A estrutura retórica do verbete Spinoza
1. Bayle e o nascimento da tradição interpretativa do espinosismo
Para os estudiosos da filosofia espinosana, o verbete Spinoza do Dictionnaire é
de grande relevância histórica, pois, com Bayle, nasce propriamente a tradição
interpretativa do espinosismo. São dele idéias, imagens e sugestões que iriam
alimentar, durante os séculos vindouros, as sucessivas leituras da obra e, mais
freqüentemente, as substituíram, o verbete sendo mais lido do que Espinosa. Por
ser essencialmente um publicista, divulgador e difusor das opiniões de sua
época na perspectiva do protestantismo tolerante, Bayle evita deliberadamente
opor à filosofia de Espinosa uma outra, como fizeram os críticos que o
antecederam. Pretende colocar Espinosa contra si mesmo para que se destrua. Com
seu verbete, institui um campo de generalidades no qual ficou esculpida em
baixo-relevo a imagem do espinosismo que seria gravada como um selo nos
comentários, interpretações e retomadas que a obra espinosana iria suscitar na
fieira dos tempos.
Melhor do que qualquer de seus contemporâneos, Bayle expõe o mal-estar causado
pela filosofia de Espinosa, que parece exigir dos leitores plena adesão ou
obrigá-los à total repulsa. Ao mesmo tempo, em decorrência do papel por ele
atribuído ao "ateu virtuoso", introduz a tendência contínua e tenaz da fortuna
crítica do espinosismo, isto é, o uso da biografia de Espinosa tanto como peça
de acusação quanto como álibi para salvar-lhe a vida, condenando-lhe a obra.
Inaugura as principais vertentes da interpretação da obra de Espinosa ao
oferecer um conjunto de traços articulados que viriam a se desarticular,
posteriormente, nas interpretações de seus sucessores: dele vem a imagem do
Espinosa cabalista, que Wachter e Leibniz iriam explorar; a do oriental, que,
primeiro, Malebranche e Leibniz e, depois, Hegel não cessariam de enfatizar,
vindo a ser retomada por intérpretes nossos contemporâneos; a do materialista,
que iria receber a boa acolhida dos ilustrados franceses, a repulsa dos
idealistas alemães e o interesse de Feuerbach, Marx e Engels, passando aos
marxistas, até chegar a nossos dias; a do místico entusiasta, que repugnaria
Kant, mas iria apaixonar os românticos; a do herdeiro de Duns Scotus, que será
desenvolvida por nossos contemporâneos.
Nele, melhor do que em todos os outros, consolida-se a imagem do perigo
espinosista, isto é, de uma razão que não conhece limites, cuja hybris a faz
descambar no paradoxo e na incoerência. Essa imagem que, em Bayle e na sua
posteridade imediata, cristaliza-se na figura do "ateu de sistema", irá, mais
adiante, com a laicização do augustinismo, do calvinismo e do jansenismo
(laicização que traduz o tema do fatalismo metafísico e da predestinação
teológica para o tema filosófico-científico do determinismo), levar ao
aparecimento do "problema do espinosismo", isto é, a impossibilidade de uma
ética da liberdade numa filosofia que expulsa a finalidade e afirma a
necessidade absoluta, problema enfaticamente posto por Jacobi na "querela do
panteísmo", retomado com obstinação por Kant e jamais abandonado depois dele.
De Bayle vem ainda a imagem da insensatez de Espinosa, como conseqüência do
exagero racionalista de um cartesiano oriental e entusiasta, imagem que, por
seu turno, levará à do pensador contraditório, que iria alimentar inumeráveis
comentários da obra.
2. Ateísmo prático ou o ateu virtuoso
Para o leitor de Pensamentos Diversos sobre o Cometa, a atitude de Bayle, no
Dicionário, é desconcertante. De fato, no texto de 1683, partindo do martírio
de Vanini, da consideração do pensamento dos libertinos e da vida exemplar de
Espinosa, Bayle acompanhava Plutarco para quem o ateísmo não é pernicioso para
a vida civil, porque daninha para ela é a superstição, verdadeira causa do
ateísmo, pois:
'os primeiros que abraçaram o ateísmo não o fizeram por terem alguma
coisa a dizer sobre os céus, os astros, as estações, as revoluções do
sol (...) nem por haverem notado alguma desordem ou defeito no
alimento dos animais ou na produção dos frutos. Nada disso. Foi a
superstição a causa: suas ações estranhas, suas paixões ridículas,
suas palavras, seus movimentos, suas feitiçarias e encantamentos
(...) os ultrajes feitos a si mesma nos templos, tudo isso levou
alguns a dizer que mais valeria aos homens não ter Deus algum do que
vê-los aprovar tais coisas' (...) A finalidade de Plutarco é fazer
ver que a superstição é pior do que ateísmo.1
A crença verdadeira resume-se a poucos dogmas: há um Deus criador e
providencial, há vida futura e julgamento das ações humanas, os homens precisam
da graça divina, dom do Espírito Santo, e da redenção, dom do Filho. Como os
membros da Royal Society, Bayle afirma a existência dos milagres e por isso
mesmo sublinha sua excepcionalidade, afastando-os dos fatos naturais cotidianos
que, se tidos por milagrosos, indicam mais a ignorância e a superstição do
vulgo do que o poder divino.
O ateísmo pode ser eficazmente combatido pela percepção de que a Natureza é
prodigiosamente bem ordenada e que essa ordem lhe deve ter sido imposta por uma
inteligência e vontade superiores. Pode-se também combatê-lo pela autoridade
dos políticos, pois podemos satisfazer às nossas dúvidas sem recorrer à razão
nem à experiência, recorrendo a algo "mais doce, pacífico e apaziguante", isto
é, à autoridade do soberano, que declara qual é a verdadeira religião, que
obedecê-la é a verdadeira piedade e que a verdadeira virtude está no amor à
pátria e no temor aos castigos. Outra via eficaz no combate ao ateísmo é a
autoridade dos sacerdotes, únicos investidos no poder de interpretar augúrios,
presságios, profecias e revelações e impô-las ao povo, castigando os que se
opuserem ao sentido apresentado. Enfim, não menos eficaz nesse combate são as
ações dos demônios porque não desejam a existência de ateus, sobre os quais
nada podem, e preferem a dos devotos, competindo com Deus pela posse de suas
almas. Ordem natural, ordem institucional e ordem sobrenatural são, pois
instrumentos suficientes para combater o ateísmo.
A idolatria ou superstição é pior do que o ateísmo porque é pior uma crença que
atribui imperfeições a Deus do que a mera negação de Sua existência, pois uma
crença desse tipo favorece brutalidades, extravagâncias, crimes e paixões
poluidoras, levando a impiedade maior do que a daquele que nada atribui a Deus
porque Lhe nega o ser. O conhecimento que o idólatra possui de Deus só serve
para tornar seus crimes mais atrozes, pois o ateu desconhece a vontade de Deus,
mas o idólatra a conhece e, portanto, seus crimes não podem ser imputados à
ignorância, mas à malícia. Não se deve esquecer, ainda, que é mais difícil
converter um idólatra do que um ateu, pois ao crer em falsos princípios e
praticar falsas cerimônias, seu espírito fica preenchido e convencido de que
está na verdadeira religião e nada o fará abandoná-la, senão com enorme
dificuldade. Finalmente, a idolatria é pior do que o ateísmo porque a desordem
e a obstinação nas disposições do entendimento e do coração dos idólatras são
maiores do que nos ateus, pois as infâmias que os primeiros atribuem a Deus são
piores do que a "horrível cegueira" e a "prodigiosa ignorância" dos segundos.
Bayle coloca esse conjunto de teses a serviço de um argumento preciso, ao
término do qual surgirá a figura, até então impensável, do "ateu virtuoso". Com
efeito, as teses aduzidas por Bayle levam, paulatinamente, à idéia de que o
ateísmo não é natural - naturalmente os homens tendem a crer numa divindade
ordenadora da Natureza -, mas resulta da crítica da idolatria e da superstição,
que destroem tanto a religião natural quanto o cristianismo ou religião
revelada. A malícia e o desregramento em que vivem os supersticiosos permitem
inferir que essa crítica não é feita por aqueles que se deliciam com uma vida
de crimes e deboches, nem por aqueles que se satisfazem com a boa mesa, a boa
cama, a fama, a riqueza e a glória porque esses não têm tempo nem o menor
interesse em discutir as divergências entre peripatéticos e platônicos,
acadêmicos e cartesianos. São, portanto, os homens de bem que fazem a crítica e
por ela são arrastados ao ateísmo, à vista do escândalo da idolatria e da
superstição.
Apanhando um fio lançado pelos libertinos eruditos, Bayle determina o campo no
qual o ateísmo pode ser compreendido: o dos costumes ou das convenções
religiosas, políticas e teológicas, e o dos temperamentos ou caracteres. Indaga
ele: por que vemos as mesmas paixões e os mesmos vícios em todos os homens,
sejam eles judeus, cristãos, pagãos ou maometanos? Turco ou persa, indu ou
tártaro, nobre ou plebeu, dessemelhantes em tantos costumes, porque são
semelhantes em tantas paixões? E responde que isso decorre apenas
de que o verdadeiro princípio das ações do homem não é outro senão o
temperamento, a inclinação natural para o prazer, o gosto por certos
objetos, o desejo de agradar alguém, ou alguma outra disposição que
resulta do fundo de nossa natureza, seja qual for o país em que se
nasça e sejam quais forem os conhecimentos com que nos encham o
espírito?2
Costumes, leis, religiões, cerimônias nascem desse fundo e da necessidade de
dirigi-lo para que os homens não sejam inteiramente funestos uns aos outros.
Nessa perspectiva, não há porque conservar a idéia de maldade natural dos
ateus, nem que sejam mais viciosos ou mais criminosos do que os outros. A
história e a experiência ensinam que houve e há inúmeros ateus virtuosos e isso
"não é mais estranho do que um cristão que pratique todo tipo de crime", pois
se vemos "essa espécie de monstro todos os dias, porque acreditar que a outra
seria impossível?". Donde a conclusão de que "o ateísmo não conduz
necessariamente à corrupção dos costumes" e que a devoção religiosa tanto
quanto a descrença dependam menos do conhecimento da existência de Deus e muito
mais do tipo de temperamento e do costume que sobre ele atua:
Do fato de haver ateus que, moralmente falando, têm boas inclinações,
é fácil concluir que o ateísmo não é uma causa necessária de vida
malvada, mas somente uma causa por acidente, ou uma causa que não
produz a corrupção dos costumes, senão naqueles que tem forte
inclinação para o mal para cair no deboche mesmo sem isso.3
A partir dessa conclusão, nada impede conceber a possibilidade de uma sociedade
atéia, "mesmo que disso não tenhamos Anais e Histórias". Bayle não julga,
portanto, escandalosas ou descabidas as idéias de La Mothe Le Vayer, ainda que
contrárias às mais caras teses cristãs, quanto à possibilidade de uma república
atéia, bastando para tanto observar que
uma sociedade de ateus praticaria ações civis e morais tanto quanto
as praticam outras sociedades, desde que faça punir severamente os
crimes e que atribua honra ou infâmia a certas coisas.4
Aliás, é possível imaginar que, nessa república, a virtude seja mais prezada do
que nas sociedades religiosas porque, não crendo na Providência, nem na
imortalidade da alma e na remuneração após a morte, seus membros só podem crer
neles mesmos e nas leis que promulgarem, respeitando-as como condição única de
suas vidas e da felicidade possível.
As idéias desenvolvidas por Bayle nos Pensamentos Diversos não desaparecem
inteiramente no Dicionário. Justamente porque as noções de temperamento e
costume são centrais na elaboração bayleana do ateísmo, no verbete Spinoza a
biografia de Espinosa exibe seu temperamento e o apresenta como homem virtuoso,
por inclinação e por costume. Também não desaparece a afirmação de que
obediência e medo políticos vão de par com a religiosidade supersticiosa e a
concordância com "muitos" que disseram haver sido a religião inventada para
obter obediência medrosa dos crentes e súditos. Esses "muitos", por negarem a
imortalidade da alma e a divina providência, são aqueles que mais prezam a
verdadeira virtude e sua utilidade social. O Dicionário conserva, portanto, a
idéia de "ateu virtuoso". A novidade trazida pelo verbete Spinoza é outra por
assentar-se numa outra figura de Espinosa: a do "ateu de sistema", idéia
espantosa porque nem mesmo os defensores do ateísmo virtuoso admitiram a
possibilidade do ateísmo especulativo. Com efeito, por motivos diferentes,
Bacon, Descartes, Arnauld, Malebranche e Leibniz consideram o ateu uma figura
aquém da razão e por isso um ateu especulativo é uma contradição nos termos. Um
"ateu de teoria", como diz o século, é impossível. Para Bayle, no entanto, a
existência do sistema espinosista aparece como a finalização do projeto
insensato da razão moderna: levado às últimas conseqüências, o racionalismo só
pode ser ateísmo especulativo.
Duas idéias permanecem constantes no pensamento de Bayle, desde Pensées
Diverses até o Dictionnaire: a primeira é que as objeções filosóficas à fé são
legítimas e mais claras do que as respostas dos teólogos porque a razão é
potente para objetar, mas os mistérios da fé são incompreensíveis e dependem da
autoridade de Deus; a segunda é que preciso ter a religião no coração e não no
espírito porque daquilo que está no espírito, a razão pode ser juiz, porém não
tem competência para julgar "o que se passa no coração de outrem". A razão é
publicidade; o coração, interioridade.
É impossível, para o homem, realizar a síntese entre seu saber e sua crença.
Por isso, na mesma medida em que à consciência religiosa repugnam as tentativas
dos teólogos para tornar racional a fé, também à consciência cética repugna a
tentativa oposta, isto é, o ateísmo, que busca a superioridade da razão sobre a
fé. Assim, não há, em Bayle, paradoxo entre a tolerância para com o "ateu
virtuoso" e a intolerância para com o "ateu de sistema". A filosofia de
Espinosa é combatida enquanto sistema racional do ateísmo. Porque, no
Dicionário, o combate se trava contra o sistema e sua pretensão à
racionalidade, a argumentação de Bayle (em perfeitamente consonância com os
preceitos da retórica judiciária) articula a cada tese considerada
racionalmente absurda uma proposição tida por religiosamente ímpia, a fim de
alcançar o alvo preciso, isto é, demonstrar que a filosofia de Espinosa
contraria a razão, a experiência e os bons sentimentos.
O ateísmo, predisposição universal de certos temperamentos que combatem a
idolatria e a superstição, metafisicamente afirma como dogmas: identidade entre
Deus e universo, eternidade e necessidade da Natureza, inexistência de entes
singulares ou de indivíduos distintos da substância divina. O ateísmo
sistemático ou especulativo é a predisposição atéia transformada em teoria
matematicamente demonstrada. Em suma, a virtude atéia não é necessariamente
correlato de boa metafísica.
3.A nova figura do ateísmo
O verbete Spinoza cobre um campo vasto de referências que balizam a acusação de
ateísmo. Se é verdade que, no caso específico de Espinosa, as principais
referências são, na metafísica, a unicidade substancial e o mecanicismo; na
política, o direito natural e civil como potências despojadas da normatividade
exigida pela idéia de justiça; e, na moral, a teoria dinâmica do conatus, que
elimina causas finais e livre-arbítrio, não é menos verdade que essas teses são
apresentadas no interior de uma moldura formada pela história do ateísmo como
predisposição do espírito humano toda vez que depara com a superstição.
Todavia, há algo mais profundo que subjaz ao texto de Bayle, isto é, a mudança
histórica da imagem do ateísmo.
Entre o final do século XVI e o início do século XVII, o termo ateu é empregado
para referir-se a duas atitudes principais: ao anti-clericalismo e anti-
sacramentalismo plebeus, tanto na tradição da blasfêmia e irreverência
populares, quanto nas seitas espirituais; e ao ceticismo dos empiristas, que
não admitem que a experiência possa oferecer o conhecimento das verdades
propostas pela fé, atribuem origem política às religiões e ostentam, pelo menos
publicamente, o fideísmo, estando mais interessados em denunciar a superstição
e os preconceitos do que em discutir provas da existência ou inexistência de
Deus.
Quando Bacon escreve, no início do século, oferece quatro causas para o
ateísmo: as divisões religiosas, pois quando são poucas cada partido se esmera
no zelo para provar sua superioridade, mas, quando muitas, perdem todas o
valor, ao mesmo tempo em cada uma delas finge excesso de santidade e descamba
na exterioridade farisaica; o anti-clericalismo, provocado pelos abusos das
igrejas e dos sacerdotes, não só no plano dos costumes, como também no da
especulação, à maneira do sucedido no Concílio de Trento, quando "escolásticos
inventaram sutis e intrincados axiomas e teoremas" para tentar salvar Roma; a
zombaria profana, que elimina a reverência pela religião; e "tempos de
instrução, paz e prosperidade" porque se, em tempos adversos, os homens buscam
conforto, apoio e esperança na religião, em tempos prósperos tendem a exaltar-
se a si mesmos, com orgulho e arrogância.
O século, porém, parece muito mais propício a esse último tipo de causa e vê,
ao lado das duas primeiras modalidades de ateus (os espirituais e os
blasfemadores), o aparecimento de um terceiro grupo,5 os deístas, com a
afirmação da religião natural, cuja razoabilidade dispensa a revelação e a
graça. O século também vê as conseqüências do mecanicismo cartesio-hobbesiano e
os efeitos do Teológico-Político, isto é, a difusão de um método exegético que
instaura a dúvida quanto à autenticidade do Pentatêuco, que vincula entre
profecia e política, milagre e superstição. É verdade que há deístas que não se
limitam à filosofia natural mecanicista e julgam o cristianismo a forma
superior da religião universal, a expressão mais alta da razoabilidade
religiosa. Todavia, o aparecimento do deísmo, considerado efeito do naturalismo
mecanicista, é responsável pela exigência de uma teoria da reta razão com a
qual os cristãos defendem não só a razoabilidade do cristianismo, mas também
atacam o ateísmo dos puros deístas.
Dessa maneira, um quadro teórico novo, que forçou a redefinição do campo
teológico, também passou a exigir a ampliação do elenco das causas do ateísmo,
outrora propostas por Bacon. Já não bastam causas externas, como as baconianas.
É preciso, agora, determinar as causas intrínsecas do ateísmo como atitude
teórica.6 Doravante, reconhece-se a diferença entre o ateu e o verdadeiro
crente pelos argumentos apresentados para a prova da existência de Deus
(origem, causa e finalidade do mundo criado), para a descrição e demonstração
dos propósitos e das funções do universo e da existência\conservação dos
princípios da moralidade (teodicéia), e para a prova da autenticidade das
Sagradas Escrituras e dos ensinamentos da Igreja (romana ou reformada). São
esses critérios que orientam a avaliação de Espinosa por Bayle:
Reconhecer um primeiro princípio e criador de todas as coisas não é
prova de não-ateísmo(...) Estratão e alguns filósofos ateus, entre os
antigos, e Espinosa, entre os modernos, reconhecem esse primeiro
princípio. É preciso, portanto, para distinguir-se do ateísmo,
reconhecer formalmente que esse primeiro ser não age por emanação,
nem produz o mundo por uma ação imanente, que ele não é determinado
por uma necessidade natural, e que ouve nossas preces, podendo mudar
o curso das coisas para atendê-las.7
Transcendência, criação ex nihilo, providência, intelecto, vontade, liberdade -
do lado do ser de Deus -, livre-arbítrio, pecado original, fragilidade da razão
e da vontade - do lado do homem -, socorro divino - por meio da graça, da
revelação, do milagre e da religião -, eis o que afirma o crente autêntico e o
que nega o verdadeiro ateu. O ateísmo tornou-se, portanto, especulativo,
restando compreender como ele é possível e porque Espinosa é seu primeiro e
mais significativo exemplar. Para Bayle, o racionalismo extremado de Espinosa,
despojando Deus de intelecto e vontade, submetendo o homem à fatalidade das
leis naturais e negando-lhe vontade livre, é, afinal, irracionalismo que torna
impossível diferenciar os indivíduos segundo o critério moral da virtude e do
vício.
Bayle observa que Espinosa "lançou-se no precipício" por haver enfrentado
dificuldades reais a que não soube dar resposta adequada. Foi por tentar
compreender, por um lado, como a matéria poderia ser eterna, diferente de Deus
e não ser produzida do nada e, por outro lado, como um espírito infinito,
soberanamente livre, criador de todas as coisas poderia produzir uma obra como
o mundo, que Espinosa enfrentou questões que nem mesmo os crentes podem evitar.
Afinal, uma matéria que exista necessariamente, mas seja destituída de
atividade e submetida à potência de um outro princípio "é coisa com que a razão
dificilmente se acomoda" e "a idéia de ordem combate tal associação". Não menos
inconcebível é a idéia de uma matéria criada por um ato de vontade que faça
existir o que antes não era. O antigo princípio "nada se faz a partir do nada"
habita nossa imaginação e dificulta a idéia de criação ex nihilo. Difícil
também, para nossa razão, a idéia de um ser infinitamente bom, justo e
perfeito, que só poderia desejar criaturas boas, justas e felizes, mas permitiu
que sejam criminosas e infelizes. Sofre a razão quando busca conciliar a idéia
de liberdade humana e a qualidade de um ser tirado do nada, cujo acordo é
condição para a existência de uma Providência livre, boa e justa.
Procurando evitar os inconvenientes dessas idéias, Espinosa escolheu o caminho
da extravagância e da abominação. Todavia, se ele e o cristão são diferentes
não é porque este último tenha encontrado as verdadeiras respostas àqueles
problemas: simplesmente, encontrou soluções menos obscuras, menos opostas à luz
natural e, sobretudo, capazes de consolá-lo nesta vida pela promessa de uma
felicidade infinita, na outra.
Nessa perspectiva, não se pode pedir a quem refuta Espinosa que resolva os
problemas por ele enfrentados, mas que esclareça porque os erros espinosistas
são inaceitáveis. Trata-se de mostrar que as soluções de Espinosa acarretam
dificuldades maiores do que as que ele pretendera resolver. Por isso Bayle
centrará sua refutação na análise da proposição 5 e da Parte I da Ética.
4. O verbete Spinoza ou o ateísmo especulativo
À primeira vista, o verbete Spinoza é desconcertante. De fato, o texto
propriamente dito é breve, mas as notas marginais e as observações críticas são
longas,8 parecendo interromper o raciocínio do texto central ao introduzir
anedotas e informações dispensáveis ao desenvolvimento da argumentação.
Todavia, a falta de unidade é aparente. Quando incorporamos notas e observações
ao texto principal percebemos que o verbete é uma peça judiciária perfeitamente
conforme à preceptiva retórica do século XVII. O motivo para o enorme
levantamento de informações decorre de exigências próprias do gênero retórico
escolhido para o verbete.
O verbete Spinoza inicia-se com concisão:
Espinosa (Bento). Judeu de nascença, depois desertor do judaísmo e,
por fim, ateu, era de Amsterdã. Foi um ateu de sistema e com um
método todo novo, embora o fundo de sua doutrina lhe fôsse comum com
outros filósofos antigos e modernos, europeus e orientais.9
E no final do verbete, lê-se:
morreu bem persuadido de seu ateísmo.10
Como se observa, o exordium ou proemium apresenta o status causae: judeu de
nascença, Espinosa passou do judaísmo ao ateísmo. Trata-se, portanto, do exame
de um caso de ateísmo. A conclusio é uma verdadeira coda, pois resume numa
frase a totalidade do percurso realizado: morreu bem persuadido de seu ateísmo.
Torna-se, portanto, possível a condenação de sua filosofia.
A biografia de Espinosa opera em dois registros simultâneos: por um lado,
confirma a teoria bayleana do papel do temperamento e do costume sobre o
ateísmo, ou seja, a tese de que superstição ou falsa religião conduzem ao
ateísmo e que o homem de bom temperamento pode ser um ateu virtuoso - nesse
nível, a biografia opera como apresentação de signos e indícios sobre o acusado
(temperamento, idade, riqueza, posição social, regra de vida, amigos,
reputação); por outro lado, opera como escuta de testemunhas (quem o conheceu,
quem sobre ele escreveu), cujo número deverá ser o maior possível (a
credibilidade, como ensinam Cícero e Quintiliano, aumenta com o número de
depoimentos) e cuja veracidade será tanto maior (também conforme lição de
Cícero e Quintiliano) quanto menos estiverem diretamente interessadas no caso e
mais interessadas na verdade dos fatos. Em outras palavras, Bayle apresenta os
indícios e sinais do ethos do acusado e o seu próprio ethos como acusador justo
e imparcial.
A aparente miscelânea de textos sobre Espinosa, tanto a favor como contra ele,
e de referências a inúmeras obras de pensadores orientais e europeus antigos,
medievais e modernos também faz parte dos signos e indícios, porém não estão
apenas a serviço da coleta de testemunhos, mas servem para instruir o processo
para a produção da causa, particularmente quando recolhidos pela comparação
entre as idéias do acusado e de outros pensadores, já submetidos ao julgamento
de impiedade e incredulidade.
Após ouvir as testemunhas, recolher signos e indícios, selecionar as primeiras
e classificar os segundos, ou seja, após a inventio, Bayle examina as provas
diretas. Passa, então, à narratio, isto é, ao exame dos textos de Espinosa para
avaliar os danos por eles causados (a Deus e aos homens). De acordo com a
preceptiva retórica de amplificação da prova, é apontada a semelhança de seus
escritos com os textos de outros autores julgados ateus.
Instruído o processo, tanto de verba quanto de re, estabelecido o caso e
definida a causa, Bayle, de posse da evidência segura, encaminha o processo ao
tribunal da recta ratio para que todo "espírito reto" e todo "homem de bem" não
possam, sem justo motivo, recusar o veredito que lhes é ensinado pela
argumentação do acusador.
a) inventio ou determinação da causa ou do caso
A partir dos dados biográficos, Bayle descreve Espinosa como homem "que não
aceitava coação sobre a consciência e era grande inimigo da dissimulação",
motivo pelo qual, ao romper com os rabinos, se afasta da Sinagoga para evitar
hipocrisia, ainda que, segundo o autor, isso lhe houvesse sido proposto por
alguns dirigentes da comunidade judaica de Amsterdã. Embora bem acolhido nos
meios cristãos dissidentes, Espinosa teria preferido o isolamento porque, ao
ler Descartes e ser "tomado por forte paixão pela busca da verdade", teria
abandonado todo o resto para dedicar-se à filosofia. Apesar da vida solitária,
sua reputação como fabricador de lentes e filósofo espalhou-se rapidamente, e
"de toda parte, acorriam os espíritos fortes" para ouvi-lo e com ele discutir.
Pessoa afável, honesta, prestativa e "de costumes bem regrados", Espinosa
suscita o comentário de Bayle: "é estranho". Mas nem tanto, prossegue o
verbete. Porque espantar-se com que um ateu seja virtuoso quando se vê "os que
vivem muito mal, embora persuadidos do Evangelho"? Estranho não é isso. A
pergunta de Bayle é outra: porque Espinosa "se teria precipitado no ateísmo"? A
resposta não se faz esperar: porque exagerou as idéias de Descartes. Bayle
reafirma um dos mais persistentes lugares comuns do século, isto é, que o
cartesianismo mal compreendido é germe do ateísmo. Está determinada a causa e
definido o caso. Resta circunscrevê-los.
b) narratio: exposição e refutação do espinosismo
Dispondo-se a realizar a tarefa que, em sua opinião, ainda não fora levada a
cabo por ninguém, ou seja, a refutação definitiva do espinosismo, "a mais
monstruosa hipótese que se possa imaginar", Bayle, apoiado nas testemunhas,
afirma que "por modéstia" Espinosa recusara dar seu nome a uma seita e que
poucos são seus seguidores. Entre estes, não são muitos os que estudaram a obra
e, destes, raros os que a compreenderam, "desencorajados pelas perplexidades e
abstrações" que a caracterizam. Com isso, Bayle afasta o temor generalizado de
que o espinosismo pudesse ter-se espalhado e contaminado toda a Europa,
atribuindo sua pequena presença à obscuridade da própria doutrina. Assim
procedendo, o refutador delimita seu campo de ação: o processo não visa aos
poucos espinosistas existentes, mas à obra de Espinosa. Com relação a esta,
ainda que seguidores e críticos fiquem embaraçados com sua obscuridade, no que
tange ao ateísmo, a doutrina de Espinosa não engana a ninguém. A acusação é uma
só e uma só deverá ser a refutação: o caso a julgar é um processo de ateísmo.
Finalmente, embora as idéias espinosistas sejam "as mais diametralmente opostas
às noções mais evidentes de nosso espírito", a refutação do espinosismo não
pode cair na armadilha dele nem ceder a ele. Cabe ao refutador enunciar
claramente as principais teses de Espinosa para melhor combatê-las. Através do
exame e comentário dos textos, Bayle pretende pôr em pratica, mais do nunca, a
regra da boa-fé crítica, exposta no verbete Barlette: "não se pode confundir o
que um homem diz com as conseqüências do que disse", portanto, "acusai as
pessoas de haverem dito exatamente o que disseram."
A doutrina de Espinosa resume-se a poucas teses: há, na Natureza, uma única
substância, dotada de infinitos atributos, entre os quais a extensão e o
pensamento; todos os corpos existentes na Natureza são modificações dessa única
substância, enquanto extensa, e todas as almas dos homens são modificações
dessa mesma substância, enquanto pensante; essa única substância é Deus, o ser
necessário e infinito, que produz em si mesmo e por uma ação imanente tudo o
que existe, isto é, as criaturas são suas modificações.
Todavia, prossegue Bayle, "son sentiment n'est pas nouveau". Por inserir-se na
longa tradição atéia, o espinosismo não faz senão retomar uma "seita conhecida
dos chineses", opiniões de "certos maometanos conhecidos como homens da
verdade", a "cabala dos sufis", idéias de alguns "letrados persas", certos
"dogmas conhecidos dos indus", o hermetismo dos egípcios, também defendido por
Fludd, mas, felizmente, refutado por Gassendi, a posição dos saduceus
maometanos, para os quais "tudo o que se vê, tudo o que está no mundo, tudo o
que foi criado é Deus", e as idéias da seita chinesa de Foe Kiao (descrita
pelos missionários jesuítas). Com variantes, as doutrinas orientais resumem-se
a três afirmações: identidade entre Deus e o mundo, irrealidade dos indivíduos,
meras aparências na superfície da matéria, e recusa da imortalidade individual
da alma, com a conseqüente recusa de uma Providência divina que julga os homens
segundo o bem e o mal definidos por Sua lei. A este orientalismo devem-se
acrescentar a Cabala judaica, o averroísmo maometano, a lista dos hereges
cristãos, adeptos da idéia de uma Alma do Mundo, isto é, os neoplatônicos de
várias tonalidades e, evidentemente, Abelardo, "acusado de haver dito que todas
as coisas estavam em Deus e que Deus era todas as coisas".
Dessas doutrinas antigas, como das cinzas, nasce o espinosismo cujas teses,
insiste Bayle, não são novas. Nova é a sistematização que recebem de Espinosa e
é essa novidade que precisa ser examinada, se se quiser refutá-lo. Em outras
palavras, os que até agora refutaram o espinosismo incorreram sempre no mesmo
erro porque meramente opuseram outras idéias às de Espinosa, sem perceber que
esse procedimento o fortalece, em vez de enfraquecê-lo. A boa refutação precisa
realizar duas operações: na primeira, demonstrar que Espinosa ignora o
verdadeiro sentido dos conceitos que emprega; na segunda, voltar contra o
espinosismo as conseqüências absurdas de suas próprias teses.
Admitamos que haja no universo uma única substância infinita, extensa e
pensante, idêntica à Natureza e a todos os entes nela existentes. Se isso for
admitido, então ninguém menos do que os espinosistas poderá negar a aparição de
espíritos - que Espinosa nega -, nem a existência dos milagres - que Espinosa
recusa - nem o medo do inferno - que Espinosa não aceita.
Com efeito, quando se crê que o mundo foi criado do nada pela vontade de um ser
soberanamente perfeito, pode-se negar a existência de anjos, dizendo-se que
agradou a Deus criar apenas as almas dos homens e não Lhe aprouve criar outros
espíritos. Entretanto, quando se supõe que o criador não agiu livremente, que
estendeu necessariamente toda sua potência, que seu pensamento está modificado
pelo universo inteiro e que, pelo dualismo dos atributos divinos, não há
qualquer "vínculo natural entre o cérebro e o entendimento", então não há
qualquer razão que impeça a existência de anjos, espíritos e espectros. Do
mesmo modo, nada justifica que Espinosa negue a realização de milagres. Quando
os espinosistas os recusam, afirmando que Deus e a Natureza são idênticos, que
Deus jamais suspende a racionalidade da ordem natural, porque nada faz contra
as leis que exprimem sua potência necessária, não sabem o que dizem. De fato,
se a potência e o entendimento divinos são infinitos e estão espalhados pelo
universo inteiro, então, nada impede que alguns modos de Deus conheçam, tal
como Deus a conhece, a estrutura invisível das menores porções dos corpos e que
possam alterá-la segundo leis naturais. Neste caso, podem, por exemplo,
ressuscitar um morto, como Jesus Cristo ressuscitou Lázaro. Incoerência
semelhante encontra-se na negação do medo do inferno. Mesmo que não se admita a
existência do ser soberamente perfeito, criador do universo, que o governa e
remunera os homens segundo seus méritos, ainda assim, será preciso admitir que
a infinitude divina, extensa e pensante, espalha-se pelo universo inteiro e não
se reduz ao pequeno ponto chamado Terra. Neste caso, é preciso admitir que, nos
espaços imensos e invisíveis, existem modificações divinas, em tudo semelhantes
às terrestres: "a razão, o espírito, a ambição, o ódio, a crueldade estariam
apenas na terra e não em toda outra parte?". É preciso também reconhecer que
essas modificações podem julgar, como o fazem os homens, que têm poder sobre
tudo quanto possam dominar e que, embora não as vejamos nem as conheçamos,
podem ser mais fortes do que nós e não ser indiferentes a nós, tendo força para
nos dominar. Além disso, nossas almas, porque são modificações do pensamento de
Deus, são imortais, mesmo que Espinosa, incoerente e contraditoriamente, o
negue. Nada impede, portanto, que após a morte, nossa alma se dirija a esses
espaços imensos, onde modificações divinas poderosas a castiguem ou
recompensem.
No entanto, essas refutações são insuficientes para abalar a obstinação
espinosista. É preciso atingir a doutrina em seu centro nervoso e por isso o
núcleo da crítica de Bayle é a unicidade substancial e sua conseqüência, a
identidade entre Deus e Natureza, que destrói o ser divino e desordena os seres
naturais. "Prendi-me à refutação da proposição que é a base de seu sistema",
afirma Bayle, referindo-se à proposição 5 da Parte I da Ética: "Na Natureza não
pode haver várias substâncias de mesma natureza ou atributo". E exclama: "Eis
seu calcanhar de Aquiles!".
Além de considerar inadmissível a existência de uma única substância, colocada
por Espinosa no lugar da necessária multiplicidade substancial, garantidora da
individualidade dos entes, Bayle também considera inadmissível que a extensão
possa ser um atributo da substância divina, pois a divisibilidade e a
corruptibilidade, próprias da matéria, são incompatíveis com a essência una e
incorruptível de Deus, e julga ainda mais inaceitável que tal atributo divino
se modifique em corpos finitos. Todavia, a tese do atributo extensão não é
apenas incompatível com o ser de Deus: ela também o é com relação às criaturas.
De fato, a continuidade e a indivisibilidade, próprias de um atributo divino,
fazem com que a extensão espinosista proíba a existência real de seres
individuais, de sorte que os corpos finitos reduzem-se a meras aparências ou à
inexistência. Em suma, a divisão e corrupção da matéria, de um lado, e a
indivisão, simplicidade e continuidade do ser divino, de outro, revelam o
absurdo de afirmar que há uma única substância e que Deus é extenso.
No entanto, as críticas ao conceito espinosano de extensão, cujos enganos Bayle
remete a erros científicos do filósofo e à sua ignorância das novas
experiências da filosofia natural, erros e ignorância decorrentes de
pressupostos metafísicos absurdos, são menos severas do que aquelas endereçadas
à imanência do atributo pensamento, isto é, contra a demonstração de que as
almas são modificações finitas do intelecto infinito, ou nas palavras de Bayle,
que todos os sentimentos de todos os homens estejam em uma só
cabeça.11
Interpretando a causalidade imanente da substância como identidade entre Deus e
os modos finitos (humanos, animais, vegetais e minerais), e a do atributo
pensamento como identidade entre um sujeito (Deus) e todos os conteúdos das
mentes humanas, Bayle é taxativo:
Iremos ver absurdos ainda mais monstruosos ao considerarmos o Deus de
Espinosa como sujeito de todas as modificações do pensamento (...) Se
é prodigioso absurdo, falando do ponto de vista físico, que um
simples e único ser seja modificado ao mesmo tempo pelos pensamentos
de todos os homens, é abominação execrável, quando considerado do
ponto de vista da moral. Como? Então o ser infinito, o ser
necessário, o ser soberanamente perfeito não será firme, constante e
imutável? Que digo? Imutável? Não será por um só momento o mesmo,
seus pensamentos se sucederão uns aos outros infindável e
incessantemente.12
Contudo, prossegue Bayle, muito pior nos aguarda, pois a mobilidade e
inconstância infinitas farão com que
para cada bom pensamento, o ser infinito tenha mil outros tolos,
extravagantes, impuros, abomináveis. Produzirá em si todas as
loucuras, todos os devaneios, todas as imundícies do gênero humano;
será não só causa eficiente deles, mas também seu paciente; alegrar-
se-á com eles pela mais íntima união que se possa conceber, pois é
uma união penetrativa, ou melhor, uma verdadeira identidade, uma vez
que o modo não é realmente distinto da substância modificada.13
Muitos grandes filósofos, continua o verbete, não podendo compreender que seja
compatível com o ser soberano suportar que o homem seja tão malvado, foram
levados à posição de Maniqueu, que supôs a existência de dois princípios, um
bom e outro mau.
Ora, eis aqui um filósofo que acha muito bom que o próprio Deus seja
agente e paciente de todos os crimes e de todas as misérias do
homem.14
Com Espinosa, portanto, não só a essência divina foi conspurcada pela
mutabilidade, também o poder divino foi aniquilado, pois tornou-se causa
eficiente e paciente das imundícies, das misérias e dos crimes humanos. A
perfeição e a onipotência divinas foram reduzidas a nada.
Deus, o ser necessário e infinitamente perfeito, é bem a causa de
todas as coisas que existem, mas não difere delas. Não há senão um
ser e uma natureza e esta natureza produz nela mesma e por uma ação
imanente tudo o que ele chama de criaturas. Deus é, conjuntamente,
agente e paciente, causa eficiente e sujeito e nada produz que não
seja Sua modificação. Eis aí uma hipótese que ultrapassa toda
extravagância que se possa proferir. O que os poetas pagãos ousaram
cantar de mais infame contra Júpiter e contra Vênus não chega perto
da idéia horrível que Espinosa nos dá de Deus, pois os poetas, pelo
menos, não atribuíam aos deuses todos os crimes que se cometem nem
todas as fraquezas do mundo, mas, segundo Espinosa, não há outro
agente nem outro paciente senão Deus com relação a tudo o que
chamamos de mal de pena e mal de culpa, mal físico e mal moral.15
Bayle não se admira de que haja conflitos entre os homens. Pelo contrário,
sendo indivíduos substancialmente distintos, são movidos por paixões e
interesses contrários Porque distinguem entre o "meu" e o "teu", podem odiar-se
uns aos outros, matar-se uns aos outros e até mesmo, como já se ouviu contar, é
compreensível que os vencedores devorem os vencidos,
mas que, sendo os homens modificações do mesmo ser e havendo apenas
Deus como agente, e que o mesmo Deus, numericamente, modificando-se
em turco e modificando-se em húngaro, haja guerras e batalhas, já
ultrapassa todos os monstros, todos os desregramentos quiméricos das
cabeças mais loucas que já foram lançadas no hospício.16
Seguindo os preceitos retóricos barrocos da elocutio como conjunto bem ordenado
de topos e tropos, a argumentação de Bayle obedece a uma gradação precisa ao
passar do "prodigioso absurdo" - do ponto de vista físico - à "abominação
execrável" - do ponto de vista moral. No primeiro caso, pode-se opor às teses
espinosistas argumentos racionais, bastando demonstrar a contradição da
unicidade substancial, pois "há no universo tantas substâncias quanto sujeitos"
o que, evidentemente, significa "que não podem receber ao mesmo tempo as mesmas
denominações". No segundo caso, entretanto, trata-se de demonstrar que as
idéias espinosistas são perniciosas porque abomináveis, pois, com elas,
inconstância, falta de firmeza e mutabilidade são atribuídas a Deus. Muito
mais: imundícies, misérias e crimes definem a ação da divindade. Pior: Deus é
paciente das mais terríveis paixões, dilacerado internamente e alegre com seu
dilaceramento. Eis aí um pensamento "infinitamente mais ridículo do que o
Proteu e o Dionísio dos poetas".
Todavia, a argumentação prossegue num crescendo quando Bayle retira a principal
conseqüência da imanência, isto é, de um Deus internamente dividido e disperso
que é, simultaneamente, agente e paciente de sua própria causalidade: do
absurdo quanto à essência divina, passamos à abominação quanto à sua potência.
Atingindo o núcleo da divindade, ou seja, seu poder como intelecto e vontade
soberanos, Espinosa "é o único que reduz a divindade à miséria" e ultrapassa
monstros e desregramentos quiméricos das "cabeças mais loucas". Está além da
loucura conhecida.
E assim, todas as frases com que exprimimos o que os homens fazem uns
contra os outros só terão sentido quando reduzidas às seguintes:
'Deus odeia a si mesmo, suplica graças a si mesmo, mata-se a si
mesmo, calunia-se a si mesmo, envia-se a si mesmo ao cadafalso, etc.'
(...) Um bom espírito preferiria arranhar a terra com unhas e dentes
a ter que cultivar hipótese tão absurda.17
A insanidade de Espinosa é patente, pois é visível que seu sistema destrói a
coerência da linguagem e o sentido das idéias, e que, com ele, o pensamento se
torna rigorosamente impensável. A imprecisão de vocabulário, a imperícia
demonstrativa e o descuido conceitual simplesmente comprovam o grau de extrema
alienação do filósofo.
Todavia, é no passo seguinte que a argumentação de Bayle alcança o clímax,
quando a elocutio classifica as idéias espinosistas de "infames e furiosas
extravagâncias", porque, agora, provará que Espinosa não é simplesmente insano,
mas louco furioso, e sua filosofia, "uma hipótese que ultrapassa toda
extravagância que se possa imaginar".
Seguindo (sem mencioná-la explicitamente) a lição de Cícero18 e do Direito
Romano, o século XVII opera com três sentidos da loucura: o jurídico (estar
alienus juris), o médico (a insania) e o noético (a dementia). Reconhece,
também por essa lição, que o insano cuja razão "caiu" temporariamente encontra-
se no estado de dementia. Em contrapartida, segundo a mesma lição, o insano
furioso é aquele que perdeu definitivamente a razão; não está demente, mas é
demente. Essa lição, tacitamente pressuposta e nunca explicitada por Bayle, é o
núcleo de sua nova argumentação.
Bayle sabe que infâmia e furor não pertencem ao mesmo campo semântico. A
primeira pertence ao contexto jurídico na qualidade de crime e, visto tratar-se
aqui de crime contra Deus, penetra também no campo teológico, equivalendo à
blasfêmia. Graças a esse deslizamento semântico, Bayle arrasta o crime de
infâmia para o interior do campo religioso e pode reuni-lo ao furor. Este,
ainda que juridicamente definido pela condição daquele que se encontra alienus
juris, pertence mais propriamente ao contexto médico que, no século XVII, o
define como melancolia e mania, delírio não febril, embora ardente, feito de
violência e audácia, resultante de uma falha dos sentidos e da imaginação, e do
esgotamento dos humores, com ressecamento das fibras cerebrais. Todavia, desde
o hermetismo renascentista, o furor recuperara o antigo sentido teológico da
manía grega como divinus furor ou entusiasmo e, com este sentido, retornou ao
campo religioso quando Calvino se lançou contra os libertinos espirituais para
chamá-los de entusiastas e por isso mesmo ateus. Ao tomar a infâmia como
blasfêmia e o furor como doença religiosa, Bayle pode reunir os dois termos.
Essa reunião é assegurada pelo uso do termo extravagância. De fato, ao insistir
na extravagância de Espinosa, Bayle dispõe de uma teoria que já reuniu os
sentidos médico, jurídico e religioso daquilo que, na linguagem do século XVII,
significa um determinado tipo de loucura, aquela que Robert Burton, em Anatomy
of Melancholy, designa como "melancolia religiosa", doença da alma própria dos
epicuristas, hereges, libertinos e ateus, isto é, de todos aqueles que
"imaginam toda a realidade explicável apenas por causas naturais". Espinosa,
ultrapassando todas as extravagâncias, vai além do simples naturalismo e sua
insanidade é absoluta. Se, portanto, no primeiro movimento argumentativo, Bayle
conseguira reunir a infâmia ao furor, fazendo a primeira deslizar para o
interior do campo teológico, agora, fazendo o significado médico e jurídico do
furor também deslizar para o interior do campo teológico, pode reuni-lo à
infâmia e apresentar um único crime.
Também é lição de Cícero nas Tusculanas que o furor atinge não só a vontade,
mas ainda o espírito do sábio, afeta sua razão e desordena seu entendimento.
Por isso, ensina Bayle seguindo implicitamente a lição ciceroniana, o Deus de
Espinosa, imundo, inconstante, criminoso, miserável, com pensamentos
extravagantes e tolos, "produzirá em si todos os devaneios, todas as loucuras".
Tamanho delírio suscita o diagnóstico inapelável: a ruína de Deus, habitado por
pensamentos extravagantes e tolos, não é senão loucura de Espinosa, cujas
idéias são "infames, furiosas, e monstruosas".
Bayle não escolhe por acaso a idéia de tolice, mas, com ela, remete deliberada
e silenciosamente ao que todo mundo, no século XVII, sabe. Com efeito, tendo
pensamentos tolos, o Deus de Espinosa é o único e verdadeiro ateu, pois, está
nas Escrituras que "o tolo diz em seu coração: não há Deus". Pensando
tolamente, isto é, sem razão, não admira que seja ignorante, hipócrita e
suicida, mate e devore a si mesmo, negue a justiça e Sua própria existência.
Eis porque seus tolos pensamentos só poderão ser extravagantes.
De fato, nas Tusculanas, Cícero observa que furioso é aquele que se encontra
fora de si, destituído de seus poderes - ex sua potestate -, motivo pelo qual
as Doze Tábuas lhe vedam o direito de dispor de seus bens. Ao falar em
"furiosas extravagâncias", Bayle há de ter em mente a assimilação, feita por
Descartes, entre extravagant e demens.19 Com o emprego do termo "extravagante",
o verbete atinge dois alvos: Espinosa teria feito do legislador e juiz supremo
um ser juridicamente desqualificado; porém, teria feito muito mais, pois o
Direito Romano define a pessoa como sujeito capaz de direitos e o Deus
espinosano está despojado de personalitas, jus e potestas. Tendo sido
destituído de sua mais alta prerrogativa e de seu supremo direito - a soberania
universal -, não causa espanto que o Deus de Espinosa tenha pensamentos impuros
e abomináveis. Tornou-se um pobre diabo.
A indivisão entre Deus e a Natureza, ou a unicidade substancial, é
monstruosidade, portanto, contra-natureza e contrária à razão. Esta exige
separação entre Criador e criaturas, exige também que a causalidade eficiente
divina seja transitiva e eminente, que a reunião entre Deus e os entes finitos
provenha da causalidade final, por ensinar que o intelecto e a vontade de Deus
desejaram as coisas criadas sub ratione boni. A causalidade eficiente imanente
e a recusa da causalidade final, aliadas à negação de que a essência de Deus
comporte intelecto e vontade, redundam no Deus sive Natura, no qual um Deus,
tolo e extravagante, tornou-se abismo da irrazão. Nesse discurso desvairado, as
repartições feitas pelo bom senso estão embaralhadas e a recta ratio,
destruída. As teses de Espinosa são "frívolas e cavilosas", marcadas com aquela
fatuidade que os médicos apontam como primeiro indício de loucura.
c) conclusio: condenação e coda
A unicidade substancial pede, portanto, duas condenações. A primeira,
intelectual, pois as idéias claras e distintas de substância e modo tornam
logicamente impossível a coexistência, numa mesma substância, de modificações
que se excluem reciprocamente. A segunda, moral, visto que a existência
simultânea ou sucessiva de modos opostos no interior de Deus, isto é, as
contradições entre pensamentos, volições e afetos dos homens, arruína a
perfeição divina e a divina justiça, que não poderá julgar os homens segundo o
bom e o mau.
A melhor refutação do espinosismo, afirma Bayle, é, portanto, essa que, após
redefinir corretamente as idéias mais claras e evidentes do espírito humano e
localizar na história das disputas filosófico-teológicas quando foram
obscurecidas, demonstra que o pensamento de Espinosa é incapaz de operar com
tais conceitos, e sobretudo, mostra suas conseqüências, pondo-o em contradição
consigo mesmo. Pela via da clareza conceitual e da prova da incoerência
interna, refuta-se facilmente a doutrina espinosista. Assim, o filósofo
fatalista, que negara a Providência de Deus, desta recebe o merecido castigo:
Dir-se-ia que a Divina Providência puniu de maneira particular a
audácia desse autor, cegando-o de tal modo que, para fugir das
dificuldades que podem magoar um filósofo, ele se lançou em embaraços
mais inexplicáveis e tão patentes que qualquer espírito reto será
capaz de reconhecer.20
Bayle pode, então, pronunciar o veredito que será aceito por todo homem de bem:
Espinosa é confuso porque incoerente; incoerente porque extravagante;
extravagante porque louco furioso. A esse veredito vem juntar-se a sentença: a
filosofia de Espinosa é inútil.
De fato, apliquemos a ela seus próprios princípios: se somos modificações de
Deus, se Deus é Natureza, se nesta tudo segue leis necessárias ou fatais, então
Espinosa não teve liberdade para escrever o que escreveu, não só porque não foi
livre (seja porque nada há livre na Natureza, seja porque, sendo louco, não é
sujeito de direitos), mas também porque
se uma verdade ou um dogma tiverem que ser estabelecidos, a Natureza
o fará por mim em minha obra e, se não puderem ser estabelecidos,
então, de nada servirão meus escritos.21
Aplicando à doutrina espinosista o "argumento preguiçoso", isto é, a
conseqüência lógica do fatalismo, Bayle pode afirmar que basta voltar contra
Espinosa sua própria concepção de Natureza para que a inutilidade de suas
idéias se evidencie e o silencio se imponha: fosse ele coerente em sua fúria,
nada teria escrito. Aparentemente inatacável e irrefutável quando lido com as
lentes de Espinosa, o espinosismo revela toda sua vulnerabilidade quando
interpretado por espíritos retos. Torna-se inofensivo e pode ser ignorado. A
esse veredito vem juntar-se a confirmação trazida por uma prova suplementar:
Concluo dizendo que várias pessoas me asseguraram que sua doutrina,
considerada independentemente dos interesses da religião, pareceu
bastante desprezível aos maiores matemáticos de nosso tempo (falaram-
me, entre outros, dos senhores Huyghens, Leibniz, Newton, Bernouilli,
Fatio). Nisso pode-se crer facilmente, desde que se considerem, em
primeiro lugar, que ninguém está mais persuadido da multiplicidade
das substâncias do que aqueles que estudam a extensão e, em segundo
lugar, que a maioria desses senhores admite a existência do vácuo.
Ora, nada mais oposto à hipótese de Espinosa do que isso.22
Dessa maneira, a peça judiciária se desloca de seu centro acusador para quase
inocentar Espinosa, graças ao diagnóstico de insanidade permanente, que
inutiliza sua obra e explica a fraqueza do more geometrico.
1 Bayle, Pensées Diverses sur la Comète, ed. Prat, Paris, 1984, T.II, p.152-
153,160.
2 idem ibidem T.II, p.12
3 idem ibidem T.II, p.117
4 idem ibidem T.II, p.103.
5 Veja-se G. E. Aylmer "Unbelief in Seventeenth Century England", in D.
Pennigton e K. Thomas (orgs.) Puritans and Revolutionairies, Oxford, 1978.
6 A esse respeito cf. D. Wootton "Unbelief in Early Modern Europe", in D.
Pennigton e K. Thomas (orgs.) Puritans and Revolutionairies, op. cit.
Diferentemente de Febvre, Kolakowski e Aylmer, Wootton afirma a realidade do
ateísmo ou da descrença como uma tradição que remonta à Idade Média, do lado
letrado, com o averroísmo latino e o atomismo, além dos céticos acadêmicos e,
do lado popular, com a descrença plebéia que, na Renascença, toma a feição do
naturalismo do tipo daquele que aparece no "caso Menocchio", estudado por Carlo
Guinzburg em O queijo e os vermes.
7 Bayle Continuation des Pensées Diverses sur la Comète, citado por H. Bost
Pierre Bayle et la Religion, Paris, 1994, p.115
8 Os verbetes do Dictionnaire organizam-se em três partes: um texto central
sobre um autor ou um tema; notas marginais, indicadas com letras minúsculas,
com referências e informações bibliográficas ou com correções e esclarecimentos
sobre publicações, acontecimentos e pessoas; e, no rodapé, indicadas com letras
maiúsculas, observações críticas, isto é, as opiniões políticas, religiosas e
filosóficas de Bayle que esclarecem o que é dito no corpo do texto central. No
caso do verbete Spinoza, o texto principal é curto, mas há 176 notas marginais
e 27 observações críticas, algumas das quais mais longas do que o texto
central. Essas observações, embora mescladas, podem ser agrupadas por assunto:
A,B,X afirmam que as teses espinosanas são antigas e existem em toda parte;
C,G,H,U,Y,Z,AA trazem fatos e comentários relativos à biografia de Espinosa;
D,M,P,BB resumem e comentam brevemente as várias refutações do espinosismo já
em curso; E,F,I,O,Q,R,S,T refutam as conseqüências morais do espinosismo;
N,P,CC,DD trazem a refutação das teses metafísicas espinosistas.
9 Bayle, Dictionnaire Historique et Critique de Mr. Pierre Bayle, 2a. edição,
Roterdã, 1703, p.610. Usamos esta edição porque contém novos dados e
comentários acrescentados por Bayle ao verbete da primeira edição, de 1697.
10 Idem ibidem, p. 624.
11 Bayle, Dictionnaire, p.619.
12 idem ibidem, p.620.
13 idem ibidem
14 idem ibidem
15 idem ibidem, p.618.
16 idem ibidem
17 idem ibidem.
18 Cícero, Tusculanae Disputationes, III e IV.
19 "Termo jurídico que designa toda categoria de gente incapaz de atos
religiosos, civis e judiciários; os dementes não dispõem da totalidade de
direitos quando se trata de falar, prometer, contratar, assinar ou intentar uma
ação, etc", M. Foucault "Mon Corps, ce Papier, ce feu", Appendice II, Histoire
de la Folie à l'Age Classique, 2a. edição, p. 590
20 Bayle, Dictionnaire, p. 619-620.
21 idem ibidem, p.629.
22 idem ibidem, p. 629