A filosofia e seu ensino: reflexões a partir da perspectiva Merleau-Pontyana
sobre filosofia e história da filosofia
Filosofia e história da filosofia: considerações iniciais
As relações entre filosofia e história não são consenso. Entre os autores que
não compreendem o estudo da história como relevante para a filosofia,
encontram-se Descartes e Nietzsche. Para o primeiro, estudar a história da
filosofia é se dedicar somente a uma espécie de conhecimento erudito que não
possui nenhum caráter científico. Segundo Descartes, o conhecimento verdadeiro
é uno, e se apresenta ao pensador de maneira clara e distinta. A diversidade
dos sistemas filosóficos, uns contradizendo os outros, é prova de que nenhum
deles possui a verdade nem a ciência, visto que, se algum as possuísse, não
haveria empecilhos para que seu sistema fosse imposto de modo inquestionável.
Ter ciência de um objeto corresponde a reconstruir este último pelo
entendimento e, portanto, não significa conhecê-lo historicamente (sendo
informado sobre o referido objeto). Deve-se, pois, rejeitar a história da
filosofia como fonte de conhecimento verdadeiro.
Nietzsche, por sua vez, sustenta que o homem passou a procurar a verdade e a
cultuá-la, apegando-se à razão, à consciência, à religião, ao instinto social,
à história. Mas, para o autor, o intelecto serve à vida, não conduzindo para
além desta. Assim sendo, não há como pensar o conhecimento desvinculado da vida
a que ele serve. O homem que prefere a verdade à vida o faz de maneira
sacrifical: a vida deserta a si mesma para sustentar tal idolatria pela
verdade, esquecendo-se como experimentação de perspectivas. "[...] há um grau
de insônia, de ruminação, de sentido histórico, no qual o vivente chega a
sofrer dano e por fim se arruína, seja ele um homem ou um povo ou uma
civilização" (Nietzsche, 1983, p. 58).
O homem histórico, nas palavras nietzschianas, olha o passado na tentativa de
entender o presente e desejar o futuro com mais intensidade. Não se questiona
se a vida precisa do serviço da história e não percebe que "O sentido
histórico, quando reina irrefreado e traz as suas conseqüências, erradica o
futuro, porque destrói as ilusões e retira às coisas sua atmosfera, somente na
qual elas podem viver" (Nietzsche, 1983, p. 65).
Nesta ótica, a história não poderia ser objeto da filosofia: "A história
erudita do passado nunca foi a ocupação de um filósofo verdadeiro, nem na Índia
nem na Grécia; e um professor de filosofia, se se ocupa com trabalhos desta
espécie, tem de aceitar que se diga dele, no melhor dos casos: é um competente
filólogo, antiquário, conhecedor de línguas, historiador ' mas nunca: é um
filósofo" (Nietzsche, 1983, p. 81). Para Nietzsche, filosofia e história da
filosofia não se confundem: o estudo da história não passa de mera erudição,
não sendo tarefa filosófica.
A relevância filosófica da história da filosofia é formulada primeiramente nas
"Lições sobre a História da Filosofia", de Hegel. Cada sistema de pensamento é
visto como responsável pelo surgimento de outros sistemas e entendido como
parte de um processo evolutivo imprescindível à finalidade da filosofia.
Entendem-se os sistemas filosóficos como momentos necessários ao
desenvolvimento da própria filosofia, esta que seria, para o autor, um todo
orgânico, um grande sistema que se aprimora em suas partes e, com o tempo,
atingirá seu fim ' o conhecimento absoluto, ou a verdade. "[...] o estudo do
passado sempre dirá algo ao presente. Desde então, o curso da história não nos
apresenta o devir de coisas estrangeiras, mas o devir de nossa filosofia: o
estudo da história da filosofia é agora indiscernível do estudo da filosofia, a
história da filosofia é, ela mesma, filosófica" (Moura, 1988, p. 156).
A ideia hegeliana de uma história da filosofia que não se limita à doxografia
foi desenvolvida por historiadores estruturalistas, os quais, no entanto,
rejeitaram a proposta de um devir filosófico. Buscaram, em alguma medida,
conciliar o caráter filosófico da filosofia com o pretendido caráter científico
desta mesma filosofia.
Como é um fato que o passado da filosofia é relevante para a reflexão
do presente ' dirá Gueroult ', o estudo da história da filosofia tem
interesse para a filosofia, e essa história, bem compreendida, é
sempre uma história sapientiae, que nos mostra o passado como
contemporâneo ao presente ' sem com isso deformá-lo. A história da
filosofia pode ser tanto ciência rigorosa quanto disciplina
filosófica, e o estruturalismo ' assegura Goldschmidt ' pretende ser
um método ao mesmo tempo científico e filosófico. (Moura, 1988, p.
152)
Manter relações não exteriores, mas essenciais, com a história da filosofia
passa a ser crucial para a filosofia firmar-se como pensamento original
(evitando a história stultitiae). Contudo, se o terreno intelectual pró-
hegeliano não cumpre a exigência de cientificidade na história da filosofia,
como garantir esta cientificidade? Ao colocar os fenômenos culturais em
perspectiva no tempo, o historicismo passa a ser a fonte histórico-filosófica
do estruturalismo: sob a ótica da história, há uma sucessão de doutrinas
explicáveis por causas; sob a ótica do ceticismo filosófico, as filosofias são
objetos da história e não cabe a nenhuma o privilégio de ser considerada como
detentora da verdade.
Cada sistema é irredutível. Postas sob a perspectiva temporal, as doutrinas
cedem lugar a uma história preocupada com a reconstituição autêntica ' uma
história verdadeira. Por conseguinte, o estruturalismo pretendeu solucionar a
ambiguidade fundamental do homem moderno na escolha entre o passado conhecido
como presente (destituindo o caráter ativo do filósofo) e o passado distanciado
do presente (destituindo o apoio da história). O filósofo reconhece a história
da filosofia como ponto de apoio e é, ao mesmo tempo, autor. O valor filosófico
da história da filosofia reside na consideração do conhecimento racional como
definido pelo sistemático. E o sistema como expressão da racionalidade em geral
é a garantia de uma história sapientiae.
Não se pretende neste artigo esgotar as posições filosóficas sobre as relações
entre filosofia e história da filosofia. Uma vez introduzido o tema, será
apresentada na seção subsequente a perspectiva de Merleau-Ponty, a partir da
qual se objetiva extrair subsídios para fundamentar, na parte final deste
texto, as relações entre a filosofia e seu ensino.
A história filosófica da filosofia sob a perspectiva de Merleau-Ponty
Maurice Merleau-Ponty corrobora a ideia estruturalista de uma história
filosófica da filosofia. Mas a fundamenta sob outros argumentos. Interessam ao
presente artigo as relações traçadas em "A filosofia e o 'fora'",
excerto de "Em toda e em nenhuma parte", no qual o autor trata das principais
relações entre a filosofia e o "fora", ou em outras palavras, entre a filosofia
e a história.
O referido texto se inicia com a seguinte afirmação: "Pode parecer um
empreendimento inocente compor uma obra coletiva sobre os filósofos célebres.
No entanto, não se pode tentá-lo sem escrúpulos, pois coloca em discussão a
ideia que devemos ter da história da filosofia e da própria filosofia"
(Merleau-Ponty, 1980, p. 209). E, igualmente, a ideia que devemos ter da
história.
A fim de que se possa esmiuçar a trama de relações entre filosofia e história
da filosofia, apontadas por Merleau-Ponty, cabe inicialmente desembaraçar as
confusões que permeiam o próprio conceito de história, quais sejam: (i) a
concepção da história como movida por um sentido único (uma lógica oculta) que
subjaz aos fatos e predetermina os rumos destes, atribuindo-lhes uma
teleologia; (ii) a concepção da história como sequência de fatos que se sucedem
ocasionalmente, desprovida de qualquer sentido.
A separação mencionada é artificiosa, segundo Merleau-Ponty e,
consequentemente, não nos obriga a uma escolha. Escolha esta que redundaria em
riscos para a compreensão da realidade. Eis os riscos: (i) a concepção da
história como movida por um único e predeterminado sentido conduziria à
projeção no passado de características de hoje, buscando influências (ou uma
lógica) para compreender a história ' a chamada ilusão retrospectiva; (ii) a
concepção da história como destituída de sentido, em contrapartida, é
igualmente um escamotear da história, uma ilusão prospectiva.
Deste modo, faz-se necessário assumir esta ambiguidade da realidade na
compreensão da história, a qual passa a ser entendida como um devir de sentido:
a realidade histórica é inteligível, é pensável. Logo, o conhecimento da
história é possível. A realidade é pensável porque não meramente suportável,
sofrível, mas também perspectiva: o sentido da história é indicativo.
O conhecimento perspectivo mencionado é presente: limitado porque situado, mas
se faz a partir de um ponto de vista que possibilita a compreensão do
diferente. Assim, a história não é nem movida por um sentido predeterminado nem
destituída de sentido. Antes, a história faz sentido: há história se houver uma
lógica na contingência, uma razão na desrazão ' para usarmos termos do autor.
A ambiguidade apontada para o conceito de história é transportada por Merleau-
Ponty para o conceito de história da filosofia. Neste momento, torna-se
necessário retomarmos o apontamento inicial do texto: a tentativa de composição
de uma obra coletiva sobre os filósofos célebres necessita de um tratamento
cuidadoso, uma vez que traz à reflexão a ideia mesma da filosofia, da história
da filosofia e, acrescentamos, da história. O escrupuloso trabalho de decifrar
a totalidade de vidas e de obras, prossegue o autor, não extrapola o caráter de
história da filosofia (aqui considerado como exterior à própria filosofia, ou,
dito diferentemente, como "fora"). Neste sentido, não valorizando a preocupação
primordial dos próprios filósofos, a saber, a posse de uma verdade que supere
as meras opiniões. Pergunta-se: o que garante a perspectiva central em um livro
coletivo, a unicidade das filosofias? A resposta remete à necessidade de
colocação de uma mesma questão a todos os filósofos envolvidos, bem como a
caracterização passo a passo do desenvolvimento do problema.
No entanto, transportando a ambiguidade do conceito de história para a análise
do conceito de história da filosofia, ressalta Merleau-Ponty que: (i) a
história da filosofia não pode ser reduzida a apenas um catálogo de pontos de
vistas ou de teorias (preservando o caráter filosófico, mas perdendo o seu
caráter histórico); bem como (ii) a história da filosofia não pode ser a
incorporação das filosofias em um único sistema, à moda hegeliana (procedimento
que salvaria a indestrutibilidade histórica, mas destruiria a peculiaridade de
cada filosofia, roubando sua alma).
Sabendo que os termos ditos filosóficos (tais como liberdade, ideia e saber)
não têm o mesmo sentido nas diversas filosofias e que há a ausência de uma
testemunha única que os reduza a um consenso, questiona-se: "como veremos
crescer uma filosofia através de filósofos?" (Merleau-Ponty, 1980, p. 209).
Neste momento, Merleau-Ponty passa a analisar com mais detalhes a solução
hegeliana ao problema (acima citada como a segunda confusão em torno do termo
história da filosofia): contrariamente à redução dos diferentes termos a um
denominador comum, tomam-se as doutrinas como momentos de uma única doutrina em
curso, ocupando um lugar na unidade de um sistema.
Diz Merleau-Ponty que tal sistema é bem desenvolvido à medida que incorpora as
doutrinas em uma filosofia integral, pretendendo melhorar a tarefa filosófica e
ultrapassar as demais doutrinas. Este procedimento, por sua vez, rouba a alma
da filosofia do "interior" que ultrapassamos, guardando-a sem suas limitações:
reduz-se a trajetória das doutrinas a um parágrafo do sistema.
O sistema supõe os caminhos como conhecidos, não os incluindo: "Há
transgressão, transcrença do passado no presente. A verdade é um sistema
imaginário, contemporâneo de todas as filosofias, que conserva sem perda sua
potência significativa, e do qual uma filosofia existente é apenas um esboço
sem forma..." (Merleau-Ponty, 1980, p. 210). Desta maneira, a crítica do autor
incide sobre o fato de que não basta salvaguardar as peculiaridades das
filosofias: deve-se igualmente ultrapassá-las (preservando os meandros, as
tramas significativas...).
Novamente Merleau-Ponty recorre a Hegel, dizendo que este já afirmava que a
história da filosofia está no presente, sendo que os meandros que prepararam as
filosofias não só não estão superados como continuam necessários como caminho.
A verdade, nesta ótica, é somente a memória do que foi descoberto no percurso.
E é isto que permite afirmar que as filosofias são indestrutíveis: implantaram
marcos sobre os quais a posteridade não deixará de percorrer.
Um filósofo presente hoje assim o é porque, embora descontextualizado de suas
circunstâncias e inquietado por preocupações e ilusões de sua época, respondeu
a estas de uma forma tal que ensina a nós, hoje, a respondermos (embora
diferentemente) as nossas preocupações e ilusões. "Se Descartes está presente é
porque, rodeado de circunstâncias hoje abolidas, atormentado com preocupações e
com algumas ilusões de seu tempo, respondeu a esses acasos de tal maneira que
nos ensina a responder aos nossos, embora diferentes, e diferente nossa
resposta" (Merleau-Ponty, 1980, p. 210).
Em suma, o autor salienta que o que garante o caráter filosófico é a
indestrutibilidade das filosofias. Mas devem estas últimas conservar suas
peculiaridades ' suas inquietações, pensamentos, vida, contingência! Torna-se
então necessária não apenas a lógica, mas igualmente a contingência: os
meandros que abrem brechas para alojarmos os nossos pensamentos de leitores
hoje, lacunas e poros para respirarmos e trilharmos os caminhos. Esta relação
entre a lógica e a contingência é preenchida pela relação entre o dentro e o
fora.
Deste modo, não basta ao aspirante a filósofo dedicar-se a pensamentos eternos:
apenas aquele que interpela sua vida faz vibrar o tom da verdade. As filosofias
só permanecem como tentativas globais, carregando suas verdades e suas
loucuras. "Não há uma filosofia que contenha todas as filosofias; em certos
momentos, a filosofia está inteira em cada uma delas. Para retomar a expressão
famosa: seu centro está em toda a parte e sua circunferência, em nenhuma"
(Merleau-Ponty, 1980, p. 211).
Destarte, a verdade está desde o princípio como tarefa a cumprir e, como tal,
ainda não está ali. Eis a relação singular entre a filosofia e seu passado,
esclarecendo a sua relação com o "fora". Em relação à história social e
pessoal, por exemplo, tem-se que se, por um lado, a filosofia vive de tudo o
que ocorre ao filósofo e à sua época; por outro, transporta-o "para a ordem dos
símbolos e da verdade proferida, de modo que não há mais sentido em julgar a
obra pela vida, do que a vida pela obra" (Merleau-Ponty, 1980, p. 211).
A ambiguidade presente no conceito de história é assim transportada, como
anunciado, para o conceito de história da filosofia. Merleau-Ponty afirma ser
imaginária a alternativa da escolha entre pensar a história do indivíduo como
detentora da verdade filosófica e pensar a consciência filosófica como
detentora dos princípios históricos (sociais e pessoais).
A substituição do estudo interno das filosofias por uma explicação sócio-
histórica só seria plausível se fosse feita referência a um caminho histórico
bem evidente, sendo a filosofia, neste caso, tratada em relação a este télos
histórico. Pergunta-se: de onde vem a ideia diretriz e o que vale? A colocação
da questão própria, no entanto, já é a tomada de partido contra uma dialética
presente nas coisas. "Porém, como sabeis que está aí? Por filosofia.
Simplesmente, é uma filosofia secreta, disfarçada de Processo. Nunca se opõe ao
estudo interno das filosofias uma explicação sócio-histórica, mas sempre uma
outra filosofia escondida sob ela" (Merleau-Ponty, 1980, p. 211).
Em termos do dentro e do fora, para usarmos expressões do autor, não se pode
tratar a história como simplesmente exterior à filosofia (como fora), tampouco
tratá-la somente como interna e constitutiva da filosofia (como dentro). Tais
aspectos não formam uma dicotomia excludente, não se anulam mutuamente. Ao
contrário, ambos são necessários ao entendimento total da obra filosófica.
Logo, a unicidade da história da filosofia é um horizonte (nunca encontrado):
sedimentação e reconstituição de sentidos. Deve-se notar, consequentemente, que
o mesmo movimento das histórias da filosofia cabe a cada filosofia, visto que a
unicidade de cada sistema filosófico é também construída no trabalho de
elaboração, no ziguezague dos sentidos.
Pode-se afirmar que a unicidade de cada filosofia no curso da história, a
unicidade global da história da filosofia e a possível reunião de
interpretações e perspectivas não são dadas. Antes, são unidades oblíquas,
transversais, em trânsito. Uma unidade indireta em equilíbrio difícil.
Ao estudo interno das filosofias sempre há uma outra filosofia escondida: o que
nomeamos explicação não é senão um pensamento que confronta um outro, acusando-
o de ilusório. "[...] a 'explicação' histórica é apenas uma maneira
de filosofar sem dar na vista, disfarçar as idéias em coisas e pensar sem
precisão. Uma concepção da história só explica as filosofias sob a condição de
tornar-se também filosofia, e filosofia implícita" (Merleau-Ponty, 1980, p.
212).
Assim sendo, o autor aponta novamente para a falsidade das concepções de
"interior" e "exterior". Defende que não há a necessidade do eterno debate,
visto que os próprios partidários da estrutura interna da filosofia e da
explicação socioeconômica invertem seus papéis quando de seu interesse. E, no
mais, "A filosofia está em toda parte, até mesmo nos 'fatos', e em
parte alguma e em domínio algum acha-se preservada do contágio da vida"
(Merleau-Ponty, 1980, p. 212).
A fim de que se possa eliminar o falso embate entre filosofia pura e história
pura, deve-se tomar a ideia da filosofia considerando os vestígios da história
e não a reduzindo à sua origem: "a idéia filosófica, nascida do fluxo e refluxo
da história pessoal e social, não é somente um resultado e uma coisa, mas um
começo e um instrumento. Discriminando num novo tipo de pensamento e num novo
simbolismo, constitui um campo de aplicação incomensurável com suas origens e
só pode ser compreendida de dentro" (Merleau-Ponty, 1980, p. 212).
A abordagem histórica, sob esta perspectiva, serve tanto para conferir sentido
às circunstâncias quanto como ponto de vista a partir do qual a filosofia
compreende a si e aos demais sistemas. O universal filosófico encontra-se
justamente no instante em que as limitações do filósofo investem em uma outra
história que não pertence à mesma dimensão dos fatos psicológicos ou sociais,
cruzando-se e afastando-se dela.
Merleau-Ponty aponta a existência de relações estreitas entre a história que
progride sem superação na pura negação e o conceito filosófico que não rompe
seus laços com o mundo: "[...] o 'real' e o 'racional'
são recortados no mesmo estofo: a existência histórica dos homens, por cujo
intermédio o real é, por assim dizer, prometido à razão" (Merleau-Ponty, 1980,
p. 213, grifos do autor). No entanto, é necessário encontrar o sentido "total"1
da filosofia.
O sentido "total" de um filósofo é apreendido por meio das discordâncias que
pululam em seu interior. A ideia de apanhar o Descartes absoluto em sua fonte é
ilusória, segundo Merleau-Ponty, se Descartes for
[...] um discurso inicialmente hesitante que se afirma pela
existência e pelo exercício, que se aprende a si mesmo pouco a pouco,
e que nunca deixa completamente de visar mesmo aquilo que exclui
resolutamente. Não se escolhe uma filosofia como um objeto. A escolha
não suprime o que não foi escolhido, mas o mantém na margem. [...] A
escolha filosófica (e as outras, sem dúvida) nunca é simples. E a
filosofia e a história se tocam porque são ambíguas. (Merleau-Ponty,
1980, pp. 213-214)
O autor volta-se para Descartes para nele retomar a ambiguidade: se, por um
lado, o filósofo em questão faz a distinção entre o entendimento puro e aquilo
que pertence ao uso da vida, por outro, delineia uma filosofia cujo mote é a
coesão das ordens que ele mesmo diferenciou. Daí a constatação de que história
e filosofia se entrelaçam exatamente por serem ambíguas.
A desordem da filosofia não só é constitutiva desta como é o próprio meio a
partir do qual a filosofia obtém a sua unidade, por separação e retorno ao
centro. Há uma referência secreta que vincula indiretamente tudo a uma
perspectiva (ou centro de interesse) não indicada inicialmente.
Pergunta-se: "Como, portanto, algum tipo de abordagem seria proibido e indigno
dos filósofos? Uma série de retratos não é por si mesma um atentado contra a
filosofia" (Merleau-Ponty, 1980, p. 214). ' responde o autor. Uma vez que as
linguagens filosóficas não podem ser superpostas termo a termo nem traduzidas
imediatamente uma na outra, a unidade da filosofia não é rompida pela
pluralidade de perspectivas e de comentadores, sendo a singularidade, o caráter
necessário das filosofias.
A dificuldade em pensar a filosofia a cada momento da sua história encontra
respaldo na diferença que caracteriza a unidade filosófica. Em relação à
delimitação da filosofia em termos da religião cristã ou do Oriente, devemos
nos perguntar se o conceito filosofia pode ser estendido às sabedorias e
experiências, ou se só pertence a doutrinas que traduzem a si mesmas em
conceitos. Temos o direito de nos apropriar das filosofias passadas? De ordená-
las segundo temas que não eram propriamente os seus? Segundo Merleau-Ponty,
[...] teremos ainda que perguntar até onde vai nosso direito de
colocar as filosofias passadas num dia que é nosso, se podemos nos
gabar, como dizia Kant, de compreendê-las melhor que elas próprias o
conseguiram, e enfim, até que ponto a filosofia é dona do sentido.
Entre nós e o passado, entre nós e o Oriente, entre a filosofia e a
religião precisaremos, cada vez, aprender novamente a encadear o
hiato e reencontrar a unidade indireta. O leitor verá, então,
ressurgir a interrogação que formulamos no início, pois ela não é
prefácio à filosofia, mas a própria filosofia. (Merleau-Ponty, 1980,
p. 215)
Encontramos novamente o problema da natureza dos conceitos de história da
filosofia e filosofia. Agora, contudo, em condições de afirmar que a história
da filosofia é, ela mesma, filosófica: é a manutenção de um equilíbrio entre
contraditórios (o dito e o não dito, o autor e o leitor, o refletido e o
impensado); é a leitura do que o filósofo-autor escreveu (objeto) tendo nítido
o ponto de vista do filósofo-leitor (sujeito); é a manutenção da circularidade
entre o texto e a nova leitura (uma destruição e conservação que conferem, ao
lido, um novo começo); e, por fim, a história da filosofia é a manutenção da
ambiguidade entre história e filosofia (sustentando um equilíbrio difícil).
A leitura do filósofo é uma comunicação, e, como tal, não é transparente:
trata-se de uma relação de proximidade e distância, ligando-se a uma necessária
inadequação (contingência) entre a intenção e a expressão. A interrogação, a
iniciativa e a perspectiva conferem o estatuto de filosofia à história da
filosofia, uma vez que há comprometimento. Captar o sentido legítimo do texto é
saber encontrar os indícios capazes de trazerem à luz o que estava na sombra. '
O leitor pensa o autor inovadoramente, passando a filósofo.
O ensino filosófico da filosofia: reflexões a partir da concepção merleau-
pontyana de filosofia e história da filosofia
Segundo a concepção merleau-pontyana de história, a distinção entre o filósofo
de que se fala e aquele que fala não é algo simples. O leitor-historiador
produz história da filosofia e também filosofia. "Dito mais simplesmente:
difícil distinguir onde um termina e o outro começa. Assim, o
'filósofo' de que Merleau-Ponty fala é também 'Merleau-
Ponty'" (Muchail, 2008, p. 407).
Para Merleau-Ponty, a história não é progressiva nem predeterminada, ela não se
explica por causalidades e por finalidades, porque ela depende da subjetividade
humana para ser história, o que, em outras palavras, significa que a história-
realidade necessita da consciência da história para que ela seja entendida como
história-realidade. É por meio desta circularidade entre experiência e
consciência que surge a história. Ao historiador da filosofia cabe a busca por
estes momentos em que há a comunicação entre o factual e o conceitual. Ao
filósofo, fazer a distinção e atribuir significação aos fatos estudados.
É este círculo ' entre a experiência e o conhecimento, entre o
sensível e o conceitual ' que cumpre ao filósofo tematizar e ao
historiador, investigar. Ele tem como correlato ou complemento
necessário, a não-linearidade do tempo histórico e a não-univocidade
de seu sentido ou, numa palavra, o que podemos chamar de sinuosidades
da história. (Muchail, 2008, p. 409)
Esta maneira de compreender a história considera, portanto, uma dimensão humana
da história, uma estrutura temporal não progressiva e que depende de um caráter
subjetivo para sua percepção e seu consequente entendimento.
As sinuosidades da história às quais Merleau-Ponty se refere são as diversas
formas de traçados e caminhos que são seguidos durante a construção de uma
história. Uma história pode ser construída a partir de um contexto que também
possui potencial para a construção de várias outras histórias, cada uma podendo
seguir por rotas diferentes, de forma que suas respostas sobre determinados
assuntos sejam outras, até mesmo divergentes.
Deste modo, a história-realidade "É campo aberto cuja experiência e cujo
conhecimento não nos instalam em um traçado, mas em uma 'ambiência'
a que Merleau-Ponty chama de 'atmosfera da história'" (Muchail,
2008, p. 410), onde os homens interagem e reconhecem-se por suas afinidades ou
diferenças, construindo as várias possibilidades de compreensão histórica,
ainda que estas remetam a um mesmo contexto. A tarefa tanto do historiador
quanto do filósofo então deve ser a de buscar um olhar perspectivo, e não
absoluto, confrontando o que é provável para que se chegue ao ponto mais
próximo em que se liga o fato à sua significação.
Logo, na visão de Merleau-Ponty, a separação entre o leitor-historiador e o
filósofo lido não é algo trivial, visto que, ao ler e escrever, o historiador é
motivado por questões diversas: está inserido em um determinado contexto
socioeconômico, possui um histórico de vida, de leituras, e todos os tipos de
experiências singulares, entre outras peculiaridades que determinam suas buscas
e percepções, de modo que ele faz seu próprio recorte da história. O próprio
entendimento do significado de filosofia é determinante na produção de sua
história, sendo que, desta forma, a produção da história da filosofia é um
problema de ordem filosófica; ao se produzir história da filosofia, produz-se
filosofia.
Dito de outra forma: "[...] o leitor faz ao mesmo tempo história da filosofia e
filosofia, tornando-se, ele próprio, filósofo" (Muchail, 2008, p. 406). Nestes
termos, afirma Merleau-Ponty,
[...] entre uma história "objetiva" da filosofia, que mutilaria os
grandes filósofos naquilo que deram aos outros para pensar, e uma
meditação disfarçada de diálogo, onde colocaríamos as questões e
daríamos as respostas, deve haver um espaço onde o filósofo de que se
fala e aquele que fala estejam presentes juntos, embora, de direito,
seja impossível repartir a cada momento o que é de cada um. (Merleau-
Ponty apud Muchail, 2008, pp. 406-407)
Deslocando a relação entre a filosofia e sua história para a relação entre a
filosofia e seu ensino, a dificuldade de distinção entre o filósofo, a leitura
que dele faz o professor e a apropriação da aula pelo aluno parece ainda mais
difícil de ser realizada. Como delimitar o filósofo que fala do que dele falam
os professores e alunos leitores? Se considerarmos a história da filosofia como
filosófica, pode o ensino desta não ter caráter filosófico? "O professor de
Filosofia não deve ser, de alguma maneira, filósofo (isto é, alguém que pratica
a Filosofia)?" (Gallo, 2004, p. 10). Se a história da filosofia não pode ser
reduzida a um catálogo de teorias ou, contrariamente, à incorporação das
filosofias em um único sistema, o ensino da filosofia (e da história da
filosofia) não pode ser realizado nestes termos.
Assim como a história da filosofia, o ensino da filosofia não pode ser
enquadrado como uma ilusão retrospectiva nem como uma ilusão prospectiva. Isso
porque, se, por um lado, não há uma única metodologia de ensino nem uma prévia
seleção de conteúdos primordiais a serem ensinados, por outro, não se tem total
liberdade em sala de aula, uma vez que há não só circunstâncias de
infraestrutura e cultura como há dispositivos legais para o ensino da filosofia
em seus diferentes níveis.
Fora visto que, para Merleau-Ponty, a realidade histórica é pensável e seu
conhecimento, possível. O ensino da filosofia, neste viés, deve ser igualmente
posto em perspectiva ' ser pensado em situações concretas e assumir as
referências teóricas que embasam a reflexão em sala de aula. Promovendo, pois,
um ensino efetivamente significativo.
Não cabe ensinar uma história do indivíduo como detentora da verdade, nem
ensiná-la como consciência filosófica universal. Se a própria história da
filosofia forma-se de sedimentação e reconstituição de sentidos, um ensino
filosófico da filosofia e de sua história está constantemente em trânsito,
refletindo seus fundamentos teóricos e sua práxis ' constituindo-se, portanto,
como filosofia.
Diferentes caminhos teóricos podem ser percorridos para responder a questão que
agora se coloca: "O ensino da filosofia é, em alguma medida, de interesse para
a própria filosofia?" Sem recorrer à tradição filosófica ou às questões da
formação do indivíduo e do filósofo, argumenta-se de forma mais geral, tomando
como base os pressupostos do ensino de filosofia: a escolha dos conteúdos a
serem ministrados e de suas respectivas metodologias requer uma atitude
filosófica de reflexão e decisão; ainda que de forma por vezes não
sistematizada, o professor faz uso de uma concepção de filosofia para realizar
suas escolhas e traçar os rumos de seu trabalho em sala de aula; se o próprio
sentido ' significado e direção ' de filosofia já é um problema de ordem
filosófica, o ofício do professor de filosofia igualmente o será.
Em outras palavras,
[...] a deliberação sobre os conteúdos programáticos a serem
ministrados e as metodologias a serem utilizadas estão imbuídas de
pressupostos filosóficos. Dada a diversidade de respostas para "Que é
filosofia?", igualmente diferentes serão os significados e as
direções do Ensino de Filosofia. Qualquer que seja a identidade da
Filosofia, a determinação do que se ensina e de como se o faz ' em
nome desta (seja ela qual for) Filosofia ' não pode ser realizada
exclusivamente a partir do campo da didática. Há, sim, que apresentar
uma fundamentação filosófica para a questão posta. (Velasco, 2011, p.
31)
O professor de filosofia, ao preparar o material que será ministrado em sua
aula, deve, primeiramente, determinar qual concepção de filosofia servirá de
fio condutor das atividades em sala. Além da escolha conceitual mais adequada
para o trabalho, o docente também realizará escolhas entre os conteúdos e os
métodos que serão utilizados. De maneira análoga ao historiador da filosofia
que quando escreve se aproxima dos filósofos pesquisados e proporciona novas
perspectivas de leitura das obras estudadas, o professor de filosofia ao tomar
decisões de caráter filosófico passa a ser, em alguma medida, filósofo.
Concomitantemente, ao tomar a sala de aula como espaço de prática filosófica, o
professor-filósofo concebe ao ensino-aprendizagem da filosofia o caráter
filosófico.
Sob este ponto de vista, professores e alunos pensam os autores e as filosofias
inovadoramente, exercendo e exercitando-se na filosofia.
[...] ali, naqueles momentos de aula de filosofia, cada um precisa
ser um pouco filósofo. Se a filosofia consiste numa atividade, e
mais, numa atividade criadora, ela não pode contar com a passividade
dos estudantes e meramente descortinar o universo de saberes. Cada
aluno e todos os alunos, nas aulas de filosofia, precisam, em meu
ver, fazer a experiência de lidar com a filosofia. É por isso que
essa aula deve ser como um laboratório, ou como disse antes, uma
oficina. (Gallo, 2002, p. 202)
Na oficina proposta por Gallo (2002), os alunos não são expectadores; eles se
utilizam dos temas e da história da filosofia como ferramentas para resolverem
os problemas filosóficos com os quais possuem mais proximidade e afinidade,
transformando-se em certa medida (ao menos naquele momento) também em
filósofos. Uma aula que promove a criatividade pode ser compreendida também
como uma recusa à opinião, podendo se caracterizar como uma atividade
transformadora da realidade, sendo que, para isto, faz-se necessário o
atravessamento dos problemas da filosofia com os das demais áreas.
Rompe-se, outrossim, com a dicotomia estabelecida entre o professor de
filosofia e o filósofo. Torna-se imprescindível tratar o ensino da filosofia
filosoficamente. Para que se tenham aulas efetivamente filosóficas de
filosofia, o professor não deve somente transmitir conteúdos, mas filosofar e
fornecer as ferramentas necessárias para que seus alunos filosofem também: "
[...] é importante que o professor de filosofia seja, em algum nível, filósofo,
para que a aula de filosofia seja um local de atividade filosófica" (Gallo,
2005, p. 286).
Logo, a história da filosofia sob a ótica merleau-pontyana, sendo ela mesma,
filosófica, permite-nos vislumbrar um ensino da filosofia e de sua história
também filosófico, constituído do dito e do não dito, do autor e do leitor, do
refletido e do impensado, da apropriação que o professor fez e que o estudante
faz da tradição filosófica, espaço de abertura às novas assimilações,
questionamentos, perspectivas.
Recusam-se, desta forma, as teses de Descartes e Nietzsche sobre a não
relevância do estudo da história para a filosofia. Como apresentado na seção
preliminar deste artigo, para Descartes a história da filosofia não é fonte de
conhecimento verdadeiro ' este é claro e distinto; já a história é recheada de
contradições. Nietzsche, por sua vez, ao criticar o trabalho dos historiadores
de sua época, defende que o estudo da história como erudição, desvinculada da
vida, não é tarefa filosófica e, portanto, o professor que adota este estudo
não pode ser dito filósofo.2
Para embasar a concepção de ensino de filosofia esboçada nestas páginas,
pautada na aula como oficina de pensamento filosófico e na presença da história
da filosofia neste espaço, buscam-se argumentos que sustentam a relevância
filosófica da história da filosofia e cujo pioneirismo é atribuído a Hegel.
Todavia, a ideia hegeliana de um devir filosófico não caberia na fundamentação
pretendida. Assim como não seria interessante ao propósito deste texto assumir
a pretensão estruturalista de ser um método concomitantemente científico e
filosófico, tomando a história da filosofia tanto como ciência rigorosa quanto
como disciplina filosófica. Os argumentos de Merleau-Ponty sobre o caráter
filosófico da história da filosofia são então adotados.
Na perspectiva merleau-pontyana, a realidade é inteligível e a história faz
sentido. A história não é um catálogo de teorias nem um único sistema orgânico.
Cada filosofia é singular e, como tal, indestrutível. E será percorrida em seus
meandros pelo leitor que interpela a vida. A história da filosofia como
manutenção do difícil equilíbrio entre o dito e o não dito, entre o texto e a
leitura que deste se faz, exige que o leitor seja, igualmente, filósofo. A
história da filosofia é, pois, filosófica.
A consideração de uma história filosófica da filosofia e de um leitor filósofo
desta história oferece elementos para colocarmos o ensino da filosofia em
perspectiva, assumindo os pressupostos filosóficos deste ensino. À medida que
subjaz ao ensino da Filosofia a reflexão filosófica sobre os fundamentos
teóricos e a práxis deste próprio ofício, o ensino da filosofia é tarefa da
própria filosofia. Ao ensinar-aprender filosofia, decisões filosóficas são
tomadas (que concepção de filosofia está sendo adotada? Que conteúdos
filosóficos devem ser priorizados?), apropriações filosóficas são feitas (que
leituras fazem os estudantes do texto em mãos e da interpretação feita pelo
docente acerca do referido texto? Que reflexões constroem a partir do diálogo
em sala de aula?). A reconstituição de sentidos que compõe a história da
filosofia na abordagem de Merleau-Ponty embasa, igualmente, o ensino da
filosofia e de sua história.
Por conseguinte, um ensino filosófico da filosofia não se contentará em
salvaguardar as peculiaridades da filosofia, mas deve ' preservando as tramas
significativas ' ultrapassá-las. Apropriar-se destas para refletir para além
delas. Os filósofos clássicos respondem às inquietações de seus tempos e nos
ensinam a responder as nossas. Neste sentido, professores e alunos praticam a
filosofia, sendo ' tal qual o leitor da história filosófica da filosofia ',
filósofos. Se Merleau-Ponty assinala brechas nas filosofias para que o
pensamento do leitor se aloje, como insistir em uma aula de filosofia em que
não há lugar para o ainda não pensado? Como ensinar filosofia sem interpelar a
vida? O ensino da filosofia também não se acha preservado da vida; não se quer
preservado do homem.
Pois é impossível negar que a filosofia claudica. Habita a história e
a vida, mas quereria instalar-se no seu centro, naquele ponto em que
são advento, sentido nascente. [...] O filósofo é o homem que
desperta e fala, e o homem contém em silêncio os paradoxos da
filosofia, porque, para ser plenamente homem, é preciso ser um pouco
mais e um pouco menos do que homem. (Merleau-Ponty, 1986, pp. 75-81)