CONSIDERAÇÕES SOBRE A PROVA DA EXISTÊNCIA DE DEUS ELABORADA POR HASDAI CRESCAS
(1340-1411)
Distinção entre quididade e existência em Deus
Na terceira seção do primeiro tratado de "Or Hashem" ("Luz de Deus"), Hasdai
Crescas conclui sua crítica a Maimônides ao completar a análise das provas para
a existência, a unidade e a incorporeidade de Deus apresentadas no "Guia dos
Perplexos". Esse caminho chegará ao final do primeiro tratado com sua abordagem
do significado do amor divino. Numa retrospectiva da senda trilhada por Crescas
ao longo do primeiro tratado de "Or Hashem", é possível notar que ele segue um
caminho dialético no qual, nesse primeiro tratado, debate com Maimônides e, por
extensão, com outros filósofos aristotelizantes medievais árabes e judeus. É
assim que Crescas, na primeira seção das três que compõem o primeiro tratado de
seu livro, expõe os argumentos adversários em prol das 26 proposições e as
provas da existência de Deus tal como entendidas à luz dos comentadores
avicenianos e averroístas de Maimônides. Crescas debate tanto com a posição
aristotelizante elaborada por Avicena, modulada por elementos neoplatônicos,
quanto com a de Averróis, que se distancia dos elementos neoplatônicos em prol
de uma releitura de Aristóteles.
Na segunda seção do primeiro tratado de "Or Hashem", são feitas então a crítica
das 26 proposições e a das provas para a existência divina apresentadas no
"Guia". O resultado dessas críticas implica a rejeição da física aristotélica,
tal como recebida na tradição da filosofia medieval árabe e judaica, mas
Crescas não debate somente com esses autores, cujas obras estavam disponíveis
em hebraico em seu tempo, para chegar a essa nova física. Além da relação com a
falsafa, o debate antiaristotélico latino ecoa em Crescas. Shlomo Pines e os
pesquisadores que seguem sua abordagem veem também, em "Or Hashem", um diálogo
e um debate em voz baixa, nas entrelinhas, com diversos filósofos escolásticos
latinos, em especial com Duns Escoto, Jean Buridan e Nicolau Oresme. São esses
os latinos cujas obras refletem os ecos das condenações de Paris de 1277. No
campo das literaturas sapienciais judaicas do medievo, há ainda em Crescas a
recepção de fontes oriundas da literatura mística e da talmúdica, ambas
cultivadas em seu tempo em Aragão e na Provença. O diálogo com essas fontes é
menos velado que aquele travado com os latinos. O interessante é que essas
tradições sapienciais judaicas não filosóficas refletem, como nos escritos de
autores do círculo de Girona, elementos de uma recepção eclética de ideias
tanto neoplatônicas quanto estoicas (Freudenthal,_1998). De todo esse complexo
caminho emerge a física esboçada por Crescas, que defende a possibilidade de um
universo infinito e eterno formado por mundos finitos, em que o vácuo é o lugar
geral de todos os corpos. Ao final, as noções aristotélicas de que o meio é
necessário para que ocorra o movimento e a de lugar natural para onde os
elementos tenderiam também são rejeitadas.
Na terceira seção do primeiro tratado, ao concluir seu percurso caracterizado
por uma forma de debater que agrega elementos da dialética talmúdica e talvez
da disputatio latina, Crescas apresenta finalmente suas provas para a
existência, a unidade e a incorporeidade divinas. Essa apresentação das provas
foi precedida e está embebida de uma veemente crítica à metafísica
aristotelizante medieval, cujo resultado, no pensamento de Crescas, é esboçar,
além daquilo que Wolfson_(1971) caracterizou como nova física, a prenunciar
aquela do Renascimento, também uma nova metafísica que entende Deus, sua
existência e unidade, de modo muito diferente do Deus radicalmente
transcendente do "Guia dos Perplexos" e do "Mishné Torá". A ideia da
transcendência divina era então tradição havia muito estabelecida nos círculos
filosóficos judaicos de seu tempo. Na metafísica formulada por Crescas, Deus,
apesar de sua quididade ser considerada inefável, incompreensível e
transcendente, também apresenta aspectos de imanência, como sua presença,
existência e em sua atualidade como causa primeira constante geradora de
infinitos efeitos. Deve-se notar que essa metafísica já é esboçada por Crescas
na segunda seção do primeiro tratado, em que Deus é apresentado como lugar do
universo, que é todo preenchido por sua Presença (kavod), e também como causa
primeira imanente a cada elemento da série infinita de causas e efeitos. No
entanto, é na terceira e última seção que finalmente são elaboradas as relações
entre quididade e existência, atualidade e unidade, e também a questão de se os
atributos essenciais divinos devem ser conhecidos pela via negativa de
Maimônides ou por outra via apresentada em suas teses. No auge do debate com
Maimônides, Crescas defenderá a tese em prol dos infinitos atributos essenciais
divinos, e então termina a terceira seção com sua discussão sobre a felicidade
e o amor divinos. É por essa via que esboça sua teologia divergente daquela
elaborada por Maimônides.
Crescas começa a enfocar o tema da existência de Deus distinguindo, mas também
relacionando os conceitos de quididade e existência. Quididade, a essência de
algo, é dita mahut no jargão filosófico hebraico medieval. Nesse mesmo hebraico
filosófico medieval, existência é dita metziut. Mahut תוהמ como será explicado
de modo mais detalhado adiante, corresponde a um substantivo abstrato derivado
da preposição interrogativa "mah" (o que) (o que) em hebraico. Metziut תואצמ,
outro substantivo abstrato, deriva da mesma raiz de matzá אצמ: encontrar,
deparar-se; usualmente, nos textos filosóficos hebraicos medievais, significa
existência. O uso dessa raiz para denotar existência é anômalo no hebraico até
então e tem sua origem no decalque do termo usado na filosofia árabe. Outros
sinônimos de existência usados nos textos medievais, como esclarece Wolfson_
(1916,_pp._186-189,_nota_86), são hiut תויה ou ieshut תושיe hovê הוה. É
interessante que este último foi também comumente usado nos textos místicos,
como no Guinat Egóz, de Yossef Gikatila (séc. XIII). Crescas prefere usar o
termo metziut, mais comum no vocabulário filosófico hebraico medieval, bem como
também aparece nas traduções hebraicas dos escritos de Maimônides.
É nesse momento de sua reflexão que ele enfoca finalmente esse debate clássico
medieval. Qual é o sentido da afirmação "Deus existe"? Para responder a essa
pergunta, muitos medievais partiam do pressuposto de que, no caso de Deus, sua
existência deve ser considerada idêntica à sua essência. Esse era quase um
lugar-comum aceito então tanto entre árabes quanto entre judeus e latinos. É
desse modo que refletir sobre o que deve ser entendido por existência e por
quididade e se tais conceitos são ou não idênticos no ser necessário precedem a
enunciação por parte de Crescas de sua prova para a existência de deus em OH
1,3,2. Nessa discussão acerca da relação entre quididade e existência, ambas
terminam por ser distinguidas, uma da outra, não apenas nos seres em geral, mas
até em Deus. Outra discussão empreendida por Crescas antes de enunciar sua
prova para a existência de Deus é sobre se o conceito de existência aplicado ao
ser necessário deve ser tão radicalmente distinguido da existência do conjunto
dos seres contingentes. Será que um atributo como existência tem, entre Deus e
os seres em geral, uma relação de homonímia ou de anfibologia, isto é, será que
a existência é predicada a Deus e aos seres de maneiras radicalmente distintas,
sem nenhuma relação entre eles, ou, pelo contrário, a existência deve ser
predicada a Deus e aos seres do mesmo modo, ainda que com diferença de grau ou
de prioridade ontológica? A questão aqui é se há um conceito geral de
existência ou não, como propõe Maimônides. Em outras palavras, é ou não a
existência de Deus completamente transcendente com relação à existência dos
seres contingentes?
Refletindo sobre o que é a quididade divina, escreve Crescas:
A opinião comum entre os pensadores racionalistas e os versados na
Torá é que [a quididade divina] é absolutamente esquiva (neelam
takhlit hahaelem), de sorte que a percepção de sua quididade (mahuto)
é impossível a outro além dele. (OH 1,3,1)
Conforme já mencionado, o termo hebraico usado nessa passagem por Crescas para
quididade é תוהמ mahut, um substantivo construído a partir da preposição
interrogativa "mah", que em hebraico significa "o que" unido ao sufixo ut,
usado para dar o sentido de substantivo abstrato. Trata-se de um termo que
surge no hebraico medieval. É notável como o termo português "quididade",
também cunhado pelos latinos medievais, tenha sentido semelhante. Ambos os
termos – quididade e mahut – são usados para traduzir o vocabulário
aristotélico quando o estagirita pergunta sobre o que é a coisa, ou seja, o que
é definição, isto é, sua essência. Em outras passagens, Crescas usa o termo
etzem, que originalmente em hebraico significa "osso", mas que também é usado
nos textos filosóficos medievais para dizer essência. Crescas principia esse
trecho aparentemente concordando com Maimônides e com o conjunto da tradição
filosófica medieval ao afirmar que a quididade ou a essência divina é neelam
takhlit hahaelem, literalmente, oculta para além de todo limite de ocultação.
Assim, nenhum outro ser além do próprio Deus pode ter a compreensão de sua
quididade e abarcá-la com o intelecto. Nesse sentido, a essência divina é
também, para Crescas, considerada transcendente.
Contudo, essa concordância inicial com Maimônides logo é problematizada por
meio do debate sobre a interpretação da passagem bíblica, em Êxodo 33:11-20, na
qual Moisés roga a Deus que lhe revele sua Glória:
11 E falava YHWH a Moisés face a face, como qualquer fala com o seu
amigo [...].
13 Agora, pois, se tenho achado graça aos teus olhos, rogo-te que me
faças saber o teu caminho, e conhecer-te-ei, para que ache graça aos
teus olhos; e considera que esta nação é o teu povo. [...]
17 Então disse o YHWH a Moisés: Farei também isto, que tens dito;
porquanto achaste graça aos meus olhos, e te conheço por nome.
18 Então ele disse: Rogo-te que me mostres a tua Glória.
19 Porém ele disse: Eu farei passar toda a minha bondade por diante
de ti, e proclamarei o nome do YHWH diante de ti; e terei
misericórdia de quem eu tiver misericórdia, e me compadecerei de quem
eu me compadecer.
20 E disse mais: Não poderás ver a minha face, porquanto homem nenhum
verá a minha face, e viverá.1
Maimônides (Guia, I, 54) utiliza-se dessa passagem bíblica para afirmar que a
Escritura apoia sua ideia de que Deus tem uma existência radicalmente
transcendente, isto é, a substância divina é totalmente diferente da substância
do mundo. É desse modo que ele interpreta Êxodo 33:18 – em que Moisés se dirige
a Deus com "Rogo-te que me mostres a tua Glória" – ao entender a frase como a
súplica feita por Moisés para que Deus lhe permitisse compreender a essência
divina e a resposta de Deus de que esta é inatingível e além da compreensão. No
contexto daquele capítulo do "Guia", essa passagem bíblica é interpretada como
um ensinamento profético transmitido por intermédio de Moisés de que, enquanto
a essência divina está além de toda compreensão, somente por seus caminhos,
isto é, por meio de suas ações, é que Deus pode ser conhecido. As ações divinas
não são atributos essenciais, mas, segundo Maimônides, são os meios pelos quais
os seres humanos podem obter algum conhecimento sobre Deus. No entanto, ao
responder a Moisés "Não poderás ver a minha face" (Êxodo 33:20), Deus estaria
afirmando, assim, a absoluta transcendência de sua essência. Para Maimônides,
somente os atributos de ação, que não são verdadeiros atributos de Deus, mas
sim caminhos pelos quais sua influência é testemunhada, são acessíveis aos
homens.
Crescas questiona essa interpretação perguntando como o príncipe dos profetas
poderia ignorar a impossibilidade de conhecer a quididade divina, clara a
qualquer filósofo principiante, quando ele mesmo teria chegado a um grau de
elevação maior do que todos os profetas e sábios? Como Maimônides justificaria
a ignorância de um princípio tão básico por parte de Moisés? Crescas especula
que Maimônides poderia responder a essa objeção supondo que Moisés não teria de
fato rogado a Deus para revelar sua essência, mas essa passagem seria apenas
uma visão que teria ocorrido a Moisés, num transe profético, para que por meio
dela fosse ensinado que a quididade divina é incognoscível. No entanto, contra-
argumenta Crescas: "esta interpretação do versículo é contrária à da maior
parte dos comentadores" (OH 1,3,1). De fato, três dos mais importantes
comentadores medievais dessa passagem bíblica – Rashi (séc. XI), Abraham ibn
Ezra (séc. XII) e Nahmanides (séc. XIII) –, muito conhecidos no período e na
região onde viveu Crescas, divergem da interpretação de Maimônides, pois
interpretam a passagem à luz do versículo "E falava o YHWH a Moisés face a
face" (Êxodo 33:11). A expressão "face a face" (panim el panim) é interpretada
na agadá e em vários midrashim com o significado de que Moisés, ao contrário de
todos os outros profetas, não profetizava em transe. Rashi, França (séc. XI),
por exemplo, escreve em seu comentário que Deus:
[/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0191-gf02.jpg]
Reúne-se com Moisés como alguém que está em uma conversa aberta (ou
em uma reunião).2
O exegeta e filósofo sefardi Abraham Ibn Ezra, em seu longo comentário ao
versículo "Rogo-te que me mostres a tua Glória" (Êxodo 30:18), diferenciase de
Rashi, pois nega que a profecia mosaica ocorresse por meio de um diálogo feito
por palavras, como o rabino francês parece sugerir, mas Ibn Ezra também conecta
a passagem à expressão "face a face" (Êxodo 30:11), refletindo que, não sendo
Deus corpo,3 esse não pode se tratar de um diálogo por meio de palavras:
[/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0191-gf03.jpg]
Apenas a palavra de Deus a Moisés por não ser oral é o discurso
verdadeiro, pois o discurso oral é apenas um simulacro do primeiro.
(OH 1,3,1, 2011)
Ibn Ezra considera tal experiência profética uma transmissão direta de Deus ao
intelecto de Moisés, feita por meio não oral, diretamente ao intelecto humano:
[/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0191-gf04.jpg]
E a razão é dada pelo versículo "como qualquer fala com o seu amigo"
(Êxodo 33:11), pois não era por meio de um emissário que fosse o
mensageiro (o veículo). Assim como a palavra na criação não é por
meio de um anjo.
Apoiando-se nesses comentadores, a tese de Maimônides de que Moisés, nessa
passagem, estaria num transe profético tendo uma visão e nela rogando a Deus
que lhe revelasse sua essência é disputada por Crescas. Em seu próprio
comentário, ele lembra que, em várias outras passagens bíblicas, é repetido que
a profecia mosaica ocorria face a face, ou seja, não se dava na forma de
visões, mas quando o príncipe dos profetas estava desperto. Desse modo, conclui
Crescas:
[/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0191-gf05.jpg]
Moisés jamais pediu para contemplar a essência divina. (OH 1,3,1,
2011)
Na retórica de sua argumentação, Crescas afirma que saber que a essência divina
é incompreensível é uma conclusão simples, entendida até pelos iniciantes em
filosofia, quanto mais por um grande sábio e profeta. Além de tirar o peso da
interpretação de Maimônides ao retratá-la como opinião minoritária, essa
discussão sobre a exegese daquela passagem bíblica serve a Crescas para
distinguir as noções de quididade e de existência em Deus. Na continuidade de
sua argumentação, Crescas conclui que, enquanto a existência de Deus é algo que
pode ser revelado ao intelecto, sua quididade é neelam takhlit hahaelem, oculta
para além de todo limite de ocultação. A conclusão de Crescas é de que a
existência e a essência em Deus não são a mesma coisa. Assim, não é apenas nos
seres contingentes que tal distinção ocorre, mesmo no ser necessário tais
conceitos permanecem diferentes um do outro. Enquanto a existência divina pode
ser compreendida pelo intelecto humano, sua essência permanece sempre oculta.
Desse modo, o que Moisés teria pedido, segundo a interpretação de Crescas da
passagem, era para compreender Deus como [/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-
kr-56-131-0191-gf22.jpg] – a causa de todos os seres (OH 1,3,1, 2011) – e para
conhecer seus atributos essenciais. Interessante que, como veremos mais
adiante, o enunciado de sua prova para a existência de Deus tem como peça
central a ideia de Deus como causa primeira e necessária de todos os seres.
Também é interessante notar que a Glória (Kavod), na segunda seção do primeiro
tratado (OH 1,2,1), é entendida como o aspecto imanente da divindade, que se dá
como presença constante que preenche todo o universo infinito e como atualidade
da existência divina, não necessariamente de sua essência. Em OH 1,2,1, ela é
inclusive relacionada à ideia de que Deus é "o Lugar" do universo na explicação
do nome divino rabínico Ha-Makom. Sobre a Glória (Kevod YHWH), Crescas escreve
que ela preenche o mundo tal como o vácuo infinito preenche os corpos. Vemos
que a noção de existência em Crescas é construída de modo que a aproxima da
ideia de imanência divina. O sentido desse debate travado aqui com Maimônides é
embasar filosoficamente a opinião que Crescas tem em comum com vários autores
ligados ao círculo cabalista de Girona, para quem essência se refere ao aspecto
oculto e existência ao aspecto revelado da divindade. Essa tese está, porém, em
completa divergência com a tradição aristotélica medieval, que afirmava que
existência e quididade em Deus se reúnem numa unidade indistinguível. No
entanto, quididade e existência são diferenciadas na divindade com base em tal
posição, que já havia aparecido na cabala medieval antes de Crescas. A
distinção entre um aspecto oculto contraposto a outro revelado no seio da
divindade não tinha, porém, até então, recebido fundamentação filosófica. Eis o
aporte de Crescas para esse debate.
Quididade e existência dos seres em geral
O passo seguinte de Crescas é mostrar que, entre os principais comentadores da
tradição aristotélica medieval árabe e judaica, há uma importante controvérsia
(makhloket) no que concerne ao modo de entender a relação entre essência e
existência. Essa controvérsia entre os "comentadores de Aristóteles" – [/img/
revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0191-gf23.jpg] – é apresentada como
aquilo que, no Talmud, é uma disputa de tanaim, ou seja, uma controvérsia que
não tem como ser respondida pelos debatedores nos marcos de suas premissas; no
caso, o aristotelismo medieval. Esse recurso retórico é usado aqui a fim de
ressaltar que, nesse ponto crucial, a inexistência de unanimidade sobre o
entendimento desses dois conceitos se deve a inconsistências nas posições
mantidas em ambos os lados da disputa. Crescas põe então, de um lado, Avicena,
Al-Ghazâli e Maimônides, que consideram que a existência é distinta da
quididade e que a primeira é um acidente da segunda nos seres em geral e
idênticas uma à outra em Deus; de outro lado, estão Averróis e seus seguidores,
entre eles Gersônides e Narboni, que consideram que a existência não é distinta
da quididade em nenhum ser.
É importante ressaltar que a distinção entre essência e existência não se
encontra em Aristóteles. No entanto, na leitura neoplatonizante que Avicena faz
da "Metafísica" II, é introduzida essa distinção, que passa a ser uma
característica do aristotelismo medieval transmitida dos árabes aos judeus e
aos latinos. Maimônides segue e enfatiza a distinção conceituando a existência
como acidente da substância; a existência seria por isso mesmo uma espécie de
acessório para a quididade do existente, isto é, do ser. O comentário de
Avicena_(2007,_pp._211-219) à "Metafísica" II estabelece como coisa óbvia e
necessária que, em tudo aquilo que tem uma causa para existir, sua existência é
algo acrescentado à sua quididade. O ser contingente, isto é, cuja causa está
em outro, é assim também entendido como meramente potencial com relação à sua
existência. Isso porque sua existência é meramente uma possibilidade que pode
ou não estar em ato. Todavia, a existência de Deus é necessária, pois não tem
causa. Assim, nesse único caso, existência e essência convergem. Em Deus, sua
essência é sua existência, isso porque a essência não é uma mera essência
possível que aconteceu de existir em ato, de modo que sua existência seria um
acessório da quididade (Maimônides,_Guia_I,_57,_2004). Segundo Avicena, apenas
no caso de Deus sua existência é necessária, pois coincide com sua essência;
todo o restante das criaturas tem somente a existência possível, que é um
acidente de suas quididades. Por isso, a existência de Deus é qualitativamente
diferente da existência comum dos seres contingentes.
Aproximando-se de Aristóteles, Averróis não aceita que ser e essência estejam
separados (sejam distintos) nem nas criaturas nem em Deus. No entanto, se a
essência divina é diferente das essências das criaturas, então sua existência é
também de ordem diferente da dos outros seres. Segundo a tese de Averróis, o
ser e a quididade são uma e a mesma coisa, por isso não há sentido geral da
palavra "ser" (Smilevitch,_2010). O significado de "ser" é determinado por cada
quididade particular. Assim, a existência de Deus é absolutamente diferente da
existência de outro ser. É o que reconhece Crescas ao comentar que, para
Averróis,
[/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0191-gf06.jpg]
isso implica que o termo "existência" é empregado com relação a Deus,
abençoado seja, e com relação a qualquer outro ente que não ele de
forma completamente homonímia (beshituf hashem hagamur), sem nenhuma
anfibologia (sipuk). (OH 1,3,1)
Os dois conceitos empregados nessa passagem por Crescas – homonímia (shituf
hashem) e anfibologia (sipuk) – são descritos por Maimônides_(2011b) no
capítulo 13 de Milot Hahigaion, livro que é dedicado por ele à discussão das
categorias lógicas. Nesse capítulo, Maimônides descreve homonímia (shituf
hashem) como o uso do mesmo termo para dois seres que são radicalmente
diferentes, sem nenhuma comunidade entre si. Segundo Maimônides, quando um
termo é aplicado a coisas diferentes que não se relacionam, é um termo
homônimo, como no exemplo da palavra hebraica ain (olho), usada tanto para
nomear o órgão da visão quanto uma fonte ("olho") de água. Não há vínculo, a
não ser o uso da mesma palavra para se referir a duas realidades, sem nenhum
vínculo formal. Já anfibologia (sipuk) ocorre quando temos o uso do mesmo nome
para duas coisas que têm entre si algum atributo em comum, sem que, no entanto,
esse atributo comum implique a comunidade de essência entre elas. Assim, a
anfibologia implica inerentemente uma relação ambígua que é usada para
significar duas realidades ou mais por causa de certa semelhança que guardam
entre si, apesar de essa semelhança não implicar a identidade entre suas
quididades. O exemplo dado por Maimônides é a palavra "homem", que tanto é
usada para se referir a Rúben, uma pessoa, ente vivente e pensante, quanto para
se referir à forma de um homem esculpido em madeira.
Assim, enquanto para Maimônides há dois tipos de existência – a dos seres
contingentes, cuja existência é um acidente da quididade, e a do ser
necessário, cuja existência e quididade são o mesmo –, para Averróis cada
quididade distinta implica uma existência diferente. Maimônides aplica o
conceito de homonímia para descrever a total separação entre a existência
divina e a existência das criaturas. Em Averróis, essa homonímia é ainda mais
radical (Smilevitch,_2010). Em ambos os casos, porém, a homonímia implica
radical transcendência divina e distinção de substâncias.
No caso da tese de Averróis, como, com base nela, pergunta Crescas, será
possível compreender o significado de predicar algo como existente quando
empregado em relação à divindade ou a qualquer outro ente (OH 1,3,1)? Na
afirmação "Deus existe", por exemplo, o sentido desse enunciado fica fechado em
si mesmo e torna-se tautológico. Como interpreta Waxman_(1920,_p._63) acerca
dessa crítica de Crescas, "se a existência é idêntica à essência, então o que
ela agrega como predicado"? Se a existência e a quididade são a mesma coisa,
então essa afirmação seria igual a dizer "Deus é Deus". Do mesmo modo, dizer
que o "homem existe" seria o mesmo que dizer o "homem é o homem", e assim para
qualquer outro ente. Nenhum juízo sobre a existência seria mais possível, pois
estaria resumido à afirmação de uma definição (Smilevitch,_2010, pp. 470-471,
nota 3).
Por outro lado, no caso da tese de Avicena e de Maimônides, segundo a qual a
existência é apenas um acidente da quididade, a crítica que faz Crescas é a de
que todo acidente implica um substrato, mas esse substrato também precisa
existir anteriormente à existência que lhe é predicada. Essa existência
anterior, por sua vez, também implica um substrato, ou seja, isso levaria à
necessidade de postular uma existência anterior à existência até o infinito.
Interessante que, apesar de argumentar em prol do infinito atual, esse tipo de
regressão ao infinito é sempre rejeitado por Crescas como mera falácia e
tautologia.
Existência como caractere intrínseco da quididade
A conclusão de Crescas é de que a existência não pode nem ser mero acidente da
quididade, algo agregado a ela, conforme postulam Avicena e Maimônides, nem
completamente idêntica à quididade, segundo postula Averróis (OH 1,3,1, 2011).4
O que é então a existência? A resposta a essa pergunta é interessante. Para
Crescas, apesar de que não deva ser compreendida como a essência nuclear
(etzem) da quididade, a existência precisa ser entendida como caractere
essencial (atzmi) da quididade. De acordo com Crescas:
[/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0191-gf07.jpg]
Portanto, [a existência] deve ser um caractere essencial da quididade
(atzmi lamahut). Com efeito, é pertinente às condições intrínsecas da
quididade (mitnae hamahut) existir fora do intelecto (heioto nimtzá
hutz la-sekhel). Como declarávamos, por exemplo, que a quididade do
homem são a vida e a fala, eis que pertence às condições intrínsecas
[desta] quididade (me-tnae ha-mahut) existir fora do intelecto. (OH,
1,3,1, 2011)
Ao afirmar que a existência é um caractere essencial da quididade, Crescas
entende que a existência é uma das manifestações intrínsecas da quididade,
implicando com isso que há outras manifestações essenciais da quididade. O
conceito de quididade é, assim, sempre mais abrangente que o de existência e
não pode ser, como postulam Averróis e seus discípulos, reduzido apenas a um
único caractere, tampouco a um caractere tão importante quanto o de existência,
sob o ônus de com isso se fazer uma tautologia, que destrói o sentido do que é
a quididade como conceito. A pergunta sobre o que é uma coisa não é respondida
apenas pela constatação de sua existência. Conforme vimos antes, para Crescas,
nem mesmo em Deus quididade e existência são o mesmo conceito. Nos seres em
geral, a quididade é uma intelecção sobre o que é aquilo que está diante de
nós. Todavia, a quididade não se manifesta apenas ao intelecto; um aspecto
importante da manifestação de um ser se dá fora do intelecto (hutz la-sekhel)
como manifestação sensorial e intuitiva que ocorre quando deparamos com ele
como determinação atualizada e encontrada (nimtzá) fora de nós. A isso
corresponde o conceito de existência. É necessário enfatizar que, para Crescas,
entender a existência como manifestação da quididade para fora do intelecto é
diferente tanto de entendê-la como acidente da quididade, como fazem Avicena e
Maimônides, quanto de entendê-la como idêntica à quididade, como faz Averróis.
A existência não é agregada à quididade de fora nem completamente idêntica a
ela, é apenas uma de suas manifestações. Se é assim, então se acerca a um
conceito único de existência.
Continua Crescas:
[/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0191-gf08.jpg]
Desse modo, a existência é dita convencionalmente com respeito a
todos os entes em geral. Tanto com relação aos acidentes (mikraim)
que mantêm entre si uma relação hierárquica de prioridade uns com
relação aos outros, de maneira que [a existência] é predicada à
essência e aos acidentes de forma anfibológica (be-sipuk).É porque a
existência se manifesta fora do intelecto (hutz la-sekhel) que ela
será dita em prioridade (be-kadimá) em relação à essência e em
posteridade (uve-ahor) em relação aos acidentes. (OH, 1,3,1, 2011)
A formulação de Crescas do conceito de existência afasta-se não apenas de
Avicena, Maimônides e Averróis, mas também dos escolásticos latinos que se
referiam a uma existência no intelecto, por exemplo, dos entes matemáticos, e a
outra existência na realidade, como os entes materiais. Crescas, no entanto,
não chega a formular uma teoria completa da relação entre intuição, percepção e
intelecto, mas fica claro que, para ele, a constatação da existência envolve
uma operação que não se restringe ao pensamento. A quididade pode ou não se
manifestar como existência determinada, mas, quando assim se dá, ela é
encontrada (nimtzá) por vias além do intelecto.5 Esse modo próprio de
manifestação da quididade (mahut), que se dá em determinadas condições para
além do intelectivo, é a existência. Crescas chega assim a um conceito geral de
existência, usado tanto para se referir à manifestação da essência (etzem)
quanto à dos acidentes (mikrim), deixando claro que há diferença de grau de
prioridade ontológica entre a existência da essência e a dos acidentes.
Contudo, o conceito de existência é fundamentalmente o mesmo, aplicado tanto a
um quanto a outro. A existência é, portanto, um conceito ambíguo que relaciona
diferentes níveis de ser. Ela é dita em prioridade da essência e em grau menor
dos acidentes.
Depois de ter tentado avançar uma conceituação positiva de existência, Crescas,
talvez por não ter desenvolvido uma teoria da relação entre intelecto, intuição
e percepção, ou seja, do que significa de modo mais claro para ele o hutz la-
sekhel, o para fora do intelecto, retrai-se para uma definição geral negativa
de existência. Nesse contexto, ele então enuncia seu conceito geral de
existência:
[/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0191-gf09.jpg]
Contudo, o significado geral é que aquilo ao qual é atribuído da
existência não é privado/carente [de realidade/de forma] (bilti
needar). (OH, 1,3,1, 2011)
Aqui temos em Crescas uma definição da existência pela via negativa que, em
princípio, faz lembrar um recurso semelhante usado por Maimônides para afirmar
a inexistência de atributos divinos, uma vez que, para Maimônides, atributos
positivos predicados a Deus são incompatíveis com sua unidade absolutamente
simples e sem partes e imaterial. No entanto, o intelecto humano continua
atribuindo predicados a Deus no intuito de buscar abarcá-lo com o pensamento. É
nesse contexto que Maimônides se utiliza da tese dos atributos negativos ao
afirmar que, ao negar o que Deus não é, avançamos pela via negativa um
conhecimento de Deus à medida que ideias errôneas sobre a divindade são
deixadas de lado. Ainda que esse método não leve ao conhecimento da quididade
divina, a tese maimonidiana afirma que ainda assim é possível, por esse
caminho, afastar o intelecto daquilo que não é Deus. De certa forma, ao definir
pela via apofática ou negativa a existência como o que é privado ou carente de
realidade, de atualidade, Crescas parece estar fazendo uma operação semelhante
ao que Maimônides faz quando usa o conceito de atributo negativo, mas de fato
Crescas está fazendo outra operação. O que ele tenta por essa via é enunciar um
conceito mínimo de existência que pode ser aplicado a diferentes modos da
atualidade de o ser se manifestar. É dessa maneira minimalista que Waxman
entende e interpreta seu enunciado do conceito de existência. Escreve ele: "The
general conception, however, must be understood in a negative way. The thing we
predicate existence of is to be understood not non existing" (1920, p. 64).
Chegar a um conceito único e geral de existência rompe com a noção aviceniana
segundo a qual a existência de Deus – e, portanto, sua substância – é
completamente externa e sem nenhuma relação com a existência do mundo e
totalmente dissociada dela. Para Maimônides, entre Deus e o mundo há uma
ruptura. Por outro lado, para Crescas, há certamente diferença de grau e
primazia, mas não completa ruptura, como ele mesmo exemplifica ocorrer entre a
substância e seus acidentes ou modificações. Nesse debate, Espinosa
radicalizará, duzentos e cinquenta anos depois, a posição de Crescas.
O termo hebraico usado por Crescas nessa passagem para denotar inexistência é
[/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0191-gf24.jpg] (needar), cujo
sentido mais usual é ausência, falta ou privação. No jargão filosófico hebraico
medieval, esse termo foi usado para se referir ao inexistente, ao transitório,
ao que passou ou desapareceu (Heschel,_1941). Também heeder [/img/revistas/kr/
v56n131//0100-512X-kr-56-131-0191-gf25.jpg], outro termo da mesma raiz, é usado
no hebraico filosófico medieval para denotar privação, inexistência e aquilo
que não é, mas poderia vir a ser. A palavra needar é consistentemente usada em
várias traduções para o hebraico de textos filosóficos escritos em árabe com
esse mesmo sentido. Por exemplo, na tradução hebraica do original árabe do
Sefer Emunot Vedeot, Saadia Gaon (séc. X), needar é utilizado na passagem como
oposto de matzui, o existente (Saadia_Gaon,_2011). O termo também é usado em
diversas passagens na tradução hebraica do Guia dos Perplexos, amplamente
divulgada no tempo de Crescas para indicar falta ou privação de forma (tzurá).6
Gersônides (séc. XIV), que viveu em Avignon e Perpignan, e escreveu diretamente
em hebraico, usa diversas vezes o mesmo termo em seu "Sefer Milhamot Ha-Shem"
para indicar também privação de forma e inexistência.7 Vemos assim que needar,
no hebraico, é usado comumente nos textos filosóficos medievais judaicos para
indicar o contrário de termos como matzui, isto é, aquilo cuja existência é em
ato, e tzurá, forma. Interessante é que esse uso também ocorre em literaturas
sapienciais judaicas medievais não filosóficas; por exemplo, o "Perush Otzar
Hashem", um dos comentários do Sefer Yetzirá, descreve como needar hatzurá, ou
seja, privada de forma ou informe, a condição da criatura antes de sua criação.
Crescas usa o termo needar cerca de vinte vezes ao longo de "Or Hashem". Nessas
diversas passagens, o termo sempre está associado à ideia de privação e de
carência. Assim, por exemplo, em OH 1,1,23, ele afirma que é necessário que um
corpo esteja em estado de privação de algo no momento de sua transformação
(needar baet ma). Em OH 1,2,1, Crescas rejeita a noção de que o corpo infinito
tenha forma circular ao afirmar que tal corpo seria carente de extremidades
(needar ha-ketzvot). Em OH 3,1,3, é usada a expressão "privada de toda forma"
(needar mikol tzurá) para descrever a matéria primeira em sua condição inicial.
Para Crescas, o conceito de metziut, existência, está intimamente ligado ao de
realidade e de atualidade e determinação.
Smilevitch aponta que a palavra needar usada por Crescas e também na literatura
filosófica medieval hebraica corresponde à stéresis aristotélica, que, nos
textos latinos medievais, é traduzida como privatio. Na "Física" 7, 190b,
Aristóteles apresenta a stéresis como um dos princípios dos entes naturais
junto com a matéria primeira e a forma. Segundo ele, a stéresis é a essência do
indeterminado. Na "Física" I, 191a-191b, o substrato permanente e a passagem de
uma forma para sua contrária demandam a existência de uma carência stéresis da
forma contrária no substrato. O uso por Crescas de needar em diversas passagens
de "Or Há-Shem" está de acordo com essa observação de Smilevitch, no entanto, a
descrição feita por Crescas da existência como privação ou carência de
realidade ou de forma (bilti needar) parece mais próxima da stéresis
neoplatônica que da aristotélica. Plotino entende o não ser como privação
(Enéadas II, IV, 14). Assim, por exemplo, segundo ele, o mal não é uma
substância; é na verdade a stéresis, ou seja, a privação do bem (Enéadas I,
VIII, 11).
Vemos, desse modo, que Crescas, por meio de dois enunciados paralelos, busca um
conceito mínimo, porém unificado, da existência aplicável por anfibologia tanto
à essência quanto aos acidentes. O primeiro enunciado conceitua a existência
como uma das manifestações da quididade cuja característica é se dar fora do
intelecto, e o segundo se refere à existência como "não carência" ou não
privação de realidade. Seu passo seguinte será estender essa anfibologia a Deus
e aos seres em geral. É desse modo que Crescas então escreve:
[/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0191-gf10.jpg]
E por essa via a existência é atribuída em prioridade de Deus,
abençoado seja, e secundariamente aos outros entes. É assim
esclarecido que a "existência" não é predicada a Deus e aos outros
seres por uma completa homonímia, mas como um tipo de anfibologia.
(OH 1,3,1)
Afirmar que o conceito de existência é anfibológico é dizer que ele é ambíguo,
ou seja, que pode ser aplicado a diferentes graus de realidade que não
compartilham entre si a mesma quididade, mas que se manifestam de modo
semelhante como atualidade para além do intelecto. Essa ambiguidade da
existência, no entanto, é hierarquizada numa gradação de prioridade ontológica
entre eles. Assim, ela é predicada a Deus em primeiro lugar, pois sua
existência é necessária, isto é, independe de causa. Em segundo lugar, é também
predicada aos seres em geral, pois sua existência é apenas contingente, isto é,
sua causa é externa a eles. É por esse caminho que Crescas rejeita a tese da
homonímia do conceito de existência, isto é, da radical transcendência divina
em relação ao mundo. Não há uma ruptura absoluta, existir ocorre num contínuo
entre Deus, os seres e seus acidentes. Somente a quididade divina permanece
inacessível e, por isso mesmo, transcendente. No entanto, com relação à sua
existência, certa imanência e comunidade de ser são desveladas.
A prova da existência de Deus
A discussão acerca da relação entre quididade e existência em Deus e nos seres
em geral é a última etapa do percurso trilhado por Crescas até o enunciado de
sua prova para a existência de Deus. Outros passos prévios nesse trajeto foram
suas críticas à terceira das 26 proposições aristotélicas e à terceira prova
para a existência de Deus, ambas apresentadas por Maimônides no início da
segunda parte do "Guia dos Perplexos".
Basicamente a terceira proposição aristotélica no "Guia" II afirma que a
existência de uma série infinita de causas e efeitos é impossível, ainda que
não sejam magnitudes; por exemplo, mesmo um intelecto também não pode ser a
causa de um segundo, e este, por sua vez, a causa de um terceiro, e assim por
diante até o infinito.8 Os comentaristas medievais dessa proposição explicaram-
na por duas vias paralelas: a aviceniana e a averroísta. Segundo o comentário
de matriz aviceniana (Avicena,_2007, pp. 211-216), feito por Al-Tabrizi, na
Pérsia, durante o século XIII, admitindo-se a distinção entre ser necessário e
ser contingente, uma série infinita não pode existir porque causa é aquilo cuja
existência implica a existência do efeito e, se fosse concebida a não
existência da causa, o efeito também não existiria.9 sendo assim, conclui-se
que a série infinita é impossível, pois, se o efeito tem apenas uma existência
possível, por si mesmo ele precisa de um determinante que faça preponderar a
tendência para sua existência sobre a inexistência (hedero);10 esse
determinante é sua causa. Logo, inevitavelmente, numa série infinita de causas
e efeitos, ou todos os elementos são efeitos, ou alguns não são. Se todos forem
efeitos, eles têm apenas existência possível, então não há o fator que
determina a existência da série. Por outro lado, se um dos elementos da série
infinita é apenas causa, sem ser efeito, então ele deve estar no começo da
série, o que faz consequentemente com que esta já não seja infinita, pois tem
uma primeira causa que a gera. O corolário dessa argumentação contra a
atualidade infinita de causas e efeitos é a conclusão da necessidade de existir
uma primeira causa não causada.
Segundo o comentário de matriz averroísta, que Crescas cita em nome de Moisés
Narboni, aquilo que não pode ser realizado senão por meio de uma anterioridade
causal infinita que o preceda nunca chegará a ocorrer e nunca existirá (OH
1,2,3, 1990). O argumento é o seguinte: numa série causal infinita, todos os
elementos são causa, assim como também são efeito, e, por serem todos efeitos,
eles têm apenas existência possível. Deixando de lado o problema da necessidade
de existir uma primeira causa incausada, se todos os elementos têm apenas
existência possível, então cada um pode existir ou não até gerar o efeito
seguinte à série. Se um dos elos da série não gerar o seguinte, a série acaba.
Todavia, dada uma antecedência ou temporalidade infinita, todas as
possibilidades já ocorreram; portanto, a possibilidade da descontinuidade da
série já teria ocorrido, e a série causal já teria sido descontinuada. Assim,
conclui Narboni, por essa via, uma série infinita de causas e efeitos nunca
poderia ser de fato atual.
Crescas responde a esses dois argumentos que buscam embasar a rejeição à
possibilidade de existir uma série atual infinita de causas e efeitos contra-
argumentando que, em primeiro lugar, Maimônides reconhece que a causa primeira
poderia gerar infinitos efeitos. Desse modo, os efeitos, por sua vez, poderiam
estar ordenados em sucessão uns aos outros. Mesmo sendo simultâneos à causa
primeira, os efeitos poderiam manter entre si uma causalidade acidental
infinita, pois a anterioridade da primeira causa é ontológica e não
necessariamente temporal. Dessa forma, é possível conceber o ser necessário, a
primeira causa incausada, como simultâneo a infinitos efeitos que formam entre
si uma série causal infinita. Tal série infinita está eternamente a ser gerada
pela primeira causa que é imanente à série toda. A conclusão de Crescas é de
que o único argumento dos aristotélicos medievais que fica de pé é aquele que
afirma a necessidade de existir uma primeira causa não causada. Desse modo, o
universo poderia ser eterno, pois poderia ser fruto da criação ou emanação
constante da primeira causa, que é primeira em sentido ontológico.
A chamada por Crescas de terceira prova de Maimônides para a existência de Deus
menciona três possibilidades sobre a existência das coisas:
[/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0191-gf11.jpg]
Ou nenhuma destas coisas tem início e fim, ou todas elas têm início e
fim, ou algumas têm e outras não têm início e fim. (Maimônides,_Guia
2,_1,_2004)
No "Guia", Maimônides argumenta que a primeira possibilidade é obviamente
falsa, pois vemos coisas sendo geradas e sendo corrompidas e deixando de
existir. A segunda possibilidade é também falsa porque, de acordo com essa
hipótese, todas as coisas deveriam caminhar para seu fim e, desse modo, o mundo
terminaria por já ter deixado de existir, o que também é obviamente falso.
Assim, a única possibilidade que resta é a terceira:
[/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0191-gf12.jpg]
Consequentemente, é necessário, segundo essa especulação, que, desde
que existam seres que sem dúvida são gerados e corrompidos, deve
existir também um ser eterno que não está sujeito à geração nem à
corrupção, e cuja existência é necessária e não meramente
contingente. (Maimônides,_Guia_2,_1,_2004)
A crítica de Crescas à terceira prova aponta que Maimônides se contradiz, pois
havia escrito no "Guia" que buscaria provar a existência de Deus sem se
utilizar da vigésima sexta proposição aristotélica, que afirma a eternidade do
movimento, isto é, do tempo. Para Maimônides, junto com a criação do mundo
(hidush há-olam) é também criado o tempo, que desse modo não poderia ser
eterno. O tempo assim teria um começo, um primeiro momento de fiat lux. No
entanto, a argumentação maimonidiana por trás da terceira prova pressupõe que
já passou um tempo infinito e tudo não chegou ao fim. Maimônides necessita,
portanto, daquela mesma proposição que ele diz rejeitar para poder sustentar
seu argumento (Harvey,_1998, pp. 77-88). Além disso, como nota Harvey_(1998,_p.
86), a terceira prova também está em contradição com a terceira proposição, que
rejeitaria uma cadeia de causalidade infinita, pois, ainda que se argumentasse
que a verdadeira posição de Maimônides é em prol da eternidade do mundo,
haveria uma contradição interna na argumentação do "Guia".
Depois de trilhar esse caminho, Crescas então enuncia sua prova da existência
de Deus:
[/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0191-gf13.jpg]
Independentemente de a série de causas e efeitos ser finita ou
infinita, não há outra possibilidade a não ser a existência de uma
causa (primeira) para todos. Pois, se todos são efeitos, eles têm
apenas, em si mesmos, existência contingente (possível). Assim, eles
necessitam (dependem) de um (fator) determinante capaz de outorgar
(determinar) sua existência em detrimento de sua não existência,
sendo desse modo a causa (primeira) da totalidade deles que determina
sua existência. Este ser é Deus, bendito seja ele. (OH 1,3,2, 2011)
O enunciado da prova para a existência de Deus em Crescas é ao mesmo tempo
elegante e sintético. Depois de ter percorrido o caminho da crítica a vários
aspectos das bases que sustentam as provas para a existência de Deus em
Maimônides, tendo demonstrado não apenas a possibilidade do infinito atual, mas
também a necessidade não declarada da eternidade do tempo para sustentar a
prova maimonideana, ainda que o conjunto das causas e efeitos fossem finitos,
como sustentam os filósofos aristotelizantes árabes e judeus, ou infinitos,
como ele busca provar, em qualquer um dos casos é necessário que exista uma
causa primeira, que é Deus. A necessidade da existência da causa primeira é
fundamentada na distinção entre ser necessário e ser contingente. O ser
necessário não precisa de causa externa a si para existir, por isso ele é
eterno. Segundo Crescas, sua existência é um dos atributos essenciais de sua
quididade. Na discussão sobre os atributos divinos, que vem em seguida, Crescas
procura sustentar que eles são infinitos. Todavia, os seres contingentes, por
serem apenas possíveis em relação à sua causa, necessitam de um fator que
determine sua existência em detrimento de sua inexistência, levando-os da mera
possibilidade à atualidade. Interessante é que Harvey_(1998) nota que a prova
de Crescas foi antecipada por Avicena em uma passagem da "Al-Najat" ("A
Salvação"), em que o filósofo persa, apesar de negar o infinito em ato,
baseando-se na distinção por ele introduzida entre existência contingente e
necessária, afirma que a necessidade de uma causa primeira colocar-se-ia ainda
que a série de causas e efeitos fosse infinita. A diferença entre Avicena e
Crescas está no fato de um negar e o outro afirmar a atualidade da série causal
infinita. É por afirmá-la que Crescas enfatiza que a causa primeira tem uma
anterioridade ontológica não temporal em relação aos infinitos efeitos que
constituem a metziut, ou seja, o universo infinito. A causa primeira é assim
simultânea aos efeitos e, por isso mesmo, perpassa toda a extensão e o
desenrolar-se da série causal infinita. Essa ênfase e seu corolário, isto é, o
aspecto imanente da causa primeira em relação à série causal infinita, que
constitui a realidade, são parte da contribuição que Crescas apresenta na
construção argumentativa que está por trás do enunciado de sua prova. O outro
aporte é aquele que vem da distinção entre quididade e existência, com base no
qual Crescas define a existência como um dos atributos essenciais da essência
divina e, portanto, não completamente idêntico à sua quididade. Na discussão
que faz a seguir sobre a unidade divina, em crítica aberta ao "Guia dos
Perplexos", Crescas afirma serem os atributos essenciais infinitos. O
importante, no entanto, para sua prova, é que a existência recebeu uma
conceituação comum tanto à essência quanto aos acidentes, tanto ao ser
necessário quanto aos contingentes, ou seja, em sua definição geral, o
existente é aquilo que, ao mesmo tempo, é para além do intelecto e não está
carente de atualidade. Assim, a existência da causa primeira, determinante para
a existência dos seres possíveis, tem, ainda que por uma anfibologia que
estabelece uma relação de primazia e posteridade ontológica, uma substância
comum. A existência de Deus é em grau superlativo e infinito aquilo que a
existência dos entes é em grau comum e finito; contudo, trata-se da mesma
existência. Sua quididade é transcendente enquanto sua existência é imanente. A
ideia de infinito desempenha, desse modo, um importante papel na teologia e na
ontologia de Crescas. Ainda de acordo com Harvey_(1998), trata-se da primeira
formulação de uma prova ontológica na filosofia judaica.
1 [/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0191-gf14.jpg]
2Rashi, "Comentário à Torá" – [/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-
0191-gf15.jpg]
3 [/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0191-gf16.jpg]
4No original: [/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0191-gf17.jpg]
5Interessante discussão sobre isso é feita por Waxman_(1920) e por Smilevitch_
(2010), que apresentam pontos de vista díspares.
6 [/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0191-gf18.jpg]
7 [/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0191-gf19.jpg]
8 [/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0191-gf20.jpg]
9 [/img/revistas/kr/v56n131//0100-512X-kr-56-131-0191-gf21.jpg]
10Literalmente, em hebraico: falta de forma, estado amorfo.