De Hegel a Marx: da inflexão ontológica à antítese direta
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Excluindo Marx, Hegel foi o autor mais tratado, de um modo ou doutro, no
marxismo. Aqui, tentaremos abordar um aspecto específico da crítica marxiana ao
autor da "Ciência da lógica", aquele que diz respeito à confirmação da
objetividade (Gegenståndlichkeit) no autor e que aparece também na compreensão
marxiana da noção de ser (Wesen). Trata-se de tema que tem reverberações na
teoria das abstrações (Cf. Chasin, 2009), na distinção entre modo de pesquisa
(Forschungsweise) e de exposição (Darstellungsweise) presente em "O capital" e,
talvez no aspecto mais pungente, na crítica marxiana à inversão hegeliana entre
sujeito e predicado, crítica essa realizada já na "Crítica à filosofia do
Direito de Hegel" e que permanece na obra de Marx durante todo o seu
desenvolvimento. Albergando estes aspectos ao passo que temos por central a
crítica ao modo como se apresenta a noção de Ser (Sein) em Hegel, intentamos
esclarecer aspectos importantes da diferença específica trazida ao pensamento
marxiano em razão de seu embate com a filosofia hegeliana.
Adentramos tal empreitada dando enfoque à posição marxiana segundo a qual "um
ser não objetivo é um não-ser" (Marx, 2004, p. 127) (Ein ungegenståndliches
Wesen ist ein Unwesen). Trata-se de algo essencial para conformação da posição
marxiana na medida em que, para o autor, como mostraremos no final do artigo,
ao contrário do que se dá em Hegel, não é essencial a diferença, e a aposição,
entre o ente (Seiende), o ser (Wesen) e o Ser (Sein). Explicitamos a crítica
marxiana também ao passo que estas diferenciações e oposições (que usualmente
vêm a ser lidas como antinomias) aparecem de modo pungente em parte
considerável da filosofia do século XX, principalmente pela influência da
figura de Martin Heiddeger. Mostraremos, assim, que há em Marx a busca pelo
próprio ente real e efetivo (wirklich) na medida em que "momento filosófico não
é a lógica da coisa (Sache), mas a coisa da lógica" (Marx, 2005a, p. 39) (Nicht
die Logik der Sache,sondern die Sache der Logik ist das philosophische Moment).
Aqui, mesmo tendo em mente que um autor da monta de Lenin chegue a dizer que
"não se pode compreender plenamente O capital de Marx, e particularmente seu
primeiro capítulo, sem ter estudado e compreendido toda a Lógica de Hegel"
(Lenin, 2012, p. 157), acreditamos que é impossível transpor o desenvolvimento
categorial da "Ciência da lógica" para a obra mestra de Marx (algo que alguns
importantes estudiosos não deixam de intentar, mesmo, em nossa opinião, contra
a letra do texto do próprio Marx). Não trataremos aqui do tema de modo direto,
mas abordaremos aspectos que ' intentamos mostrar ' conformam um estudo prévio
necessário e essencial quando se adentra neste meandro.
Desta maneira, antes de se rejeitar a compreensão rigorosa da diferença
conformada na passagem da filosofia hegeliana à marxiana, mesmo esta passagem
de Lenin ' que deu legitimidade a muitas aproximações descuidadas entre Marx e
Hegel ', deve ganhar destaque em função, também, das descontinuidades que
marcam a diferença específica do pensamento marxiano ante o hegeliano.
Pretendemos mostrar, pois, que não pode ser considerado apropriado deixar de
lado o acerto de contas em relação a Hegel, acerto esse calcado, primeiramente,
na denúncia feita por Marx, já em seus escritos de juventude, em que aponta que
o filósofo da "Fenomenologia do espírito", em verdade, viria a transplantar '
de modo sutil e instigante, claro ' a esfera concreta do ser (Wesen) à esfera
abstrata da lógica, realizando uma inversão sui generis entre sujeito e
predicado. Para tratar da famosa (famigerada?) "inversão" marxiana é preciso
ter em mente este ponto, até mesmo porque, em Hegel, a lógica é vista no mesmo
patamar da realidade efetiva (Wirklichkeit) ' o que se dá principalmente na
"Ciência da lógica" quando se adentra a lógica do conceito (Begriff) ao passo
que o Ser (Sein) é considerado uma mera abstração, trazendo Marx, como
pretendemos deixar claro no texto, a posição diametralmente oposta sobre tal
temática ao enfocar, em "antítese direta" (direktes Gegenteil) a Hegel, que "um
ser (Wesen) não objetivo é um não-ser (Unwesen)."
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O modo como começa a "Ciência da lógica" de Hegel é esclarecedor no que diz
respeito às questões que intentamos aqui abordar. Diz-se ' no início desta obra
' que o Ser (Sein) é carente de determinações, é o mais abstrato, é forma pura
de intuição (Anschauen). Ele, pois, corresponderia, segundo o autor alemão, à
imediatez:
Ser(Sein),puro Ser(reines Sein): sem nenhuma determinação outra. Na
sua imediatez indeterminada, ele é apenas igual a si mesmo e não é
desigual em relação à outra coisa (gegen Anderes); ele não tem
diversidade alguma no interior de si nem fora. Qualquer determinação
ou conteúdo que seriam postos nele como diferentes, ou através do
qual ele seria posto como diferente de um outro, não lhe permitiria
manter-se em sua pureza. Ele é pura indeterminação e vazio (Leere).
Não há nada a intuir nele, se da intuição (Anschauen) poderíamos aqui
dizer; ou ele é apenas este próprio intuir, puro e vazio [...] O Ser,
o imediato indeterminado é, na verdade, nada(Nichts), não mais nem
menos que nada. (Hegel, 1982, p. 107)
O Ser (Sein) não aparece enquanto algo concreto e, por si, dotado de
efetividade (Wirklichkeit), mas como um abstrato. Segundo Hegel, partir do Ser
implicaria em apegar-se à imediatez, o que significaria deixar de lado as
determinações que compõem a realidade efetiva (Wirklichkeit), em um primeiro
momento, ao menos.1 No âmbito em que se apresenta a categoria do Ser, diz
Hegel, não seria cognoscível a contradição e sequer poder-se-ia pensar a
realidade efetiva mesma com referência à diferença, já que as assim chamadas
determinações reflexivas (Reflexionsbestimmungen) só vêm à tona na "Ciência da
lógica" na doutrina da essência.2 Neste momento da apresentação hegeliana, sem
espaço para a diversidade, a identidade estaria amparada no Ser somente ao
passo que conformaria uma forma vazia, não comportando sequer a determinação
(que traz, em Hegel, consigo também a diferença). Com isso, a categoria "Ser"
somente poderia constituir o início de um percurso ideal, que deveria
transcorrer na medida em que há de se pressupor uma espécie de fenomenologia,3
em que o Ser só é passível de efetividade com o papel central que viria a
adquirir a mediação da consciência que se eleva a um patamar superior no
espírito, como mostra Hegel na "Fenomenologia do espírito".
Ao passo que para Marx "não é a consciência (Bewusstsein) que determina a vida
(Leben), mas a vida que determina a consciência" (Marx; Engels, 2007, p. 94)
(Nicht das Bewußtsein bestimmt das Leben,sondern das Leben bestimmt das
Bewußtsein), em Hegel, a apreensão da vida passa pela mediação da consciência
de tal modo que o Ser (Sein) é subsumido como um momento da última, e não da
primeira ' para se tratar da "inversão" marxiana de Hegel, isso é essencial.
Desde logo, pois, percebe-se que, no autor da "Ciência da lógica", a apreensão
da universalidade real (que, para Marx, está conformada na objetividade
[Gegenståndlichkeit] que vem com a história mundial [Weltgeschichte]4) não
teria consigo a apreensão reta do ser (Wesen); antes, a posição hegeliana é
aquela segundo a qual o real (Reale) só poderia ser apreendido ao passo que é
mediado pela consciência humana já colocada no patamar da filosofia
especulativa, algo que é desenvolvido, sobretudo, na "Fenomenologia do
espírito". Para Hegel, em verdade, tal subsunção mencionada se dá porque o
pensar e a objetividade apareceriam como suprassumidos (aufgehoben)5 na
realidade efetiva (Wirklichkeit), sendo esta última a expressão real e efetiva
(wirklich) da idealidade.
No que, neste ponto, aparece o idealismo hegeliano de modo claro, mesmo que se
trate de um idealismo objetivo.6 Voltemos, assim, ao que diz Hegel sobre a
universalidade, pois. Diz ele sobre o início primordial da filosofia:
O universal é, pois, somente forma, e contrapõe-se lhe o particular,
o conteúdo. [...] O primeiro é o universal como tal; este é o
abstrato, é o pensamento, mas enquanto puro pensamento é abstração.
"Ser" (Sein) ou "essência" (Wesen),7 "o uno", etc., são alguns desses
pensamentos de todo abstratos. (Hegel, 2005b, p. 73)
A noção de Ser (Sein) é compreendida como uma abstração inerente aos primórdios
do pensamento ocidental, podendo ser encontrada na filosofia de um Parmênides,
por exemplo, e sendo, em-si, carente de sentido em outro momento.8 Segundo
Hegel, na modernidade, na sociedade civil-burguesa (bürguerliche Gesellschaft),
não se poderia ter como parâmetro tal noção, a qual padeceria de indeterminação
se comparada a noções que pressuporiam um desenvolvimento maior do pensamento
ocidental, pressupondo igualmente a reconciliação (Versöhnung) de categorias
ainda não desenvolvidas autônoma e plenamente no pensamento grego. A
concretude, que contém em si a diversidade e determinações, em Hegel,
apareceria somente com a noção de realidade efetiva (Wirklichkeit), mas não com
o Ser. Este último seria somente parte do percurso ideal (que também é real no
autor) do qual derivaria o devir (Werden) que, por seu turno, na lógica da
essência ' para o autor, "a verdade do Ser está é a essência" (Hegel, 1969, p.
389) (Die Wahrheit des Seins ist das Wesen) ' apareceria na figura da
contradição: "a efetividade (Wirklichkeit) é a unidade, que veio a ser
imediatamente, da essência (Wesen) e da existência, ou do interior e do
exterior." (Hegel, 2005a, p. 266). Note-se: não que o Ser não fosse importante
para o autor da "Ciência da lógica". Ele é. Mas, inelutavelmente, teria uma
dupla delimitação: sua inserção nos primórdios da filosofia ocidental (nos
pensamentos "de todo abstratos") e seu caráter vazio, este último que
conduziria o Ser ao seu oposto: "o Ser, o imediato indeterminado é, na verdade,
nada(Nichts), não mais nem menos que nada." Esta copertença entre Ser e nada é
essencial a Hegel.
No autor da "Ciência da lógica", da oposição entre o Ser (Sein) e o nada
(Nichts) deriva o devir (Werden); e é justamente esse último que seria ' em um
nível de concretude maior ' de grande importância para a conformação do caráter
processual da racionalidade do real (Wirklichen), sendo que, para o pensador,
para que se use sua frase célebre, a qual remete já à efetividade
(Wirklichkeit) "o racional é real e o real é racional" (Hegel, 2003a, p. XXXVI)
(Was vernünftig ist,das ist wirklich; und das wirklich ist das ist vernünftig).
Ou seja, a oposição entre Ser e nada pode, até certo ponto, ser vista como uma
espécie de motor interno primeiro da lógica hegeliana, a qual, assim, carrega
consigo certo caráter teleológico na medida em que do Ser advém, logicamente, o
devir e este somente seria compreendido tendo em conta a realidade efetiva
(Wirklichkeit), em que se realiza sua essência (Wesen) de modo pleno; o caminho
do imediatismo do Ser à concretude mediatizada da realidade efetiva tem por
corolário a negatividade inerente à relação existente ' em Hegel ' entre o Ser
e o nada. Portanto, se Hegel não traça um abismo entre Ser e nada, ele traz uma
solução que propicia a possibilidade de se pensar a contraditoriedade do real
que é efetivo (wirklich) (o que é um enorme avanço, segundo Marx e Engels)9
somente ao passo que esse último vem a configurar o cume do desenvolvimento do
espírito, que se desenvolve, por fim, em espírito absoluto (o que é criticado
de modo decidido por Marx) ' o espírito absoluto aparece como pressuposto no
desenvolvimento da filosofia hegeliana, presidindo o processo de
desenvolvimento das diversas figuras do espírito, dentre elas, inclusive, o
espírito objetivo, a esfera da sociabilidade em que se apresentam a sociedade
civil-burguesa (bürguerliche Gesellschaft) e o Estado.
Em Hegel, o modo como se pensa o Ser (Sein) somente poderia relacionar-se à
história da filosofia, e não à elaboração de uma filosofia que condissesse com
o espírito do tempo moderno; o Ser só poderia ser efetivo (wirklich) se
subsumido a figuras dotadas de mais determinações (as quais só aparecem, em
Hegel, na modernidade mesma, e no pensamento moderno na medida em que "a
verdade do Ser é a essência [Wesen]"). O locus do Ser estaria na Grécia antiga,
não se podendo transpô-lo à sociedade civil-burguesa (bürguerliche
Gesellschaft) senão naquela forma pela qual foi primordialmente exposto, e que
' se tivesse alguma importância ainda, apareceria suprassumido (aufgehoben) no
devir e, em um grau maior de concretude, na contradição e, por fim, na
realidade efetiva (Wirklichkeit).10 Assim, Hegel expressa-se de modo enfático
quanto à diferença existente entre o seu tempo e a Antiguidade clássica:
Nada é mais oco do que os apelos tantas vezes repetidos aos exemplos
gregos e romanos durante a Revolução Francesa; nada é mais diferente
do que a natureza destes povos e de nosso próprio tempo. (Hegel,
2004, p. 50)
O modo como aparecem a Antiguidade e os temas da filosofia antiga (segundo o
autor, entre estes temas, o Ser [Sein]) é aquele de algo já superado, suprimido
(aufgehoben), tratar-se-iam de temáticas que apareceriam na filosofia somente
na medida em que se encontrariam elevadas a um novo patamar mais concreto em
figuras como a essência (Wesen), a contradição e a realidade efetiva
(Wirklichkeit). A dialética hegeliana opera por meio da categoria da superação
(Aufhebung), a qual, é bom que se diga, não raro, foi transposta ao pensamento
marxiano sem o devido cuidado, mesmo que, em Hegel, se trate de uma noção
lógica e, nesta medida mesma, real ' o que é oposto ao espírito, e à letra,
marxianos. Marx diz que "em sua forma mistificada, a dialética foi à moda alemã
porque ela parecia tornar sublime o existente" (Marx, 1988, p. 27). Isso se dá,
em verdade, também ao passo em que oposições reais e efetivas (wirklich), bem
como questões ligadas a elas, são tidas por Hegel como suprassumidas pois o
presente se corporificaria como algo real e racional ' "o racional é real e o
real é racional." A superação (supressão, suprassunção) é compreendida de tal
modo por Hegel que haveria uma lógica inerente ao próprio real (Reale), sendo
fenômeno e essência, real e racional, somente pensáveis ao passo que a
efetividade (Wirklichkeit) do presente é concebida como o cume do
desenvolvimento do espírito, enquanto uma face da realização da ideia; a
realidade efetiva aparece como expressão da ideia, e não oposto, pois. E, sabe-
se, este é um dos grandes pontos em que Marx ataca Hegel.
Nesse sentido, partindo da oposição entre Ser (Sein) e nada (Nichts), passando
pelo devir (Werden), a lógica hegeliana dá ensejo ao movimento do pensamento do
abstrato ao concreto na medida em que o movimento do real (Wirklichen) não
seria senão, ao final, aquele da razão (Vernunft). A realidade efetiva
(Wirklichkeit) mesma expressaria a racionalidade, a lógica, e, assim, na medida
mesmo em que o autor da "Ciência da lógica" faz uma crítica contundente às
formas de consciência atreladas de modo imediato à vida cotidiana (o que seria
um grande avanço, segundo Marx), ele trata de hipertrofiar o papel da razão, a
qual, realizada na figura do espírito absoluto, fornece, em Hegel, o télos da
própria realidade efetiva, a qual vem a aparecer enquanto realização da ideia.
O Ser (Sein), enquanto noção central à filosofia, segundo Hegel, seria uma
categoria importante à Antiguidade; no presente ela somente apareceria
suprassumida (aufgehoben), sendo a partir dela deduzido o devir (Werden) como
parte constitutiva da própria objetividade (Gegenståndlichkeit), efetiva
(wirklich), por sua vez, por meio da reconciliação (Versöhnung) do ideal da
realidade (Realitåt) na realidade efetiva (Wirklichkeit). O devir, pois,
aparece como um momento da objetividade mesma em Hegel. Por outro lado, como
aponta Engels, o autor da "Fenomenologia do espírito" trouxe à tona também algo
dificilmente conciliável com isto: "um sistema universal e compacto,
definitivamente plasmado, no qual se pretende enquadrar a ciência da natureza e
da história" e isso "é incompatível com as leis da dialética" (Engels, 1990, p.
23). Trata-se da conhecida contradição entre o método dialético hegeliano
(amparado no devir e, em um grau mais concreto na contraditoriedade do real) e
seu sistema, cujo cume encontra-se ' em se tratando do desenvolvimento
histórico objetivo ' na realização contraditória da sociedade civil-burguesa
(bürguerliche Gesellschaft).
A última, mesmo vista como "o espetáculo de devassidão bem como o da corrupção
e da miséria" (Hegel, 2003a, p. 169), é também, para Hegel, a forma social em
que a razão (Vernunft) seria real e efetiva (wirklich) por meio de sua
subsunção ao Estado.11 A racionalidade do real (Reale) é enxergada na medida em
que o movimento realizado na história é a manifestação do devir (Werden) já
pressuposto num duplo sentido: na medida em que decorre do impulso dado à
lógica pela relação entre Ser (Sein) e nada (Nichts) ' de onde é deduzido o
devir ', e ao passo que o devir do real conforma-se no presente, sendo o télos
rumo ao último também suposto por Hegel enquanto realização racional em-si e
para-si da ideia. A ideia, pois, apresenta-se enquanto sujeito que preside o
processo de desenvolvimento da objetividade (Gegenståndlichkeit). E, como
aponta Marx já em sua juventude, sobre Hegel:
Ele transformou em um produto, em um predicado da Ideia, o que é seu
sujeito; ele não desenvolve seu pensamento a partir do objeto
(Gegenstånd), mas desenvolve o objeto segundo um pensamento
previamente concebido na esfera abstrata da lógica. (Marx, 2005a, p.
36)
Marx destaca a prioridade ontológica do objeto (Gegenstånd), criticando Hegel
por ter realizado em seu "Princípios da filosofia do Direito" uma inversão sui
generis em que aquilo que é sujeito, no caso analisado por Karl Marx na
passagem, a constituição política (politischen Verfassung), aparece como um
predicado da "ideia universal", no caso, de organismo. Aquilo que é real e
efetivo (wirklich), pois aparece como a expressão de uma ideia universal, e não
o oposto, como postula Marx; assim, depois de certo ponto, segundo Marx, não se
tem em Hegel a compreensão reta da gênese do real (Reale); o real, assim,
apresentando-se de modo um tanto quanto mistificado ("a dialética foi à moda
alemã porque ela parecia tornar sublime o existente"), ocultando, quer se
queira, quer não, o verdadeiro elemento real e efetivamente ativo na
constituição da sociabilidade humana, a própria atividade do homem12 ' "porque
se partiu da 'Ideia' ou da 'Substância' como sujeito,
como essência real (dem wirklichen Wesen), o sujeito realaparece apenas como o
último predicadodo predicado abstrato" (Marx, 2005a, p. 38). A própria
atividade que engendra formas sociais de objetividade (Gegenståndlichkeit) ' a
atividade objetiva (gegenståndliche Tåtikeit) ', sob circunstâncias legadas
pelo passado,13 aparece de modo esfumaçado no autor da "Ciência da lógica",
passando a ser vista como o resultado predicado pela ideia tornada substância.
A objetividade hegeliana, portanto, não aparece como uma objetividade
fantasmagórica e hipostasiada, isto é verdade. Não se trata de uma abordagem
que fetichiza o real. Isto, porém, somente se dá ao passo que há uma posição
idealista clara segundo a qual "a realidade (Realitåt) posta como é em si,
mostra-se ela mesma como idealidade" (Hegel, 2005a, p. 194) (Realitåt als das
gesetzt,was sie an sich ist,erweist sich selbst als Idealitåt). Se o autor
criticado por Marx escapa da armadilha kantiana ' que consiste em traçar um
abismo entre a cognição racional e a coisa-em-si (Ding an sich) ' ele vem a
enxergar a superação (Aufhebung) do imediatismo como um procedimento que só é
possível ao se conceber o sujeito como um predicado da ideia, a qual, por sua
vez, traria consigo a reconciliação (Versöhnung) entre sujeito e objeto
(Objekt) na figura do "sujeito-objeto idêntico". Hegel, pois, trata de
desenvolver uma forma de crítica ao agnosticismo kantiano que, ao final,
redunda na identidade entre sujeito e objeto: em Hegel, somente enquanto se
compreende o caráter das figuras da consciência (Bewusstsein) ' que aparecem
como sujeito, e não predicado ' que a realidade (Realitåt) aparece como
efetividade (Wirklichkeit). A prioridade ontológica do objeto, apontada como
decisiva por Marx, resta eclipsada, tendo-se, não a compreensão da legalidade
específica da coisa (Sache), mas a subsunção da coisa às leis da lógica.
Segundo Marx, "Hegel, por toda parte, faz da Ideia o sujeito e do sujeito
propriamente dito [...] faz o predicado. O desenvolvimento prossegue, contudo,
sempre do lado do predicado" (Marx, 2005a, p. 32). O "lado do predicado" '
leia-se, as formas ideológicas14 que vêm a ser essenciais na conformação do
momento ideal da atividade humana e que são, até certo ponto, hipostasiadas por
Hegel ' parecem ter prioridade sobre a conformação objetiva do real (Reale)
somente na medida em que, aponta Marx, isto em verdade não se dá e nem pode se
dar. A lógica só pode ganhar a proeminência que têm no autor da "Ciência da
lógica" quando este é levado pela "lógica da coisa", e não pela "coisa (Sache)
da lógica", ocorrendo o oposto em Marx que, novamente, já em sua juventude,
inverte o hegelianismo traçando a prioridade ontológica do Ser (Sein) sobre a
consciência: para o autor de "O capital", "a consciência (Bewusstsein) não pode
ser jamais outra coisa que o Ser consciente (bewusste Sein), e o Ser dos homens
é seu processo de vida real" (Marx; Engels, 2007, p. 94) (Das Bewußtsein kann
nie etwas Andres sein als das bewußte Sein,und das Sein der Menschen ist ihr
wirklicher Lebensprozeß). Vê-se, novamente, pois, que a vida (Leben) e o Ser
antecedem a consciência, sendo os primeiros a base real da última ' a
prioridade ontológica, mencionada anteriormente (em relação ao objeto
[Gegenstånd]) aparece, assim, em um grau maior de concretude, em que se
apresenta, em verdade, a consciência como um predicado do Ser consciente.
A inversão marxiana, pois, tem um estatuto ontológico, tratando-se da
prioridade do ser (Wesen) real e efetivo (wirklich) mesmo sobre questões de
método.15
No que a crítica de Marx a Hegel ganha um tom que nos parece ser de grande
relevo, como veremos a seguir: O autor da "Ciência da lógica" ainda busca
apresentar uma filosofia que seja sistemática enquanto corresponde o
desenvolvimento espiritual ao desenvolvimento do espírito absoluto e à razão
(Vernunft) mesma. De acordo com os paradigmas de sua época, aponta algo que
deve ser visto em seu aspecto intimamente contraditório: "a verdadeira figura
em que a verdade existe só pode ser o seu sistema científico" (Die wahre
Gestalt,in welcher die Wahrheit existiert,kann allein das wissenschaftliche
System derselben sein), buscando o autor o seguinte: "colaborar para que a
filosofia se aproxime da forma da ciência ' da meta em que deixe de chamar-se
amor ao saber para ser saber efetivo ' é isto o que me proponho" (Hegel, 2003b,
p. 27) (ihren Namen der Liebe zum Wissen ablegen zu können und wirkliches
Wissen zu sein ist es,was ich mir vorgesetzt). Aqui também aparece de modo
pungente a contradição, apontada por Engels, entre sistema e método: a
filosofia hegeliana é declaradamente sistemática somente na medida em que esta
sistematicidade mesma procura se colocar como "saber efetivo" (wirkliches
Wissen), ou seja, como o saber que é real e efetivo (wirklich), que alcança a
concretude da realidade efetiva (Wirklichkeit). O autor da "Ciência da lógica",
assim, torna a filosofia autônoma para depois fazê-la retornar à realidade
(Realitåt), realizando, também neste ponto, a inversão entre sujeito e
predicado apontada por Marx em sua juventude (em Hegel, a realidade efetiva
pressupõe o desenvolvimento espiritual, e não o oposto). Contra isso, a posição
de Marx não deixa de ser antípoda:
Ali onde termina a especulação, na vida real (wirklichen Leben),
começa também, portanto, a ciência real, positiva (wirkliche,positive
Wissenschaft), a exposição da atividade prática (Darstellung der
praktischen Betåtigung), do processo prático de desenvolvimento dos
homens (des praktischen Entwicklungsprozesses der Menschen). (Marx;
Engels, 2007 p. 95)
Assim, para o autor de "O capital", a ciência (o saber real e efetivo
[wirklich]) não aparece como um predicado da atividade engendrada pelo
idealismo especulativo (em que realidade [Realiåt] e idealidade convergem na
realidade efetiva [Wirklichkeit]) ' antes, ela começa onde o primeiro termina:
"as fraseologias sobre a consciência (Bewusstsein) acabam e o saber real
(wirkliches Wissen) tem de tomar seu lugar. A filosofia autônoma perde, com a
exposição da realidade (Darstellung der Wirklichkeit), seu meio de existência"
(Marx; Engels, 2007, p. 95). E isto nos parece essencial.
A crítica marxiana ao idealismo hegeliano busca a própria "exposição da
realidade" (Darstellung der Wirklichkeit), a explicitação das determinações da
realidade efetiva (Wirklichkeit), sendo este procedimento alheio a qualquer
autonomização da filosofia, mesmo que esta, posteriormente, como em Hegel,
sofresse uma reconciliação (Versöhnung) e aparecesse "elevada a um nível
superior" na realidade efetiva, dando ensejo à efetividade. Trata-se, em Marx,
como já mencionado, da prioridade ontológica do objeto (Gegenstånd), que,
claro, não se reduz ao objeto inerte (Objekt) enquanto instância constitutiva
da realidade efetiva, não podendo ser desconsiderada tal prioridade por uma
posição que se pretenda materialista, como a de Marx. No último, a atividade
humana mesma é atividade objetiva (gegenståndliche Tåtikeit),16 que leva a cabo
' até certo ponto17 ' a conformação da objetividade (Gegenståndlichkeit) que se
apresenta socialmente em meio às relações sociais de determinado momento do
desenvolvimento histórico objetivo. Marx e Engels apontam, neste sentido, que
"conhecemos apenas uma ciência, a ciência da história" (Marx; Engels, 2002, p.
107) (Wir kennen nur eine einzige Wissenschaft,die Wissenschaft der
Geschichte), na medida em que se trata de uma ciência em que a totalidade
social aparece por meio da "exposição da realidade" (Darstellung der
Wirklichkeit) mesma e não em relação a qualquer lógica ou qualquer metodologia
autonomizados.
3
Para Marx, a conformação da sociedade civil-burguesa (bürguerliche
Gesellschaft) não é o resultado da realização da razão (Vernunft) na história
do espírito humano, mas parte da "pré-história da sociedade humana" (Marx,
2009, p. 48), da "história de todas as sociedades que existiram", "a história
da luta de classes" (Marx; Engels, 1998, p. 9). O autor de "O capital" parte da
crítica à sociedade civil-burguesa, cuja anatomia, diz, "deve ser procurada na
economia política" (Marx, 2009, p. 47). Assim, pode-se dizer que Marx, opondo-
se a Hegel, fala de uma "configuração racional" da dialética na qual "não se
deixa impressionar por nada e é, em sua essência (Wesen), crítica e
revolucionária (kritisch und revolutionår)" (Marx, 1988, pp. 20-21) na medida
em que questiona a própria conformação real e efetiva (wirklich) da sociedade
em que se situa; partindo dos apontamentos de Marx, assim, seria necessária uma
transformação no campo do próprio Ser (Sein), da própria realidade efetiva
(Wirklichkeit) e, tendo isto em mente, primeiramente, diz Karl Marx que de modo
decidido que em suas "Teses sobre Feuerbach":
A questão de saber se ao pensamento humano cabe alguma verdade
objetiva (gegenståndliche Wahrheit) não é uma questão de teoria, mas
uma questão prática. [...] A disputa acerca da realidade
(Wirklichkeit) ou não realidade (Nichtwirklichkeit) de um pensamento
que se isola da prática é uma questão puramente escolástica. (Marx;
Engels, 2007, p. 537)
A impossibilidade da autonomização da esfera ideal quanto à objetiva
(gegenståndliche) é clara na passagem, passagem esta a qual não deixa de
remeter à posição segundo a qual "a consciência (Bewusstsein) não pode ser
jamais outra coisa que o Ser consciente (bewusste Sein), e o Ser dos homens é
seu processo de vida real (ist ihr wirklicher Lebensprozeß)" ' o processo de
vida real (mediado pelas relações sociais de produção, que se expressam na
época de Marx na sociedade civil-burguesa) é, em Marx, o momento em que se deve
enfocar ' desatrelar as categorias deste processo é deixar de tratá-las como
"formas de ser (Daseinformen), determinações de existência
(Existezbestimmungen)". Caso este procedimento criticado por Marx seja adotado,
tem-se o caráter escolástico criticado pelo autor de "O capital". Para Marx, a
verdade objetiva (gegenståndliche Wahrheit) mesma aparece como uma questão
prática na medida em que não se mostra possível uma exposição que não tenha em
conta as categorias como partes constitutivas do real (Reale); a atividade
objetiva do homem não é, pois, expressão da idealidade, ou uma mera perda de si
nos objetos sensíveis (sinnliche Objekt). O tertium datur marxiano se apresenta
quando se enfoca a prioridade ontológica do objeto (Gegenstånd), enxergando a
atividade humana na conformação da objetividade (Gegenståndlichkeit) ao passo
que esta traz consigo uma tensão entre a conformação e atual da sociabilidade
humana e aquela que, com a mediação da práxis, pode ser realizada uma vez já
estando presente como possibilidade (Möglichkeit).
A atividade prática do homem, pois, é central para o autor alemão somente na
medida em que há uma precedência das condições reais e concretas que se
apresentam a ele na sua cotidianidade. Trata-se, como menciona Marx em uma
passagem já citada do "18 Brumário", de circunstâncias com as quais os homens
se "defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de
todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos." É, pois,
da maior importância, a apreensão reta destas circunstâncias, tratando-se, em
Marx, da "configuração racional" da dialética somente ao passo que esta última
exprime o movimento mesmo do real (Reale), e não qualquer modelo, por mais
complexo e elaborado que ele mostre ser: o "momento filosófico não é a lógica
da coisa (Sache), mas a coisa da lógica." Este momento não é vão, pois. Mas,
sempre, deve reconhecer a prioridade da objetividade (Gegenståndlichkeit), e a
prioridade ontológica do próprio objeto (Gegenstånd).
No que se deve adentrar em um meandro importante: é preciso dizer que a
distinção entre modo de exposição (Darstellungsweise) e modo de pesquisa
(Forschungsweise) ' de grande importância para Marx ' é, de certo modo,
estranha a Hegel. Na medida em que, no autor idealista, as categorias já são
concebidas como componentes do próprio real (Reale), há certa autonomização das
instâncias que apreendem as primeiras, a filosofia e a lógica (mesmo que essas,
depois, voltem-se à realidade efetiva [Wirklichkeit] no autor). Com o ímpeto
sistemático do pensamento hegeliano, poder-se-ia ainda deduzir logicamente as
categorias eivadas de maior grau de concretude a partir das categorias
anteriores (tal qual o devir [Werden] foi deduzido da oposição entre Ser [Sein]
e nada). Assim, ao contrário do que se dá em Marx, a apreensão efetiva
(wirklich) da real tessitura da realidade efetiva somente é possível tendo em
mente o locus específico de cada uma das categorias em relação ao desvelamento
lógico da categoria precedente; no caso aqui tratado, o Ser aparece como uma
categoria primeira para o autor da "Ciência da lógica", sendo ele cognoscível
somente neste momento da exposição, sendo o mais abstrato, aquilo carente de
determinações. Ao enxergar aquilo que é real e efetivo como a expressão da
ideia (na dicção de Marx, de uma "ideia universal") algo essencial poderia,
segundo o autor de "O capital", ser negligenciado; trata-se justamente daquilo
que Marx julgou ser de maior relevo: "captar detalhadamente a matéria (Stoff),
analisar suas formas de evolução e sua conexão íntima" (Marx, 1988, p. 26). E
isso não seria algo contingente na posição hegeliana, não sendo possível, pois,
qualquer transposição da lógica e da dialética hegelianas ao universo
categorial marxiano: no início da lógica hegeliana mesma já estaria certo
logicismo, que se apresenta na inversão entre sujeito e predicado. Para Marx,
pois, deve-se "captar detalhadamente a matéria, analisar suas formas de
evolução e sua conexão íntima" de modo que seja possível explicitar as
determinações reais e efetivas da realidade efetiva, com a "exposição da
realidade" (Darstellung der Wirklichkeit) mesma. À luz do que dissemos, resta
clara a passagem de "O capital":
Por sua fundamentação, meu método dialético não só difere do
hegeliano, mas é também sua antítese direta (direktes Gegenteil).
Para Hegel, o processo de pensamento, que ele, sob o nome de ideia,
transforma num sujeito autônomo, é o demiurgo do real (Demiurg des
Wirklichen), real que constitui apenas sua manifestação externa. Para
mim, pelo contrário, o ideal não é nada mais que o material
(Materielle), transposto e traduzido na cabeça do homem. (Marx, 1988,
p. 26)
A prioridade ontológica do objeto (Gegenstånd) fica explícita na passagem
também enquanto Marx reitera, em sua obra madura, a crítica que já tecera em
sua juventude acerca da inversão sui generis realizada por Hegel entre sujeito
e predicado ' neste ponto específico há uma "antítese direta" (direktes
Gegenteil) entre o "método dialético" de Marx, método esse que procura
expressar as categorias como formas de ser (Daseinformen), determinações de
existência (Existenzbestimmungen) ao passo que "o ideal não é mais que o
material (Materielle) transposto e traduzido18 na cabeça do homem", e o método
de Hegel que toma a ideia como algo autonomizado ante a concretude para, então,
fazer com que ela se volte a esta como um demiurgo, que conformaria real e
efetivamente (wirklich) a realidade efetiva (Wirklichkeit). É mesmo importante
notar que não há também qualquer tipo de spinozismo no autor de "O capital" na
medida em que há uma autonomia relativa do pensamento que não pode ser
desconsiderada ' o ideal é um momento, mas um momento subsumido ao processo de
vida real (wirklicher Lebensprozeß) que marca a conformação da realidade
efetiva em Marx também, certamente. No entanto, isto se dá na medida em que as
formações ideais trazem consigo a apreensão da objetividade
(Gegenståndlichkeit), que têm uma prioridade ontológica; "captar detalhadamente
a matéria (Stoff), analisar suas formas de evolução e sua conexão íntima" é
aquilo que constitui o momento essencial da relação estabelecida entre a
objetividade e o momento ideal no processo de vida. Reiterando aquilo já
mencionado, para Marx, "a consciência (Bewusstsein) não pode ser jamais outra
coisa que o Ser consciente (bewusste Sein), e o Ser dos homens é seu processo
de vida real (Sein der Menschen ist ihr wirklicher Lebensprozeß)".
No que é preciso tratar com cuidado de alguns destes aspectos, colocados na
medida mesma em que Marx não autonomiza a ideia para depois reconciliá-la com a
realidade efetiva (Wirklichkeit), nem vê a última como a expressão da ideia, a
qual, como mencionou o autor de O capital, aparece em Hegel como um demiurgo.
Para Marx, "é, sem dúvida, necessário distinguir o método de exposição
(Darstellungsweise), formalmente, do método de pesquisa (Forschungsweise)"
(Marx, 1988, p. 26). De tal feita que a investigação (Forschung) precisa, como
mencionado, "captar detalhadamente a matéria (Stoff), analisar suas formas de
evolução e sua conexão íntima." E, então, "só depois de concluído esse trabalho
é que se pode expor adequadamente o movimento real" (Marx, 1988, p. 26). Se
para o autor da "Ciência da lógica", o real (Wirklichen) aparece como um fruto
do pensamento que ' por meio de uma série de suprassunções (Aufhebung)
concatenadas logicamente ' sintetiza a si mesmo, tendo tal processo sido
presidido pelas suas próprias determinações, o oposto se dá em Marx, dado que
"o ideal não é nada mais que o material (Materielle), transposto e traduzido na
cabeça do homem." E, assim, é preciso que se note, neste momento de nossa
exposição, que nos "Grundrisse" há uma passagem importante sobre este tema,
tema este que, em Hegel, é indissolúvel do motor interno da dialética, o qual
está posto na oposição entre Ser (Sein) e nada (Nichts), de que advém o devir
(Werden).
O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações,
portanto, unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece
no pensamento como processo da síntese, como resultado, não como
ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida efetivo (der
wirkliche Ausgangspunkt) e, em consequência, também o ponto de
partida da intuição e da representação (Ausgangspunkt der Anschauung
und der Vorstellung). Na primeira via, a representação plena (die
volle Vorstellung) foi volatilizada em uma determinação abstrata; na
segunda, as determinações abstratas levam à reprodução do concreto
por meio do pensamento. Por isso, Hegel caiu na ilusão de conceber o
real (das Reale) como resultado do pensamento que sintetiza-se em si,
aprofunda-se em si e movimenta-se a partir de si mesmo, enquanto o
método de ascender do abstrato ao concreto é somente o modo do
pensamento de apropriar-se do concreto, de reproduzi-lo como um
concreto mental (geistig Konkretes). (Marx, 2011, pp. 77-78)
O concreto certamente é mais complexo que o objeto inerte (Objekt), o qual, no
entanto, tem uma prioridade ontológica sobre a esfera ideal. Justamente por a
concretude ser síntese, possuindo determinações múltiplas, que são históricas e
são conformadas de modo objetivo (gegenståndlich) também, pela própria
atividade objetiva (gegenståndliche Tåtigkeit), há de se perceber que as
formações ideais operam real e efetivamente (wirklich) na medida em que podem
acrescentar determinações na matéria, determinações estas, as quais, porém,
estavam já presentes enquanto potencialidade (Möglichkeit) na própria
objetividade (Gegenståndlichkeit). A existência ideal de determinado objetivo
presente na imaginação do homem é parte do processo constitutivo do próprio
real (Reale); a vontade do homem, no entanto, não é simplesmente demiúrgica,
ela tem como esfera de ação as formas de evolução e a conexão íntima da matéria
(Stoff) e da própria objetividade (Gegenståndlichkeit) que, entretanto, o homem
busca transformar.19 Destacamos isso na medida em que Marx destaca também "lado
ativo, em oposição ao materialismo, [ter sido] abstratamente desenvolvido pelo
idealismo ' que, naturalmente, não conhece a atividade real, sensível, como
tal" (Marx; Engels, 2007, p. 533) (Die tåtig Seite im Gegensatz zu dem
Materialismus vom dem Idealismus ' der natürlich dir wirkliche,sinnliche
Tåtigkeit als solche nicht kennt ' entwickelt). Assim, "o concreto aparece no
pensamento como processo de síntese" na medida em que a "atividade real,
sensível" (wirkliche,sinnliche Tåtigkeit) é essencial, sendo as categorias,
como já mencionado, formas de ser (Daseinsformen), determinações de existência
(Existenzbestimmungen).
O concreto é ponto de partida efetivo (der wirkliche Ausgangspunkt), mas é
preciso que se tenha em conta a necessidade de abstrações, um tipo de
"abstração razoável (verståndige Abstraktion), na medida em que efetivamente
(wirklich) destaca e fixa o elemento comum" (Marx, 2011, p. 56) ao aspecto que
se trata em cada caso. Primeiramente, a "representação plena" (die volle
Vorstellung) é "volatilizada em uma determinação abstrata", para, somete então,
"as determinações abstratas" levarem "à reprodução do concreto por meio do
pensamento" (Cf. Chasin, 2009).
Sem o devido cuidado, isso soa muito próximo de Hegel, é preciso que se
destaque; no entanto, também aqui, trata-se de uma "antítese direta" (direktes
Gegenteil) por parte de Marx: em consonância com a prioridade ontológica do
objeto (Gegenstånd), e com a distinção entre modo de pesquisa (Forschungsweise)
e de exposição (Darstellungsweise), o autor de "O capital" rejeita a posição
segundo a qual "o real (Reale) aparece como resultado do pensamento que se
sintetiza em si, aprofunda-se em si e movimenta-se a partir de si mesmo"; esta
seria a posição de Hegel que, assim, justapõe modo de exposição
(Darstellungsweise) e modo de pesquisa (Forschungsweise)" na medida mesma em
que enxerga o sujeito real e concreto segregado da sua real atividade objetiva
(gegenståndliche Tåtigkeit) e da "atividade real, sensível"
(wirkliche,sinnliche Tåtigkeit) e, assim, traz o sujeito como um predicado da
ideia, a qual, teria como suposta a reconciliação (Versöhnung) entre sujeito e
objeto (Objekt) na figura do "sujeito-objeto idêntico". A posição marxiana,
também neste ponto, é "antítese direta": se em Hegel se parte do abstrato ao
concreto na medida em que há uma concatenação lógica em que uma categoria traz
in nunce sua sucessora em uma escalada de suprassunções (Aufhebung) concebidas
logicamente e já colocadas previamente pelas determinações presentes no
espírito absoluto (em última análise, na própria filosofia hegeliana enquanto
cume deste), em Marx, "o método de ascender do abstrato ao concreto é somente o
modo do pensamento de apropriar-se do concreto, de reproduzi-lo como um
concreto mental (geistig Konkretes)".
O concreto, pois, aparece como o resultado: de um lado, da "exposição da
realidade" (Darstellung der Wirklichkeit), realizada historicamente com a
atividade objetiva (gegenståndliche Tåtigkeit), doutro, no campo do pensamento,
aparece o concreto como o resultado da compreensão (Verstehen), que não
prescinde da abstração razoável (verståndige Abstraktion) de elementos
essenciais ao processo histórico que, com a mediação da atividade humana,
conflui na realidade efetiva (Wirklichkeit).
4
No que, por fim, é preciso que nos voltemos ao modo como Karl Marx enxerga
aquilo que vem sendo destacado como essencial em sua posição materialista ' a
prioridade ontológica da objetividade (Gegenståndlichkeit). Somente agora podem
aparecer de modo mais concreto algumas reverberações da crítica de Marx à noção
hegeliana de Ser (Sein). Elas figuram como parte importante da conformação da
filosofia marxiana, sendo proveitoso, para que possamos dar uma conclusão ao
nosso raciocínio, atentarmos a isto. Uma passagem de Marx explicita o que
trazemos aqui ' diz o autor, após apontar a objetividade como uma determinação
do ser (Wesen) e dizer que "um ser não objetivo (ungegenståndliches) é um não-
ser (Unwesen)" ' tal ser:
Assenta um ser (Wesen), que nem é ele próprio objeto (Gegenstånd) nem
tem um objeto. Um tal ser seria em primeiro lugar, o único ser
(einzige Wessen), não existiria nenhum ser fora dele, ele existiria
isolado ou solitariamente. Pois, tão logo existam objetos fora
(ausser) de mim, tão logo eu não esteja só, sou um outro, uma outra
efetividade (Wirklichkeit) que não o objeto fora de mim. Para este
terceiro objeto eu sou, portanto, uma outra efetividade que não ele,
isto é, sou seu objeto. Um ser que não é objeto de outro ser, supõe,
pois, que não existe (unwirkliches) nenhum ser objetivo
(unsinnliches). Tão logo eu tenha um objeto, este objeto tem a mim
como objeto. Mas um ser não objetivo (ungegenståndliches Wesen) é um
ser da abstração. Ser sensível (Sinnlich sein), isto é, ser efetivo
(wirklich sein), é ser objeto do sentido (Gegenstånd des Sinn), ser
objeto sensível (sinnlich Gegenstånd), e, portanto, ter objetos
sensíveis fora de si, ter objetos de sua sensibilidade. Ser sensível
(sinnlich sein) é ser padecente (leibend sein). (Marx, 2004, p. 128)
Um primeiro aspecto a ser destacado é o caráter externo (ausser) da
objetividade (Gegenståndlichkeit), que independe da consciência (Bewusstsein)
do sujeito, o qual não é outra coisa que o ser consciente (Bewusste Sein) '
Marx, assim, volta-se contra a posição segundo a qual haveria um único ser
(einzige Wessen) que, na dicção hegeliana, conformaria o Ser (Sein) carente de
determinações, pura intuição (Anschauen), que, passando pelo nada (Nichts)
conflui no devir (Werden). Assim, destacando o caráter objetivo
(gegenståndlich) do ser (Wesen), aponta o autor de "O capital" que "um ser que
não tenha nenhum objeto fora de si não é nenhum ser objetivo" (Marx, 2004, p.
127) (Ein Wesen,welches keinen Gegenstand außer sich hat,ist kein
gegenståndliches Wesen). Ou seja, a objetividade tem uma existência objetiva
que, até certo ponto, independe da mediação da consciência, tratando-se de algo
que pressupõe, não a identidade entre sujeito e objeto (Objekt) hegeliana, mas
a autarquia do objeto ante o sujeito. Para Marx, é sem sentido (unsinnlich)
partir de ser isolado, desse único ser, dado que este último nem se apresenta
como um objeto do sentido (Gegenstånd des Sinn), ser objeto sensível (sinnlich
Gegenstånd) ' para que se use a dicção das "Teses sobre Feuerbach", como objeto
sensível ainda inerte (sinnliche Objekt) ' e nem tem efetividade
(Wirklichkeit). Segundo Marx, para que se trate de realidade efetiva
(Wirklichkeit), não se tem por central um processo presidido pela ideia,
processo esse que, em Hegel, é lógico, racional e real ao mesmo tempo; antes,
tem-se que o caráter objetivo do ser se manifesta na medida em que o próprio
sujeito só é pensável em sociedade na medida em que, quando se fala de um ser
que é objeto para outro ser, já se tem em conta tanto a relação do homem com a
natureza, quanto as relações nas quais os homens relacionam-se entre si: dizer
que "o ponto de partida é, naturalmente, a produção dos indivíduos socialmente
determinada" somente faz sentido, no autor de "O capital", quando estas
questões que aqui abordamos são tidas em conta com cuidado.
Segundo Marx, o ser (Wesen) não é qualquer existência abstrata que figure como
o Ser (Sein) hegeliano; trata-se de entes (Seienden) os quais se conformam
objetivamente na medida em que se trata do objeto sensível (sinnlich
Gegenstånd) enquanto "ser sensível (Sinnlich sein), isto é, ser efetivo
(wirklich sein), é ser objeto do sentido (Gegenstånd des Sinn) [...] e,
portanto, ter objetos sensíveis fora de si, ter objetos de sua sensibilidade",
sensibilidade esta inseparável da vida (Leben) (a qual, é bom lembrar,
determina a consciência [Bewusstsein]). Deste modo, objetivamente, "o ser do
homem é seu processo de vida real" (das Sein der Menschen ist ihr wirklicher
Lebensprozeß) e, assim, a compreensão da realidade efetiva (Wirklichkeit)
somente é possível fora das hierarquias colocadas por Hegel entre a razão
(Vernunft), a intuição (Anschauen), a sensibilidade e o entendimento
(Verstehen) ' todos estes têm objetividade (Gegenståndlichkeit) na medida em
que são partes constitutivas da atividade objetiva (gegenståndliche Tåtigkeit),
a qual, por seu turno, traz consigo também as carências humanas, as
necessidades mais básicas (e também as mais elaboradas). Assim, ao final, tem-
se que o homem é incompreensível sem sua base real (destacada por Marx,
primordialmente, na "Ideologia alemã"), sendo seu processo de vida real
(wirklicher Lebensprozeß) também o processo em que se conforma como ser
sensível e pelo qual se coloca a si enquanto objeto dos sentidos, ao passo que
sua autoprodução é sua formação sensível, concreta, determinada e o seu ser
padecente (leibend sein).
Vê-se, pois, que um assunto aparentemente alheio aos embates pelos quais se dá
a conformação do pensamento marxiano, como aquele que diz respeito à noção de
Ser (Sein), e que vem sendo estudado pelos marxistas que se propõem a estudar a
ontologia (no exterior, aqueles que estudam o Lukács maduro e, no Brasil, além
daqueles que estudam Lukács, aqueles que partem do filósofo brasileiro José
Chasin), pode figurar como algo de grande relevo na investigação da obra do
autor alemão. Não só podemos perceber que, sem o devido cuidado, certas
analogias entre o modo de exposição (Darstellungsweise) presente na "Ciência da
lógica" e aquele de "O capital" podem trazer uma compreensão equivocada quanto
a Marx; notamos também uma verdadeira inflexão ontológica no pensamento
marxiano, inflexão esta que nos leva a compreender a dialética marxiana, sob o
aspecto da prioridade ontológica do objeto (Gegenstånd) e de sua relação com a
lógica, como a antítese direta (direktes Gegenteil) da hegeliana.