo, das singularidades múltiplas dos fenômenos. Não
apenas isso, mas nessa sua equivocada operação, "crêem serem verdadeiros"
aqueles nomes (B8, 39). Portanto, como se vê, também para Parmênides, pode-se
dizer o que não é verdadeiro: e, ainda, pode-se também crer na verdade do não
verdadeiro que se diz. Nisso precisamente consiste o erro fundamental dos
homens, que constitui um erro fundamentalmente metodológico: eles atribuem as
características "daquilo que é" às "coisas que são" e vice-versa; atribuem,
portanto, as características da imutabilidade, da homogeneidade, da
continuidade e da unidade à multiplicidade dos fenômenos mutantes e
passageiros, sendo que elas são próprias apenas da realidade compreendida em
sua totalidade; e, inversamente, as características da mudança, da
multiplicidade, da descontinuidade, do nascer e perecer são atribuídas "àquilo
que é", sendo que elas são próprias apenas das "coisas que são".
É claro que a perspectiva hermenêutica aqui traçada faz parte de uma
reconsideração positiva da doxa parmenídica, intimamente entrelaçada com
aletheia, num quadro de conhecimento da realidade que seja o mais amplo e o
mais compreensível do todo que é possível. Se é somente o discurso sobre to eon
que é verdadeiro, porque é um discurso metodológico, matemático e geométrico, o
discurso sobre as opiniões, ou sobre as experiências dos homens, mesmo não
sendo verdadeiro, não é todavia falso: é verossímil, assim como todo discurso
sobre a realidade física, sobre a fenomenalidade, de Parmênides a Platão
(lembremos o eikòs do Timeu), a Einstein ("se é certo, não é física").
2. O mundo das doxai humanas sobre o mundo físico ou sobre a natureza
constitui, então, o outro grande campo de pesquisa do pensamento parmenídico.
Certamente, não é fácil reconstruir as suas doutrinas cosmológicas, físicas,
biológicas e antropológicas, mesmo porque do poema parmenídico nos chegou quase
por inteiro a primeira parte, aquela que, na historiografia tradicional desde a
Antigüidade, era chamada precisamente de "verdadeira", enquanto, da segunda
parte, na qual esses problemas eram enfrentados, podemos ler muito pouco. Mas
não tão pouco a ponto de não podermos esboçar as linhas de um sistema
teoricamente compacto e que se inseria bem nas especulações dos primeiros
filósofos-cientistas da Grécia arcaica.
Uma realidade material, na origem, princípio de todas as coisas, incluindo o
homem, nos foi atestada claramente por Parmênides por numerosos testemunhos;
todos falam de uma realidade dinâmica, em movimento, resultante do dialético
encontrar-se de dois "princípios" contrários, dos quais e mediante os quais tem
origem aquela variedade de formas e de fenômenos que distinguem o cosmo, como
lembrei anteriormente. Uma realidade eterna,33 então, e dinâmica: podemos
imaginar, com base num testemunho de Pseudo-Plutarco, um caos primitivo e um
movimento em vórtice do qual se origina a matéria, da qual tenham tido origem
as várias partes do cosmo. Com efeito, a terra, elemento denso e pesado, vem a
encontrar-se no centro e assume, em razão deste movimento, uma forma esférica:
"Diz, além disso, [Parmênides] que a terra se formou por precipitação do
elemento denso."34 "Foi ele o primeiro a dizer que a terra é esférica e que
ocupa o centro do universo."35 Assim, o ar é secreção da terra, o sol e a Via
Láctea são exalações do fogo,36 o céu é de fogo,37 os astros são massas de fogo
condensado,38 o sol é de fogo e doa a sua luz à lua.39 Parmênides foi também um
dos primeiros a sustentar que as estrelas Matutina e Vespertina são a mesma.40
Parece, enfim, que Parmênides tenha feito primeiramente uma divisão da terra em
cinco zonas, determinando nela os lugares habitados abaixo das zonas
temperadas.41 Notícias, como se vê, mas que demonstram muito mais que um
interesse vago de Parmênides pela cosmologia, ou uma sua "concessão" às
"opiniões" dos homens, mas antes um corpus de doutrinas organicamente
estruturado.
Mas há mais; há um outro testemunho que me parece muito significativo para a
perspectiva de um Parmênides estudioso da natureza. A terra teve origem, como
todos os astros, a partir de uma matéria primogênita e, ainda, é da mesma
natureza do cosmo, sendo composta de fogo e noite. Mas não é povoada por seres
vivos. A vida aparece somente em um momento seguinte, como uma forma particular
de existência da matéria, um produto novo no processo de evolução do mundo.
Parmênides teve talvez a formidável intuição, que já fora de Anaximandro e será
de Empédocles, da série de fases ou de graus do desenvolvimento da matéria, no
qual vão sendo determinadas formas cada vez mais complexas de existência
dotadas de qualidades novas. Eis o testemunho:
Empédocles sustenta uma tese do gênero, isto é, que antes os membros
singulares esparsamente vieram para o exterior da terra que estava
como que grávida; depois se uniram e formaram a matéria do homem
completo (solidi hominis materia), a qual é um misto de fogo e de
água Essa mesma opinião seguiu também Parmênides de Eléia que,
excetuadas poucas coisas e de pouca importância, não discorda de
Empédocles.42
A linguagem poética que usaram Parmênides e particularmente Empédocles cobre de
sombras efetivamente aquela que para nós hoje é uma certeza científica; os
membros singulares que saem da terra, na imaginativa linguagem empedocliana,
poderiam ser alusões a uma concepção que, no contínuo devir da matéria, vê uma
série de tentativas através das quais são determinadas formas de organização
cada vez mais complexas: a matéria orgânica, a substância viva e os seres
animados. Com efeito, também os homens, como todos os seres vivos, são
constituídos pelos mesmos elementos que compõem os fenômenos do cosmo.
Parmênides diz "que os homens extraem a sua primeira origem da lama e que neles
existem o calor e o frio dos quais tudo é composto".43
Até aqui vimos os testemunhos sobre Parmênides. Mas existem também todos os
fragmentos autênticos do 9 em diante44 que nos falam sobre a importância que o
Eleata atribuía à especulação científica. O fragmento 10 nos fala da natureza
do éter e de todos os astros que estão no éter, da "obra destrutiva" do sol e
do "vagar errante da lua do olho redondo";45 o fragmento 11 nos fala do
nascimento da terra, do sol, da lua, da galáxia e de todos os astros;46 os
fragmentos 14 e 15 nos dizem ainda sobre a lua e sobre o fato de que ela recebe
sua luz do sol;47 o fragmento 13 nos fala de um Eros que "foi concebido
primeiro entre todos os outros deuses". Quem concebe Eros é provavelmente a
"deusa que tudo governa" à qual se faz referência no fragmento 12: devia
certamente haver, mesmo se se perdeu para nós, uma verdadeira cosmogonia
parmenídica propriamente dita, concebida sobre os traços da hesiódica, mas com
aspectos originais. Na origem do pantheon parmenídico, antes de todos os
deuses, a função central é desempenhada por uma divindade feminina, de cujo
primeiro parto nasce precisamente Eros: o fato de ele ser o "primeiro entre
todos os deuses" significa, muito provavelmente, que a essa figura divina
Parmênides atribuía a tarefa de regular o nascimento dos seres particulares,
como resultado da mistura dos dois princípios fundamentais. Se, por um lado,
então, Parmênides se insere na linhagem de uma tradição de poesia e de reflexão
sobre Amor como princípio cósmico e cosmogônico, que tem a função de "unir",
"formar" e "levar ao nascimento", por outro lado, ele leva a cabo o processo de
universalização que nasceu precisamente da crítica racionalista ao princípio da
teogonia tradicional. O Eros de Parmênides simboliza, precisamente, aquela
força imanente ao mundo dos fenômenos, que torna possível a conjunção dos
opostos e, em definitivo, o aparecer no cosmo de cada um dos seus aspectos
particulares, na sua determinação e especificidade. O mesmo pode ser dito dos
homens.
No centro do universo há, portanto, a deusa que tudo governa: ela é "causa da
geração de todas as coisas"48, dos deuses, das coisas e dos homens, através da
força divina de Eros, força vital que se expande pelo universo, que regula e
determina a união dos elementos contrários do fogo e da noite, assim como da
fêmea e do macho. A união sexual é vista, com efeito, por Parmênides como um
caso particular da lei geral que vê os opostos se procurarem e se unirem. Da
antropologia parmenídica sobraram somente alguns traços de uma doutrina
embriológica ou embriogenética, que se refere ao problema, muito discutido na
Antigüidade, da diferenciação dos sexos. O fragmento 18 nos diz que a formação
regular dos corpos no útero materno e a determinação do sexo do nascituro
dependem do equilíbrio que se instaura na mistura das sementes geradoras
paternas e maternas. Para a concepção, então, concorrem as forças
(virtutes=dynameis) seja do homem seja da mulher: se elas se harmonizam,
nascerão homens e mulheres bem formados; homens se a concepção ocorre na parte
direita do útero, mulheres se ocorre na esquerda;49 se não se harmonizam, o
sexo do nascituro será atormentado, isto é, existirão homens efeminados ou
mulheres masculinas.50 A propósito da geração dos filhos, pode-se falar com
certeza de duas escolas de pensamento na Antigüidade: por um lado, sustentava-
se que o elemento feminino não servia para a geração, sendo a mulher
simplesmente um receptáculo da força geradora masculina; eram dessa opinião
Hipon, Diógenes de Apolônia, Demócrito, Aristóteles e os Estóicos; por outro
lado, sustentava-se que na concepção dos filhos contribuíam seja as forças do
homem, seja aquelas da mulher; eram dessa opinião Alcméon, Empédocles,
Anaxágoras, Epicuro e o próprio Parmênides.
3. Remeter Parmênides ao seu tempo, portanto, não significa diminuir sua
importância, mas, ao contrário, buscar a explicação do seu livro não só nos
livros dos outros filósofos, como também no ambiente físico, político e
cultural que o circunda, enriquecendo-o, definitivamente, com uma espessura ou
uma concretude que o retiram da abstração do pensamento puramente
"filosofante". Essa operação, que também do ponto de vista político pode levar
a resultados interessantes, foi tentada por Antonio Capizzi, em muitos ensaios
e especialmente em um livro de trinta anos atrás.51 A proposta de Capizzi
consistia fundamentalmente em apontar no poema, ao lado dos planos lingüístico
e ontológico, também um plano político de significados do pensamento
parmenídico. Proposta certamente importante e digna de ser desenvolvida, porque
sabemos que Parmênides não foi somente filósofo, mas um homem bastante inserido
nos acontecimentos históricos da sua cidade. O limite da sua proposta
consistia, porém, e talvez precisamente pelo entusiasmo com o qual Capizzi
defendia as sua teses, em acabar por sobrepor o plano político ao lingüístico e
ao filosófico, mais do que completar estes últimos com o primeiro. Discutimos
sobre isso, Capizzi e eu, longamente, durante anos, em seminários, congressos,
artigos, ensaios e conversas privadas, sempre com o respeito e a estima que
nutríamos um pelo outro e com o comum amor pela verdade, que é o único
pressuposto que torna profícuas as discussões e o próprio dialogar. Depois de
tantos anos, embora permanecendo ainda convicto com relação às minhas teses,
quero, porém, aqui prestar homenagem ao amigo desaparecido reapresentando a sua
proposta, e esperando que ela possa encontrar ainda outras ocasiões para
discussão.52
O que sabemos, de concreto, de Parmênides na sua cidade? Que Eléia foi fundada
pelos fócios e que foi bem governada por Parmênides e por Zenão; que Parmênides
ditou novas leis para a sua cidade; que suas leis foram tão boas que os
cidadãos de Eléia todos os anos juravam permanecer fiéis a elas. Sabemos pouco,
pois, se olharmos apenas para as alusões dos filósofos e doxógrafos; muito
mais, entretanto, se olharmos para a história das cidades do Mediterrâneo
daqueles tempos. É um fato que uma figura central no poema parmenídico é Dike,
a justiça: ora, se desde a Antigüidade o prólogo do poema foi lido em termos
que destacam sua capacidade de alusão, as referências alusivas deviam servir
para fazer com que seus concidadãos identificassem objetos precisos e para
localizar o itinerário da viagem que Parmênides realiza até a presença da
deusa. Quanto a isso podem nos ajudar os testemunhos arqueológicos: Parmênides,
com efeito, no seu prólogo faz referência a localidades existentes em Eléia e
não a regiões metafísicas ou astronômicas. A "via do Nume" que é citada no
fragmento 1, que conduz através de todos os bairros, é efetivamente a Via Rosa,
descoberta pelos arqueólogos, que unia o porto fluvial norte da cidade à
colina, e, em seguida, ao outro porto de Eléia. A via era ladeada por fileiras
de choupos (as filhas do Sol do verso 9) e quando diz que elas, nos versos 9-
10, são representadas no ato de erguer as mãos para o alto e livrar as cabeças
dos véus, ele quer representar o fato de que os choupos, à medida que a estrada
deixa o vilarejo na sombra, rumo à colina que fica em plena luz, passam a ter
os seus topos iluminados, e quase parece que seus ramos são estendidos,
arrancando da cabeça os véus de sombra que a Noite, senhora da vertente
setentrional, tinha colocado. A porta da qual fala Parmênides é a Porta
Arcaica, descoberta pelos arqueólogos, que separava e unia os dois portos ao
norte e ao sul da cidade; o fato de que seja Dike quem possui as chaves que
abrem ou fecham aquela porta significa que o fato de estar aquela porta aberta
ou fechada é exatamente um fato político, de justiça. Em certa fase da vida da
cidade, alguém tinha decidido em favor da separação entre os dois portos,
barrando a porta que fechava o desfiladeiro. Parmênides convence precisamente
os seus concidadãos que era justo reabrir a porta e a artéria, restabelecendo
as relações normais entre as partes da cidade e fazendo dos muitos aste,
vilarejos, uma única polis, uma só cidade.
Em certo momento da sua história, houve uma secessão em Eléia: fato freqüente
nas cidades da Magna Grécia. Ora, uma secessão de uma parte da cidade pode
ocorrer por vários motivos; pode-se verificar um contraste entre dois ou mais
grupos étnicos que contribuíram para fundar a cidade, por exemplo, como no caso
exato das "colônias mistas" de Turi ou de Gela. Mas Heródoto diz que Eléia foi
fundada somente pelos fócios que, fugidos da pátria para não cair sob o domínio
dos persas, depois de uma parada de cinco anos em Alália, fugiram também dali
depois de uma batalha desastrosa no mar da Sardenha contra etruscos e fenícios.
Em Eléia poderiam, então, ter existido dois grupos pelo menos, os fócios de
Alália e metecos aqueus, mas também sibaritas; depois de 510, com efeito,
exilados sibaritas se refugiaram nas costas tirrênicas. Mais provável é que
tenha ocorrido uma secessão da plebe após um conflito social, fato
freqüentíssimo na história das cidades gregas,53 entre os séculos VI e V, como
sabemos que efetivamente aconteceu em Gela, em Siracusa e nas cidades
pitagóricas do Jônico. Conflito étnico ou social, as situações de Eléia e de
Parmênides se ligam muito bem com dois elementos constantes que aparecem na
história nesses casos: por um lado, a figura do "embaixador" que "persuade' os
expatriados a retornarem, ou os que ficaram a abrirem as portas, figura que,
freqüentemente, torna-se o chefe político da comunidade reconstituída e, por
outro lado, a nova constituição que nasce da reconciliação dos dois grupos.
Ambos os elementos adaptam-se perfeitamente a Parmênides, embaixador, chefe
político e legislador das novas leis; não faltam, no prólogo, as referências ao
tríplice papel de Parmênides: ele foi guiado por direito e justiça, está à
altura das aurigas imortais, sendo que auriga era uma denominação comum dos
chefes políticos. Há ainda as referências filosóficas do fragmento 8 à
homogeneidade, à compacidade "daquilo que é", que aludem a uma dimensão da
atividade política: dar compacidade política e uniformidade de costumes à
cidade em perigo.
A polêmica forte do fragmento 6, no qual se fala das famosas três vias, adquire
nova luz. Da primeira se diz "que é", que efetivamente existe; das outras duas
se diz que é necessário manter-se distante: delas, uma não existe
absolutamente, a outra é aquela na qual vão errando os "homens com duas
cabeças". "Vão errando" no texto é plattontai, que vem de platto, ou plasso,
que significa plasmar, modelar, mas também exprimir com gestos e, então,
inventar, fabricar falsamente, excogitar mentindo.54 No mais, a antítese entre
a primeira e as outras duas vias é caracterizada, no texto, pelos termos
"segurança", para a primeira, e "insegurança" e "intransitável", para as
outras. Ora, a incapacidade dos homens com duas cabeças de entender e de se
fazerem entender como se fossem "cegos e surdos", ou mesmo mudos, e o fato de
que usam uma "língua retumbante", isto é, um retumbar de sons mais do que uma
linguagem, nos levam claramente a entender que estes homens falam uma língua
estrangeira. Nos remetem, pois, a uma temática comum aos gregos, aquela da
heteroglossia; era concepção bastante comum entre os gregos considerar um
balbucio incompreensível toda língua não grega. Os "mortais ignorantes", então,
que não sabem falar nem entender o logos, o discurso em grego, são, então,
estrangeiros.
Mas quem são esses estrangeiros que simulam com ambigüidade de intenção? Se
pensarmos que Parmênides não nos é descrito como um grande viajante, o círculo
se restringe às línguas não gregas faladas na Itália e nas ilhas do Tirreno, e,
pois, às etnias itálicas, fenícias ou etruscas. Se pensarmos no tom de desprezo
que Parmênides usa com relação a elas, na sua ignorância e incapacidade,
devemos pensar nas derrotas destes estrangeiros levada a cabo pelos gregos.
Isso imediatamente nos faz excluir as etnias itálicas, e, em particular, os
Lucanos, que, no final do século VI e no início do V, mantinham boas relações
com os gregos das costas; tanto é verdade que assimilaram deles muitos
elementos, dentre os quais o alfabeto, e só mais tarde iniciaram as suas
incursões na Campânia. Então, permanecem os fenícios ou os etruscos: no tempo
de Parmênides (nascido no fim do séc. VI), com efeito, os fenícios tinham
sofrido uma grave derrota em Hímera (em 480) e os etruscos em Cuma (em 474),
por obra dos Gregos de Siracusa. Mas se pensarmos nos termos marítimos do
fragmento 6 (o ser arrastado, o "arremessar", o caráter ensurdecedor e
retumbante das palavras desses homens com duas cabeças, são termos que, em
geral, os escritores gregos mais antigos aplicam às ondas do mar ou aos
ventos), podemos verossimilmente pensar nos fenícios. Naqueles fenícios
"falsos" que já apareciam na Odisséia e que Parmênides chama de "simuladores".
Em grego, existia realmente um termo, phoinikelìktes(literalmente: semelhante
aos fenícios), que significava enganador: tratava-se, então, de um clichégrego,
transmitido depois à cultura romana. Simuladores e "duplos", fazendo referência
à duplicidade cartaginesa da qual falará ainda Virgilio na Eneida.
Se relacionarmos todos esses fatores, ao lado da filosofia e da investigação
naturalista, é possível, ainda, entrever um terceiro nível de leitura do poema
parmenídico. Por volta de 480-470, data provável de composição do poema,
aconteceu outro fato importante: a emergência da potência de Pitecusa,
conquistada precisamente por Híeron de Siracusa em 474.55 Eléia, como outras
cidades da costa da Campânia, via assim ameaçada sua própria independência pela
talassocracia siracusana que a pressionava ao sul e ao norte. A posição
política de Parmênides emerge, então, em primeiro lugar, como um convite aos
Eleatas a não tentarem se defender dos Siracusanos, recorrendo à ajuda dos seus
inimigos derrotados, os Fenícios de Cartagena. Com efeito, a batalha de Hímera,
que teve lugar dez anos antes, e que terminou com a derrota de Amílcar, por
obra de uma coalizão entre Siracusanos e Agrigentinos, tinha entrado desde
então no imaginário grego como um fato simbólico, tanto é verdade que Píndaro
tinha exaltado aquela vitória siracusana, comparando-a às duas grandes vitórias
obtidas no mesmo ano de 480 pelos gregos continentais sobre os persas, a
vitória ateniense de Salamina e a vitória espartana de Platéia.
Mas, se a talassocracia siracusana atravessava, por volta de 470, o seu momento
mágico, estendendo-se do Etna ao Epomeu, também a talassocracia púnica, não
obstante a derrota de Hímera, gozava de boa saúde; assim, se podia dizer que o
cerco fenício, por sua vez, circundava o cerco siracusano: estabelecidos na
Sicília e na Sardenha, comercialmente presentes em todo o Tirreno, até
Marselha, e até mesmo no Lácio, se pode dizer que os fenícios sitiavam os
siracusanos sitiantes de Eléia.
Donde as sugestões políticas de Parmênides aos eleatas, que estavam no centro
dessas coalizões e dessas contraposições. As três "vias" do fragmento 6 se
delineiam assim como:
1. a " via que é", que se realiza somente na compacidade, de onde a
necessidade de uma cidade única, fortemente coesa, com leis
imutáveis;
2. a "via que não é", que é aquela da continuação da secessão,
instaurando assim uma situação de debilidade muito arriscada naquele
momento histórico;
3. a terceira via, da qual é necessário que mesmo os eleatas se
mantenham distantes, e que é aquela de deixar-se enganar pela astúcia
dos fenícios e cair, assim, na mesma armadilha reservada aos seus
outros aliados gregos, como, por exemplo, os selinuntinos, aliados
dos fenícios, que, exatamente por obra desses, viram ser destruída
sua cidade.
Por esse ponto de vista, o poema de Parmênides seria também um "manifesto"
político dirigido às três principais coalizões que devem ter se formado em
Eléia, depois da fundação da colônia siracusana de Ísquia: os intransigentes
partidários da secessão sem limite; os filofenícios que se iludiam de
encontrar, naqueles bárbaros, aliados seguros para se oporem aos siracusanos, e
os pan-helênicos, convictos de que de modo algum se deveria infringir aquela
aliança grega que, dez anos antes, havia arruinado os bárbaros. É lícito supor
que Parmênides foi o arauto dessa terceira facção, e que essa foi a facção que
prevaleceu, uma vez que ele se tornou legislador e chefe político de sua
cidade. Para concluir com Capizzi: "o poema parmenídico pertence, pois, à
história da política mediterrânea dos gregos, pelo menos da mesma forma que
pertence à história da sua cultura e de seu pensamento especulativo".
1 Artigo traduzido por Karina L. Fabrini (karinafabrini@oi.com.br) e Miriam C.
D. Peixoto (miriam71@terra.com.br)
2 Cf. Plat. Parm. 128c-d.
3 Plat. Soph. 243a-b.
4 Plat. Theaet. 183e. Sócrates acrescenta que, mesmo lhe parecendo Parmênides
homem de uma "profundidade nobre sob todos os aspectos", temia não conseguir
compreender as suas palavras e ainda mais qual fosse o seu pensamento (184a).
5 Plat. Soph. 241d.
6 Plat. Theaet. 181a; Aristot. p.f. fr. 9 Ross.
7 DL IX 21 = DK28A 1.
8 DK28B 8, 59.
9 DK28B 9, 3-4.
10 DK28B 8, 4-6.
11 Cf. Diógenes Laércio (IC 21-23 = DK28A 1), Suda (s.v.), Jâmblico (v. Pith.
166 = DK28A 4), Eusébio (chron. A) Hieron = DK28A 11), Simplício (de caelo 556,
25 = DK 28A14), Menandro ([mais exatamente Genethlios] reth. I 2, 2; I 5,2 =
DK28 A 20), Hipólito (ólito ref. I 11 = DK 28 A 23), Plutarco (adv. Col.1114
b).
12met. 1009 b 1-14.
13 Teofrasto, de sens. 1 sg. = DK 28A46.
14 CASERTANO, G. Parmenide il método la scienza l'esperienza. Napoli: 1978 (2a.
ed. 1989).
15 B 6,1: chre to legein te noein t'eon émmenai. Sobre esta estreita relação,
cf., também, B 8, 8; B 8,17.
16 Aet. II 1, 2 = DK11A 13b.
17 Arist. Met. A 3.983 b 6.
18 Hippol. Ref. I 14, 2 = DK 21 A 33.
19 DL IX 19 = DK21A 1.
20 Anaximandro: DK 12A1; Anaxímenes: DK13A 11; Melisso: DK30A 5, A 10, B 1, B
7-8; Filolau: DK44A 16, B 21; Heráclito: DK22A 6; Empédocles: DK31B 8, B 9;
Anaxágoras: DK59B 17; Demócrito: DK68A 37, A 49, A 57-59.
21 Os vv. 34-36 deste fragmento são, como se pode notar, de difícil restituição
e interpretação. Para a minha interpretação e para a discussão de outras
interpretações, cf. o ensaio citado na nota 13.
22 B 8, 35-37.
23 B 8, 31: peiratos en desmoisin.
24 B 8, 51.
25 B 2, 4: aletheiei gar opedei.
26 B 8, 50.
27 B 2, 4-8.
28 Soph. 237a; 258d.
29 B 8, 8-9.
30 B 2, 2.
31 B 1, 28-32. Para a justificação dessa tradução e principalmente para a
compreensão de doxai como "experiências", veja-se o meu ensaio citado
anteriormente, em particular n. 32, p. 56-59 e p. 203-213.
32 B 8, 39-41: "Com relação a ele [aquilo que é] são dados todos os nomes que
os homens estabeleceram acreditando serem verdadeiros, ou seja, nascer e
morrer, existir e não existir, mudar de lugar e mudar de resplandecente cor".
33 Numerosos os testemunhos sobre a eternidade da realidade: recordemos Arist.
Phys. 191a24; metaph, 984a27; de cael. 298b14; Theophr. phys.opin. fr.6; Euseb.
p.e. I 8,5.
34 [Plutarch.] strom. 5= DKA22.
35 DL IX 21= DK28A 1.
36 Aët. II 7, 1=DK28A 37.
37 Aët. II 11,4=DK28A 38.
38 Aët. II 13,8 =DK28A 39.
39 Aët. II 26,2; II 28,5=DK28A 42.
40 DL IX 23=DK28A 1.
41 Strabo I 94=DK28A 44a.
42 Censor. de d. nat. 4,7.8 = DK28A 51.
43 DL IX 22 = DK28A 1.
44 Simplic. phys. 180, 8: "Tudo é igualmente cheio de luz e de noite escura que
se equilibram ambos, já que toda coisa resulta do conjunto das duas".
45 Clem. Alex. Strom. V 138 = DK 28B10.
46 Simplic. de cael. 559,20 = DK28B 11.
47 Plutarch. mor. 1116A= DK28B 14; mor.282B, 929B = DK28B 15.
48 Simplic. phys. 34,14 = DK28B 12.
49 Galen. in Epid. VI 48 = DK28B 17
50 Cael. Aurel.morb.chron. IV 9 = DK28B 18.
51 Capizzi, A. La porta di Parmenide. Roma: 1975.
52 Tudo aquilo que diremos se baseará no volume citado na nota precedente, ao
qual remeto também para todas as citações dos passos, dos testemunhos, das
referências aos autores e às evidências arqueológicas e históricas.
53 Mas não somente: que se pense também em Roma e na secessão do monte
Aventino, sobre a qual fala Menenio Agrippa no seu famoso apólogo.
54 O verbo é próximo deplazo, que significa desviar, conduzir para fora do reto
curso, desencaminhar. Capizzi traduz, de fato, por "simulam".
55 Sabemos que o domínio não foi longo: depois de uma terrível erupção do
Epomeu,que obrigou os Siracusanos a deixá-la, a ilha foi conquistada pelos
napolitanos, na segunda metade do séc. V, que a mantiveram em sua posse até o
ano de 82, quando passou aos Romanos; mas Augusto, em 29 a.C., a restituiu aos
Napolitanos em troca de Capri.