Transferência de renda no Brasil
O Brasil observou, recentemente, uma expansão considerável de políticas
públicas de transferência direta de renda para a população pobre. Hoje, o país
tem dois grandes programas dessa natureza: o Benefício de Prestação Continuada
(conhecido como BPC-Loas ou, simplesmente, BPC) e o Programa Bolsa Família
(PBF). Ambos são objeto de um debate quanto à efetividade, à sustentabilidade e
aos possíveis impactos adversos. O objetivo deste artigo é reunir evidências
que contribuam para responder a algumas questões recorrentes neste debate.
O BPC é uma transferência mensal de renda destinada a pessoas com deficiência
severa, de qualquer idade, e idosos maiores de 65 anos, em ambos os casos com
renda familiar per capita inferior a um quarto de salário mínimo (R$ 87,50 em
outubro de 2006). O direito a um salário mínimo mensal para essas pessoas foi
estabelecido na Constituição de 1988 e regulamentado pela Lei Orgânica da
Assistência Social (Loas), em 1993. O início da implementação do BPC, em 1995,
deu-se no contexto de administração conjunta da previdência e da assistência
social no governo federal. Embora a coordenação do programa hoje seja feita
pelo órgão gestor da assistência social (o Ministério do Desenvolvimento Social
e Combate à Fome MDS), o benefício é solicitado em agências do Instituto
Nacional do Seguro Social (INSS) e a seleção dos beneficiários é feita em boa
parte por médicos peritos da Previdência, que avaliam os deficientes que
requerem o benefício quanto ao grau de incapacidade para a vida independente e
o trabalho. Por essas razões, a operacionalização é feita pelo INSS e por sua
agência de processamento de dados, a Dataprev. O BPC não exige contrapartidas
de comportamento as chamadas condicionalidades de seus beneficiários.
O Programa Bolsa Família (PBF) é um programa de transferência mensal de renda
que surgiu, no final de 2003, a partir da unificação de uma série de programas
preexistentes, bastante inspirado pelo programa de renda mínima vinculado à
educação, o Bolsa Escola. O Bolsa Família deve atender a famílias cuja renda
familiar per capita seja inferior a R$ 60 mensais e famílias de gestantes,
nutrizes, crianças e adolescentes de até 15 anos cuja renda per capita seja
inferior a R$ 120 (valores de outubro de 2006). Foi criado por medida
provisória, posteriormente convertida em lei. A seleção dos beneficiários é, em
geral, realizada pelos órgãos municipais de assistência social, ficando a
gerência do programa a cargo do MDS e as operações de pagamento sob
responsabilidade da Caixa Econômica Federal. O recebimento das transferências é
condicionado a contrapartidas comportamentais nas áreas de educação e saúde
essencialmente: freqüência à escola, vacinação de crianças e acompanhamento pré
e pós-natal de gestantes e nutrizes , de acordo com a composição das famílias
beneficiárias.
PÚBLICO ATENDIDO
Os programas se destinam a públicos distintos e cada um deles possui mecanismos
administrativos próprios de identificação e seleção de beneficiários. Ambos já
foram criticados por erros graves de seleção. A maior parte dessas críticas
teve caráter casuístico, não se fundamentando sobre evidências empíricas
generalizáveis e sistemáticas. Na prática, limitaram-se a apontar uma ou mais
famílias beneficiárias com renda acima das respectivas linhas de corte e a
fazer inferências, com base nesses desvios, sobre todo o funcionamento dos
programas.
No entanto, casos isolados não são evidências adequadas para avaliar programas
que, juntos, afetam diretamente quase 14 milhões de famílias. Identificar o
público de fato beneficiado por esses programas é crucial para determinar em
que medida seus objetivos estão sendo atingidos e o que pode ser feito para
melhorá-los. Com a divulgação dos resultados da Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios (Pnad) de 2004, tornaram-se possíveis os primeiros estudos sobre
o assunto com base em dados com representatividade nacional.
Os dados da Pnad 2004, no entanto, apresentam algumas limitações. Desde o
início dos programas de transferência de renda, o IBGE tem captado esses
recursos na categoria de "outros rendimentos", na qual também são incluídos
juros de aplicações financeiras, dividendos e o seguro-desemprego. A existência
de um suplemento especial sobre programas de transferência de renda na Pnad
2004 não alterou esse quadro, uma vez que o questionário suplementar foi
associado ao questionário do domicílio, e não ao questionário individual.
Tampouco foi criada uma entrada especial para o rendimento proveniente das
transferências, fazendo com que não seja possível identificar quem é o titular
do benefício, nem separar a renda da transferência dos "outros rendimentos" de
maneira direta. Num texto elaborado no Ipea, "Programas de transferência de
renda no Brasil: impactos sobre a desigualdade",2 é desenvolvida uma
metodologia para fazer essa separação de maneira aproximada, de modo a permitir
avaliar dois aspectos: 1) a capacidade da Pnad de captar essas transferências
vis-à-vis os registros administrativos e 2) o grau de focalização das
transferências.
Embora não reproduza bem os números absolutos dos registros administrativos dos
diversos programas de transferência que estavam sendo unificados no Bolsa
Família, a Pnad representa bem, em termos relativos, a distribuição regional
dos beneficiários e suas características. Em nível agregado, o BPC também é bem
captado em termos relativos, mas não em termos absolutos. Entretanto, entre os
idosos beneficiários do BPC há sobrestimação da proporção de beneficiários na
região Nordeste e subestimação na região Sudeste, em relação aos dados dos
registros administrativos. Uma possível explicação para esse fenômeno pode ser
a confusão, por parte dos beneficiários ou dos respondentes dos questionários
nos domicílios, entre o BPC e outros benefícios previdenciários, uma vez que
todos são operacionalizados pelo INSS. É possível, portanto, que uma parte
significativa do BPC esteja sendo captada nas entradas de aposentadorias e
pensões.
Apesar dessas dificuldades, uma análise da distribuição de ambos os programas
na população indica que o BPC e o Bolsa Família estão cumprindo, em boa medida,
seus propósitos e sendo efetivamente direcionados à população mais pobre. O
gráfico_1 abaixo mostra a distribuição das transferências nos distintos
estratos da população. Nele é possível observar que tanto o BPC ambos os
programas apresentam um bom nível de focalização nos pobres.
No entanto, a partir dos próprios resultados da Pnad, é possível notar que
parte razoável dos beneficiários encontra-se acima dos níveis de renda
delimitados pelos programas um quarto de salário mínimo (R$ 65 em setembro de
2004, mês de referência da Pnad), no caso do BPC, e R$ 50 ou R$ 100, valores de
corte do Programa Bolsa Família à época. Na verdade, cerca de 38% da renda do
BPC vai para beneficiários em famílias com renda per capita superior a R$ 65,
enquanto 21% da renda do Bolsa Família vai para beneficiários em famílias com
renda per capita superior a R$ 100. Isso pode, de fato, ser interpretado como
erros de focalização? Em caso afirmativo, o que está por trás desses desvios?
Mais ainda, em que medida seria possível reduzi-los? Ainda que essas questões
sejam difíceis de responder, elas permitem desenvolver argumentos sobre os
limites de qualquer mecanismo de focalização. Dois fatores devem ser
considerados nesse debate. O primeiro refere-se à flutuação da renda das
famílias ao longo do tempo; o segundo, aos erros intrínsecos à seleção de
beneficiários em um programa focalizado.
Há várias razões pelas quais as rendas das famílias flutuam. Rotatividade no
emprego, sazonalidade da economia, choques externos positivos e negativos,
mudanças na composição e organização das famílias, entre outros motivos, fazem
com que a renda familiar per capita, especialmente daqueles inseridos no
mercado de trabalho informal, varie ao longo do tempo. Como os programas não
possuem um ciclo permanente de revisão e não seria nem viável nem desejável
fazê-lo é compreensível que parte da população esteja acima dos limites de
corte adotados, ainda que, no momento da inclusão, estivessem cumprindo
integralmente com todos os requisitos regulamentares.
Nem sempre é desejável que uma família seja retirada do programa por
ultrapassar o patamar de renda usado para incluir beneficiários. O risco de
desincentivos ao trabalho relacionados à chance de perda do benefício, e não
ao aumento de rendimentos é um exemplo claro disso. Os membros de uma família
ameaçada de exclusão caso sua renda aumente só têm incentivos para trabalhar se
a renda adicional a ser obtida com esse trabalho for superior às transferências
recebidas. Para esse caso típico, o programa deveria ter um patamar de renda de
saída superior ao de entrada. Em casos semelhantes, é também necessário levar
em conta a sustentabilidade das novas rendas. O programa assegura estabilidade
de rendimentos, ao passo que isso não ocorre com muitos tipos de trabalho. Ao
escolher entre aceitar ou não um novo trabalho, as pessoas levam em
consideração, entre outras coisas, o risco de trocar as transferências estáveis
do programa por rendas instáveis de um trabalho qualquer. Nessas situações
também não seria desejável que ocorresse a cessação dos benefícios, uma vez que
regras de interrupção desse tipo podem desestimular a inserção laboral.
Além disso, é preciso ter em conta que boa parte das inscrições para os
programas de transferências passa por processos que, na prática, equivalem a
uma estimativa de renda das famílias. No caso dos programas brasileiros, esse
processo se baseia no cálculo da renda familiar per capita a partir da renda
declarada no momento do cadastramento. Como toda estimativa, esta é sujeita a
falhas que não se pode controlar facilmente.
Todo processo de seleção de beneficiários possui erros intrínsecos que são
difíceis de evitar. Uma parte desses erros denota o dilema inevitável entre a
utilização de critérios excessivamente rígidos na seleção, o que leva à
exclusão de famílias que deveriam ser beneficiadas (erro de cobertura ou
exclusão), ou muito lassos, o que leva à inclusão de famílias que não deveriam
ser beneficiadas (erro de vazamento ou inclusão). É o que alguns chamam de
cobertor curto: cobertos os pés, fica necessariamente de fora a cabeça, e vice-
versa. Parte dos desvios assim como parte das falhas de cobertura deve-se a
esse tipo de erro intrínseco à seleção.
A despeito das dificuldades de alcançar de fato os extremamente pobres e
excluídos, nas fases iniciais de um programa, quando os níveis de cobertura são
reduzidos, é relativamente mais simples manter as transferências focalizadas em
famílias que não se encontrem acima dos limites de elegibilidade. À medida que
a cobertura cresce e os mais pobres são atendidos, torna-se cada vez mais
difícil evitar que famílias logo acima dos limites de elegibilidade sejam
incluídas. Todavia, a inclusão de famílias logo acima desses limites deve ser
entendida como um problema secundário, pois a intensidade desse tipo de desvio
é reduzida. O problema principal é, na verdade, a exclusão de beneficiários
potenciais devido à inclusão de famílias muito acima da linha de corte.
Nesse sentido, vale a pena retornar aos resultados do Gráfico_1. Observe-se que
a incidência de beneficiários acima dos limites de corte do BPC e do Bolsa
Família não é desprezível. Porém os desvios ocorrem para famílias que estão
pouco acima desses limites. Em outras palavras, ao mesmo tempo que a incidência
dos desvios é razoável, sua intensidade é muito pequena. Desvios de grande
intensidade são raros: menos de 12% da renda do Bolsa Família e 20% da renda do
BPC vão para beneficiários em famílias com renda per capita superior a R$ 130
em 2004.
Especificamente no caso do BPC, também deve ser mencionado que há beneficiários
vivendo em famílias cuja renda é superior ao limite definido no programa por
força de determinação judicial. O pressuposto constitucional do BPC baseia-se
em princípios gerais sobre o necessário para a subsistência. A definição dos
critérios operacionais de elegibilidade é feita por leis ordinárias e por
normas do Executivo, algumas delas questionadas, com sucesso, por ações
judiciais que inovam ou atualizam a interpretação dos princípios da
Constituição. As contestações mais típicas elevam o limite de corte do BPC de
um quarto a meio salário mínimo, por considerar este último um patamar de
pobreza socialmente reconhecido, ou, ainda, autorizam o cômputo da renda
familiar calculada sem despesas com medicamentos, em uma tentativa de
diferenciar necessidades, algo que o desenho do BPC e do PBF ainda não é capaz
de fazer a contento. Além disso, o conceito de família do BPC3 não é o mesmo
conceito do PBF, nem da Pnad. Dessa maneira, no cálculo da renda per capita
utilizado no Gráfico_1, a renda de filhos ou agregados maiores de 21 anos é
considerada, enquanto essa mesma renda é excluída para a avaliação da
elegibilidade ao BPC.
Existem, também, desvios oriundos de problemas no processo de seleção dos
beneficiários, decorrentes desde a utilização de ferramentas inadequadas para
identificá-los até fraudes deliberadamente impostas ao sistema. Ferramentas
melhores, tais como um questionário aprimorado de cadastramento e estudos
locais que balizem as avaliações dos assistentes sociais, médicos peritos e
outros profissionais envolvidos na seleção dos beneficiários do BPC e do PBF,
indiscutivelmente ajudariam a melhorar a focalização dos programas. As fraudes,
por sua vez, requerem mecanismos de verificação de outras informações sobre os
beneficiários cadastrados, como o recebimento de benefícios previdenciários,
comparação de cadastros com registros de empregadores (como a Relação Anual de
Informações Sociais Rais), revisão periódica (conforme prevê a regulamentação
do BPC) e, nos casos em que se apliquem, medidas punitivas aos fraudadores.
Há evidências de melhorias nos mecanismos de seleção e controle dos programas.
Nesse campo, o Bolsa Família tem avançado mais rapidamente que o BPC, com o
estabelecimento de rotinas de verificação da consistência cadastral e a
modificação dos formulários de inscrição (instrumentos que, ao que tudo indica,
serão adotados, no futuro próximo pelo BPC). A criação de uma rede pública de
fiscalização em 2005, envolvendo ministérios públicos, Corregedoria-Geral da
União (CGU) e Tribunal de Contas da União (TCU), também poderá ser uma medida
importante no combate às fraudes. Da mesma forma, o aperfeiçoamento de
mecanismos de participação e controle social no nível municipal e o
estabelecimento de canais de comunicação direta entre beneficiários e
potenciais beneficiários com as instâncias de gestão do PBF poderá contribuir
para difundir informações e minorar os erros de focalização.
É sempre possível tentar obter informações mais precisas e usar ferramentas
mais sofisticadas para selecionar beneficiários. Cabe perguntar, porém, se já
não alcançamos um patamar razoável de focalização. Para isso, é conveniente
comparar o desempenho dos programas brasileiros com aquele de programas
considerados exitosos em outros países. O Gráfico_24 faz essa comparação,
trazendo indicações sobre o desempenho de programas de transferência de renda
similares, implementados no Chile e no México.
O que o Gráfico_2 permite concluir é que os programas brasileiros atingem seu
público-alvo de maneira aproximadamente tão eficaz quanto os programas
semelhantes de países vizinhos, muitas vezes apresentados como modelos de boas
práticas. O México e o Chile, que usam questionários extensos e completos para
identificar beneficiários, conseguem um resultado próximo ao obtido pelo
processo de seleção altamente descentralizado do Brasil. Cabe lembrar que
procedimentos centralizados e complexos podem reduzir a possibilidade de
controle social dos programas e que controles extremamente rigorosos de
focalização e ciclos mais curtos de revisão de benefícios e implicam, em geral,
custos administrativos mais elevados.
Com isso, não se pretende afirmar que não devam ser feitos esforços para o
constante aprimoramento dos programas brasileiros, inclusive no sentido de
minorar os erros de seleção. Mas esses esforços devem sempre ser norteados por
análises de custo-benefício que os justifiquem e pela diretriz de minimizar,
tanto quanto seja razoável, a exclusão de beneficiários que teriam direito aos
programas.
CONDICIONALIDADES
Uma das propaladas inovações do Programa Bolsa Família, assim como de seus
antecessores Bolsa Escola e Bolsa Alimentação, diz respeito a um desenho que se
propõe a aliar dois objetivos centrais: o alívio da pobreza no curto prazo, por
meio das transferências de renda, e o combate a sua transmissão
intergeracional, por meio de condicionalidades voltadas para incentivar as
famílias a realizar investimentos em capital humano. Adicionalmente, a
exigência de condicionalidades, também chamadas de contrapartidas ou co-
responsabilidades das famílias, tem como objetivo incentivar a demanda por
serviços sociais como saúde e educação e ampliar o acesso da população mais
pobre a direitos sociais básicos, incentivando expansões e melhorias na oferta
desses serviços.
A mais conhecida condicionalidade do Bolsa Família é a de freqüência escolar
das crianças. O programa exige que as crianças estejam presentes em 85% das
aulas e instituiu um sistema de acompanhamento que é alimentado pelos
municípios e transmitido ao governo federal, a fim de que se apliquem
advertências e sanções no caso de descumprimento. Trata-se de uma inovação, uma
vez que a exigência de controle de freqüência escolar, segundo a legislação,
limitava-se a 75% das aulas e competia, apenas, aos estabelecimentos de ensino.
Do ponto de vista dos resultados, a necessidade e o impacto das
condicionalidades são controversos. Se, desde a criação do sistema de
acompanhamento da condicionalidade de educação, mais de 95% daqueles que
tiveram a freqüência escolar monitorada cumpriram a exigência estabelecida, é
difícil afirmar se isso é resultado direto do controle de condicionalidades ou
uma tendência independente desse controle.
Recente avaliação de impacto5 traz alguns resultados preliminares sobre os
efeitos do Bolsa Família sobre a educação. Os resultados observados indicam que
as crianças atendidas pelo programa têm menor probabilidade de faltar um dia de
aula por mês em comparação com crianças em domicílios similares que não recebem
o benefício. Ademais, a probabilidade de as crianças beneficiárias abandonarem
a escola também é menor. Entretanto, os efeitos observados sobre a educação
podem estar sendo os mesmos de um programa sem condicionalidade, pois há
indicações de que, mesmo na ausência de contrapartidas, programas de
transferência de renda têm efeitos positivos sobre a escolaridade das crianças.
Carvalho6 mostra que a aposentadoria rural não contributiva, ao incrementar a
renda dos idosos, teve um efeito positivo sobre a matrícula das crianças do
domicílio, particularmente de meninas entre 12 e 14 anos. Para estas, a taxa de
não-matrícula caiu em 20%. Com base em dados da Pnad, Reis e Camargo7 estimaram
que um importante efeito relacionado a aposentadorias e pensões não
condicionadas a contrapartidas é aumentar a probabilidade de freqüência à
escola dos jovens.
Em muitos casos, as condicionalidades de saúde e educação apenas reforçam algo
a que os pais já são obrigados legal ou socialmente a fazer por suas
crianças: enviá-las à escola, vaciná-las e cuidar de sua saúde. Dessa maneira,
não parece haver nenhuma novidade ou mesmo "intrusividade" nas
condicionalidades o que não significa que não possa haver excessos na forma
de sua imposição.
Se as condicionalidades podem ser desnecessárias, o problema de sua existência
pode residir nos custos que seu controle acarreta. Um sistema tempestivo e
eficiente de monitoramento de condicionalidades em escala nacional pode
implicar custos administrativos importantes, não só para o governo federal,
mas, principalmente, para os municípios, encarregados de alimentá-lo
periodicamente. No entanto, uma avaliação cuidadosa dos benefícios e custos de
um controle homogêneo para todo o país ainda precisa ser feita para que haja
uma idéia melhor da conveniência desses mecanismos. Além disso, ao gerar
informações sobre possíveis omissões nas ações de saúde ou na freqüência
escolar, o monitoramento de condicionalidades pode funcionar como um
instrumento para alertar o poder público sobre famílias em situações de maior
vulnerabilidade, que demandam atenção específica, além de identificar gargalos
na oferta desses serviços. Em poucas palavras, não se sabe ao certo quão
necessárias são as condicionalidades, quanto se gasta para controlá-las e o que
exatamente se ganha com isso.
Se as condicionalidades de saúde e educação já são algo que os pais devem fazer
com ou sem o benefício, por que elas são tão importantes no debate? Talvez
porque a discussão sobre a necessidade das condicionalidades também tenha como
pano de fundo questões políticas e juízos de valor. As condicionalidades em
parte atendem às demandas daqueles que julgam que ninguém pode receber uma
transferência do Estado especialmente os pobres sem prestar alguma
contrapartida direta. As condicionalidades seriam algo equivalente ao "suor do
trabalho"; sem essa simbologia, o programa correria o risco de perder apoio na
sociedade. Essa característica não é uma idiossincrasia do Bolsa Família, pois
aparece também em vários programas implementados em outros países8. A
existência de programas de transferência condicionada de renda tem que ser
negociada a partir da imposição de condicionalidades de educação e saúde e, em
alguns casos, de contrapartidas de trabalho, independentemente de avaliações
objetivas da relação entre custo e beneficio dessas ações. A discussão sobre a
transformação do Bolsa Família em um programa sem condicionalidades ou sua
manutenção no desenho atual tem sido evitada por razões fundamentalmente
políticas.
EFEITOS SOBRE A OFERTA DE TRABALHO
O Bolsa Família é concedido a famílias que estão ou poderiam estar no mercado
de trabalho, mas, ainda assim, têm renda muito baixa. Por esse motivo encontra-
se sujeito à crítica de que as transferências de renda desestimulam o trabalho.
A crítica se baseia na idéia, bastante plausível, de que, à medida que atingem
certo nível de renda, as pessoas têm incentivos para trabalhar menos ou deixar
de trabalhar.
O que torna essa crítica mal fundamentada é o nível a partir do qual as
transferências resultariam em desestímulo relevante à participação no mercado
de trabalho. Ainda não existem resultados robustos sobre o tema, mas é possível
discutir alguns resultados preliminares e especular um pouco sobre sua
razoabilidade. O Bolsa Família transfere entre R$ 15 e R$ 95 a famílias de
renda extremamente baixa. Embora a importância do programa para a melhoria das
condições de vida das famílias beneficiárias seja inegável, representando
aumento de cerca de 11% em sua renda, o benefício médio gira em torno de R$ 60,
valor que não parece suficiente para que os beneficiários deixem de trabalhar,
a não ser em casos de trabalhos extremamente mal-remunerados, instáveis ou
mesmo insalubres.
As transferências diminuem a operosidade dos trabalhadores? É bem possível que
elas tenham o efeito contrário à medida que conferem aos trabalhadores pobres
recursos que lhes permitem ultrapassar certas barreiras de entrada em segmentos
mais vantajosos do mercado de trabalho. Um exemplo simples ajuda a entender
essa idéia.
Imagine-se um trabalhador autônomo, um vendedor ambulante. Uma barreira para
que esse vendedor expanda seus negócios e envolva neles outros membros de sua
família é o acesso a capital de giro para compor estoques. Se a família desse
vendedor recebe as transferências, o dinheiro pode ter um efeito similar ao da
abertura de uma linha de microcrédito sem, evidentemente, os aspectos
relacionados à necessidade de repagamento. Ora, se o governo abaixar impostos,
juros ou conceder crédito para os empresários no outro extremo da distribuição
de riqueza, eles vão se acomodar e parar de trabalhar? Em geral, a resposta
para essa pergunta é negativa. Deve-se esperar que os microempresários pobres
se comportem da mesma maneira que seus pares ricos. As transferências,
portanto, podem, na verdade, aumentar os níveis de ocupação dos trabalhadores.
O fato é que tomar as transferências como um desestímulo ao trabalho é uma
idéia que pode ser fundamentada em preconceitos, mas não se apóia em evidências
empíricas. Dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) mostram que pessoas que vivem em domicílios onde há beneficiários do
Bolsa Família trabalham tanto ou mais que as outras pessoas com renda familiar
per capita similar. Enquanto a taxa de participação no mercado de trabalho das
pessoas em domicílios com beneficiários é de 73% para o primeiro décimo mais
pobre da distribuição, 74% para o segundo e 76% para o terceiro, a mesma taxa é
de 67%, 68% e 71%, respectivamente, para as pessoas que vivem em domicílios sem
beneficiários.
Eventuais efeitos negativos sobre a oferta de trabalho para grupos específicos
de trabalhadores não devem ter uma leitura necessariamente negativa. Famílias
extremamente pobres tendem a intensificar a participação de mulheres, crianças
e jovens no mercado de trabalho, quase sempre em ocupações precárias e mal
remuneradas. Nesses casos, alguma redução da participação desses indivíduos no
mercado laboral, devido ao recebimento do Bolsa Família, pode ser vista de
maneira positiva.
Na verdade, observando-se de forma desagregada a probabilidade de ser parte da
população economicamente ativa (entre 18 e 65 anos), para homens e mulheres
separadamente, e adicionando-se as classificações de chefes de domicílio e
cônjuges à análise, percebem-se algumas diferenças. Analisando-se os dados da
Pnad 2004 com um modelo probit estimado para os três primeiros décimos da
distribuição os 30% mais pobres e que controla os efeitos de idade e
composição familiar (número de crianças e idosos no domicílio), foi possível
estimar que a oferta de trabalho de apenas uma das quatro combinações do modelo
(mulheres chefes, mulheres cônjuges, homens chefes e homens cônjuges) é afetada
negativamente pelo Bolsa Família. Apenas as mulheres chefes que recebem o
programa têm probabilidade menor (e estatisticamente significante) de
participar do mercado de trabalho do que as mulheres chefes que não recebem a
transferência. Para os outros três grupos, o programa não tem impacto algum
sobre a oferta de trabalho dos beneficiários quando comparados com grupos
similares.
Na mesma linha, resultados da linha de base da avaliação de impacto do Bolsa
Família9 mostram um efeito positivo do programa sobre a oferta de trabalho. De
acordo com os dados da pesquisa, adultos em domicílios com beneficiários do
Bolsa Família têm uma taxa de participação 3% maior do que adultos em
domicílios não beneficiários. Além disso, esse impacto é maior entre as
mulheres, 4%, do que entre os homens, 3%. O programa também diminui as chances
de uma mulher empregada sair do seu emprego em 6%.
O que os dados mostram é que o "ciclo da preguiça" motivado pelas
transferências é uma falácia. Quem, de fato, apresenta uma taxa de participação
menor no mercado de trabalho, quando comparadas a indivíduos em situação
semelhante, são aquelas pessoas do último décimo da distribuição e que possuem
renda na categoria de "outros rendimentos" da Pnad. Nessa posição da
distribuição, é provável que essa categoria seja composta basicamente de juros
de aplicações financeiras. Ou seja, os rentistas ricos trabalham menos que os
não-rentistas ricos. A maioria dos pobres é muito trabalhadora, conforme
mostram os dados do IBGE. Talvez seja desnecessário enfatizar que, geralmente,
os pobres não deixam de trabalhar por decisões livres e espontâneas, e sim
porque não têm emprego em condições aceitáveis.
IMPREVIDÊNCIA
Se o Bolsa Família é mais freqüentemente acusado de gerar desincentivos ao
trabalho, o BPC costuma ser criticado por incentivar a evasão das contribuições
previdenciárias. A crítica, nesse caso, é que o BPC substitui com um programa
assistencial parte da seguridade social de base contributiva. O raciocínio
detrás da crítica é que, se as pessoas receberão com o BPC o mesmo que
receberiam pelo sistema previdenciário, não há motivo para contribuírem para a
previdência social pública.
Essa é uma crítica de caráter ainda especulativo. Não existe, no Brasil, nenhum
estudo rigoroso e abrangente sobre as motivações da contribuição para o sistema
previdenciário, bem como não há evidências que comprovem que a expectativa de
recebimento do BPC está relacionada a um comportamento imprevidente ou evasivo
de potenciais contribuintes da seguridade social. Além disso, o impacto pode
existir, mas ser irrelevante para o sistema previdenciário como um todo. A
validade da crítica depende, portanto, de que o comportamento imprevidente,
além de existir, seja de boa magnitude.
A hipótese lançada nesse tipo de crítica pode ser plausível, mas seria
razoável? Vejamos. As contribuições previdenciárias não são progressivas. Logo,
em termos de bem-estar, o ônus de uma contribuição previdenciária é muito maior
para os mais pobres, mesmo quando ricos e pobres contribuem com a mesma
proporção de seus rendimentos. Em outras palavras, contribuir com 10% dos
rendimentos representa um esforço muito maior para os mais pobres do que para
os mais ricos. Na verdade, para todas as pessoas de baixa renda, realizar a
contribuição previdenciária implica abdicar de uma renda muito importante para
elas. O contrapeso dessa importância é o ônus esperado presente e futuro de
não poder contar com a renda do trabalho. Se esse ônus for alto o suficiente
para compensar o ônus da perda de parte da renda presente, compensa formar uma
poupança, privada ou pública, que possa ser usada quando não for mais possível
trabalhar.
A poupança previdenciária geralmente ocorre por imposição das contribuições
previdenciárias obrigatórias aos assalariados. Proporcionalmente, a
contribuição voluntária entre trabalhadores informais ou ocupados por conta
própria, de baixa renda, sempre foi muito menor. Segundo os dados da Pnad,
entre 1992 e 2005 a proporção de trabalhadores sem carteira contribuindo para a
previdência social aumentou de 6% para 11%, enquanto a proporção de
contribuintes trabalhadores por conta própria caiu de 20% para 15%. Se
observarmos apenas os trabalhadores por conta própria e sem carteira em
domicílios abaixo da linha de pobreza, observa-se um movimento semelhante: a
proporção de sem carteira que contribui para a previdência sobe de 2% para 4,5%
e a de trabalhadores por conta própria cai de 6% para 3%.
Dado o grande peso que as contribuições representam para os trabalhadores
pobres, se o BPC estivesse realmente induzindo as pessoas a não contribuir para
a previdência pública, deveríamos estar vivenciando uma grande evasão das
contribuições voluntárias tanto entre os trabalhadores sem carteira como entre
os por conta própria. De modo semelhante, um aumento do assalariamento sem
carteira modo de evitar as contribuições também deveria ter sido observado.
No entanto, entre 1992 e 2005, observou-se uma ligeira tendência de redução do
assalariamento sem carteira em 1992 o percentual de informalidade era de
51,9%, atingiu 53,0% em 1998, voltando a 51,7% em 2003 e caindo para 50,4% em
200410. Esses dados não são conclusivos no que diz respeito à ausência de
impacto do BPC sobre as contribuições previdenciárias, mas de modo algum provam
o contrário.
Havendo imprevidência, tudo indica que sua magnitude será pequena em termos
orçamentários. Portanto, os custos associados a isso serão provavelmente
superados pelos benefícios diretos e indiretos que o BPC possa ter. O estudo de
Reis e Camargo11, por exemplo, mostra que pensões e aposentadorias que
incluem o BPC têm impactos positivos relevantes sobre a probabilidade de os
jovens entre 15 e 21 anos freqüentarem a escola, um efeito até mesmo maior do
que o relacionado à probabilidade de não participarem do mercado de trabalho
nem estudarem. Esse tipo de impacto, muito importante para a redução da pobreza
no longo prazo, pode justificar até mesmo certo ônus sobre o sistema
previdenciário.
Em resumo, atualmente não há nenhuma evidência de que tenha ocorrido um
processo generalizado de desestímulo à contribuição previdenciária devido à
introdução do BPC e menos ainda que o efeito desse desestímulo sobre o
orçamento previdenciário seja grande. Até que surjam estudos mais aprofundados,
a crítica ao BPC deve ser tratada como mera especulação, sem respaldo
científico confiável sobre a existência e as verdadeiras dimensões desse
problema.
RESTRIÇÃO FISCAL
As transferências de renda são importantes para a redução da pobreza e da
desigualdade no país. Sua utilização não tira o papel central das políticas
fiscais e tributárias para a redistribuição de renda, instrumentos por meio dos
quais o Estado se apropria de parte do que é produzido na sociedade de maneira
mais ou menos progressiva ou regressiva. Nem contraria o peso da provisão
universal de serviços públicos, como educação e saúde, na promoção da igualdade
de oportunidades. Mas é com as transferências focalizadas que a redistribuição
se dá de maneira mais direta, influindo não somente na desigualdade de
condições, mas na própria desigualdade de resultados. Estima-se que, sozinhos,
esses programas respondam por 23% da queda da desigualdade de renda ocorrida
entre 2001 e 200412. Somados, o BPC e o Bolsa Família cobrem mais de 13 milhões
de famílias de baixa renda no Brasil. Seus benefícios são indiscutíveis. O que
dizer dos custos?
Em 2005, o gasto total com as transferências de renda no Brasil por meio do BPC
e do PBF foi de aproximadamente 0,8% do Produto Interno Bruto (PIB). Apenas
para referência, no mesmo ano o gasto financeiro federal com juros da dívida
pública alcançou 6,7% do PIB. Isso significa que beneficiar diretamente 13
milhões de famílias de baixa renda custa pouco mais de um décimo do gasto com
juros provocado pela política monetária, cujo número de beneficiários diretos é
muito menor. É difícil dizer exatamente quão menor, pois a Pnad não só
subestima severamente o recebimento de juros, dividendos e rendimentos de
capital, como capta a informação em uma única categoria de renda. Mas,
utilizando-se a desagregação dos "outros rendimentos" da Pnad como proposto em
"Programas de transferência de renda no Brasil: impactos sobre a
desigualdade"13, é possível estimar de modo grosseiro que metade dessas rendas
foi recebida pelos 3% mais ricos da população.
É evidente que o impacto indireto das políticas monetárias é relevante para
todos, inclusive para os pobres, que se beneficiam da estabilidade
macroeconômica. A comparação de programas sociais com medidas de política
monetária é um tanto simplista e deve ser vista apenas como ilustrativa. O que
realmente importa aqui é deixar claro que as restrições fiscais brasileiras não
podem ser atribuídas aos programas de transferência focalizada e que é
insensato impedir sua atual expansão ou criticar sua sustentação sob a
justificativa de que causam pressão excessiva nos orçamentos públicos. Uma
análise preliminar da relação de custo-benefício já é suficiente para indicar
que os programas devem ser protegidos de tentativas de ajuste fiscal.
Já que existe uma restrição orçamentária, não seria melhor empenhar os recursos
das transferências em investimentos? Seguramente as taxas de investimento
público no país poderiam ser maiores, mas essa não é a maneira mais apropriada
de apresentar a pergunta. Ela só faria sentido se houvesse uma rigidez completa
em todo o orçamento público, isto é, se a única alternativa possível fosse
decidir entre transferências ou investimento.
Não é o caso. O orçamento público é o resultado de uma série de escolhas.
Grandes mudanças na alocação orçamentária podem ser inviáveis no curto prazo,
mas indiscutivelmente existe uma margem de manobra para várias realocações de
menor escala. É certo que a distribuição do orçamento é resultado de um jogo de
forças políticas no qual a população mais pobre se encontra em posição
desvantajosa: os pobres não são os principais beneficiários diretos de boa
parte dos gastos públicos. Não significa, porém, dizer que eles não devam
merecer atenção especial no orçamento. Fechar os olhos para isso implica
perpetuar uma estratégia sustentada por décadas no Brasil e que se mostrou
fracassada: a erradicação da pobreza seguindo a reboque dos investimentos em
infra-estrutura e do crescimento da economia.
Opor as transferências a investimentos ignora a possibilidade de que ambos
sejam complementares. Afinal, as transferências permitem que as famílias
consumam mais, e aumento de consumo pode estimular investimento. Se as pessoas
querem comprar mais, os empresários vão querer produzir mais. Este círculo
virtuoso pode ser alimentado ainda mais com investimentos em infra-estrutura.
Portanto, transferências e investimentos podem andar de mãos dadas. Se de fato
são ou não complementares ainda é algo a se descobrir.
Não raro as transferências focalizadas PBF e BPC são tratadas como
pertencentes a uma grande categoria denominada "transferências", que engloba o
restante do sistema previdenciário. Qualquer taxonomia tem caráter instrumental
e, portanto, se justifica por seus propósitos; não se pode, assim, dizer que
seja correto ou não usar a categoria antes que os objetivos da classificação
sejam definidos. O fato é que as aposentadorias e pensões de caráter
contributivo têm um peso orçamentário várias vezes maior do que o PBF e o BPC
e, ao mesmo tempo, existe grande diferença entre as aposentadorias e pensões
contributivas e os programas de transferência focalizados no que diz respeito
ao público beneficiado diretamente por elas. Qualquer análise cautelosa do
gasto público baseada em "transferências" deve ser feita levando em conta as
distinções entre os vários tipos de programas. Indiscutivelmente equivocado é o
procedimento de chegar a conclusões sobre o peso orçamentário do PBF e BPC a
partir do gasto agregado na categoria das "transferências".
CONCLUSÃO
As políticas de transferência de renda vêm se consolidando como uma importante
faceta do sistema de proteção social brasileiro. Os dois principais programas
dessa natureza, o BPC e o Bolsa Família, têm se expandido consideravelmente nos
últimos anos e gerado efeitos relevantes sobre os índices de pobreza e
desigualdade no país, embora não estejam isentos de críticas ou problemas.
Os programas possuem mecanismos administrativos próprios de identificação e
seleção de beneficiários. A pouca informação de que dispomos sobre seus
resultados indica que uma parte grande dos beneficiários encontra-se acima dos
níveis de corte delimitados pelos programas, mas ainda assim abaixo da linha de
pobreza. São, portanto, erros de baixa intensidade. Em termos comparativos, os
programas brasileiros atingem seu público-alvo de maneira aproximadamente tão
eficaz quanto os programas de países vizinhos. É sempre importante buscar
aprimorar os programas, mas é difícil dizer em que medida isso poderia trazer
melhorias significativas em relação à situação atual, uma vez que parte dos
desvios observados pode estar relacionada a flutuações cíclicas na renda das
famílias e a erros intrínsecos ao processo de focalização, cujo controle pode
ser extremamente custoso.
A preocupação com a transmissão intergeracional da pobreza também distingue os
programas. O Bolsa Família enfoca esse tema por meio de condicionalidades que
pretendem promover investimentos em educação e saúde. Em parte pelas
características do público beneficiário, o BPC não exige contrapartidas
comportamentais. Porém resultados de pesquisas recentes apontam que a simples
elevação das rendas causadas pelas transferências, mesmo sem condicionalidades,
já parece ter impactos relevantes sobre a escolarização dos jovens nas famílias
beneficiárias. Do ponto de vista moral, as condicionalidades exigem das
famílias algo que já é determinado legalmente, portanto não se pode acusar o
PBF de intrusividade na vida privada para além do que já determina a lei. Do
ponto de vista da relação entre custo e benefício, o fato é que, até o momento,
não se sabe exatamente quão necessárias são as condicionalidades e qual é o
custo de seu controle.
O lado positivo dos programas analisados é indiscutível. Seus impactos sobre
pobreza e desigualdade são visíveis. Já seu lado negativo não é claro.
Primeiro, não há indicações de que as transferências afetem de modo substantivo
(e indesejável) a participação no mercado de trabalho. Ao contrário, por razões
que ainda precisam ser mais bem exploradas, essa participação em alguns casos é
maior entre beneficiários. Segundo, não há nenhuma evidência sólida de que as
transferências afetem de maneira relevante as contribuições previdenciárias e,
menos ainda, de que esses impactos sejam expressivos para a previdência social.
Havendo imprevidência, aparentemente sua magnitude será pequena em termos
orçamentários. Finalmente, o ônus orçamentário dos programas focalizados não é
grande. As transferências beneficiam cerca de um quarto das famílias
brasileiras, mas seu custo está próximo de 1% do PIB. O nível atual de gasto
com as políticas de transferência de renda, portanto, ainda pode ser expandido.
O que está em xeque ao discutir os programas de transferência de renda não é a
necessidade desse tipo de política, mas, sim, o grau de solidariedade desejável
para a sociedade brasileira. Praticamente todos os países que conseguiram
erradicar a pobreza absoluta e reduzir expressivamente seus níveis de
desigualdade possuem políticas de transferência de renda. Isso ocorre porque,
mesmo em economias de renda alta, há uma parte da população que não consegue,
por razões diversas, ter sua subsistência assegurada pelo trabalho.
[1] Os autores agradecem os comentários e sugestões de Francesca Bastagli,
Rafael Ribas e Rodolfo Hoffmann à primeira versão do texto.
[2] Soares, F. V. e outros. "Programas de transferência de renda no Brasil:
impactos sobre a desigualdade". Ipea, 2006 (Texto para Discussão, n. 1.228).
[3] Por influência da administração do INSS, a definição de família no BPC
limita-se ao conjunto de familiares autorizados a receber pensões em caso de
falecimento do beneficiário da seguridade, qual seja: pais, esposo ou
companheiro e filhos ou irmãos menores de 21 anos ou inválidos, desde que vivam
em coabitação. Já o PBF entende como família toda unidade nuclear que forme um
grupo doméstico em coabitação regular.
[4] Apresentado em Soares, S. e outros. "Conditional cash transfers in Brazil,
Chile and Mexico: Impacts upon inequality". 2007 (International Poverty Centre
Working, paper n. 35).
[5] Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar). Projeto de
avaliação do impacto do programa Bolsa Família relatório analítico final.
2006 (mimeo).
[6] Carvalho Filho, I. E. Household income as a determinant of child labor and
school enrollment in Brazil: Evidence from a social security reform. 2001
(mimeo).
[7] Reis, M. C., Camargo, J. M. "Rendimentos domiciliares com aposentadorias e
pensões e as decisões dos jovens quanto à educação e à participação na força de
trabalho". Ipea, 2007 (Texto para Discussão, n. 1.262).
[8] Handa, S., Davis, B. "The experience of conditional cash transfers in Latin
America and the Caribbean". Development Policy Review, Oxford, UK: Blackwell
Publishing, vol. 24, n. 5, 2006.
[9] Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar). Projeto de
avaliação do impacto do programa Bolsa Família relatório analítico final.
2006 (mimeo).
[10] Ramos, L. "O desempenho recente do mercado de trabalho brasileiro:
tendência, fatos estilizados e padrões espaciais". Ipea, 2007 (Texto para
Discussão, n. 1.255).
[11] Reis, M. C., Camargo, J. M., op. cit.
[12] Ipea. Nota técnica sobre a recente queda da desigualdade
<www.ipea.gov.br/sites/000/2/publicacoes/notastecnicas/notastecnicas9.pdf>.
Acesso em 19/11/207.
[13] Soares, F. V.