Sobre a definição de natureza
I.
No início do livro II de sua Física, em 192b 20-23, Aristóteles define a noção
de "natureza" como princípio (ou causa) interna de mudança. Seu objetivo mais
imediato consiste em caracterizar a natureza em oposição a outro tipo de
princípio de mudança, que é a causalidade técnica. Acredita-se que a definição
de natureza estabeleceria apenas dois requisitos, o primeiro dos quais seria
uma propriedade compartilhada com a noção de técnica, ao passo que o segundo
marcaria a especificidade da natureza. Ambas, natureza e técnica, seriam
princípios de mudança,1mas a natureza seria um princípio interno à coisa que
sofre a mudança, em contraste com a técnica, que é um princípio externo à coisa
que sofre a mudança.
Nesse horizonte, a definição de natureza poderia ser entendida pela conjunção
de apenas dois requisitos, os quais poderíamos resumir do seguinte modo:
(1) Natureza é certo princípio ou causa de mudança;
(2) Natureza é o princípio ou causa de mudança que pertence intrinsecamente à
coisa que sofre a mudança.2
O critério (1) apenas almeja situar o definiendum em seu gênero e, por isso,
não é suficiente para distinguir a característica mais específica da natureza,
enquanto distinta da causalidade técnica. Assim, Aristóteles acrescenta o
critério (2), para diferenciar a natureza da técnica, sendo esta última um
princípio que provêm "de fora", isto é, que não está intrinsecamente dado na
própria coisa que sofre a mudança (Cf. Física, 192b 28-31).
No entanto, o caso de um médico que se curasse a si mesmo traria algumas
complicações para essa definição de natureza. Em atenção a essas complicações e
para especificar mais claramente o modo pelo qual o critério (2) deveria ser
entendido, Aristóteles acrescentaria que a natureza é uma causa que pertence à
coisa enquanto esta coisa é tomada em si mesma, conforme a descrição relevante.
Esse requisito não seria satisfeito no caso do médico que se cura a si mesmo.
Nesse caso, a coisa movida, no exemplo de Aristóteles, é o doente que recupera
sua saúde: é ele que se submete à mudança engendrado pelo médico, conforme à
arte da medicina. Mas, enquanto tal, quem recupera sua saúde não tem,
primeiramente e em si mesmo, a capacidade de curar doentes. Trata-se de mera
contingência o fato de coincidirem em um mesmo indivíduo as propriedades de ser
médico e estar a recuperar sua saúde.
Nesse sentido, considerando-se tais elucidações, a definição de natureza
poderia ser entendida do seguinte modo:
(1) Natureza é certo princípio ou causa de mudança;
(2) Natureza é o princípio ou causa de mudança que pertence intrinsecamente à
coisa que muda, isto é, que pertence a essa coisa na medida em que ela é tomada
em si mesma e não por concomitância.3
Essa interpretação funda-se em certa compreensão da sintaxe do texto grego, o
qual diz o seguinte:
"hôs ousês tês physeôs archês tinos kai aitias tou kineisthai kai êremein en
hôi hyparchei prôtôs kath' hauto kai mê kata symbebêkos" (192b 20-3).
Apesar de divergências de detalhe, quase todos os tradutores e intérpretes
parecem ter o mesmo entendimento da sintaxe do texto (a rigor, eles seguem a
interpretação consagrada por Simplício)4. Eles julgam que:
(a) o advérbio "prôtôs" modifica o verbo "hyparchei";
(b) as locuções adverbiais que se seguem, "kath' hauto kai mê kata symbebêkos",
também modificariam o mesmo verbo "hyparchei" e se destinariam a elucidar mais
claramente o sentido do advérbio "prôtôs".
(c) A expressão "en hoi" deveria ser entendida como abreviação de "ei toutoi
(dativo) en hoi", mas não como abreviação de "touto (nominativo) en hoi", e se
destinaria a elucidar que a natureza, como princípio, está nas coisas que a têm
primeiramente.5
Quanto ao ponto (a), não há dúvida de que ele está correto. No entanto, há uma
grave incompreensão no ponto (c), mas não me deterei nele independentemente do
ponto (b). Do ponto de vista da compreensão do texto grego, julgo,
contrariamente à opinião majoritária, que a expressão "en hoi" é abreviação de
"touto (nominativo) en hoi", e o pronome oculto "touto" (i) é o sujeito dos
infinitivos "kineisthai kai eremein", (ii) refere-se à coisa natural, cujo
movimento próprio deve ser explicado pela causalidade natural, (iii) é aquilo a
que se aplicam as expressões "kath' hauto kai me kata symbebekos". A sintaxe do
texto deve ser compreendida do seguinte modo: "causa" (aitia) pede um
complemento (que introduz aquilo de que a causa é causa); ora, tal complemento,
introduzido pelo artigo no genitivo "tou", consiste em uma oração infinitiva,
"kineisthai kai eremein [touto]", cujo sujeito, "touto", não apenas é
qualificado por uma oração relativa ("en hoi hyparchei prôtôs")6 que esclarece
de que modo a natureza lhe pertence, mas também é o escopo das expressões
adverbiais "kath' hauto kai me kata symbebêkos", que elucidam sob qual
interpretação semântica do termo "touto" é verdadeira a sentença que introduz o
explanandum ("kineisthai kai eremein [touto]").
Considero surpreendente que renomados especialistas tenham tão facilmente se
deixado seduzir pelo ponto (c), mas me concentrarei no ponto (b): pretendo
mostrar que, se queremos ler em 192b 20-23 uma definição precisa da noção de
natureza, devemos entender que as locuções adverbiais "kath' hauto kai mê kata
symbebêkos" modificam os verbos "kineisthai kai êremein" e, com isso,
introduzem na definição de natureza um terceiro critério relevante (e não
apenas uma elucidação do segundo critério). Nessa perspectiva, a noção de
natureza deveria ser entendida como uma conjunção progressiva das três
seguintes condições:
(1) Natureza é certo princípio ou causa de mudança;
(2) Natureza é um princípio ou causa de mudança que pertence intrinsecamente à
coisa que sofre a mudança;
(3) Natureza é princípio ou causa de certa classe de mudanças que ocorrem à
coisa à qual pertence primeiramente, a saber, causa das mudanças que ocorrem à
coisa natural na medida em que a coisa natural é tomada nela mesma - mas não é
causa das mudanças que ocorrem à coisa natural na medida em que ela é tomada
por concomitância.
A razão para insistir em uma definição com três condições não é mero
preciosismo pedantesco. Tampouco se trata de mera filologia sem interesse
filosófico. Como veremos na seção V deste artigo, uma definição com apenas duas
condições seria ineficaz para os propósitos de distinguir a natureza como tipo
específico de causalidade. Certo tipo de causalidade técnica pode perfeitamente
satisfazer apenas as duas primeiras condições - ser uma causa de mudança, ser
uma causa de mudança na coisa à qual pertence primeiramente. Nessas
circunstâncias, porém, é óbvio que a definição de natureza colapsa em seus
objetivos - não define o que tomou como definiendum.
Meu ponto pode ser mais bem elucidado se considerarmos que, para Aristóteles,
toda relação de causalidade deve ser analisada em três termos, em última
instância.7 Qualquer causa é um termo terceiro, que é causa de uma relação
entre dois outros termos, a saber, causa de uma relação pela qual tal e tal
propriedade está presente em tal e tal sujeito.
Essa estrutura triádica da relação de causalidade reflete-se no esquema da
primeira figura da silogística de Aristóteles. Esse ponto pode ser ilustrado
pela forma Barbara:
Premissa maior: todo B é A;
Premissa menor: todo C é B.
Conclusão: todo C é A.
A relação entre os termos C e A consiste no explanandum para o qual se deve
especificar uma causa. Essa causa é o termo médio B; aquilo de que a causa é
causa é a propriedade A (extremo maior); por outro lado, aquilo para o que a
causa é causa é o sujeito C (extremo menor) no qual está dada a propriedade A.8
Aristóteles não mantém sistematicamente essa distinção terminológica entre
"aquilo de que a causa é causa" e "aquilo para o que a causa é causa", mas é
bem claro que ele mantém sistematicamente, em sua obra, uma concepção de causa
como fundamento pelo qual um dado sujeito tem uma dada propriedade. Assim, a
razão pela qual o sujeito C tem a propriedade A consiste no fato de ele ter a
propriedade mais básica B, a qual é fundamento (aition) do qual se segue a
propriedade A.
Com auxílio desse quadro, posso elucidar melhor o que pretendo ao discutir as
três condições presentes na definição de natureza. A condição (1) apenas situa
a natureza em seu gênero, dizendo que ela é uma causa.9 A condição (2) diz
respeito à relação entre C e B, tal como formulada na premissa menor do
silogismo acima explicitado - ou seja, a condição (2) diz respeito à relação
entre a coisa natural, C (tomada como aquilo que possui uma causa, ou seja,
possui uma propriedade básica que fundamenta outra) e a natureza, B (enquanto
causa). A condição (3), por sua vez, diz respeito à relação entre a causa e
aquilo que é propriamente seu explanandum completo, a saber, a presença da
propriedade A no sujeito C. Essa relação, no entanto, é complexa e pode ser
descomposta em elementos mais básicos. É essa decomposição que ocorre,
exatamente, na estrutura do silogismo de primeira figura. Por um lado, B, como
causa, é uma propriedade mais básica da qual se segue a propriedade A - e isso
é representado na premissa maior do silogismo. Por outro lado, da conjunção
entre essa relação de acarretamento de propriedades (premissa maior) e a
atribuição da causa B ao sujeito C (premissa menor), se segue aquilo que se
quer explicar: a atribuição da propriedade A ao sujeito C.
Essa decomposição da relação de causalidade me permite reformular o ponto.
Assim, dizer que a condição (3) diz respeito à relação entre a causa e aquilo
que é propriamente seu explanandum completo, a saber, a presença da propriedade
A no sujeito C, consiste em dizer que a condição (3) diz respeito à relação
entre C e A (sendo A aquilo que se deve explicar) e, consequentemente, diz
respeito à relação entre B e A (sendo tal relação a parte mais fundamental do
explanans).
Suponha-se, assim que o termo B representa a noção de natureza, o termo C, a
noção de coisa natural, e o termo A, a noção de certo movimento ou repouso,
tomada como exemplo paradigmático de propriedade cuja atribuição à coisa
natural é suscetível de ser explicada pela causalidade da natureza. Podemos,
então, representar essas relações no seguinte esquema silogístico:
Toda natureza causa certo tipo de movimento e repouso.
Todo ente natural tem, intrinsecamente, natureza.
Logo, todo ente natural tem certo tipo de movimento e repouso.10
Minha proposta é que a condição (2), referente ao advérbio "prôtôs" ligado ao
verbo "hyparchei", se destina a elucidar a premissa menor desse silogismo. Por
outro lado, a condição (3), referente à locução adverbial "kath' hauto kai me
kata symbebekos" ligada aos verbos "kineisthai/eremein", está primeiramente
localizada na conclusão desse silogismo e, ao assinalar o tipo de atributo que
se constitui como explanandum relevante que deve ser explicado pela causalidade
natural, essa locução ao mesmo tempo indica o tipo de relação que deve haver,
na premissa maior, entre a natureza (enquanto causa) e certos tipos de
movimento e repouso (enquanto propriedades cuja atribuição aos entes naturais
deve ser explicada pela natureza). Em última instância, posso resumir o ponto
dizendo que a locução adverbial "kath' hauto kai me kata symbebekos" se destina
a elucidar qual é o tipo específico de movimento (ou repouso) suscetível de ser
explicado pela causalidade da natureza.
II.
De acordo com opinião amplamente aceita, a oposição entre "kath' hauto" e "kata
symbebêkos" exprime a oposição entre "essencialmente" e "por acidente". E,
quanto à sintaxe original dessas expressões gregas, acredita-se que a expressão
"kata symbebêkos" seria uma espécie de operador modal cujo escopo seria uma
proposição em seu todo. Assim, quando se afirma que "o médico kata symbebêkos é
construtor de casa"11, acredita-se que uma boa análise dessa sentença seria "é
contingente que um médico construa casas". Julgo que essa análise, embora não
seja incompatível com o que Aristóteles pretende na maioria dos casos, não
capta precisamente o que ele quer dizer. Em outras palavras, os resultados de
tal análise engendram, em muitos casos, proposições que Aristóteles aceitaria
como verdadeiras (como, por exemplo, a proposição "é contingente que um médico
construa casas"). Não obstante, tal análise não capta precisamente o modo pelo
qual a expressão "kata symbebêkos" funciona no texto de Aristóteles.
Em vários contextos, a oposição entre "kath' hauto" e "kata symbebêkos"
consiste em oposição entre modos pelos quais um termo (sujeito ou predicado) de
uma dada predicação deve ser tomado, para que a proposição, já suposta como
verdadeira, se ateste como verdadeira.12 Dado que "kath' hauto" e "hei hauto"
são, nesses contextos, usadas como expressões equivalentes entre si,13 tentarei
elucidar a oposição tomando como exemplo o modo pelo qual Aristóteles, em
Física I 8, procura resolver a aporia dos eleáticos. O contraste relevante pode
ser resumido a duas sentenças:
(a) Médico exerce a medicina (iatros iatreuei);
(b) Médico constrói casa (iatros oikodomei).
Ambas as sentenças são dadas como verdadeiras, e o objetivo de Aristóteles
consiste em discernir as condições sob as quais elas são verdadeiras. É bem
claro que as condições sob as quais a sentença (a) é verdadeira são bem
distintas das condições que tornam (b) verdadeira. Sentenças do tipo (a) são
entendidas por Aristóteles como definicionalmente verdadeiras. Isso quer dizer
que, para que a sentença (a) seja verdadeira, basta que o termo "médico" seja
tomado tão somente em si mesmo, o que, neste contexto, quer dizer: ser tomado
enquanto médico, conforme as características que fazem todo médico ser médico,
e não conforme as características que, irrelevantes para sua caracterização
enquanto médico, fazem um médico ser também outra coisa (por exemplo, musical,
construtor de casa, branco, etc.). Consequentemente, sendo verdadeira conforme
a mera definição do termo sujeito, a sentença (a) será verdadeira para todos os
casos particulares de médico.
Por outro lado, para que a sentença (b) seja verdadeira, não mais basta tomar o
termo "médico" tão somente em si mesmo, ou seja, enquanto médico, conforme as
características que fazem médico ser, precisamente, médico, e não outra coisa.
Se supusermos como verdadeira a sentença (b),14 devemos admitir que o termo
"médico" não é usado nessa sentença para introduzir as características
essenciais que se atribuem universalmente a qualquer médico; devemos admitir
que o termo "médico" se reporta a algum indivíduo que, sendo médico, também
satisfaz a descrição relevante pela qual se torna verdadeiro dizer que ele
constrói casas. Ou seja, a sentença (b), sendo verdadeira, não pode querer
dizer outra coisa, senão que "há certo indivíduo, que é médico, e que constrói
casas". Para compreender as condições sob as quais a sentença (b) é verdadeira,
devemos compreender que o termo "médico", nesse caso, é usado para remeter a um
indivíduo que, sendo médico, tem também a característica sob a qual é
verdadeiro atribuir-lhe o predicado "constrói casas" (e a tem como symbebêkos).
Na expressão original de Aristóteles, se diz que "o médico kata symbebekos
constrói casa". Pois bem: a expressão "kata symbebekos", longe de ter por
escopo a proposição em seu todo, consiste em uma cláusula semântica que incide
sobre o termo-sujeito da sentença e indica sob qual interpretação esse termo
deve ser entendido, para que a sentença, já dada como verdadeira, seja
verdadeira. Qual é a interpretação a ser dada ao termo "médico", pela cláusula
"kata symbebêkos"? O termo "médico" deve ser tomado com uma propriedade (ou um
concomitante) que lhe acompanha: nesse caso, a propriedade em questão consiste
em ser um indivíduo capaz de construir casas (oikodomos).
Assim, a oposição entre "kath' hauto" e "kata symbebêkos" pode ser entendida
como oposição entre modos pelos quais o sujeito de uma predicação deve ser
tomado para que a proposição seja verdadeira. Podemos dizer que:
(a) "Médico, em si mesmo, exerce a medicina" (iatros kath' hauto iatreuei, cf.
191b 6, com a variante "hei iatros" em vez de "kath' hauto").
No entanto, não mais poderíamos dizer que "médico, em si mesmo, constrói casa
(iatros kath' hauto oikodomei). Pelo contrário, devemos dizer que:
(b) "Médico, por concomitância, constrói casa" (iatros kata symbebêkos
oikodomei).
A expressão "kath' hauto" indica que a sentença é verdadeira de acordo com a
definição do termo-sujeito. Para que o predicado "exerce a medicina" seja
verdadeiro a respeito de "médico", basta tomar o termo "médico" conforme as
características que definem sua essência. Daí também decorre que tal predicado
será verdadeiro para qualquer caso do sujeito, de modo que podemos afirmar que
"todo médico exerce a medicina", pois exercer a medicina é a função pela qual
se define o ser médico.
Por outro lado, a expressão "kata symbebêkos" indica que a mera definição do
termo sujeito não é suficiente para garantir a verdade da sentença. Para que o
predicado "construir casa" seja verdadeiro a respeito de "médico", não podemos
tomar o sujeito tão apenas conforme as características que lhe cabem
essencialmente; devemos tomá-lo como uma descrição que remete a um indivíduo
que possui, como propriedade concomitante, a propriedade relevante sob a qual o
predicado se mostra verdadeiro. Daí se segue que o predicado "construir casas"
jamais poderia ser generalizado como verdadeiro para todo e qualquer caso de
"médico"; ao contrário, ele é verdadeiro apenas para o caso particular
considerado na sentença.
Podemos então generalizar o ponto, abandonando os exemplos particulares com os
quais Aristóteles o formulou originalmente. Podemos dizer que as expressões
"kath' hauto" e "kata symbebekos" indicam sob quais condições uma dada sentença
"S é P" é verdadeira:
1) "S kath' hauto é P" quer dizer que o predicado P pode ser verdadeiramente
atribuído a S de acordo com o sentido definicional de S.
2) "S kata symbebêkos é P" quer dizer que o predicado P não pode ser
verdadeiramente atribuído a S de acordo com o sentido definicional de S, mas é
verdadeiramente atribuído a S pelo fato de que S remete, no contexto particular
em questão, a algo que tem as propriedades relevantes que o fazem ser P.
III.
Ressalto que essa oposição entre "kath' hauto" e "kata symbebekos" também é
aplicada por Aristóteles a enunciados que exprimem relações causais. Isso é
relevante para meus propósitos, dado que a definição de natureza a caracteriza
justamente como causa de certas mudanças (ou repousos) nos entes naturais.
Assim, considere-se a sentença "A é causa de B". As expressões "kath' hauto" e
"kata symbebekos" podem incidir sobre qualquer um dos termos - A ou B - dessa
sentença, e indicam sob quais condições a sentença é verdadeira.15
Temos, então, dois casos:
(i) "A, kath' hauto, é causa de B":
A expressão "kath' hauto" indica que o enunciado é verdadeiro pela própria
definição de ambos os termos. Isso quer dizer que ambos os termos descrevem
adequadamente os itens entre os quais se dá a relação causal. Para evidenciar a
relação causal, não é preciso examinar as propriedades concomitantes que
acompanham as coisas a que se referem os termos "A" e "B". Por exemplo: "o
escultor, em si mesmo, é causa (eficiente) da estátua".
(ii) "A, kata symbebêkos, é causa de B":
A expressão "kata symbebêkos" indica que tal sentença não é verdadeira pela
própria definição de ambos os termos. Ao contrário, para evidenciar a relação
causal que tal sentença pretende exprimir, é preciso considerar as propriedades
concomitantes que acompanham as coisas a que se referem os termos "A" e "B".
Por exemplo: "Policleto, por concomitância, é causa (eficiente) da estátua", o
quer dizer que "Policleto é escultor", sendo que "o escultor, em si mesmo, é
causa (eficiente) da estátua".16
Podemos dizer, portanto, que sentenças do tipo (i), que exprimem uma "causa per
se", são sentenças nas quais o termo A é descrito de tal modo, que é condição
suficiente para que seja verdadeiro o predicado, "ser causa de B". É preciso
cuidado, no entanto, para não engendrar confusão quanto à tese que propomos.
Não estou a propor que "causas per se" são causas suficientes para gerar o
efeito de que são causas. Meu ponto diz respeito apenas às condições para que
seja verdadeiro, a respeito de um dado sujeito A, o predicado "ser causa de B"
- independentemente dos adjetivos que se possam acrescentar ao termo "causa".
Podemos classificar uma causa sob um dos quatro tipos de causa que Aristóteles
reconhece: causas materiais, causais eficientes, causas formais e causas
finais. Podemos também atribuir a uma dada causa a propriedade de ser
suficiente, ou necessária, ou adequada, ou próxima, ou remota etc. Mas meu
ponto situa-se em um nível de generalidade que prescinde de qualquer
qualificação ulterior que se possa acrescentar à noção de causa. Minha proposta
diz respeito apenas às condições semânticas sob as quais um dado termo "A" pode
receber verdadeiramente o predicado "ser causa de B".
Suponha-se o enunciado "o sangue é causa (material) do animal". Não estou a
propor que o fato de o sangue ser causa per se do animal implique que o sangue
seja causa suficiente para a geração de um animal. Quero dizer apenas que,
supondo-se a fórmula "x é causa (material) de um animal", x será causa per se
desde que sua definição for suficiente para tornar a fórmula verdadeira, sem
exigir uma análise semântica ulterior. Assim, o sangue, por sua própria
definição, é tal que é verdadeiro atribuir-lhe a propriedade de ser causa
(material) do animal. Isso quer dizer que o sangue, em si mesmo - isto é,
conforme a definição de sua essência - , é condição suficiente para a verdade
da sentença em que lhe atribuímos o predicado "ser causa do animal".
O mesmo vale para os efeitos, ou aquilo de que as causas são causas.17 Podemos
exprimir esse ponto de vários modos. De fato, podemos adotar como modelo o
seguinte esquema sentencial:
(i) "B, kath' hauto, é efeito de A" (que é a contraparte complementar do
esquema "A, kath' hauto, é causa de B").
Ou então podemos adotar o seguinte modelo:
(i') "B, kath' hauto, é causado por A".
A variação entre (i) e (i') parece-me irrelevante e, por mera comodidade,
adotarei a primeira opção. Em ambos os esquemas, porém, a expressão "kath'
hauto" indica que o enunciado é verdadeiro pela própria definição de ambos os
termos. Para evidenciar a relação causal entre A e B, não é preciso examinar as
propriedades concomitantes que acompanham as coisas a que se referem os termos
"A" e "B". Por exemplo: "a estátua, em si mesma, é efeito (ou produto) do
escultor".
Por outro lado, considere-se o esquema sentencial:
(ii) "B, kata symbebêkos, é efeito de A":
A expressão "kata symbebêkos" indica que tal sentença não é verdadeira pela
própria definição de cada um dos termos. Para evidenciar a relação causal que
essa sentença pretende exprimir, deve-se considerar as propriedades
concomitantes que acompanham as coisas a que se referem os termos "A" e "B".
Por exemplo: "o saudável, por concomitância, é efeito do cozinheiro", o que
quer dizer que "a iguaria, que é, em si mesma, efeito do cozinheiro, é
saudável".
IV.
Volto, nesta seção, a examinar a definição de natureza em seus elementos
básicos. Supomos que toda definição deve dar conta de certos fatos básicos, ou
características básicas, de seu definiendum. Um dos fatos básicos a respeito da
noção de natureza é que ela envolve uma relação causal entre um objeto natural
(termo C, no esquema silogístico da seção I) e certo tipo de mudança que ocorre
nesse objeto natural (termo A, no referido esquema silogístico). Esse tipo de
fato pode ser expresso na seguinte fórmula geral: "B causa a mudança A em C",
por exemplo: "o escultor causa tal e tal refiguração no bronze". O mesmo fato
pode ser expresso numa fórmula complementar, que apenas focaliza o mesmo
fenômeno por outro ângulo: "C sofre a mudança A em virtude de B", por exemplo:
"o bronze adquire tal e tal configuração em virtude do escultor".
Consideremos esse segundo tipo de enunciado, para examinar a relevância da
condição (3) na definição de natureza. Como dissemos, a condição (3) diz
respeito à relação entre a natureza, como causa (B), e seu explanandum
apropriado, que é a ocorrência regular de certo tipo de mudança nos entes
naturais. Consequentemente, a condição (3) permite especificar os tipos de
mudança que, atribuídos aos entes naturais, são suscetíveis de serem explicados
pela causalidade natural (isto é, os tipos de mudança que constituem, a rigor,
explananda apropriados ao domínio da ciência da natureza). A condição (3)
permite elucidar, portanto, os tipos de movimentos que podem figurar na
conclusão do esquema silogístico proposto na seção I.
Ora, a conclusão desse esquema silogístico relata justamente a relação entre um
dado objeto natural (termo C) e uma propriedade suscetível de ser explicada
pela natureza. Para melhor focalizar essa relação, tomemos como modelo uma
forma simplificada do esquema sentencial há pouco proposto:
- "o objeto natural C sofre a mudança A".
Ora, podemos classificar os enunciados desse tipo em duas classes. Por um lado,
temos os enunciados que são verdadeiros pela própria definição do sujeito C,
tomado em si mesmo. Por outro, temos os enunciados que são verdadeiros apenas
se o sujeito C for tomado por concomitância, isto é, se for tomado de acordo
com alguma propriedade ulterior que não está contida em sua definição. A essas
duas classes de enunciado, correspondem duas classes de causas, aptas a tomar o
lugar de B.
Como vimos, dizer que é verdadeiro o enunciado "C, em si mesmo, sofre a mudança
A" consiste em dizer que C, conforme à definição que caracteriza o que ele é
essencialmente em si mesmo, é condição suficiente para que o predicado "sofrer
a mudança A" lhe seja atribuído com verdade. Por outro lado, dizer que é
verdadeiro o enunciado "C, por concomitância, sofre a mudança A" consiste em
dizer que C, conforme à definição que caracteriza o que ele é essencialmente em
si mesmo, não é condição suficiente para que o predicado "sofrer a mudança A"
se lhe possa atribuir verdadeiramente. Neste caso, a verdade da sentença é
garantida apenas na medida em que C for tomado de acordo com outra propriedade,
que não pertence à sua definição, mas está implícita no contexto em que se usa
o enunciado "C sofre a mudança A".
Nessa perspectiva, torna-se claro qual seria a motivação filosófica para dizer
que as expressões "kath' hauto" e "kata symbebêkos, em 192b 22-23, estão
sintaticamente conectadas com os verbos "kineisthai kai êremein" e se destinam
a especificar os tipos de mudança e repouso que podem ser atribuídos aos entes
naturais enquanto naturais - e que constituem, portanto, explananda apropriados
às ciências da natureza, suscetíveis de explicação pela causalidade natural.
Mas antes de insistir na motivação filsófica, mostrarei, brevemente, que vários
outros textos de Aristóteles também apresentam boas evidências para tomar as
expressões "kath' hauto" e "kata symbebekos" com os verbos "kineisthai" e
"êremein".
Na discussão sobre o conceito de lugar, no livro IV da Física, Aristóteles diz
o seguinte:
"Por um lado, algo é 'movido efetivamente' em si mesmo; por outro, algo é
'movido efetivamente' por concomitância. É 'movido efetivamente' por
concomitância aquilo que, em si mesmo, é suscetível de ser movido (por exemplo,
as partes do corpo, o prego no navio), assim como aquilo que não é suscetível
de ser movido, mas que sempre é 'movido' por concomitância, por exemplo, a
brancura e o conhecimento: de fato, estas coisas mudam de lugar porque aquilo
em que se encontram muda de lugar" (211a 17-23).
Essa passagem soa bem obscura, pelo jargão utilizado, mas é bem claro que o
objetivo de Aristóteles consiste em determinar condições de aplicabilidade do
predicado "kinoumenon", "movido" - tendo em vista que tal predicado implicará,
necessariamente, o predicado "estar em um lugar", visto que o movimento
pressupõe o lugar (cf. 211a 12-4). Nessa perspectiva, Aristóteles observa que o
predicado "kinoumenon" pode ser usado de dois modos: ele pode ser entendido
como equivalente a "efetivamente movido" ("kinoumenon energeiai", 211a 17-18),
ou como equivalente a "suscetível de ser movido" ("endechomenon kineisthai",
211a 19). Mas o que nos importa, no presente contexto, é ver como essa
distinção vem emaranhada com outra - precisamente a distinção que mais nos
interessa, entre "movido kath' hauto" e "movido kata symbebekos".
Aristóteles diz que o predicado "movido" (kinoumenon), ou "efetivamente movido"
(kinoumenon energeiai), aplica-se a certos objetos apenas por concomitância. De
acordo com os esquemas que propusemos nas seções anteriores, isso quer dizer
que temos duas situações:
(i) "C, em si mesmo, é efetivamente movido (A);
(ii) "C, por concomitância, é efetivamente movido (A).
No entanto, o próprio caso (ii) é complexo e requer distinção ulterior.
(ii1) Por um lado, há objetos que, embora possam, em outras circunstâncias,
receber o predicado "efetivamente movido" em si mesmos, não o recebem, em dada
circunstância, em si mesmos, mas apenas em virtude de uma propriedade
concomitante.
(ii2) Por outro, há objetos que jamais poderiam receber o predicado
"efetivamente movido" em si mesmos; sempre que tais objetos recebem tal
predicado, eles o recebem em virtude de uma propriedade concomitante.
O caso (ii1) pode ser ilustrado por um prego em uma dada embarcação, o qual,
embora esteja imóvel em si mesmo, é movido na medida em que a embarcação se
desloca. Ora, o prego, na medida em que é um objeto material, é suscetível de
ser movido, por ação de outra coisa. A noção de objeto material, mediatamente
presente em sua definição, garante que o prego seja, em si mesmo, suscetível de
ser movido e, em certas circunstâncias, seja efetivamente movido em si mesmo.
Já o caso (ii2) pode ser ilustrado por uma propriedade como a brancura, que não
é entendida como um objeto material suscetível ao movimento.18 Não sendo um
objeto material, a brancura é tal que, por sua definição, não se segue, nem
imediata nem mediatamente, que ela seja suscetível ao movimento. Não obstante,
dado que a brancura é uma propriedade que está em corpos, e dado que corpos são
objetos materiais suscetíveis ao movimento, a brancura é, por concomitância
(por sua relação com um dado corpo) movida, em dada circunstância particular.
Em suma, Aristóteles afirma que o predicado "ser movido" (ou "mudar de lugar")
é atribuído a pregos por concomitância, quando ocorre a conjunção dos seguintes
fatos: os pregos estão no navio, e o navio se move ou muda de lugar. De modo
similar, o predicado "ser movido" (ou "mudar de lugar") é atribuído à brancura
por concomitância, quando ocorre a conjunção dos seguintes fatos: a brancura
está neste corpo, e este corpo se move ou muda de lugar. Ainda que a brancura
não seja um ente apto a receber, naturalmente, o predicado "muda de lugar", ela
o recebe em virtude de uma relação "concomitante" com outra coisa, que, de
fato, se move em si mesma.19
Evidência suplementar advém também de Física IV 5, 212b 7-13. Neste caso,
trata-se de determinar as condições de aplicabilidade do predicado "estar no
lugar" (en topôi), ou "estar em algum lugar" (pou). Aristóteles afirma que todo
corpo, em si mesmo, está em algum lugar, ao passo que a alma (bem como o céu)
está em algum lugar apenas por concomitância. Essa observação nos interessa
porque o predicado "ser suscetível de movimento" (kineton) é tomado como
condição suficiente para inferir a aplicabilidade do predicado "estar no
lugar". Assim, como prova de que algumas coisas, em si mesmas, estão no lugar,
Aristóteles afirma que "todo corpo, em si mesmo, é suscetível de movimento em
algum lugar (kinêton pou), ou por deslocamento, ou por crescimento" (212b 7-8).
No livro II da Física, ao introduzir a definição de natureza, o interesse de
Aristóteles não se volta à aplicabilidade geral do predicado "kinêton". Mais
estritamente, o propósito de Aristóteles consiste em especificar os tipos de
mudança que podem ser atribuídos aos entes naturais enquanto naturais e que,
consequentemente, consistem em explananda apropriados ao domínio da ciência da
natureza, que só podem ser explicados pela causalidade natural. Visto que entes
naturais são naturais porque têm a natureza como princípio (cf. 192b 32-3), são
justamente esses tipos de mudança que deverão ser reportados à causalidade da
natureza. Aristóteles pretende especificar os tipos de mudança cuja atribuição
aos entes naturais pode ser tida como verdadeira pela própria definição dos
entes naturais. Tal definição, que caracteriza o ente natural enquanto ente
natural, é condição suficiente para garantir a verdade da atribuição desses
tipos de mudança, embora ainda seja requisitada uma causa para explicar a razão
dessa atribuição. Podemos dizer que uma planta qualquer (uma samambaia, por
exemplo) cresce. Igualmente, podemos dizer que tal samambaia vai de Campinas
para Belo Horizonte, transportada num veículo. No entanto, embora possamos
dizer que:
- "esta samambaia, em si mesma (enquanto ente natural), cresce",
não podemos dizer que:
- "esta samambaia, em si mesma (enquanto ente natural), vai de Campinas para
Belo Horizonte".
Para que atribuamos à samambaia o movimento de Campinas para Belo Horizonte, é
preciso considerar outras características que lhe são concomitantes, e que lhe
cabem unicamente na medida em que ela é uma samambaia singular, a saber: a
característica de estar em um certo veículo, o qual vai de Campinas para Belo
Horizonte. Devemos dizer, então, que:
- "esta samambaia, por concomitância, vai de Campinas para Belo Horizonte".
Tal sentença é um modo compactado de dizer que "esta samambaia está no veículo
V, e o veículo V vai de Campinas para Belo Horizonte".
Obviamente, a natureza não é causa do transporte da samambaia de Campinas para
Belo Horizonte, mas é causa do crescimento da samambaia. Esse argumento mostra,
portanto, que as expressões "em si mesmo" e "por concomitância", na definição
de natureza, estão conectadas ao verbo "sofrer mudança" (kineisthai).20
V.
Voltemos ao texto em que Aristóteles procura definir a noção de natureza.
Procurarei mostrar que, se for tomado conforme à interpretação usual, tal texto
implicará em paradoxos fatais, que Aristóteles jamais aceitaria. Eis a
definição, na interpretação tradicional:
"a natureza é certo princípio ou causa, x, pela qual se move ou repousa aquela
coisa, y, a que primeiramente - isto é, em si mesmo e não por concomitância - x
pertence" (192b 20-2).
Conforme já disse, a interpretação tradicional julga que essa definição opera
apenas com dois critérios. Sendo o critério (1) genérico e incontroverso,
convém concentrar a atenção no critério (2), segundo o qual uma causa B é
natureza se satisfizer a seguinte condição:
(2) B é um princípio ou causa de mudança que pertence intrinsecamente à coisa
que muda, C, isto é, pertence à coisa C em si mesma e não por concomitância.
No entanto, se a definição de natureza terminasse nessa cláusula, Aristóteles
não poderia evitar a consequência paradoxal de que a medicina seria natureza,
assim como o médico, em seu procedimento de cura, procederia de acordo com uma
causalidade natural. De acordo com os termos de Aristóteles, podemos formular
os fatos do seguinte modo: o médico, pelo seu conhecimento medicinal, produz a
saúde em organismos doentes. Mas considere-se o caso em que um médico se cura a
si mesmo. Neste caso, o explanandum seria a presença da propriedade ter saúde
(ou ter recobrado a saúde) no sujeito médico. Médico seria o termo C, no
esquema silogístico introduzido na seção I deste artigo; a saúde (ou
recuperação da saúde) seria o termo A, a propriedade cuja presença em C deve
ser explicada por uma casa; finalmente, a arte da medicina seria o termo B, a
causa que explica a presença da propriedade A no sujeito C. Apenas no intuito
de trazer à luz as relações predicativas mais básicas envolvidas na relação de
causalidade, formulo o seguinte esquema silogístico:21
A arte da medicina é causa da (recuperação da) saúde;
O médico, primeiramente, isto é, em si mesmo e não por concomitância, possui a
arte da medicina.
O médico recupera a saúde.
Ora, não há como evitar, nessa intepretação, o resultado de que a medicina, por
satisfazer a condição (2), se tornaria natureza.
No entanto, a sequência imediata do texto mostra que Aristóteles está bem
precavido contra essa colapso da definição recém-proposta para a noção de
natureza. Aristóteles diz o seguinte:
"digo 'não por concomitância' porque alguém, sendo médico, poderia tornar-se
causa de sua própria saúde, mas não é por recuperar a saúde que ele tem a arte
medicinal, mas apenas sucede por concomitância que o mesmo homem é médico e
está recuperando a saúde; por isso, às vezes eles estão separados um do outro"
(192b 23-27).
Aristóteles deixa bem claro que quer introduzir, mediante a cláusula "em si
mesmo e não por concomitância", uma diferenciação entre os respectivos modos
pelos quais o médico relaciona-se à propriedade de ter a arte da medicina e à
propriedade de recuperar a saúde. Formulemos o esquema silogístico em sua forma
crua, apenas com a relação entre os três termos:22
A arte da medicina (B) - recuperação da saúde (A);
O médico (C) - a arte da medicina (B).
O médico (C) - recuperação da saúde (A).
Ora, na definição de natureza, a oração relativa "naquilo a que a natureza
pertence primeiramente" afirma de modo explícito que a relação entre C e B é
intrínseca e primitiva: C possui B primeiramente - por sua própria essência.
Mas a cláusula "em si mesmo e não por concomitância" é acrescentada para
elucidar a relação entre C e A e para evitar a consequência desastrosa de que
seria natureza a arte medicinal de um médico que se curasse a si mesmo.
Aristóteles diz, explicitamente, que a relação entre "médico" e "recuperar a
saúde" é uma relação de concomitância (192b 25-27). Apenas ocorre, em dada
circunstância, haver uma identidade extensional entre o médico e o doente que
recupera a saúde, mas o predicado "recuperar a saúde" (hygiazetai) não decorre
do termo "médico" tomado em si mesmo - tais termos, "recuperar a saúde" e
"médico" estão separados entre si em várias circunstâncias.
Assim, a definição de natureza exige o critério (3), ou, para formular o ponto
mais precisamente, exige a conjunção dos critérios (2) e (3), os quais dizem
que, para uma causa B ser natureza, devem ser intrínsecas não apenas ar elação
da causa B com o sujeito C que a possui, mas também a relação da propriedade A
com sujeito C que a possui.23 No caso do médico que se cura a si mesmo, de nada
valeria, para supostamente garantir o referido paradoxo, substituir o termo
"médico" pelo termo "convalescido" (hygiazomenon, 192b 26), como se
disséssemos:
A arte da medicina (B) - recuperação da saúde (A);
O convalescido (C) - a arte da medicina (B).
O convalescido (C) - recuperação da saúde (A).
Ora, nesta nova versão do esquema triádico da causalidade, a clásula (3) seria
satisfeita, pois o convalecido, em si mesmo e não por concomitância, recebe o
predicado "recuperar a saúde", e o movimento tomado como explanandum poderia
ser descrito como um movimento intrínseco à coisa movida. No entanto, a
cláusula (2) não seria satisfeita, pois não é em si mesmo (nem primeiramente)
que o convalescido tem a arte da medicina. Ele tem a arte da medicina enquanto
é médico, e apenas ocorre, circunstancialmente, que o mesmo fulano que é médico
é também um convalescido.
É atenção a este último caso - no qual apenas a condição (3) é satisfeita, sem
a satisfação conjunta da condição (2) - que Aristóteles prossegue:
"Semelhantemente para as coisas que são produzidas: nenhuma delas tem em si
mesma o princípio da produção, mas algumas o têm em outras coisas e de fora"
(192b 27-29).
As coisas produzidas, no contexto em questão, equivalem ao termo C (pois são
dadas em contraste com as coisas naturais): Aristóteles ressalta que elas não
têm em si mesmas a causa pela qual sofrem a modificação que é relatada pelo
termo A no esquema triádico da causalidade. Ou seja: elas não satisfazem a
condição (2). E o objetivo de Aristóteles consiste em ressaltar que o caso do
convalescido que, por concomitância, é um médico que se curou a si mesmo,
equivale ao caso dos produtos da técnica: a condição (2) não é satisfeita.24
Esse fato induziu em erro vários leitores desatentos, que julgaram que o foco
da própria expressão "kath' hauto kai mê kata symbebekos" em 192b 22-23 seria
também a condição (2), isto é, a relação entre a causa e a coisa que possui a
causa, ou a relação entre os termos B e C. No entanto, o ponto de Aristóteles é
que ambas as condições, (2) e (3), devem ser satisfeitas conjuntamente. Em
outras palavras: devem ser intrínsecas não apenas as relações entre objetos
naturais (C) e natureza (B), mas também as relações entre objetos naturais (C)
e os tipos específicos de mudança (A) que devem ser explicados pela natureza.25
Assim, a tradução adequada da definição de natureza seria, antes, a seguinte:
"natureza é certo princípio ou causa pela qual aquilo em que primeiramente se
encontra muda ou repousa em si mesmo e não por concomitância" (192b 20-3).
Essa tradução permite ver claramente o que é relevante. Ela compartilha com
traduções alternativas o mérito de exprimir que a natureza, bem como toda
causa, envolve uma relação triádica (a causa é causa pela qual uma propriedade
está presente em um dado sujeito). Mas, além disso, essa tradução tem vantagens
suplementares, em comparação com as traduções usuais: ela mostra que a
definição de natureza envolve três critérios, e que os dois critérios
especificamente relevantes são inseparáveis um do outro - tanto que o segundo é
expresso, na sintaxe do grego, como oração relativa que qualifica o sujeito da
sentença infinitiva que, introduzindo o complemento de "causa", introduz o
terceiro critério.26 Como resultado do entrelaçamento desses dois critérios,
temos uma definição de natureza na qual se exige que sejam intrínsecas as
relações que o objeto natural (C) tem, por um lado, com sua causa (B), por
outro, com a propriedade explananda, (A). É somente assim que se pode cumprir o
objetivo de Aristóteles: captar a especificidade da natureza, como causalidade
distinta da técnica.