A teoria da causalidade imaginária na filosofia de Hume
I
Hume inicia o Tratado da natureza humana com uma proposição conceitual que
distingue as percepções da mente humana em duas classes fundamentais:
impressões e ideias. A rigor, essa distinção não presume uma dicotomia, nem
estabelece entre seus termos diferenças antagônicas de natureza. A divisão das
percepções entre impressões e ideias é antes intensiva que qualitativa, isto é,
diz respeito às variações de intensidade ou aos respectivos graus de vividez e
força que se devem atribuir a cada tipo de percepção. As impressões são mais
vívidas, penetram mais violentamente em nosso pensamento em sua primeira
aparição à alma, e abrangem as sensações e as paixões. E, como na ordem de
aparição das percepções à mente as impressões sempre antecedem as ideias,
estas, objetos de operação de nosso intelecto, manifestam apenas as imagens
embaciadas e mortiças que nos ficam dessas impressões distanciadas no espaço e
no tempo. Impressões e ideias concordam em natureza, concernem a uma mesma
percepção, considerada em dois momentos distintos de sua presença na mente. As
ideias derivam das impressões, compartilham sua substância, refletem-nas e
representam-nas: elas são as marcas dessas impressões dissipadas no fluxo de
percepções que constitui a mente humana.
As ideias, para Hume, são imagens fracas das impressões, elementos secundários
na ordem das percepções e que, por essa razão, não poderiam ser consideradas
inatas. Se, por outro lado, se entende por inato o que é original ou não
copiado de nenhuma percepção anterior, então as impressões podem ser ditas
inatas, porque precedem as ideias no curso habitual das percepções. Desse ponto
de vista, a diferença dos estatutos atribuídos a impressões e ideias decorre de
que, para Hume, o mundo do ser, das existências, coincide com o mundo das
aparências, o mundo tal como o percebemos. Ademais, como para Berkeley, cuja
máxima "ser é ser percebido" costuma encimar os textos dedicados à sua obra nos
manuais de filosofia, também para Hume a ideia de existência relaciona-se à
percepção:1 não há impressão ou ideia que não seja concebida como existente; a
ideia de existência é rigorosamente idêntica à ideia daquilo que concebemos
existir, ou seja, à ideia da própria percepção. Essa identidade é sumarizada
por Hume na forma de uma tautologia: qualquer ideia que quisermos formar será a
ideia de um ser, e a ideia de um ser será qualquer ideia que quisermos formar.
Na realidade, afirma Hume, jamais avançamos um passo além de nós mesmos nem
podemos conceber nenhuma existência diversa das percepções que se nos
apresentam dentro dos estreitos limites das sensações.
Ideias e impressões subdividem-se ainda em duas outras modalidades: podem
denominar-se simples, se não comportam discrição nem separação, ou complexas,
se é possível distingui-las em partes menores. A noção de ideias e impressões
simples, ou da indivisibilidade de impressões e ideias, define, segundo a
expressão de Deleuze,2 o "atomismo espiritual" de Hume. A mente, composta de
percepções simples, é uma coleção de átomos, elementos irredutíveis uns aos
outros, ideias e impressões elementares que se correspondem mutuamente, com
predominância das últimas sobre as primeiras. A percepção complexa de uma maçã,
segundo o modelo de Hume, decompõe-se nas impressões mais simples de seu aroma,
seu sabor e sua cor. Berkeley, na introdução do seu Tratado dos princípios do
conhecimento humano, alude à mesma imagem, notando que certa cor, forma e
consistência, seguidas de certo sabor e aroma percebidos em conjunto, designam
uma coisa singular chamada "maçã".
As partes do objeto, ou da percepção que no-lo representa, definem-se de acordo
com seu modo de aparição no tempo e no espaço. A ideia de espaço, de extensão,
concerne à contiguidade regular dos pontos sensíveis que faz nossa percepção
oscilar naturalmente de uns para outros; a ideia de tempo, por sua vez, reflete
na mente a sucessão perceptível desses pontos na série ininterrupta de
percepções que nos torna presente a noção de duração. A experiência desenvolve-
se nesse movimento sucessivo de ideias e impressões separáveis e
qualitativamente diferentes, tendo em vista que todas as nossas percepções
distintas aludem a existências distintas.
Mas esse princípio da diferença, norma empírica por excelência segundo
Deleuze,3 dá lugar a um paradoxo filosófico. Ora, não temos uma impressão
simples do tempo: percebemo-lo apenas indiretamente pela sucessão dos objetos
em mudança. As ideias das partes indivisíveis do tempo devem ser, então,
preenchidas de existência real, sensível. A percepção mais simples, unidade
indivisível da mente, constitui o seu dado invariante. Essa fração elementar da
natureza não é um ponto físico, mas um ponto sensível. Hume sustenta que, para
toda ideia simples, há uma impressão simples correspondente, e toda impressão
simples remete a uma ideia simples correlata. Como, além disso, ideias e
impressões complexas se formam a partir das simples, conclui-se por força que,
entre essas duas espécies de percepção, vigora uma equivalência de natureza. A
anterioridade das impressões simples em relação às ideias simples, na ordem da
aparência a própria ordem do ser, para Hume , atesta que as segundas são
causadas pelas primeiras. É, porém, impossível experimentar isoladamente uma
impressão simples: não podemos, por exemplo, experimentar o átomo, visto que
este, como diz Hume, não tem extensão. De que modo, então, é possível conceber
uma ideia simples sem a derivar da impressão simples que a causaria? E como
podemos atribuir existência a uma impressão simples?
Dá-se, porém, que nossa mente não se detém jamais na consideração de uma
impressão ou de uma ideia absolutamente singular. Isto significa que a mente
opera com impressões e ideias complexas e que as ideias simples só existem nela
já associadas umas às outras. A imaginação pode entremeá-las em variadas
combinações, mas nunca as conceber separadamente, porque tende, por certas
propriedades originais de sua natureza, a associar as ideias segundo
determinadas relações. A imaginação passa de uma a outra ideia
irresistivelmente, e prescinde, nesse movimento, do concurso do raciocínio; a
associação de ideias na imaginação é pré-cognitiva. Essa explicação do conceito
de ideia simples na filosofia de Hume é análoga à que se pode oferecer acerca
da noção de "corpos mais simples" na física de Spinoza:4 para este, com efeito,
os corpos simples, que integram a composição dos corpos complexos, somente
podem ser concebidos em infinitudes, e nunca individualmente, isto é, como
átomos isolados. A ser procedente a comparação, não parece ser justa a
definição dada por Deleuze segundo a qual, para Hume, a mente humana seria uma
"coleção de átomos": na verdade, ela não se apresenta como estrutura molecular
de percepções simples, mas como feixe de ideias e impressões que se associam e
desassociam sucessivamente. Cada impressão ou cada ideia pode extinguir-se ou
renovar-se na mente ao acaso das percepções. Identificar a mente a uma coleção
de átomos significa defini-la pela sua estrutura e pelos seus elementos, ao
passo que Hume, considerando-a um feixe de ideias e impressões associadas
segundo determinados princípios, define-a, antes, pelas suas relações. O
reconhecimento da ideia simples como unidade invariante da mente não exprime a
constância e uniformidade da atividade da imaginação: o que confere a esta sua
estabilidade por assim dizer atemporal não é a associação das mesmas ideias
simples nas mesmas ideias complexas, mas, antes, as relações ou princípios
através dos quais essas ideias simples se associam umas às outras.
Como o mecanismo de associação de ideias opera, em última instância, com ideias
simples, o efeito de sua atividade é a produção de ideias complexas. Se a
associação de ideias na imaginação se realizasse ao acaso e se estivesse no
poder de cada um criar a seu talante os objetos de suas cogitações, não haveria
qualquer regularidade no curso dos assuntos humanos e apenas por exceção se
poderiam encontrar as mesmas ideias complexas ou as mesmas composições de
ideias simples em épocas e lugares diferentes. Segundo Hume, porém, no registro
histórico das experiências dos povos, as paixões humanas parecem manifestar-se
sob formas regulares, reiteradas em padrões afetivos que, ao andar dos tempos,
se conservam idênticos em sua tendência geral. O fato de ser impossível
imaginar, por exemplo, que um dia haja existido homens indiferentes ao poder e
à beleza ilustra essa regularidade que permite a Hume atribuir à imaginação
princípios operatórios imutáveis, intrínsecos à sua natureza, e suscetíveis de
definir o elenco de qualidades associativas a partir das quais se formam as
ideias complexas. Apesar de ser reputada uma faculdade livre do pensamento,
capaz de ultrapassar em suas criações os próprios modelos da natureza, a
imaginação encontra, nas suas leis de operação, os seus limites; de resto, a
própria noção de impressões e ideias simples assinala essa determinação: se nos
é dado reduzir as ideias e impressões a percepções elementares, então o
princípio de associação da imaginação opera com um conjunto finito de ideias
que, embora possam combinar-se indefinidamente, não chegam a formar um universo
infinito de possibilidades.
Para Hume, as três qualidades associativas da imaginação são a semelhança, a
contiguidade e a causalidade. A associação das ideias, que preside à composição
das ideias complexas na imaginação, é uma propriedadeoriginal da natureza
humana e consiste numa função essencial da mente. É impossível que a mente se
atenha a uma única ideia simples, como é impossível que o corpo seja afetado
por uma única impressão simples. Se uma ideia se faz presente à imaginação,
qualquer outra, unida a ela por relações de semelhança, contiguidade ou
causalidade, segue-lhe naturalmente. A regularidade do mecanismo de associação
de ideias explica por que a imaginação opera com um repertório mais ou menos
constante de ideias complexas. As relações de ideias atendem antes a essa
qualidade operatória que ao conteúdo formal das ideias mesmas: a relação que a
imaginação estabelece entre duas ideias é exterior a estas, e não pode ser
deduzida a partir da consideração de nenhuma delas em particular. A associação
de ideias é uma regra da imaginação, e não um exercício livre de suas
faculdades. Temos tanto poder sobre as associações que se operam na imaginação
como sobre os movimentos dos órgãos ou as oscilações da sentimentalidade. O
mecanismo de associação de ideias dá-se a conhecer apenas por seus efeitos na
imaginação, e são os efeitos dessas operações associativas que constituem os
dados originais de um espírito cuja ação se desenvolve independentemente da
consciência que temos dela.
II
Hume5 considera a associação de ideias uma determinação inata da natureza
humana. As ideias derivam das impressões, e estas assinalam os limites
existenciais que separam a natureza humana desse mundo exterior a cujos objetos
não se tem acesso senão por via de percepções. As impressões que nos afetam e
formam as ideias em nossa imaginação aparecem-nos como objetos de percepção
particulares, desvinculados dos objetos externos a que somos determinados a
relacioná-los. Esses objetos são percebidos apenas pelas modificações que
produzem na nossa sensibilidade, e nunca na sua natureza objetiva. Nosso
conhecimento do mundo circunstante, cujos limites confinam com os de nossa
sensibilidade, é puramente alucinatório. Ele envolve a crença original em uma
realidade exterior: supomos todo um mundo de objetos reais com base apenas nas
percepções que temos deles, isto é, com base nas percepções que temos de nosso
próprio corpo e a partir das quais derivamos as ideias de imaginação que
representam em nós esse exterior povoado.
As ideias são-nos dadas como imagens de impressões imediatas, mas podemos
formar, a partir dessas ideias primárias, ideias secundárias ideias de ideias
que introduzem na imaginação outra qualidade de percepção: a imaginação opera
uma alucinação em segundo grau das ideias em relação às impressões imediatas.
Por esse movimento, as ideias abstraem suas impressões originais e assumem a
forma de efeitos espontâneos da mente. As impressões produzem imagens de si
mesmas as ideias , e estas, apresentadas à mente como novos objetos de
percepção, imprimem nela novas ideias, que reproduzem as primeiras, tal como
estas reproduzem as impressões primárias. O princípio segundo o qual todas as
ideias derivam de impressões permanece válido, mas agora é preciso ajuntar-lhe
outra modalidade e discernir entre impressões de sensação e impressões de
reflexão. As primeiras nascem imediatamente na mente a partir de causas
ignoradas que excedem no espaço e no tempo o alcance da percepção, e concernem
às percepções sensíveis dos objetos exteriores que se nos deparam à sorte. Por
sua vez, as impressões de reflexão nascem mediatamente na mente e derivam das
ideias primárias: são impressões internas, causadas pela imagem de uma
impressão de sensação, que, demorando-se na alma após o desaparecimento do
objeto exterior a que se relaciona, produz uma nova impressão, de desejo ou
aversão uma paixão , em relação à imagem desse objeto.
A impressão de sensação, dado imediato da experiência, produz um duplo efeito:
por um lado, uma ideia relativa a esta impressão, isto é, a ideia que constitui
a continuação dessa impressão na mente e cuja representação não supera o
conteúdo inteligível da sensação original; essa ideia produz, por outro lado,
uma nova impressão na mente, que a apreende como um novo objeto que se choca
contra o feixe de percepções que forma a composição atual da imaginação. Essa
nova impressão supera o conteúdo da primeira e excede os dados da experiência.
Isto significa dizer que, na imaginação, podem-se formar ideias complexas,
produzidas por associação, que não remetem a impressões de sensação
correspondentes nem se prendem aos objetos da experiência, sobretudo porque
esta última não pode fornecer a impressão distinta de uma relação. Ainda que a
imaginação torne presentes à mente os objetos que ela apreende sob dada
relação, ela não pode formar, apenas a partir deles, uma imagem dessa relação.
O que determina a forma da associação de ideias na imaginação é a impressão de
reflexão ou paixão causada pelo choque entre a ideia primária imediatamente
derivada de uma impressão sensível e o conjunto das percepções presentes na
imaginação em dada atualidade. As impressões de reflexão e o mecanismo de
associação de ideias explicam de que maneira se podem apresentar à imaginação
ideias complexas a que não se pode ligar nenhuma impressão sensível
correspondente. Para empregar uma analogia informal, podemos dizer que
comumente exprimimos a sensação provocada na alma por uma impressão de reflexão
quando afirmamos coisas como "tenho impressão", "tenho a vaga ideia de que tal
coisa acontecerá": isto sucede quando sentimos se formar em nós algo como uma
noção espontânea ou disposição íntima em relação a um objeto, e que, sem
resultar de nossas ponderações, serve como o ponto de partida delas. Estamos a
sentir a influência de uma impressão de reflexão quando uma paixão dirige, na
imaginação, o mecanismo de associação de ideias.
A regra da associação de ideias que nos interessa aqui é a causalidade. Essa
noção faz-se presente à alma quando percebemos um objeto como causa da ação ou
da existência de outro. A causalidade, para Hume, não só é uma modalidade de
operação da mente, uma relação natural pela qual duas ideias, uma introduzindo
a outra, se associam na imaginação, mas constitui ainda uma relação filosófica,
uma qualidade que torna passíveis de comparação os objetos implicados. Para
Hume,6 todos os tipos de raciocínio consistem em comparar e em descobrir as
relações entre dois objetos, estejam estes presentes ou não aos sentidos. A
impressão de causalidade suscita em nós a ideia de que a ação ou a existência
de um objeto é seguida ou precedida pela ação ou existência de outro. Conhecer,
para Hume, é formular proposições de causalidade, mas as conexões causais são,
a rigor, imateriais: não as podemos deduzir a partir da qualidade dos objetos
relacionados e, portanto, não nos é dado vinculá-las, como percepções
distintas, a impressões de sensação distintas. Isto significa que, se é
possível formar a ideia de dois objetos distintos a partir de suas respectivas
impressões ou imagens, não se pode formar uma ideia da relação causal que
supomos uni-los. Esta relação não corresponde, ela própria, a um objeto
exterior, mas resulta em nós de uma associação, operada na imaginação, a partir
das ideias de dois objetos. Ao examinarmos um juízo causal como "a areia arde
porque faz calor", verificamos que os termos da relação "a areia arde" e "faz
calor" evocam duas impressões distintas, mas não podemos derivar a vinculação
expressa pelo conectivo "porque" de uma terceira impressão, e tal conectivo é o
próprio motor da associação de ideias.
A concepção humiana de causalidade contesta a suposição de que as ideias são
representações das coisas. Em primeiro lugar, as representações mentais as
imagens formadas na alma não se referem às relações nem podem representar
conexões entre coisas. Ademais, uma ideia, segundo Hume, representa não uma
coisa, mas uma impressão, a imagem de uma percepção dos sentidos. A razão, por
sua vez, não é uma faculdade do espírito ou um princípio organizador das
ideias, mas o reflexo de uma impressão na mente que pouco se distingue da
própria imaginação: e a imaginação se racionaliza quando obedece à sua
tendência passional, isto é, quando as ideias se associam em virtude de uma
finalidade que somente a paixão pode imprimir à atividade dos homens. Os modos
de associação de ideias estabelecem relações recíprocas entre elas, mas são as
qualidades da paixão refletida na imaginação que definem a direção dessas
relações. A forma da associação de ideias é dirigida pelas paixões, pelas
impressões de reflexão; como afirma Deleuze, o homem associa ideias e se lança
ao conhecimento porque tem paixões.7 É a paixão, não a razão, que dá causa a
esse movimento, e é este o motivo pelo qual a razão é e deve ser escrava da
paixão.
Ao expor sua concepção de causalidade,8 Hume afirma ser universalmente
reconhecida a noção de sucessão, a relação entre um anterior e um posterior que
consagra a prioridade da causa sobre o efeito na ordem das aparições. Ele
rejeita a tese segundo a qual a causa seria concomitante com seu efeito, visto
que defendê-la seria o mesmo que postular a dissolução da sucessão causal
observada no mundo e, por consequência, admitir a total aniquilação do tempo.
Noutras palavras, não se poderia contestar a ideia de sucessão na ordem dos
fenômenos perceptíveis sem assentir que os objetos da percepção coexistem
simultaneamente, e que apenas os limites de nossa sensibilidade determinam-nos
a supor que eles se seguem uns aos outros na duração. Hume não levanta a si
mesmo essa objeção e logo abandona a defesa da sucessão temporal, advertindo o
leitor de que a coisa não tem relevância; certamente se lhe afigurara depressa
que o argumento o conduziria a uma conclusão contraditória. Em primeiro lugar,
a coexistência de uma pluralidade de objetos singulares que impressionam a
mente de modo simultâneo e imediato deduz-se do conceito mesmo de ideias e
impressões complexas. Como vimos, as impressões simples não são átomos isolados
de sensação; uma maçã é, ao mesmo tempo, a impressão de sua cor, de seu aroma,
de sua forma etc. Ademais, se chegamos a formar uma ideia de causalidade,
presumimos que existem uma causa e um efeito, e damos a esta suposição tal
forma que, quer consideremos apenas o conteúdo de cada termo da relação, quer
abstraiamos ambos e ponderemos apenas a relação mesma, não poderemos conceber
nem que haja uma ideia de causa sem uma ideia de efeito, nem tampouco que a
relação causal possa constituir-se sem que os dois termos sejam simultaneamente
presentes. Ao reivindicar a prioridade temporal da causa sobre o efeito, somos
forçados a admitir que uma causa possa existir na ausência de seu efeito; mas,
se a causa não produz seu efeito, ainda não é uma causa, e por isso a relação
causal ainda não existe. Por outro lado, se concebemos que o efeito subsiste
sem a causa, ou que a causa se extingue na produção do seu efeito, damos
anuência à ideia de que o efeito, libertado da causa tão logo esta o produza,
passa a existir por si só. Mas, se conjeturamos que a coisa produzida passa a
existir na ausência de sua causa, como então explicar que tenha precisado dela
para começar a existir? Também dessa perspectiva a causalidade é inconcebível
como sucessão temporal.
Hume logo substitui essa ideia de sucessão pela noção de conjunção, com que
distingue o caráter imediato da conexão causal. Como as relações filosóficas
estabelecidas pelo entendimento e pela imaginação são exteriores aos objetos
relacionados, não podemos determinar a prioridade de um sobre o outro nem
situar em um deles, considerado apenas na sua qualidade, o poder decausar o
outro. É a constância e a uniformidade da conjunção de dois objetos que nos
leva a distinguir entre eles uma relação causal. Assim, quando dois eventos se
nos apresentam em conjunção constante na experiência, adquirem uma conexão tão
estreita na imaginação que esta passa de um a outro sem hesitar; é dessa
conjunção constante observada na experiência que advém o fundamento da ideia de
necessidade. A relação de causalidade marcada por essa uniformidade, a que a
recorrência de casos semelhantes empresta a força de necessidade, é tão somente
uma operação da mente, alheia às qualidades dos objetos. A necessidade define-
se, pois, como a determinação da mente de passar de um objeto considerado
àquele que comumente o acompanha na experiência, e de inferir a existência de
um a partir da do outro. A impressão de necessidade é o efeito, na mente, da
impressão de uma união constante de objetos no passado, e é reiteração da
imagem dessa união constante que faz a mente supor que ela se repetirá no
futuro.
Em si mesmos, os objetos que a imaginação identifica às causas e aos efeitos
dos fenômenos da experiência têm qualidades tão distintas entre si que, a
ponderar suas diferenças, se poderia crê-los inteiramente dissociados um do
outro na ordem da natureza. Jamais, senão pela experiência de sua união
constante, se poderia inferir um a partir do outro. A inferência é um efeito do
costume sobre a imaginação: a ideia da relação causa e efeito corresponde à
ideia de objetos constantemente unidos, e a conexão necessária não traduz uma
conclusão do entendimento, mas uma percepção reavivada na mente por numerosos
exemplos semelhantes na experiência. Abrangendo a conjunção constante de
objetos similares e a inferência de um a partir de outro, essa noção de
necessidade é essencial à teoria da causalidade de Hume. O necessário
caracteriza mesmo a vontade humana, que, por isso, não pode ser dita livre,
isto é, aleatória e arbitrária; para Hume, podemos tirar conclusões acerca das
vontades humanas com base na experiência da união constante de ações
semelhantes em circunstâncias semelhantes, mas esta inferência tem lugar apenas
no espírito do observador: a ação é dita necessária do ponto de vista de quem,
inferindo por observação uma intenção causal, relaciona o ato ao motivo.
Poder-se-ia dizer que a ideia de causalidade não é mais que um caso de
estatística, de percepção de padrões ou modelos que se reproduzem no curso
ordinário da experiência. A conexão necessária decorre da percepção de uma
conjunção constante. Essa percepção se reflete na mente como uma impressão de
necessidade ou do caráter necessário do fenômeno percebido. Mas Hume questiona
se uma causa é sempre necessária, como afirmam os cartesianos (sc. III, p. III,
l. I, TNH). A objeção de Hume a essa noção, segundo a qual tudo o que existe
tem causa de existir, não se confunde com sua concepção própria de necessidade,
fundada exclusivamente na percepção da uniformidade da conjunção constante
constatada na experiência. Os cartesianos sustentam a tese de que nada pode
começar a existir sem um princípio produtivo. Hume contesta essa assertiva com
o seguinte argumento: como todas as ideias distintas são separáveis entre si, e
como as ideias de causa e efeito são distintas, pode-se conceber, pela
experiência, que um objeto não exista neste momento e se apresente, em seguida,
como existente, sem que essa mudança envolva um princípio produtivo, isto é,
sem que se possa deduzir uma causa de existir a partir da percepção de um
objeto existente. Para Hume, a ideia de causa não está implicada na de efeito:
na percepção da qualidade de um objeto a que a imaginação outorga o papel de
"efeito" de uma relação causal, nada há que indique que tal objeto foi causado
por outro; do mesmo modo, a noção de "causa" tampouco é dada na qualidade do
objeto ao qual a mente atribui essa condição. Nem a função de efeito nem a
função de causa são intrínsecas aos objetos que a imaginação considera como
tais. A relação de causalidade é subjetiva, concerne à perspectiva do
observador, e não existe senão como ideia imaginária.
III
Contudo, se é possível conceber no primeiro momento que um objeto não existe
para em seguida concebê-lo como existente, como se pode formar na imaginação
uma ideia de causalidade? Ora, a causalidade não é uma relação objetiva entre
as coisas, mas uma operação do entendimento, e, portanto, a inferência da
causalidade não decorre da existência dos objetos em si mesma, mas da
experiência de sua conjunção constante, sob cuja imagem eles se oferecem à
percepção. Quando uma impressão se representa na mente, esta é naturalmente
determinada a formar uma ideia mais viva dos objetos constantemente
relacionados, pela experiência, a essa impressão. Uma impressão presente
associa-se, na imaginação, à ideia reavivada por ela; sua imagem conjuga-se na
mente com a ideia de um objeto com o qual ela está em conjunção constante na
experiência. A inferência supera o dado do sentido e torna presente à
imaginação algo que não é imediatamente presente à sensação e que não pode ser
inferido apenas a partir da qualidade do objeto percebido. O sujeito, ao
inferir, afirma mais do que lhe informam os sentidos: ante a impressão de um
objeto, a imaginação, sem mediação cognitiva, associa logo a ela a imagem ou a
ideia de um outro, cuja conjunção com o primeiro foi objeto de percepções
passadas. Assim a apresentação do primeiro objeto à percepção é causa da
reapresentação, na imaginação, da ideia de sua conjunção constante com o
segundo.
A ideia de causalidade reproduz a imagem de uma conjunção constante, reavivada
na imaginação pela sucessiva percepção de casos semelhantes na experiência. A
uniformidade dessa conjunção e sua reiteração na experiência reforçam na mente
a suposição de sua ocorrência futura. Esse conhecimento, aprendizado
progressivo da semelhança dos casos de conjunção constante que se repetem na
experiência, não constitui uma certeza, mas uma crença. Quando a mente oscila
da ideia de um objeto à de outro, ela obedece ao princípio de associação de
ideias, mas, à medida que dada associação se torna recorrente na imaginação em
virtude da regularidade com que a conjunção constante se repete na experiência,
a mente, afetada pela ideia de um objeto presente, será determinada a
relacioná-la à ideia de um objeto ausente, a crer na existência desse último
supondo-o ligado ao primeiro por uma conexão necessária. Essa ideia de conexão
necessária não advém da uma impressão da experiência nem diz respeito às ideias
relativas a cada um dos objetos distintos: ela se produz porque a presença de
um deles, dada na forma de impressão numa experiência atual, abstrai a ausência
do outro.
Nenhuma ideia nova, porém, pode ser derivada de casos repetidos de conjunção
constante, pois as diferenças de tempo e espaço entre eles acabam por torná-los
mutuamente independentes ou aleatórios. A repetição convertese em progressão,
isto é, toma forma de uma memória acumulada, quando deixamos de considerá-la
quanto aos objetos que se repetem para ter em conta apenas a sua influência no
espírito do observador. Na experiência, o observador depara-se com sucessivos
casos de conjunção constante, que variam no tempo e no espaço; a união desses
casos no seu espírito, isto é, a associação desses casos a uma mesma ideia de
conjunção constante, permite-lhe refletir sobre a experiência. Esse movimento
reflexivo caracteriza o entendimento: para Hume, o entendimento é a mente
qualificada pela experiência, afetada por uma impressão de reflexão que
apresenta o tempo sob a forma de passado; a imaginação é a mente mesma, mas
considerada no seu modo de refletir o tempo como um futuro determinado por uma
espera, por uma crença na previsibilidade.
A união, na mente, de casos repetidos de conjunção constante produz outra
impressão: a impressão da repetição, isto é, a impressão de que o evento de uma
experiência presente coincide em seus objetos e relações com o evento de uma
experiência passada. Essa impressão de repetição não diz respeito a uma
enumeração de casos, mas à consideração de um conjunto de casos na sua
globalidade. A relação que ela reflete não é a que une os termos de cada
conjunção constante, mas a relação entre essas conjunções mesmas, percebidas
como eventos uniformes, unidades idênticas de causa-efeito que remetem umas às
outras como sobreposições, na memória, de um mesmo caso de conjunção constante.
Mas essa relação que a mente identifica entre pares repetidos de causa-efeito é
exterior a seus termos e não se explica por eles: isso quer dizer que casos
anteriores e posteriores de uma conjunção constante apresentam-se, na
experiência, como objetos singulares de percepção, e é apenas pelo movimento de
associação de ideias que eles se unificam na imaginação. Cada caso de conjunção
constante produz uma impressão distinta e configura um dos termos da repetição,
mas a ideia de conexão entre os eventos causais, separados no tempo e espaço,
não corresponde a uma impressão distinta. Na frase "O sol nascerá amanhã porque
todos os dias até hoje nasceu", o conectivo "porque" não se reporta a nenhuma
impressão: o que produz a ideia de que a posteridade liga-se à anterioridade na
experiência e determina a mente a vagar de um objeto a outro, projetando o
passado sobre o porvir, é apenas a crença na previsibilidade. A imaginação
opera pela crença quando, determinada pela experiência reflexiva, transita da
impressão presente de um objeto à ideia de outro, ausente. Para Deleuze,9 a
crença encontra sua lei na causalidade na repetição de casos de conjunção
constante presenciados na experiência, e une, por uma relação causal
imaginária, uma ideia vívida a uma impressão presente. A imputação de
causalidade aos casos de conjunção constante constitui o hábito, sob cuja
influência a imaginação tende a prever o futuro de acordo com o passado.
Se crer é inferir com base na experiência, quando esta toma a forma de um
hábito, a crença conserva-se nos limites do entendimento e propõe-se, na
imaginação, como ato de conhecimento. Para Hume, "crer é sentir uma impressão
imediata dos sentidos ou uma repetição dessa impressão na memória; é a vividez
dessa percepção que constitui o primeiro ato do juízo e estabelece o fundamento
do raciocínio que formamos com base nela ao traçarmos relações de causa e
efeito".10 A regularidade da experiência permite-nos tirar conclusões que
excedem as percepções presentes; pela crença nascida do hábito progressivamente
constituído, convertemos a mera repetição de casos de conjunção constante em
uma produção de inferências de probabilidade. A passagem do hábito que
abrange, na mente, a união dos casos de conjunção constante na experiência à
crença ato próprio de conhecimento é comparável à transição hegeliana da
quantidade à qualidade, pela qual simples modificações quantitativas se
transformam, em dado momento, em diferenças qualitativas: produzida por certo
número de impressões acerca de conjunções passadas, a crença não acrescenta
nada à ideia, mas altera o modo pelo qual a mente a concebe, dotando-a de maior
força e vividez.
A ideia de causalidade sob a qual a mente relaciona os objetos é imaginária,
subjetiva, e não corresponde a qualquer conexão natural discernível pela
experiência: é a experiência passada que nos informa dos padrões de conjunção
causal constantemente observados e nos habitua a supor ou inferir os termos de
uma conjunção a partir da percepção de um deles. A crença na causalidade é a
primeira etapa da cognição e denota a impossibilidade prática do ceticismo
absoluto. Ela é, em Hume, o critério de verdade da ciência da natureza humana.
IV
A experiência induz-nos a esperar efeitos semelhantes de causas semelhantes.
Mas, conquanto constitua o mecanismo operatório da imaginação, o princípio da
associação de ideias não explica por que uma dada impressão evoca uma dada
ideia; noutras palavras, a regra associativa da imaginação explica seu modo de
operar com as ideias, mas não o conteúdo qualitativo das ideias associadas ou o
critério de semelhança que as relaciona. O único princípio capaz de justificar
os conteúdos singulares do pensamento é a afetividade. As paixões afetam-nos
quando o objeto que elas envolvem é de natureza semelhante à nossa. Na dinâmica
afetiva, a afinidade entre as naturezas humanas faz presumir uma
correspondência entre os estados afetivos; segundo Hume, somos guiados por uma
espécie de pré-sensação que nos adverte do que se passa com os outros a partir
daquilo que sentimos imediatamente em nós mesmos. Reside nisso o fundamento da
teoria humiana da simpatia.
A simpatia diz respeito ao "eu", na medida em que o consideramos objeto afetivo
para um "outro". A intersubjetividade tem lugar porque as naturezas humanas são
semelhantes entre si: tal semelhança apresenta-se a nós, pela experiência, como
ideia, e não como dado inato do espírito. Além da regra da associação de
ideias, o que assemelha os homens entre si é o fato de perceberem uns aos
outros como objetos afetivos. Essa afinidade de natureza é antes sentida que
pensada, ou seja, precede à consciência que formamos a seu respeito e não
depende dela. Quaisquer que sejam as paixões que nos impelem à ação, o
princípio que as anima é a simpatia.
Por efeito da simpatia, pela suposição da afinidade dos estados afetivos
humanos e pela reflexão, a partir da experiência, dos casos de conjunção
constante de motivos e ações, é-nos impossível não formar uma ideia da intenção
que imaginamos causar uma ação alheia e exprimir, ao percebê-la, um juízo
moral. A simpatia induz o sentimento de moralidade que nos leva a considerar um
caráter humano geral sem relação a interesses particulares. Mas a consideração
desse caráter geral, da perspectiva daquele que julga moralmente, é parcial: um
homem sempre pertence a uma família, a uma comunidade, a um universo afetivo
definido, e não pode ser concebido isoladamente. Segundo Hume, cada homem tem
uma posição particular quanto aos demais, posição passional, e o senso de dever
à luz do qual se orienta no universo moral e julga os demais obedece ao curso
de suas paixões. Mas a simpatia implica então uma diversidade moral, signo da
própria diversidade das paixões, das relações afetivas específicas presentes na
alma dos homens. Essa concepção moral coloca, então, uma questão política: como
indivíduos afetados de paixões parciais podem constituir uma sociedade?
Na medida em que é parcial, a simpatia é uma paixão antissocial; portanto, o
problema da sociedade passa a ser o da sua integração, o da conciliação das
simpatias a unificação das morais parciais ou subjetivas em uma moral social.
A criação de um mundo moral objetivo coincide com a fundação de uma totalidade
política, assim como a instauração do princípio artificial de justiça, em torno
do qual o mundo moral se ordena, reclama, para sua eficácia, a instituição de
uma autoridade capaz de julgar. Segundo a interpretação de Deleuze,11 a
realidade do mundo moral é a constituição de um todo social, do qual a justiça
é o princípio ordenador que harmoniza artificialmente simpatias ou paixões
naturalmente diversas. A relação entre motivos e ações é compreendida como
relação de causalidade, mas, nas ações determinadas pelas paixões, a
causalidade toma a forma de uma relação de meios e fins, visto que o efeito
esperado pelo agente é a obtenção de um bem desejado. A origem motivadora das
ações humanas constitui sua própria finalidade: o agente deseja que se produza
um efeito, cuja causa se esforçará por buscar. A finalidade propulsiona a ação:
a mente é ativada, e a paixão põe a razão em marcha. A noção de bem desejado,
contudo, vincula-se estreitamente à moral passional, à parcialidade afetiva dos
homens, e contrapõe-se ao princípio de justiça fundador da moral social. Para
evitar o confronto entre parcialidades afetivas e perspectivas morais
subjetivas, o problema moral resolver-se-á pela instituição de um princípio
moral objetivo a justiça , que estruturará totalidade política a fim de
fazer convergir a um mesmo fim os interesses particulares. A satisfação dos
fins desejos e paixões cumprirse-á então dentro de um sistema definido de
meios de ação, de mecanismos estáveis e comuns, independentes das intenções de
cada agente. Tais meios constituirão, em si mesmos, finalidades sociais
objetivas, que orientarão os agentes na busca de seus fins parciais subjetivos:
consistirão em regras de ação socialmente válidas, em normas morais, em
valores. A ação moralmente virtuosa conformar-se-á a esse valor artificialmente
instituído e será a um só tempo uma ação justa e politicamente obediente.
A sociedade é fundada para satisfazer a natureza; o instinto reclama sua
instituição: a tendência que nos compele à realização dos desejos e interesses
que formam nossa natureza afetiva exige o sistema cultural dos meios através
dos quais a moral social nos permite dar curso positivo às nossas paixões e
simpatias sem nos opormos uns aos outros. De outro modo, os inevitáveis
conflitos que decorreriam da parcialidade das simpatias e da intemperança das
paixões logo eliminariam da vida humana qualquer estabilidade. Esse momento
hobbesiano da teoria política de Hume não será contornado por um pacto
conservador dos direitos preexistentes, mas por uma convenção que irá criar
esses direitos sem negar a natureza passional e moral do homem. A sociedade
nasce, portanto, como um artifício que ilude nossas determinações naturais,
realizando-as pacificamente ao mesmo tempo que as reprime. Na fundação da ordem
social, as possibilidades de expressão da necessidade (desejo) e da natureza
(sentimento moral) coincidem com os limites assinalados pela justiça
(instituição) e pela cultura (convenção): a forma de satisfação das tendências
naturais dos homens é determinada pelo princípio de justiça que organiza o
sistema de meios morais de ação. Esse princípio é estabelecido não em nome de
uma razão superior e transcendente, mas em virtude de sua utilidade social,
isto é, da percepção de que a conservação da sociedade é útil à natureza
humana.
Instituída por uma convenção ditada pela utilidade, a sociedade organiza sua
própria ficção, cria para si uma segunda natureza, sistemática, total, que se
superpõe à primeira, caótica, fragmentada. A eleição de um princípio de justiça
convenciona a identificação artificial das morais parciais, mas sua eficácia
depende da conservação de um espírito social de obediência, tarefa que toca às
autoridades políticas, aos governantes. O exercício do poder visa a manter viva
nas imaginações a crença de que o Estado assim fundado é objeto de um interesse
e de uma utilidade em que convergem todas as paixões parciais. Como governar um
homem é induzi-lo a praticar uma ação, a dominação política deve recair
principalmente sobre as paixões; contudo, em vez de oprimi-las mediante
restrições inteiramente contrárias à natureza humana, o que seria insensato e
vão, o político aproveita-se delas, dirige-as por certos meios à consecução de
determinados fins, institui, pela lei, vias morais de realização das paixões.
Isto faz do legislador o moralista por excelência.
Deleuze aponta que, para Hume, a moral é fundada pelas paixões: o artifício é
produto da natureza humana. Em vez de situar a dualidade do sistema humiano na
oposição entre natureza e artifício, ele a estabelece entre o conjunto da
natureza, que abarca o artifício, e a mente afetada por esse conjunto. A
natureza não é uma totalidade sistêmica, mas uma coleção de acasos singulares,
aos quais a imaginação, pelo mecanismo de associação de ideias e pelo hábito
formado na experiência, confere sentido e finalidade. Na vida social, a
imaginação sobrepõe, ao fluxo de impressões desconexas que afetam a mente, uma
totalidade esquemática constituída de modelos estáveis de meios e fins, de
causas e efeitos, padrões de conjunção constante que simulam regularidade não
apenas nas relações humanas como também nos processos da natureza. O hábito é
uma segunda natureza sob o efeito da qual supomos tanto a continuidade dos
processos gerais da existência social e natural "as leis de hoje serão
válidas amanhã", "o sol nascerá amanhã como hoje" quanto a duração de nossa
própria vida. Em função do hábito, da crença na previsibilidade, podemos
cultivar planos e expectativas.
A instituição de regras de justiça, normas de associação que ensejam repetições
de modelos de conduta, consolida os hábitos sociais e, plasmando o futuro pelo
passado, produz a própria conservação da ordem política. A imaginação e a
crença imprimem ao mundo e à vida social uma previsibilidade artificial mas
eficaz, cuja ausência não nos permitiria distinguir os meios de ação que
serviriam a nossos fins. Por isso a sociedade é útil: mercê da convenção que a
institui, podem os homens moldar o mundo exterior segundo as associações das
ideias na imaginação e outorgar constância e uniformidade à sucessão de suas
próprias impressões. Mas a relação causal atribuída pela imaginação aos casos
de conjunção constante entre atos e intenções recebe ainda o acréscimo de um
terceiro termo: as circunstâncias de tempo e lugar. Estas explicam a
diversidade que, a par da regularidade, se observa na prática humana. A
história das sociedades é a história dos sistemas de crenças cristalizadas, uma
história das diferentes convenções de justiça estatuídas em proveito da
harmonização de paixões naturais invariáveis: em Hume, a história é a
verdadeira ciência da motivação humana, ciência que mostra como os homens, sob
circunstâncias morais e sociais diversas, julgam uns aos outros por um critério
artificial, fundado numa ideia convencionada de justiça, e por um critério
natural, determinado pela associação de causa e efeito com que relacionam os
motivos e as ações de seus semelhantes.