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BrBRHUHu0101-33002007000200011

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variedadeBr
ano2007
fonteScielo

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Violência e pobreza no cinema brasileiro recente: reflexões sobre a idéia de espetáculo

Eu sou um mito. Foi a imprensa que fez esse mito.

Eu sou o monstro que vocês criaram.

Márcio Amaro de Oliveira, o traficante Marcinho VP, aos jornalistas que acompanharam sua prisão.

O crescimento da violência entre forças estatais e paraestatais assusta. Nos anos 1990, uma série de massacres impetrados por forças policiais ou de polícia paralela marcou o processo de redemocratização. Nos anos 2000, o crime organizado passa a desenvolver ações de guerrilha urbana como "arrastões", toques de recolher, ataques a ônibus e delegacias policiais.

Esse tipo de violência não é prerrogativa brasileira. uma profusão de estudos sobre os mais diferentes casos de violência estatal e de grupos organizados na Colômbia, Venezuela, México, para não falar do Oriente Médio, talvez o maior barril de pólvora do novo milênio2.

relativamente pouca atenção, no entanto, ao elemento que nos interessa: o papel que a visualidade especificamente a visualidade televisiva e cinematográfica desempenha nessas dinâmicas. Na fronteira das ciências sociais com os estudos de cinema e televisão, a idéia é especular sobre os jogos simultaneamente políticos e estéticos que vão definindo os contornos do universo do que merece se tornar visível.

Filmes tão diversos como Notícias de uma guerra particular (1999), Palace II (2000), Cidade de Deus (2002), O invasor (2003), Ônibus 174 (2003), Cidade dos homens (2003), entre outros, e recentemente Falcão, meninos do tráfico (2006), documentário concebido e dirigido por MV Bill e Celso Athayde, moradores de Cidade de Deus, são alguns exemplos de obras de ficção ou documentário que acentuaram a presença visual de cidadãos pobres, negros, moradores de favelas e bairros de periferia no cinema e na televisão brasileiros. Ao trazer esse universo à atenção pública, esses filmes intensificaram e estimularam o que chamo de disputa pelo controle da visualidade, pela definição de que assuntos e personagens ganharão expressão audiovisual, como e onde, elemento estratégico na definição da ordem, e/ou da desordem, contemporânea.

Nessa periferia pouco acostumada à exposição, a visibilidade estimulou uma reação crítica contundente. A epígrafe deste texto cita Marcinho VP, personagem incógnita do filme de João Salles, que disse aos jornalistas que cobriam sua prisão: "eu sou o monstro que vocês criaram". A frase revela sensibilidade crítica para o jogo de espelhos que define personalidades mais ou menos estereotipadas e que Guy Debord, cineasta (ou anticineasta) e filósofo francês cujo livro ficou conhecido com os movimentos de maio de 1968 na França, definiu como sociedade do espetáculo.

Este texto levanta questões sobre a adequação do que se convencionou denominar sociedade do espetáculo para entender ações sociais performáticas e performances audiovisuais calcadas no real, mecanismos intrínsecos à produção cultural contemporânea. A idéia é discutir em que medida o conceito ajuda a compreender disputas pelo controle e apropriação dos mecanismos de produção da visualidade em situações de interlocução entre sujeito e objeto, palco e platéia.

Falcão, meninos do tráfico, documentário dirigido pelo rapper MV Bill e por seu empresário, Celso Athayde, exibido no Fantástico em 19 de março de 2006, chocou o país. Gravado ao longo de anos em diversas periferias brasileiras, o documentário foge da expressão limpa, direta e bem-acabada que vem caracterizando a produção fílmica sobre o assunto. Falcão sugere, como a situação à qual ele se refere, um embaço.

A repercussão do filme contemplou a discussão sobre a legitimidade da veiculação na Rede Globo daquelas imagens, colhidas por rappers, produtores de canções de protesto contra a mídia, moradores da Cidade de Deus, expoentes da Central Única das Favelas (Cufa)3. O debate girou em torno da novidade das informações trazidas pelo filme. A oportunidade da veiculação de um filme exclusivamente sobre a violência e a ausência de soluções para o problema foram também temas de discussão4. Pouco se falou sobre o filme em si, ou sobre sua interlocução com outros trabalhos que na TV ou no cinema romperam a relativa invisibilidade que encobriu a pobreza e a violência nos anos 1970 e 1980, anos de consolidação da indústria de TV e do mercado de consumo no Brasil. Pouco se falou das interlocuções de Falcão com outras realizações televisivas e cinematográficas que a partir dos anos 1990 desencadearam uma sucessão de proposições que reelaboram o lugar das periferias e favelas no universo virtual do que é visível, lócus privilegiado da sociedade contemporânea.

Falcão é escuro, cheio de sombras e silhuetas. Planos fechados de fragmentos do corpo ajudam a criar um clima claustrofóbico. Mãos disparam foguetes para alertar sobre a presença da polícia, preparam a droga ou manipulam armas.

Pernas e pés se deslocam na noite, hora de vigília, horário de falcão.

Fisionomias deformadas em primeiro plano, dissolvidas eletronicamente, produzem um efeito pictórico soturno como uma tela de Francis Bacon.

O borrão que domina os rostos contrasta com a nitidez remanescente em órgãos dos sentidos como olhos e bocas. Lábios finos e afiados em faces dissolvidas pronunciam prognósticos monstruosos: " vou descansar quando morrer", diz um garoto prematuramente exausto; "se eu morrer nasce outro igual a mim", acrescenta outro menino, ciente da insignificância de sua individualidade, mas, ao mesmo tempo, da força perversamente assustadora de sua pessoa, travestida de uma suposta permanência inevitável dessa infância aberrante.

Híbrido de televisão e cinema, Falcão pode ser interpretado como mais um elo em uma sucessão de produções visuais que focalizaram as periferias de diferentes formas e a partir de diferentes pontos de vista. Sabemos que no Brasil pouco espaço para documentários gênero principalmente televisivo em outros países.

Canais a cabo e canais públicos abrem espaço bastante limitado para a difusão de documentários.

Gravado ao longo de anos, em vídeo digital com estrutura semi-profissional e qualidade técnica correspondente, o documentário que hoje conhecemos tem cerca de uma hora de duração. Divulgado na televisão, o filme foi distribuído em DVD em estrutura informal, com os créditos do Fantástico. A versão vendida em eventos dos quais os diretores participam incorpora as vinheta de abertura e conclusão do principal programa de televisão dominical do país. É como se o filme fosse o registro de uma ação que inclui a pesquisa registrada em vídeo, com os meninos nas periferias do Brasil, mas também a veiculação do trabalho durante quase uma hora sem interrupções em horário nobre na TV aberta transmissão inédita pela duração, ausência de intervalos e pelo fato de que o material resulta de gravação independente, editada para a TV e aprovada pelos realizadores5.

O filme começa com uma imagem fora do padrão que prevalece no correr do trabalho. Um plano de Bill dentro de um carro em movimento em direção a uma estrada. Vemos a placa verde e branca da estrada sinalizando que estamos em Brasília. O realizador explica o projeto: mostrar os meninos das periferias brasileiras a partir da perspectiva deles, como vítimas de uma realidade social cruel.

A imagem nítida, iluminada pela luz do dia e de corpo inteiro de Bill, contrasta com o embaço que envolve os irmãos falcões, protagonistas de vidas sombrias, encapsuladas em aventuras na maioria das vezes fatais. O artista se apresenta como irmão, solidário com os meninos, mas ao mesmo tempo sujeito de uma trajetória diferente da deles. Sua iniciativa de filmar e expor o universo dos meninos constrói uma relação de alteridade no interior mesmo do universo dos meninos negros moradores das periferias pobres.

MV Bill e Celso Athayde fizeram também dois livros associados à pesquisa que resultou no filme. Em Cabeça de porco, de 2003, dividem a autoria com Luiz Eduardo Soares. Falcão, meninos do tráfico, de 2006, é assinado somente pelos dois. Os relatos em linguagem escrita acrescentam sumo aos depoimentos do filme. Como um caderno de campo, aqui os rappers investidos da função de entrevistadores descrevem lugares, identificam cidades, deixam rolar seu próprio espanto diante das personagens que conheceram na empreitada.

Os autores expressam sua relação ao mesmo tempo de estranhamento e reconhecimento do universo das periferias visitadas. No filme, esse estranhamento se manifesta no contraste entre a figura nítida, explícita, lícita e vitoriosa de Bill e o embaço que envolve os meninos do tráfico. No livro, sobretudo no primeiro, os autores revelam outros aspectos do universo pesquisado, trabalhando a ambigüidade de sua posição de negros moradores de Cidade de Deus, que não vivem do "movimento" e constroem relações de alteridade com esse universo ainda mais explícitas.

A linguagem escrita permite detalhe na descrição de figuras e lugares sem ameaçar a segurança das pessoas mencionadas. uma variedade de drogas. uma variedade de personagens envolvidas com o processamento e venda dessas drogas que vai muito além dos meninos retratados no filme. Famílias que trabalham juntas no negócio. Quando muitos membros da família estão presos, sobra uma mãe ou uma avó a cuidar da clientela que faz fila na madrugada. Além de envolver meninos e homens, os relatos revelam a participação de senhoras e senhores nos negócios6.

Nos livros emergem figuras ausentes do filme, exclusivamente voltado aos meninos. Aqui se revela também um pouco da metodologia. Os depoimentos foram coletados durante turnês de Bill. A cada viagem para cantar, um contato local leva a equipe a diferentes locações, onde os apresenta a personagens em potencial. Em cada um desses lugares, o prestígio artístico de Bill facilitou a entrada. O estranhamento que a experiência inspira nos dois entrevistadores convive com uma identificação. Em várias ocasiões, embora estranhos ao meio que estão descobrindo e descrevendo para o leitor, os realizadores se viram na mira da polícia. As descrições se aproximam do relato de aventura. A polícia invariavelmente trata a todos, negros, jovens e pobres, na mesma chave. Talvez a maior crítica expressa por moradores da periferia, tratados pela polícia como uma massa de bandidos em potencial, seja a da falsa homogeneização do universo da periferia. Os realizadores culturais reagem em busca da expressão de suas diferenças.

Em contraste com o material escrito, o material filmado selecionado para compor Falcão restringe. Ele recorta especificamente os meninos, vigilantes profissionais dos pontos de droga. O "efeito vaselina", recurso eletrônico usado na televisão para borrar fisionomias e proteger a identidade de pessoas entrevistadas, foi usado à exaustão em Falcão para garantir o anonimato dos meninos que fazem a vigilância noturna nas regiões de tráfico. Também no espírito de não comprometer os personagens entrevistados no filme, poucas referências espaciais que possibilitem a identificação de bairros e cidades. O resultado é um filme sem rostos ou lugares definidos. Em certo sentido a antítese do cinema enquanto promessa de expressão de um realismo ontológico, como quis Bazin, Falcão se apresenta como um borrão7.

Os meninos personagens do filme expressam visões escabrosas do mundo, sem perspectiva de futuro, em um presente altamente instável. Esses meninos aparecem desprovidos de individualidade, pequenos ícones de um estado hobbesiano que ameaça se instaurar. Sabemos pelas informações que cercaram a exibição do filme, principalmente por declarações de Bill no próprio Fantástico, que dos dezessete meninos entrevistados, dezesseis estavam mortos quando o trabalho foi ao ar. Mas o filme não permite distinguir cada um.

Como a escolha do singular Falcão no título sugere, e embora realizado por pessoas que compartilham a condição de moradores de bairro de periferia, o filme fala sobre um tipo. Aqueles meninos compartilham um ofício e uma visão de mundo sem futuro.

O filme trata esse universo comum de maneira não muito diferente do que Jean Claude Bernardet definiu como "documentário sociológico"8. Mas aqui não narrador em off a pronunciar discurso explicativo e genérico sobre um "outro" com o qual não se confunde. Ao contrário, o filme pretende revelar o ponto de vista "de dentro", com o qual os diretores-entrevistadores até certo ponto se identificam.

O filme demonstra que o universo apresentado por uma série de filmes recentes, produzidos e dirigidos por pessoas "de fora" da condição de classe e de raça que os realizadores compartilham com os meninos, não apenas existe, como está reconhecidamente espalhado para além das fronteiras da periferia carioca.

Falcão pode ser lido como a resposta de moradores da Cidade de Deus ao filme de ficção que captou e expressou a saga dos meninos do tráfico para o mundo. É como se o filme de moradores do conjunto habitacional expressasse um todo periferias urbanas do Brasil com o qual a parte Cidade de Deus se sentiu confundida.

Vale aqui uma incursão na história de possíveis interlocuções entre diferentes tratamentos visuais da pobreza e da violência no cinema e na televisão no Brasil. Ao contrário da televisão, que com poucas embora talvez crescentes exceções tem se concentrado em difundir versões glamorosas da vida que a sociedade de consumo permite, o cinema brasileiro, desde o início de sua história, aborda situações de pobreza.

Diferentes tratamentos estéticos de temas como pobreza e violência em situação urbana, especialmente em favelas, marcam transições relevantes entre períodos da história do cinema brasileiro. Um romantismo simpático está presente nos filmes que inauguram o cinema moderno; o cinema novo enfatiza a violência, principalmente no campo, mas também em meio urbano, em chave alegórica, como forma de questionar ideologias hegemônicas, desenvolvimentistas e de convivência pacífica. Mais recentemente, o cinema da retomada associa violência e pobreza em chave documental9.

A emergência do cinema moderno no Brasil está umbilicalmente associada à favela carioca. No filme de Nelson Pereira dos Santos Rio 40 graus, de 1955, a favela aparece como uma espécie de reduto: moram a solidariedade e a poesia. Os meninos vendem amendoim nos principais pontos turísticos do Rio. O movimento de cada um deles, do alto do morro para um dos pontos de referência turística da cidade, e de volta para casa, conduz a bela narrativa fragmentada do filme. Em Rio Zona Norte, segundo filme do diretor, a situação geográfica é menos bem definida. Espírito da Luz, interpretado por Grande Otelo, sambista iluminado, poeta sofrido e ingênuo, mora em um misto de morro e subúrbio. A personagem é vítima de dupla violência: a violência dos bandidos que lhe rouba o filho, e a violência simbólica da indústria do rádio, que não o reconhece. Em ambos os casos, o cinema respira a vida da cidade, saudando em chave romântica10 a cultura popular musical, negra e enraizada.

Os dois filmes de Nelson Pereira incluem o morro na geografia da cidade e apresentam com ternura o universo das classes populares, esse "outro" que o cineasta admira. Cinco vezes favela, longa produzido pelo CPC da UNE com cineastas que faziam parte do núcleo do cinema novo, é composto de cinco filmes de curta-metragem que se colocam como instrumento de intervenção, a um tempo artística e política, na situação de desigualdade que estrutura a sociedade brasileira e encontra na favela expressão urbana visualmente contundente. Em especial no caso do Rio de Janeiro, em cuja geografia de cidade maravilhosa a desigualdade social se inscreve de maneira dramática em eixo vertical.

O curta dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, Couro de gato, exemplifica o trabalho com esse eixo vertical. A favela onde mora o comprador de gatos está situada no alto do morro. É para que convergem as crianças com os animais capturados, pela trilha estreita e íngreme, pela qual policiais, motoristas e madames não se atrevem a subir.

O eixo vertical como paradigma da relação de classe que estrutura a cidade é primorosamente explorado no episódio de Leon Hirszman, Pedreira de S. Diogo.

Concebido como exercício eisensteiniano, o curta vai além da boa dose de esquematismo político que o inspirou. A geometria de enquadramentos belos e precisos relaciona eixos verticais e horizontais. A solidariedade entre operários de uma pedreira e moradores da favela implantada no alto do morro ameaçado pelas explosões provocadas pela ação empresarial é simbolicamente construída pela ação de lideranças que enfrentam o desafio de escalar o buraco escavado para fazer contato com os moradores em risco. No eixo horizontal, Leon Hirszman relaciona os corpos dos operários da pedreira com a textura da rocha que ajudam a escavacar e extrair. Duas tomadas panorâmicas sugerem uma bela relação mimética entre os corpos dos operários pressionados de encontro à pedra enquanto aguardam a explosão de cargas de dinamite.

No cinema de Nelson Pereira, como no cinema novo de Joaquim Pedro, Leon Hirszman, Cacá Diegues e outros que se dedicaram na época a destrinchar o tema, uma clara separação entre a voz de quem fala, o diretor, e a de sobre quem ele fala. Em Nelson Pereira, essa relação de alteridade convive com a admiração. Em Cinco vezes favela, a cumplicidade com o universo retratado se expressa em uma intenção explícita de mobilização. Esse registro engajado é questionado em filmes do cinema marginal, que radicalizam o ponto de vista autoral do cineasta, seja ele próximo ao universo retratado, como em trabalhos de Candeias, ou não, como em Rogério Sganzerla.

Nos anos 1970 e 1980, anos de censura forte, "milagre econômico", consolidação da indústria de televisão e crescimento do mercado de consumo, imagens glamorosas do "país do futuro", branco e afluente, dominaram a programação do novo meio. No cinema dessa época, a favela ficou restrita a filmes experimentais, vídeos associados a movimentos populares, filmes associados ao cinema marginal como O Bandido da Luz Vermelha, documentários como Wilsinho da Galiléia, trabalho censurado de João Batista de Andrade para o Globo Repórter, ou a filmes independentes ligados a movimentos sociais, como Santa Marta, duas semanas no morro, de Eduardo Coutinho.

Filmes como Lúcio Flávio e Pixote, de Hector Babenco, abordaram o universo corrupto e discriminatório das instituições policiais e criminais brasileiras.

Nesses filmes, a pobreza aparece associada à clientela dessas instituições. A mídia, que emergia na época como elemento recém-enraizado na sociedade brasileira, aparece como cúmplice de versões oficiais que acobertam a ação corrupta e discriminatória de instituições disciplinadoras como reformatórios, cadeias, delegacias, polícias.

No início dos anos 1990, essa invisibilidade relativa se alterou. Telejornais vespertinos trouxeram o universo da favela e das periferias urbanas para a televisão, na chave da violência e do "sensacionalismo". Recentemente, a exposição de representações da pobreza, em geral associada à violência, aumentou e se sofisticou no cinema, processo que estimula a disputa em torno do controle do que merece e do que não merece se tornar visível e de acordo com que convenções.

Em 1991, o Aqui, Agora, do SBT, legitimou paisagens urbanas populares como cenário de reportagens gravadas in loco, por repórteres e cinegrafistas em movimento. Imagens trêmulas e a respiração ofegante dos profissionais que sobem o morro em busca de notícia contribuíam para reforçar a sensação de matérias "quentes", transmitidas no calor da hora. Em contraste com o oficialismo da cobertura convencional, o Aqui, Agora enfatiza assuntos ligados a pequenos conflitos e crimes localizados. A mudança é estética e de assunto11. Como se sabe, o telejornal do SBT acabou ainda nos anos 1990, mas fez escola na Manchete, com repercussão nas atuais Record e Rede TV. Cabe notar também as modificações que o jornalismo da maior emissora sofreu nesse período em que as pautas se diversificaram, assim como as pessoas entrevistadas. As definições do que é notícia se ampliaram para além das notícias governamentais. Surgiu a possibilidade, ainda pouco desenvolvida, de um jornalismo não-oficial.

No início dos anos 2000, essas experiências se estenderam à ficção televisiva em seriados da Rede Record como Turma do gueto ou Vidas opostas, bem-sucedida novela atualmente em cartaz, ou na Rede Globo, com o pioneiro Palace II, Cidade dos homens ou Antonia, na linha de microsséries em co-produção, ou ainda em Central da periferia, programa de auditório volante que logrou se transformar em janela para a ampla e diversificada produção cultural que circula na periferia.

No início desse período mais recente, Notícias de uma guerra particular (1999), documentário de João Moreira Salles feito para a TV a cabo, incorporando imagens feitas por um telejornal da Rede Manchete, ofereceu um primeiro olhar reflexivo sobre um universo ainda pouco visível fora de telejornais populares.

Notícias contrasta, com sensibilidade perturbadora, três perspectivas sobre a violência que tomou conta do cotidiano no morro: a dos policiais, a dos traficantes e a dos moradores.

Apenas quatro anos depois, Ônibus 174 emerge em um contexto de plena guerra pelo controle da representação. Exemplo de apropriação perversa da mídia cinematográfica e televisiva , o filme revela a performance de Sandro do Nascimento para as câmeras. Ao mesmo tempo em que se abre para depoimentos que constroem a trajetória da vítima exemplar, o filme revela o processo de construção do protagonista. Diante das câmeras, Sandro incorpora o estereótipo do menino pobre, negro e malvado que suas vítimas reféns, assim como os parentes e conhecidos que contribuíram com seus depoimentos para o filme, são unânimes em afirmar que ele não era12. Sintomaticamente vai tirando a máscara até escancarar a cara na janela do ônibus e se dirigir ao Brasil através das câmeras.

O invasor, Cidade de Deus, Cidade dos homens, Carandiru, O prisioneiro da grade de ferro são alguns exemplos, entre outros, de uma série de trabalhos que dialogam entre si na busca por expressar o drama da violência contemporânea.

Espectadores na periferia discutem em que medida, ao romper o silêncio e a invisibilidade a que os pobres foram em larga medida relegados, esses filmes contribuem para fixar a imagem do favelado como marginal. Ao invés de incluí-lo plenamente, reforçariam, uma vez mais, sua identidade de excluído. Questionam a relativa homogeneidade da periferia tratada no cinema. Questionam a autoridade de diretores não oriundos da periferia para tratar do assunto.

Falcão se coloca como elo nessa espécie de cadeia de interlocuções diretas e indiretas, desiguais e distorcidas. O filme expressa um debate que desde pelo menos meados dos anos 1990 passa de um estado latente, sensível nas periferias, para ganhar forma em manifestações diversas. Do rap denúncia à margem da mídia ao filme denúncia exibido na mídia.

Esse debate em torno da adequação da representação midiática da periferia se encontrava em estado latente quando Cidade de Deus, na esteira de Notícias de uma guerra particular e Palace II, deu forma contundente a uma perspectiva que associava violência e pobreza, raça e gênero, como que deslocando para o espaço público e expressando de maneira ampliada um mito caro à sociedade brasileira.

A profusão de filmes sobre a periferia nos anos 2000 encontrou uma periferia menos amorfa e reduzida à violência do tráfico do que se supunha. Palace II, curta para a Rede Globo de televisão, dirigido por Fernando Meirelles durante a fase de preparação de atores para Cidade de Deus, apresentou o universo da periferia pela lente do cinema na TV aberta. MV Bill participou desse esforço.

Seu rap Como sobreviver na favela ajuda a narrar a história.

Palace II toma emprestado o nome pelo qual ficou conhecido o crime de colarinho-branco para nomear o pequeno golpe fracassado que Acerola e Laranjinha tentam aplicar em uma dona de casa de uma favela carioca. Não sabemos qual favela. Pegos em flagrante pelo marido da dona, um líder do "movimento", os meninos se vêem em maus lençóis. Obrigados a levantar recursos para pagar o prejuízo, passam a noite a massacrar gatos. Pela manhã, a venda da carne que vai virar churrasco garante o resgate da vida. Planos curtos gravados em locação, com a agilidade e o tremor "real" que a câmera na mão sugere, dão o tom.

Mas a seqüência da tortura e morte dos gatos destoa do resto do filme. Aqui não locação visível. Os dois meninos exercitam sua força física contra um fundo preto abstrato. Efeitos eletrônicos como desfoque e alteração de velocidade impedem ao mesmo tempo em que sugerem visualização explícita de uma violência carnal. Sabemos que uma luta corporal sangrenta acontece. Respiramos aliviados quando nos damos conta, de volta ao registro realista, de que as vítimas são animais, cuja carne renderá o dinheiro necessário à alforria da dupla de pequenos heróis sem caráter.

Palace II curiosamente retoma, propositadamente ou não, o foco nos animais singelamente tratados em Couro de gato. O curta de Joaquim Pedro descreve cada animal e busca apreender a relação entre ele e o dono. Gatos de pêlos e cores diferentes circulam em lugares diferentes e entre pessoas de classe social e ocupação diferente. Os gatos mais escuros das calçadas de Copacabana contrastam com o gato branco de pêlo fofo, xodó da madame em cuja mansão reina. Em Palace II, os meninos não têm respiro para admirar, se envolver ou dividir alimento com os bichos cuja carne vai redimi-los. A urgência desse cotidiano tenso se expressa no rap que ilustra o filme. Se quer a carne do gato, pouca brecha para o tamborim e o samba.

Talvez porque o cinema esteja livre do constrangimento da audiência doméstica e aberta que a televisão alcança, Cidade de Deus não recorre a estilizações como essa que envolve a matança dos gatos no curta. Fiel ao livro em que se baseia, Cidade de Deus identifica e conta a história de um conjunto habitacional específico. A definição de tempo e espaço ajuda a construir a verossimilhança do filme, que se apresenta como a história de um lugar ao longo do tempo, de sua fundação nos anos 1960 aos dias de hoje. A verossimilhança do filme é reforçada pela ausência de atores conhecidos e pela presença física de corpos com cor, ginga e linguajar da perifa 13.

A frase de Marcinho VP, citada na epígrafe deste texto, sugere um razoável grau de elaboração sobre a interlocução com a mídia: "eu sou o monstro que vocês criaram". Diversas obras e diretores elaboram essa interlocução de maneiras mais ou menos dramáticas.

Apesar de ter participado do início do projeto, conforme se verifica em Palace II, MV Bill manifestou descontentamento com o resultado em artigos em que questiona o filme. Seu Meninos do tráfico pode ser lido como resposta ao hiper- realismo de Cidade de Deus. O aspecto borrão de Falcão em certo sentido dissolve a definição proposta em Cidade de Deus para sugerir que aquele universo existe em qualquer periferia brasileira. E a própria autoria do documentário sugere que aquele universo convive e concorre com outro menos letal.

De certo modo, as falas dos meninos do filme de MV Bill e Celso Athayde se assemelham a algumas falas dos meninos de Notícias de uma guerra particular por exemplo no filme de João Moreira Salles aquele que afirma ainda não ter tido infelizmente a "oportunidade" de matar um policial. As condutas e visões de mundo que os dois filmes captam e expressam se aproximam também do universo de Pequeno, protagonista vilão do filme de Meirelles. Ao pesquisar e registrar o universo dos meninos que trabalham no tráfico, Bill e Athayde reforçam a existência, revelada nesses outros filmes, da difícil convivência de moradores engajados no movimento com moradores que evitam se envolver.

A diversidade estética que esses trabalhos carregam expressa diferentes interações entre realizadores, o universo tratado no filme e espectadores.

Notícias de uma guerra particular desloca informações sobre a violência cotidiana que o tráfico trouxe às favelas cariocas para o público de festivais, entre os quais os próprios cineastas, formadores de opinião e espectadores da televisão a cabo. Cidade de Deus mimetiza o relato de Paulo Lins bem como a ginga e a linguagem dos meninos atores em formação. A apropriação desses rostos e corpos fundamenta a verossimilhança do filme, que forma magistral à construção mítica do algoz negro e pobre. Sandro do Nascimento seqüestrou primeiro a mídia televisiva e depois a cinematográfica em Ônibus 174. Filmes construídos com alguma cumplicidade com o universo do presídio, mas em diferentes registros de gênero, ficção e documentário, e com aparatos de produção muito diferentes como Carandiru e Prisioneiro da grade de ferro, paradoxalmente acabam por tratar os presos de maneira parecida. Um tratamento destoante porque assumidamente externo captado em ângulo agudo, de cima, como o título Da janela do meu quarto, explicita, exala com poesia a resistência do embate físico em um enfrentamento corpo-a-corpo14.

Falcão, meninos do tráfico pode ser interpretado como o mais recente título nessa linhagem, filme que se propõe a revelar esse universo repetidamente denunciado a partir da visão de quem mora na favela e convive com os meninos do tráfico. Aqui moradores da Cidade de Deus comparecem como realizadores da empreitada documentária sobre outras periferias brasileiras. Falcão sugere com contundência que tudo dominado.

Uns com maior, outros com menor intensidade, os filmes dessa série produziram expressões asfixiantes da vida em bairros pobres das urbes brasileiras contemporâneas. O partido realista dos filmes é fiel à gravidade da situação, mas em certo sentido contribui para perpetuá-la como espetáculo. Nesse contexto, o borrão sujo e improvisado de Falcão talvez permita vislumbrar um irrealismo mais produtivo.

A diversificação ainda que relativa dos veículos, aliada à facilidade de acesso a equipamentos que a tecnologia digital permite, aumenta a expectativa de participação entre habitantes de favelas e bairros periféricos. Nos últimos anos, projetos de oficinas de audiovisual vêm estimulando a formação de núcleos de produção, difusão e ensino na periferia. Participantes desses núcleos manipulam um repertório de complexidade crescente, na tentativa de demonstrar que dominam o conhecimento que imaginam necessário para ser plenamente incluídos na sociedade. Filmes como Defina-se, de Daniel Hilário da Cidade Tiradentes, ou O último da fila de Éder Augusto, da Cohab Taipas, ambos produzidos em oficinas Kinoforum, sugerem que interlocuções entre cineastas aprendizes de condição social e formação diferente podem ser produtivos.

Falcão é talvez a expressão mais acabada e conhecida até agora de uma efervescência cultural inédita que acena com alguma mudança nas relações entre quem faz e quem consome música, moda, dança e cinema. Paradoxalmente, ao menos em parte, essa efervescência cultural contribui para a difusão de construções visuais que associam violência e desigualdade, reproduzindo estereótipos de novo, o monstro a que se refere Marcinho VP que em certo sentido podem reforçar o discurso espetacular sobre o medo e inadvertidamente contribuir para aumentar a violência.

A constatação de que filmes e programas televisivos podem adquirir significados diferentes, que significados não são univocamente definidos na produção, está é claro ligada ao debate pós-estruturalista sobre a multiplicidade invariável do sentido. O projeto de pesquisa no interior do qual venho refletindo sobre a problemática aqui tratada promove interações inusitadas entre filmes, realizadores, críticos e espectadores, tomando o texto como expressão do que chamamos de disputa pelo controle da produção da representação. Discuto, a partir desse amplo material, diferentes maneiras heterodoxas de interagir com meios de comunicação impressos e eletrônicos em um movimento intenso de disputa pelo controle das representações. No limite, problematizar arranjos formais concretos em termos que enfatizem seu caráter de expressão de articulações entre certos sujeitos que procuram, em alguma medida, controlar os mecanismos de construção de sua imagem, significa repensar as bases da idéia de "sociedade do espetáculo" tal como propôs Guy Debord15 e que vem servindo de referência aos mais diversos trabalhos que a partir de perspectivas teóricas distintas procuram situar o imaginário no contexto de fenômenos contemporâneos.

O termo espetáculo isoladamente ou como adjetivo que qualifica as sociedades contemporâneas aparece freqüentemente como elemento descritivo, que na falta de explicações orgânicas fundamentadas alude ao excesso de luzes e imagens, à profusão de informações que satura espaços públicos dominados por grandes corporações de mídia, que para além de poderes estatais ou civis estimulam o consumo e definem as regras do que é ou não notícia; do que merece e do que não merece ganhar visibilidade.

O livro de Guy Debord foi originalmente publicado em novembro de 1967. O texto expressa os termos e as formas de uma postura crítica sintonizada com palavras de ordem libertárias, as formas fragmentadas, espontâneas, que os movimentos sociais então emergentes anunciavam. Situa a opressão contemporânea no plano da cultura, onde espaço para incorporar manifestações libertárias pela constituição de subjetividades como propostas pelos movimentos feministas, gays, étnicos, ecológicos.

O trabalho expressa de maneira sensível diversas expectativas e posicionamentos que estavam na ordem do dia na década de 1960, em plena guerra fria pós- stalinista e que ainda não se resolveram. O autor expressa claramente sua crítica ao chamado "socialismo real", em especial nos termos da crítica à burocracia soviética. Tal como os movimentos que sacudiram a Europa e as Américas nos anos 1960, o livro procura definir uma posição que escape das limitadas opções dicotômicas instauradas pela guerra fria.

O espetáculo emerge no pensamento de Debord como noção que condensa a opressão nas sociedades contemporâneas. A noção de espetáculo vem carregada de um tom de denúncia pelo que aparece como domínio das imagens (que poderia talvez encontrar paralelo no estatuto maldito que a imagem tem em culturas orientais), o que rendeu ao autor um certo desprezo no campo da cinefilia.

O espetáculo vai se definindo ao longo do texto quase como um pesadelo. O espetáculo expressa a degradação do mundo real em mera imagem (p. 18). As definições críticas se avolumam e adquirem um tom meio fantasmagórico: imagens tornam-se "seres reais e motivações de um comportamento hipnótico" (p. 18). "O espetáculo é a reconstrução material da realidade religiosa" (p. 20). "O espetáculo é o sonho mau da sociedade moderna aprisionada, que expressa afinal o desejo de dormir" (p. 21). "O espetáculo bane qualquer outra fala" (p.

23). "O poder está na raiz do espetáculo. O espetáculo está associado ao Estado moderno, entendido como órgão de dominação de classe" (p. 24). (Essa fantasmagoria do poder parece semelhante à maneira pela qual Foucault, em outra chave, registra o poder entidade centralizada mas cujas manifestações são difusas, quase onipresentes.) A noção de espetáculo tal como descrita por Debord se estabeleceu quase como um dado, mas descritivo. Vivemos na sociedade do espetáculo, não como contestar. O conceito vem à tona especialmente em momentos em que temos de dar conta de fenômenos midiáticos que hoje, talvez mais do que nos anos 1960 e 1970, se tornam o assunto na arena pública. De maneira mais genérica, a noção busca dar conta da dimensão cotidiana que a presença do jogo midiático impõe para as relações sociais e políticas.

A noção de sociedade do espetáculo é eficiente. O rótulo funciona tão bem talvez porque compartilhe um pouco do apelo sensacional que critica. O termo tem apelo também ante crescente insatisfação com a crise generalizada das instituições políticas e sociais nas mais diversas partes do globo. Depois do desmonte dos regimes socialistas, impasses eleitorais e movimentos bélicos ilegítimos colocam as democracias ocidentais na berlinda e com elas a mídia.

Instituições essenciais à liberdade de expressão, à transparência política e administrativa, os órgãos de imprensa escrita e audiovisual, assim como os veículos de entretenimento, vêm sendo questionados de maneira crescente.

No Brasil da era Lula, especula-se sobre a responsabilidade da mídia nos escândalos de corrupção que abalam a legitimidade das instituições democráticas. Aqui, como alhures, a crítica aos critérios e maneiras de operar a mídia faz parte da agenda e dos modos de atuação de movimentos sociais fragmentados, cuja estratégia de ação invariavelmente supõe uma dimensão performática. A edição recente de uma caixa contendo os trabalhos fílmicos de Debord repõe o pensamento do autor que tanto refletiu sobre o estatuto da imagem nas sociedades contemporâneas em um momento em que a percepção do caráter de construção cultural das imagens se generaliza.

O texto de Debord é complexo. O autor busca definir dialeticamente uma noção com implicações teóricas e práticas, nos planos material e simbólico, econômico e cultural. Sua preocupação em não reproduzir dicotomias que a teoria marxista superou imprime ao texto uma bem-vinda dose de ambigüidade, que leituras contemporâneas mais apressadas acabam por desprezar.

A realidade objetiva está dos dois lados. Assim estabelecida, cada noção se fundamenta em sua passagem para o oposto: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real. Essa alienação recíproca é a essência e a base da sociedade existente (p. 15).

A questão que se coloca aqui é a possibilidade de que a noção de espetáculo em Debord supõe uma separação estanque entre espectador e espetáculo e um controle centralizado que dificulta pensar expressões contemporâneas articuladas para intervir na própria lógica do espetáculo.

No espetáculo uma parte do mundo se representa diante do mundo que lhe é superior. O espetáculo nada mais é que a linguagem comum dessa separação. O que liga os espectadores é apenas uma ligação irreversível com o próprio centro que os mantém isolados. O espetáculo reúne o separado, mas o reúne como separado (p. 29).

Essa separação que a teoria da sociedade do espetáculo preconizou talvez necessite ser revista para dar conta da complexidade das disputas pelo controle da representação que estão em jogo nas arenas públicas contemporâneas.

Ora, a ação social contemporânea é intrinsecamente performática. Os exemplos são inúmeros e vão de grandiosas ações de guerrilha midiática, das quais o atentado de 11 de setembro talvez seja o exemplo mais pungente, a manifestações de menor escala e repercussão circunscrita, às ações do crime organizado brasileiro e às inúmeras expressões fílmicas de irrupções violentas entre movimentos armados de desobediência civil sem causa programática, além da defesa de fluxos transnacionais ilegais de armas e drogas, e forças policiais e parapoliciais corruptas, desacreditadas e fora de controle.

Fisionomias, pessoas, paisagens específicas ganham notoriedade de acordo com critérios diferentes que definem o que merece e o que não merece ganhar forma no domínio da expressão visual. O cinema e a televisão, com suas semelhanças e diferenças, repercutem ações e criações em larga medida inspiradas com o sentido de repercutir. A expressão audiovisual tornou-se dimensão estratégica nas sociedades contemporâneas.

Certos eventos, assuntos, cenários, movimentos e pessoas gozam de visibilidade pública em certos veículos e de acordo com certas convenções que regem a construção de filmes e programas televisivos. Outros eventos, espaços e agentes permanecem invisíveis na cena pública. Assim, o jogo entre o visível e o invisível vai definindo e redefinindo os contornos de uma ordem social que insiste em se estruturar em torno da desigualdade. Os diversos veículos de mídia, impressa, eletrônica e digital, ocupam posição privilegiada na definição desses contornos.

Seja no registro da ficção ou do documentário, encontramos nos filmes mencionados diferentes formas de apropriação dos mecanismos de produção da visualidade. De diversas maneiras o "outro" a respeito do qual cada filme fala impregna a textura final do trabalho. Em busca da superação da posição de "objeto" e na tentativa de exercer algum controle sobre a constituição de subjetividades, aspirantes a protagonista participam da disputa pelo controle do que será visível, como e onde. Em outras palavras, reconhecem a política e indagam sobre a poética das formas visuais.

Propostas técnicas ousadas e inovadoras no âmbito da ordem jurídica, como a descriminalização do consumo de drogas ou a legalização do tráfico, são essenciais. Trabalhar e retrabalhar expressões cinematográficas e televisivas desse caos pode ajudar a forjar essas e outras formas de enfrentamento.

Diante do desgaste do Estado e da política partidária, a cultura se afirma como espaço privilegiado de profissionalização e expansão da cidadania. Exemplos concretos apontam para a notoriedade conquistada por moradores de favela engajados na disputa pelo que merece se tornar visível. O hip-hop, o futebol feminino, rádios comunitárias e bibliotecas exemplificam diferentes maneiras pelas quais favelados e moradores de bairros pobres ganham visibilidade. A chamada literatura marginal vem se afirmando como produção autóctone, inédita em língua escrita, que compartilha com o hip-hop nacional e estrangeiro a crítica radical à exclusão, especialmente tal como expressa na mídia institucional.

O caso das expressões cinematográficas e televisivas da violência talvez seja paradigmático para se especular sobre essas múltiplas relações. A violência ou as diversas formas de violência podem ser pensadas como experiências sociais liminares, espaços que resistem a ordenamentos e explicações, espaços privilegiados para a criação de sentido16.

A dimensão performática entendida como elemento intrínseco à vida social nos obriga a redefinir noções usuais que interpretam o cinema e a televisão como dimensões relativamente desprovidas de expressão própria, ou, no outro extremo, como dispositivos autônomos criadores de fantasmagorias virtuais sem existência relevante, o que no mesmo. Imaginar formas estéticas que desarticulem estereótipos e esvaziem ações violentas permanece um desafio interessante.

[1] Versão de trabalho apresentado na conferência "Annual Visible Evidence", na Cinemateca Brasileira, em agosto de 2006. Este artigo é produto de projetos em andamento com financiamentos CNPq e Fapesp, realizados em ativa interlocução com Ananda Stucker, mestranda, e Guilherme Cerqueira César, graduando, ambos alunos da ECA-USP. Agradeço também aos membros do grupo Imagem e Ciências Sociais do CEM/ CEBRAP.

[2] Uma coletânea recente, States of violence, editada por Fernando Coronil e Julie Skurski, traz um panorama da violência praticada pelo Estado em diversos países.

[3] O questionamento de Ferréz, rapper e escritor paulistano, no artigo "Antropo(hip-hop)logia" (Folha de S.Paulo, 5 de abril de 2006), é emblemático dessa linha de argumentação.

[4] Ver por exemplo os artigos de Alba Zaluar, Maria Rita Kehl e Denis Rosenfield, além das entrevistas de João Moreira Salles e Eduardo Coutinho, no suplemento Mais! (Folha de S.Paulo, 26 de março de 2006). A relevância do cinema e dos cineastas para a discussão da violência urbana se expressa ainda na consulta a esses e outros diretores nas reportagens sobre os ataques do PCC em maio de 2006.

[5] As versões divulgadas pela TV e em DVD são ligeiramente diferentes. Em ocasiões os diretores anunciaram um longa-metragem, projeto que até o presente momento não se realizou.

[6] "Merla no Planalto Central" e "Merla no Planalto, outra visão", primeiro e segundo capítulos de Cabeça de porco, o primeiro assinado por MV Bill e o segundo por Celso Athayde, expressam bem o espírito múltiplo que anima o livro.

[7] Bazin, Andre. "Ontologia da imagem fotográfica". In: O Cinema. São Paulo: Brasiliense, 1991.

[8] Bernardet, Jean Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

[9] Para comparações entre o cinema novo e o cinema da retomada, ver os artigos de Ismail Xavier, Fernão Ramos e Ivana Bentes no volume The new Brazilian cinema, editado por Lúcia Nagib (Londres: Tauris, 2003). Para a presença da favela na história do cinema brasileiro e mundial, ver Rubens Machado em "Os espaços de exclusão e de violência no cinema e na TV brasileira", conferência proferida no evento "As Linguagens da Violência", primeira edição do Ciclo "Cultura e Sociedade", organizado pelo Consulado Geral da França, SESC e Prefeitura Municipal de São Paulo, no Teatro SESC Pompéia, São Paulo, 14/9/2001.

[10] Sobre esses filmes de Nelson Pereira, ver Calil, Carlos Augusto.

Introdução à história do cinema brasileiro módulo I. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2002; Fabris, Mariarosaria. Nelson Pereira dos Santos: um olhar neo-realista. São Paulo: Edusp, 1994; Bentes, Ivana. In: Nagib, Lucia (org.), op. cit., pp. 121-138.

[11] Sobre o Aqui, Agora, ver entrevista feita por Arnaldo Jabor com os diretores do programa (Folha de S.Paulo, 22 de junho de 1991). Ver também Bentes, Ivana. "Aqui, Agora, o cinema do submundo ou o tele-show da realidade." In: Imagens, - 2, ago. 1994, pp. 44-49.

[12] Para uma análise detida de Ônibus 174, ver Hamburger, Esther. "Políticas da representação: ficção e documentário em Ônibus 174". In: Labaki, Amir e Mourão, Maria Dora (orgs.) O cinema do real. São Paulo: Cosac Naify, 2005, pp.

196-215.

[13] Sobre Cidade de Deus, particularmente sobre o uso da voz over no filme, mas também sobre essa força de convencimento quase que imanente que os corpos desses atores desconhecidos sugere, ver Xavier, Ismail. "Corrosão social, pragmatismo e ressentimento". Novos Estudos Cebrap, - 75, jul. 2006.

[14] Ver Hamburger, Esther, op. cit; e tambem "Políticas da representação." Contracampo 8, pp. 49-60, 2003; e "Construindo representações verossímeis." Revista IDE 42, 2006.

[15] Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002.

[16] Ver Taussig, M. Shamanism, colonialism and the wild man. Chicago: University of Chicago Press, 1987. O autor concebe a violência como uma espécie de linguagem que forja sentido no encontro colonial.


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