Arrivistas e decadentes: o debate político-intelectual Brasileiro na primeira
década republicana
[...]andava meu pobre corpo aos solavancos[...]nos bancos do
expresso, tendo por fronteiros dois homens terríveis, de idéias
contrárias-um rotundo, conservador, católico, saudoso da monarquia,
bramando contra a indiferença do povo, que deixara partir o velho
soberano, sem um protesto, sem um tiro ao menos; o outro, de pêra,
esgalgado e nervoso, livre pensador, formidável em teorias
republicanas,[...], discorria sobre as revoluções, reclamando um
batismo de sangue, como o de 89, em França, sem o que a república
nunca chegaria à consolidação perfeita2.
Os dois personagens de A capital federal, do republicano Coelho Neto, não
podiam ser mais expressivos do debate público brasileiro no comecinho da
República. O golpe republicano de 1889 suscitou manifestos, ensaios, romances,
historiografia, memórias e autobiografias que permitem mapear duas
movimentações intelectuais. Os republicanos escreveram legitimando o novo
arcabouço político e a sociedade também nova que com ele se estabelecia. Os
monarquistas arremeteram contra essa "decadência", louvando o antigo regime e a
sociedade aristocrática consigo desmoronada. A luta entre republicanos e
monarquistas travou-se, pois, tanto em torno da dominação política como da
representação simbólica do Império deposto e da República nascente.
Se a legitimação do novo regime já atraiu intérpretes3, o protesto simultâneo
dos decadentes segue pouco estudado4. É esse ângulo que privilegio aqui, ao
tratar do debate político-intelectual da primeira década republicana,
registrando antes, rapidamente, o tempo emquerepublicanos e monarquistas se
albergavam sob o mesmo teto reformista.
REFORMISTAS E TRADICIONALISTAS
Nos anos de 1870 e 1880, o debate público brasileiro opunha reformistas e
tradicionalistas. Não havendo campos político e intelectual autônomos no Brasil
de então, o conflito corria sobreposto em livros e palanques.
Os tradicionalistas eram membros da elite imperial no comando político e social
do regime, baluartes das instituições monárquicas e da tradição que a
legitimava - o tripé liberalismo estamental, catolicismo hierárquico,
indianismo romântico. Os reformistas eram letrados marginalizados pelas
instituições políticas do Segundo Reinado, que buscaram no repertório político-
intelectual europeu armas para criticar o estado de coisas que bloqueava seus
projetos e demandas5.
Inspirados na "política científica" francesa e em teses sobre a desagregação do
Império Português, construíram interpretações do Brasil focalizando as tópicas
do progresso e da decadência. A primeira situava as sociedades numa escala de
desenvolvimento econômico, complexidade social, secularizaçãoe expansão da
participação política, em relação à qual o Brasil estaria atrasado. A segunda
rezava que, ex-colônia, o país herdara fundamentos socioeconômicos e
instituições políticas contaminados pelos germes da decadência portuguesa.
Apenas a superação da herança colonial-identificada ora com a escravidão6, ora
com a monarquia7 e quase sempre com ambas8 - e da forma de pensar a ela
associada, a tradição imperial, facultaria o engate do país na Marcha da
Civilização.
O presente era, então, momento de decadência do legado colonial. Mas para
atingir o futuro de promissão, cumpria acelerar o processo por meio de reformas
modernizadoras - indo da laicização do Estado à abolição da escravidão.
Os reformistas, contudo, dissentiam quanto ao modo de efetuar as reformas, se
no interior da Monarquia, se instituindo a República. A divergência virou cisão
quando da Abolição, em 1888. Desde aí, outra distinção cristalizou-se. Enquanto
discutiam reformas econômicas e sociais, a heterogeneidade social entre os
reformistas não fora problemática. Colaboravam pacificamente gente nascida na
aristocracia burocrática, como Joaquim Nabuco, rebentos dos grupos econômicos
crescendo com o café, como Alberto e Campos Sales, ascendentes pela educação,
como Silva Jardim, e oriundos de famílias estacionárias, como Júlio de
Castilhos e Teixeira Mendes9. Mas quando a balança de poder político e o
próprio regime monárquico entraram na linha de fogo, as distinções sociais
ganharam saliência. Os oriundos da "nova sociedade" precipitaram a mudança.
Parte dos aristocratas resistiu.
MONARQUISTAS E REPUBLICANOS
Com a instauração da República, em 1889, o debate político-intelectual
brasileiro ganhou nova estruturação, sobrepondo duas clivagens. A primeira
refere-se ao contexto político e aos conflitos, palpáveis e nevrálgicos, acerca
do formato e dos mandatários do novo regime. O movimento reformista bifurcou-se
em diversas facções republicanas e minguados monarquistas militantes. Some-se
aí a leva de tradicionalistas aderentes, que encarou a dominação republicana
como a nova ordem natural das coisas. A outra clivagem, menos lembrada, e de
visibilidade mais difícil, diz respeito ao contexto social de luta entre os
estratos sociais dominantes na monarquia e os estratos ascendentes com o novo
regime.
Embora a celeuma intra-republicana seja relevante, tanto simbólica como
politicamente - já o demonstraram respectivamente Carvalho10 e Lessa11 (1987) -
, parece-me que a inteligibilidade da produção intelectual da década de 1890
depende de atentar para um amálgama dos antagonismos apontados acima. Como
argumentam McAdam, Tarrow e Tilly12, em situações de mudança e conflito, as
diversas identidades sociais rotineiras - e as solidariedades cotidianas e
ligações históricas e afetivas a elas vinculadas-ficam suspensas em favor de
uma clivagem principal, que ilumina características contrastivas dos grupos em
disputa. As identidades políticas são essas identificações sociais construídas
em meio a uma interação conflitiva e só inteligíveis se reportadas à
conjuntura. São, pois, contextuais, nascendo aos pares, numa relação binária de
oposição. Não são substantivas-a exprimir alguma essência dos agentes - , mas
relacionais, categorias simplificadoras, que ajuntam por exclusão.
No nosso caso, as afinidades entre os antigos reformistas e suas diferenças
para com os tradicionalistas dissolveram-se diante do contexto político-social
de estabelecimento da República, facultando a emergência, em interação e
litígio, de duas identidades políticas relacionais: monarquistas-aristocratas e
republicanos-ascendentes. A produção intelectual da primeira metade dos anos de
1890 o denota num enfrentamento a um só tempo político e simbólico. Nela,
perdurou o par decadência-progresso dos tempos de reformismo. Mas enquanto os
republicanos conservaram a equação Império = decadência e se lançaram à
edificação de uma tradição republicana que suplantasse a imperial, os
monarquistas se puseram a resgatar a tradição imperial, invertendo os vetores:
o regime deposto virou um ápice de civilização e a República, sua ruína.
Criaram-se, assim, duas versões da história nacional, uma legitimando o novo
status quo, outra defendendo a ordem caída. Significando isso tanto uma forma
de governo como um modelo de sociedade.
A NOVA SOCIEDADE E SEU ESTILO
Desbancando os "casacas" do Império no comando político e no mando social, a
República abriu alas para uma "nova sociedade". Grupos cuja ascensão social ou
negócios estavam bloqueados pelo funcionamento letárgico da sociedade imperial
desabrocharam. No segundo caso estavam os sempre lembrados afluentes
plantadores de café do Oeste Paulista, ganhando expressão política compatível
com sua força econômica, mas também toda a sorte de negociantes a eles
associados. Financistas e empresários urbanos cresceram vertiginosamente,
graças ao incentivo de Rui Barbosa, ministro das Finanças de Deodoro, ao
empreendedorismo. Assim surgiu, da noite para o dia, um estrato de novos ricos,
no modelito de Serapião Ribas, outro personagem de Coelho Neto:"Enriquecido de
um dia para outro em transações felizes [...]. Aferrolhou mil e tantos contos
em apólices, comprou vários prédios, e, estirado agora, resfolga na sua
Voltaire ampla [...]"13.
Artur de Azevedo14 também registrou em romance esses novos ricos da bolsa de
valores, cheios de dinheiro e carentes de requinte, crescendo e aparecendo na
Capital federal, em companhia das coquetes, que viviam de explorá-los. Todos
arrodeados de militares, muitos deles membros do movimento reformista da
geração de 1870, que acharam no novo regime o poder e o prestígio que tanto
demandaram ao velho. Granjeavam visibilidade reformistas civis, alocados em
peso na administração federal15. O governador do estado do Rio de Janeiro,
Francisco Portela, por exemplo, abriu a burocracia estatal para um rol de
letrados republicanos, como Olavo Bilac, Pardal Mallet, Raul Pompéia e o nosso
conhecido Coelho Neto.
Na balança de poder social, a ascensão da "nova sociedade" ao ápice da
hierarquia social significou naturalmente o declínio em poder e prestígio dos
estratos sociais associados ao Império, sobretudo da velha aristocracia
fundiária do Vale do Paraíba, mas também, obviamente, da aristocracia
burocrática, que vivia dos empregos na máquina do Estado, e da aristocracia de
corte, que simplesmente perdeu sentido na ausência de um rei. Era a transição
da sociedade de corte para a sociedade citadina:"Encheram-se os salões de
fardas, casacas e vestidos. [...] nomes distintos e belas elegantes eliminaram-
se inteiramente"16.
A nova sociedade tinha de prover regras e instituições para a nova ordem e, ao
mesmo tempo, criar um repertório de legitimação de seu mando e combate da
tradição imperial e do estilo de vida nobiliárquico.
É verdade que a dinâmica do Governo Provisório, as controvérsias quanto às
primeiras medidas sancionadas, as eleições para a Constituinte e os
alinhamentos durante seu funcionamento, a política econômica, que levaria ao
Encilhamento, e o estilo centralizador de Deodoro da Fonseca fomentaram o
surgimento de facções-federalistas versuscentralistas, liberais
versuspositivistas, parlamentaristas versuspresidencialistas, defensores do
governo forte e seus críticos. Celeumas alongadas no governo Floriano. Contudo,
aliavam-se no fogo coletivo ao arcabouço político imperial. Em Ciência
política, Alberto Salles17, por exemplo, defendia o presidencialismo contra "a
turba de especuladores", parlamentaristas, que associava à monarquia, propondo
a abordagem da política científica para a questão da divisão de poderes no
governo republicano18.
A política científica dos reformistas orientou também um simbolismo encharcado
de remissões à Revolução Francesa - patente desde a campanha republicana.
Apenas a igreja positivista adotou o calendário revolucionário, mas todos os
documentos governamentais passaram a se abrir com "cidadãos" e se fechar com
"saúde e fraternidade". Os republicanos quebraram o protocolo de distinção
social aristocrático, com tratamentos democratizantes, horizontais, mais
condizentes com sua própria extração:
Manda a República agora
Novo trato em moda pôr:
Já se não diz mais-senhora;
Ninguém mais tem-senhor
Excelência nem de graça.
Foi-se a moda cortesã.
Dama altiva agora passa
A chamar-se cidadã.19
Como já demonstrou Carvalho20, a invenção de uma tradição republicana valeu-se
de símbolos que espelhavam a França de 1789, filtrada pelo positivismo, e das
rebeliões coloniais e regenciais abafadas pelo Segundo Reinado. Assim surgiram
bandeira, hinos e heróis nacionais, como Tiradentes, em alternativa aos
anteriores, imperiais.
A nova tradição englobava um panteão de lideranças. Daí a profusão de
biografias edificantes de republicanos históricos, caso de O perfil biográfico
do Dr. Bernardino de Campos, 1890, de Garcia Redondo, e de A morte de Silva
Jardim, ou O Vesúvio em erupção(1891), de Virgílio Cardoso. Conversa incendiada
pelas mortes vizinhas de Benjamin Constant e D. Pedro II. Aí se pôs com
veemência a disputa simbólica em torno do construtor da nação. Enquanto os
monarquistas publicavam elegias ao monarca deposto (por exemplo, Nabuco, 1891),
os republicanos lançaram Benjamin Constant a patriarca republicano. A igreja
positivista enviou projeto à Câmara dos Deputados, que angariou para Constant o
epíteto de "fundador da República brasileira" nas disposições transitórias da
Constituição, promulgada em fevereiro de 1891. Teixeira Mendes prontamente
produziu extensa narrativa da vida e feitos de Constant:
Enquanto atravessarmos a tremenda crise em que se acha empenhada a
sociedade moderna, Benjamin Constant continuará a ser o gênio da
concórdia entre os patriotas brasileiros.[...]os seus corações
desalentados evocarão espontaneamente a sombra augusta do Patriarca
republicano[...]21.
Visando à deslegitimação simbólica do Segundo Reinado, proveu-se a difusão de
um nacionalismo republicano via processo educacional clássico e educação moral
e cívica, voltados para formar os cidadãos republicanos. Isto aconselhavam
Sílvio Romero (Ensino cívico)e José Veríssimo (Educação nacional), em 1890. A
literatura também participava, em arroubos de civismo (Contos verdes e
amarelos, de 1890, de Luís de Andrade).
A reclamação coletiva dos republicanos contra a permanência da tradição
imperial foi bem expressa pelos reformistas albergados na igreja positivista.
Em opúsculos e artigos, criticavam antes de tudo o catolicismo. A secularização
do Estado, grande bandeira da geração de 1870, institucionalizada pela
República, sofria a resistência aberta da Igreja Católica e desobediências
sutis, como a manutenção do crucifixo nas salas do júri. Segundo, a hierarquia
estamentalmantivera-se, expressa no uso ainda corrente de títulos,
condecorações e honrarias nobiliárquicas, como fica evidente na proverbial
resposta de um funcionário do governo brasileiro à proibição de uso de títulos
concedidos pelo Império: "ciente, Barão do Rio Branco". Terceiro, a liturgia da
sociedade de corte perdurava sob a forma de culto ao Imperador, o
sebastianismo.Por isso:
[...]continuamos a exigir a extinção legal imediata dos títulos
nobiliárquicos e das condecorações, em obediência ao preceito
constitucional, [...]a defender a fórmula - ordem e progresso -
inscrita em nossa bandeira nacional, alvo dos ódios metafísicos,
clericais e sebastianistas[...]. [E a combater] [...]a absurda
legendaquequer fazer do nosso último imperante um grande homem, um
grande patriota, um grande estadista e um grande sábio.[...]Agora era
preciso desfazer a legenda imperial e rebater as ousadias
restauradoras22.
O combate à tradição imperial ficou acirrado e violento no segundo governo da
República. Floriano Peixoto, ao assumir em fins de 1891, centralizou o poder,
nomeando jovens militares para os governos de estado23, interveio na economia,
para conter a crise econômica do Encilhamento, e abriu a temporada de
"purificação" das instituições, com empastelamento de jornais e prisão de
opositores. Amparou-se no exército, em emblemas e palavras de ordem da
Revolução Francesa e num civismo de matiz positivista. O florianismo ficou
próximo do que Vovelle24 chamou de "jacobinismo transhistórico": "uma atitude,
um comportamento e até uma visão de mundo", nascidos com a Revolução Francesa,
mas que adquiriram caráter plástico, plasmando-se a diferentes realidades
históricas. Essa "maneira" condensa a idéia de regime de salvação pública,
baseado na vontade popular; no centralismo político, no Estado laico, no
nacionalismo; na moralização da política; na crença na ascensão social e na
crítica à sociedade aristocrática. Programa a ser implementado pela pedagogia
política e pela força25.
Tudo isso se vislumbra nos textos florianistas. Embora o florianismo não seja
sinônimo de republicanismo26, ele ressalta, por exageração, o núcleo
compartilhado de significados e os contornos da identidade política
republicana, erigidos relacionalmente, por contraste com seus correlatos
imperiais. O regime de moralidade pública achacava reações e remanescentes da
sociedade imperial. A ele se associava um éthosantiaristocrático, que três
figuras ilustram, expressando também os canais de legitimação da tradição
republicana: a força, a religião, a literatura.
A primeira é a do líder político-militar, Floriano Peixoto. Estóico, com seus
hábitos comedidos de sertanejo, seco no trato, sem erudição, charme ou
delongas, que pouco falava e nada escrevia, era o perfeito inverso dos
gentlemendo Império. Adquirira na Guerra do Paraguai a reputação de valente e
resoluto, que exibiu nas rebeliões que contra ele se levantaram e que lhe valeu
a admiração ardente de jovens militares, de parte dos antigos reformistas e de
setores urbanos em ascensão, por ele protegidos das avarias do Encilhamento.
Para seus seguidores, era o demolidor da ordem estamental do Império, o
modernizador.
Outra figura é Raimundo Teixeira Mendes. Reformista durante o Império, na
República corporificou o empenho prático, cotidiano, de assentamento das
instituições republicanas como valores morais e como estilo de vida. Em
prédicas dominicais, repletas de adeptos]27, celebrava as novas instituições, a
laicização do Estado e os símbolos republicanos. A igreja positivista
apresentava-se como alternativa ao catolicismo imperial, como religião civil,
com seu ilibado Sacerdote candidato a líder moral dos republicanos. João do Rio
reporta:
Na capela-mor, rica de tapetes e de madeiras esculpidas, há uma
cátedra, onde se senta Teixeira Mendes com as vestes sacerdotais
negras debruadas de verde.[...].A voz de Raimundo corre com a
continuidade de uma queda de águas; na nave cheia cintilam galões e
lunetas graves;na capela-mor, senhoras ouvem com atenção essa
palavra, que não deixa de ser demolidora.[...].do alto da cátedra,
relampejava.[...]., partia contra os fatos, contra a anarquia atual:
e umesto[...].de amor pela Vida, subia, como um incensório[...]..
Fiquei enlevado a ouvi-lo.[...].homem puro como um cristal, que tem o
saber nas mãos[...]28.
Raul Pompéia é a terceira figura emblemática. Era o entusiasmo revolucionário
em pessoa. Seu civismo exacerbado preenchia artigos diários de jornal
enaltecendo líderes republicanos, com devoção por Floriano. Lançava-se sem
armistícios contra qualquer sinal de monarquismo. Professava um nacionalismo,
que desabrochou em antilusitanismo e que ia de braços com uma atitude de "ódio
vivificante" contra os monarquistas-aristocratas: "Do ódio em nome do Brasil:
não do ódio mau que ofende a vítima-do ódio que reage, do ódio que reivindica,
do ódio que redime, do ódio pela Justiça, do ódio santo que é apenas uma forma
militante de amor".29
O amor de Teixeira Mendes e o ódio de Pompéia entrelaçaram-se na defesa da
repressão de Floriano aos monarquistas. Eram três intransigências. Contra o
éthosda Conciliação, da negociação e da tergiversação imperial, aferraram-se ao
éthosda purificação, da transparência, da moralidade pública, que se encarnava
no estilo de vida de partes da nova sociedade, marcada pela singeleza, o
estoicismo, a moral do trabalho e da família. Maneira de conduzir a vida nas
antípodas da "futilidade" cortesã do Segundo Reinado.
Os florianistas superpunham os sentidos de República como regime de governo,
nova moralidade e nova sociedade. No afã de afirmá-los, guerrearam quaisquer
manifestações políticas, culturais e mesmo pessoais de adesão à sociedade
aristocrática imperial. O florianismo foi a hipérbole do republicanismo. Por
isso mesmo tornou salientes os traços de diferenciação entre duas identidades
políticas, dois éthos, duas tradições inventadas, dois padrões de sociedade.
DECADÊNCIA COM ELEGÂNCIA
Os monarquistas que não aderiram à República, nem emigraram, mesmo quando
tivessem sido inimigos viscerais, acabaram, pela força das coisas, por se
aproximar. Havia dois gêneros. Os monarquistas de espada eram políticos, como
Silveira Martins, e militares, como Saldanha da Gama, que acabaram por pegar em
armas para defender o antigo regime. Os monarquistas de pena eram órfãos da
sociedade de corte, incluídos aí tanto membros do extinto Partido Conservador,
como Afonso Taunay, Rio Branco e Eduardo Prado, quanto do movimento reformista,
como Rodolfo Dantas, André Rebouças, Joaquim Nabuco e Afonso Celso Junior.
Essas criaturas da cultura aristocrática e da liturgia dos salões eram filhos
da elite imperial, em preparação para assumir o comando do país quando o golpe
de 1889 os tolheu. Como seus sucedâneos franceses, "eles conservaram um
prestígio tradicional, fortemente psicológico, [...], mas tinham perdido as
bases reais do poder. Foram incapazes de manter o caráter fechado de seu
estamento [...]"30.
O desaparecimento do Império pôs abaixo sua carreira política, a perspectiva de
futuro e o lastro social. Essa conjunção de estragos gerou amarguras intensas.
Com sua repugnância pelo belicismo, nisso devedores de sua formação de corte,
viram que seu terreno de briga era a palavra. Em ensaios, manifestos, romances,
defenderam a tradição monárquica, que esboroava, e criticaram a republicana,
que se construía, concentrados em duas tópicas:a forma da mudança (o golpe
militar) e a arquitetura política do novo regime, de um lado, e os valores e o
estilo de vida da sociedade republicana, de outro.
Quem abriu ataque ao designdas instituições políticas foi Eduardo Prado, em
1889, na Revista de Portugal31, voltando à carga em 1890, com Fastos da
ditadura militar.Na mesma hora, Cristiano Ottoni deu a versão monarquista de O
advento da República no Brasil. O Visconde de Ouro Preto, em 1891, igualmente
execrou o Advento da ditadura militar no Brasil. Joaquim Nabuco argumentou que
a República, no Brasil como em toda a América do Sul, seria endemicamente
instável, dada a ausência de instrumento de mediação das facções em luta.
Abolido o poder moderador, o "elemento militar" ascenderia naturalmente a
condutor da política partidária: "substituíram o Imperador pelo Imperator
[...]. Deodoro pelo simples fato de suceder o Imperador ele se achou com os
mesmos poderes, sem as normas, está visto"32.
A República não era jamais atribuída à longeva propaganda republicana, mas
somente à violência militar. O militarismoseria origem e fonte de sustentação
do novo regime. Cristiano Ottoni resumia o pensamento dos monarquistas de pena
sobre a "autocracia militar": "não sustentavam eles idéia ou princípio
político, não aspiravam à reforma alguma de interesse geral"33.
A crítica abrangia o repertório de idéias que legitimava o novo regime. Uma
delas vinha no título de Eduardo Prado: A ilusão americana34 Seu ataque à
"mania" republicana de replicar instituições dos Estados Unidos era meio de
investir contra o principal aliado internacional dos republicanos. Em
contraponto, elogiava a Inglaterra, que apoiava os restauracionistas35. Prado
via sem número de males na influência norte-americana sobre o Brasil, inclusive
a manutenção da escravidão - durante o Império!: "Não teríamos conservado por
tanto tempo aquela instituição iníqua, se a maior nação da America não tivesse
tentado legitimá-la, e se, da parte escravocrata dos Estados Unidos, não nos
viesse o incentivo [...]"36.
Em manifesto, Nabuco também lançava argumento nacionalista contra o
americanismo:
Eu lastimo a atitude suicida da atual geração, arrastada por uma
alucinação verbal, a de uma palavra-república, desacreditada perante
o mundo inteiro quando acompanha o qualificativo-Sul Americana. [...]
a esse plagiarismo Americano, devemos opor outro sentimentalismo
natural, vivo, verdadeiro: o Brasileirismo
37.
O americanismoenfileiraria o Brasil com outra América, a Espanhola, rumo ao
caudilhismo, ao despotismo, ao militarismo e, quiçá, mesmo à fragmentação do
país. Eram os velhos temores da elite imperial, que aspirara elevar o Império à
altura das monarquias européias e afastá-lo das repúblicas abaixo do Equador:
"A República, nos países latinos americanos, é um governo no qual é essencial
desistir da liberdade para obter a ordem"38.
O positivismoera o outro corpusde idéias que chateava deveras os monarquistas.
Todos escreveram em achincalhe à "República de Comte"39, receosos de sua
influência crescente no Brasil:
Logo depois do 15 de novembro circulou a notícia, com grandes vesos
de verossimilhança, que parte do ministério compunha-se de sectários
convictos da Filosofia Positiva, e entendia bem servir a sua pátria
organizando o governo segundo as fórmulas do Mestre A. Comte
40.
Abismavam-se com a diligência dos positivistas em soterrar a história do
Segundo Reinado e desencavar ícones e símbolos republicanos41:"no martírio de
Tiradentes, no centenário de 1789, na juventude rio-grandense de Garibaldi, na
unidade exterior da América, ou na Humanidade de Augusto Comte"42.
"Americanistas", "positivistas" e militares eram alvos dos monarquistas não
somente por conduzirem o governo, mas também pelo estilo de vida que
disseminavam. A substituição de elites sociais em compasso com o golpe
obviamente não foi bem vista pelos que descendiam:
Em tais épocas, em que o sistema da propriedade se transforma, as
fortunas mudam de mãos e desaparecem umas classes para surgirem
outras, parece que ficam paralisadas a consciência, a energia e a
vontade coletivas, e que nada liga ninguém a nada ou a ninguém43.
Para os monarquistas de corte, era uma sociedade de parvenus. Afeitos à
etiqueta aristocrática, ficaram enojados com a ascensão meteórica de uma gente
sem nome ou maneiras. Tão distantes da polidez, elegância e refinamento em que
cresceram e floresceram gentlemencomo Nabuco. Por contraste, sobressaía a
"qualidade" da elite imperial: "A República [...] vemo-la reduzida a homens e a
fatos que podem todos ser comparados aos da monarquia com vantagem para a
casa"44.
A ojeriza dos monarquistas de corte aos republicanos exprime, pois, a
fidelidade a um modo de vida, no qual o monarquismo era apenas um dos
elementos. Uma revolta da sociedade de Corte contra a sociedade citadina. Prado
exibia esse desdém ao descrever o capitalismo como baixeza e ambição de lucro,
sinonimizando americanismo e arrivismo, para produzir o contraste entre os
parvenuse boa sociedade: "Tal qual como o parvenuenriquecido gosta de mostrar a
sua casa, os seus carros, ao homem da boa sociedade e, dando a beber ao
gentlemanelegante os seus vinhos preciosos, pergunta-lhe com insistência:
Então, que tal acha?"45.
O texto mais expressivo desse contraponto é o romance à clefde Taunay,
disfarçado de "Heitor Malheiros": Encilhamento: cenas contemporâneas da Bolsa
do Rio de Janeiro em 1890, 1891, 1892. Carente de elaboração literária, o livro
não descola da matéria que narra, prestando-se admiravelmente como documento da
percepção de um membro da corte deposta acerca da nova sociedade. Ao mesmo
tempo descrição e sintoma.
Taunay traçou galeria de tipos sociais ascendentes com a República: militares e
ricos com lastro, como os cafeicultores paulistas, e, mormente, ricos sem ele,
caso do estrato de "empresários" sem empresas e capitalistas sem capital
surgido com a bolha especulativa de 1890. Somavam-se barões de títulos
forjados, advogados sem banca, militares corruptos, consumidoras frívolas,
coquetes desvairadas, movendo-se como marionetes ao ritmo vertiginoso de
negociatas e boatos, que consolidavam e demoliam instantaneamente empresas e
reputações.
Espantava aos aristocratas acostumados à letargia da sociedade imperial a
intensidade dessa sociedade republicana, que quebrava maneiras e distâncias
aristocráticas:
[...] a construção de palácios de péssimo gosto arquitetônico, jóias,
jóias a mais não poder [...]; tornava-se obrigatória certa
notoriedade, já de bens, já de audácia, já de relações sociais [...].
[...] muita familiaridade; os empregados a apresentarem a mão, [...],
interpelando as habituées pelos nomes do tratamento íntimo e fazendo-
lhes cumprimentos à queima - roupa [...]46.
Esse novo estilo de vida, de "dourados e lantejoulas, tão ao sabor dos
parvenuse rastaquouéres!" suscitava reprovação moral dos monarquistas, que se
expandia para incluir o capitalismo, a busca de lucro, esse "indecorosíssimo e
frenético jogo"-no qual o próprio Taunay perdera sua fortuna.
A indignação contra a proeminência, tanto na sociedade como na política, de
novos grupos sociais, encharcados de valores e atitudes que confrontavam a
tradição imperial, o paralelo entre o brilho da corte e a falta de lustro dos
citadinos, o desprezo para com os emergentes, é tenaz entre os monarquistas de
pena. Aparece, em diferentes modulações, nos escritos de todos os órfãos da
corte, guarnecendo desde manifestos, ensaios e artigos do periódico que,
liderados por Rodolfo Dantas, formaram em abril de 1891, o Jornal do Brasil,
até correspondências e textos íntimos:
[...]a civilização do Brasil acabou com a monarquia[...].Os agentes
principais do governo são os déclassés de todas as classes
[...].enriqueceram também nessa chamadaorgia financeira do Provisório
[...].Os pais desmoralizam-se em companhia com os filhos. Não há mais
respeito nas famílias [...].Tudo que é honesto, sério, normal, em
outros países, está atrofiado - tudo que é instinto torpe, cobiça,
podridão interior, isso sim desenvolve-se e domina a sociedade
[...].uma prostituição[...].. Nada resistiu, nada ficou limpo, e
dessa sociedade assim mexida são as fezes só que se vêem hoje[...]47.
Os escritos dos monarquistas de pena no começo da década de 1890 portam, pois,
críticas à República sobretudo como gênero de sociedade. Reiteram valores
aristocráticos-a honra - para arremeter contra valores burgueses - o lucro: "a
religião dos sentimentos nobres, a altivez da honra, não têm mais
representantes públicos [...]"48.
Apreciação moral, que exprime a experiência vivida por ex-membros da sociedade
aristocrática, inconformados com a supremacia dos estratos sociais ascendentes
com a República e a disseminação de seu estilo de vida. Reação dos
gentlemencontra os parvenus.
A República não é avaliada a partir de estruturas macroeconômicas. O foco vai
para as elites social e política, o modo de vida que ostentam, as idéias que as
orientam, e as decisões de suas lideranças. É uma história de costumes e
personalidades. Assim, Floriano, o positivismo e os militares são demonizados
na exata medida em que a figura de D. Pedro se torna modelar e os políticos
imperiais todos adquirem ares de estadistas.
Os monarquistas de pena dedicaram-se, pois, à contraposição entre a República
jacobina e o Segundo Reinado, ao enaltecimento de símbolos, feitos e líderes da
história imperial e ao combate à ordem e aos símbolos da tradição republicana
em constituição. Suas críticas à República podem ser sumarizadas em três tópos.
O primeiro visava ao repertório de idéiasque orientava a nova ordem:
americanismo e positivismo. O americanismo estaria vinculado a um modo de vida
burguês, que cafeicultores de São Paulo e novos ricos da bolsa de valores
disseminavam e que, supunham, se basearia na ambição, na sede de
enriquecimento. Já o positivismo encaminharia a dessacralização do mundo
público, a ratificação da ciência como princípio condutor das decisões
públicas. Os monarquistas de pena associavam-no a um terceiro estrato de
ascendentes com o novo regime:os militares, a quem atribuíam toda sorte de
incivilidades. Essa substituição de elites sociaisé seu segundo ângulo de
censura. A última tônica diz respeito à forma de conduçãoda República pelos
ascendentes. Aos parvenuspositivistas e jacobinos, acoplavam o formato
militarista e centralista da República, reprovando seu barbarismo e vaticinando
desfecho fratricida e separatista. Em tudo isso expressam o ponto de vista dos
aristocratas sem corte.
O monarquismo de pena foi um decadentismo. Mais do que projetar novo estado de
coisas, exibia atitude blasécom respeito ao presente, ancorada na nostálgica
idealização do passado e num catastrofismo quanto ao futuro. Tratava-se também
de esforço coletivo e deliberado de defender a tradição imperial e o estilo de
vida a ela associado por meio da criação de estereótipos e da narração de uma
versão monarquista do presente republicano e da história nacional. Como
argumenta Tilly49, a maneira usual de narrar histórias de legitimação consiste
em distribuir créditos e maldições, dramatizando "uma divisão moral do mundo
social. " "Estórias" retrabalham e simplificam os processos sociais em
seqüências diretas de causa e efeito, imputadas a agentes sociais concretos,
que são, então, moralmente avaliados. As estórias ignoram complicações,
contradições, oscilações dos agentes e de seus cursos de ação. São sempre
relacionais, mas sua base é uma assimetria nós-eles, em que o primeiro pólo é
digno de crédito e o segundo de maldição. No caso dos monarquistas de pena,
crédito aos líderes do antigo regime, maldição aos do novo.
DA POLÍTICA ÀS LETRAS
Floriano suscitou grande entusiasmo cívico, o jacobinismo, mas também seu
contrário. Em 1892, começou a reação. De republicanos descontentes, em São
Paulo, Minas Gerais e no Mato Grosso, onde surgiu uma efêmera República
Transatlântica, e de monarquistas belicosos. Em fevereiro de 1893, Silveira
Martins, um dos líderes do movimento restaurador50, incendiou o país com a
revolta "Federalista", no Rio Grande do Sul, contra o governo de Júlio de
Castilhos. Em seguida, veio a Revolta da Armada, na Capital Federal,
principiada por um republicano, Custódio de Melo, mas prontamente endossada por
monarquistas da Marinha. O governo então legalizou o estado de exceção,
encompridado nas ruas por "batalhões patrióticos", ocupados em salvar a pátria
com canhões, porretes e baionetas51.
A conjuntura de radicalização política e guerra civil imprimiu mudanças no
debate público. Sumiu sua estruturação simples: monarquistas
versusrepublicanos. Havia agora os florianistas, como Lauro Sodré, Raul Pompéia
e Teixeira Mendes, defendendo a ordem, enquanto monarquistas de corte e
republicanos estarrecidos com os excessos do militarismo - , caso de Rui
Barbosa e do grupo de José Patrocínio-a execravam.
Outra mudança diz respeito à forma. No Império e no primeiro governo da
República, o debate correra em manifestos e panfletos de combate e
proselitismo. Sob Floriano, houve clivagem. Ocupados da política e da guerra,
os florianistas de pena não tinham tempo para ensaios e tratados. O sumo de sua
produção era ainda o panfletismo e o artigo curto de jornal. Neles escoaram o
elogio a Tiradentes, a censura a ícones do Segundo Reinado e brados
nacionalistas e xenófobos52. Artur de Azevedo (1895)53 usou forma breve para
debochar do inimigo, nesse caso o Almirante Custódio de Melo:
Tem uma flor no princípio
O nome do Marechal,
Mas o nome do Almirante
Principia muito mal...
Já os antiflorianistas, constrangidos pela censura, não se arriscaram em
panfletos e jornais. O Jornal do Brasil, monarquista, foi empastelado, assim
como o Cidade do Rio, periódico de José do Patrocínio. Quem carregava nas
tintas contra o governo tinha dois destinos, a prisão, onde foram parar
Patrocínio e sua trupe, ou o exílio, recurso de Eduardo Prado, depois que A
ilusão americana(1893), que delatava o apoio norte-americano a Floriano na
Revolta da Armada, foi apreendido, um dia após ser publicado54.
Textos incisivos só podiam vir de fora, como O imperador no exílio(1893), que
Afonso Celso Junior enviou da Europa. Mas eram, de pronto, respondidos por
republicanos;nesse caso por Felício Buarque, com Origens republicanas: estudos
de gênese política em refutação ao livro do Sr. Dr. Afonso Celso, o Imperador
no exílio, dedicado às "vítimas sacrificadas em defesa da República na
insurreição de 6 de setembro [a Revolta da Armada]" e no qual incensava heróis
republicanos e investia contra os monarquistas e sua divinização de D. Pedro
II. Diante do "perigo de desagregação", Buarqueabraçava "um governo forte,
conciliador e enérgico"55, como o de Floriano.
O panfletismo antigoverno ficou então perigoso e rareou. De fins de 1893 até
1897, as críticas à República se esfumaçaram. Monarquistas de pena desertaram
da crítica incisiva e se refugiaram em biografias, autobiografias, livros de
história e de memória, ensaios. Formas mais seguras de emitir opiniões em
tempos de guerra civil. Embora o assunto ainda seja a comparação entre os
regimes, o comentário do presente ficou oblíquo, via análise de circunstâncias
análogas no passado ou no exterior.
Prudente de Morais foi eleito em 1894, mas a guerra civil seguiu no Sul, e
temia-se que Floriano, vencedor da Revolta da Armada, não passaria o cargo.
Idéia enterrada com a morte do ex-presidente. Mas aí os jacobinos perderam um
líder e ganharam um ícone: o Marechal de Ferro, o Consolidador da República56,
o "fundador da República - o proclamador magnânimo da Nacionalidade", o "grande
iluminado"57.
Então os monarquistas de pena e os de espada arriscaram uma volta. Uniram-se,
ativaram seus jornais e fundaram o Partido Monarquista. EduardoPradocoordenava
esforçosemSão Paulo. Delásaiu, em 15 denovembro de 1895,
dalavradenotóriotradicionalista, JoãoMendes de Almeida, manifesto católico e
antipositivista. Em 12 de janeiro de 1896, foi a vez de os cariocas lançarem o
seu À nação brasileira, redigido por Nabuco-antimilitarista, antiamericanista,
antipositivista. A novidade era o chamamento à Restauração pacífica, via
persuasão de "todas as classes ou pessoas, sem distinção de partidos antigos e
novos". Explorando a cisão entre republicanos, os monarquistas pediam apoio da
nova sociedade que execravam para voltar ao antigo regime.
Sob governo civil, os petardos ao militarismo diminuíram, mas ficou superlativo
o ataque às bases simbólicas de legitimação da República, em particular o
positivismo. Isso aparecia em discursos no Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, ilha intelectual do Segundo Reinado em meio ao mar republicano. Lá,
guardiões da tradição imperial resistiam contra a "conspurcação" de símbolos e
heróis da história nacionalpelos positivistas:
Uma escola religiosa-se se pode dar com propriedade o nome de
religião a uma crença que suprime Deus - mais política em todo caso
do que a religiosa, pretende reduzir a História nacional a três
nomes: Tiradentes, José Bonifácio e Benjamin Constant. [...]A idéia é
que entre Tiradentes e José Bonifácio de um lado e Benjamin Constant
de outro, isto é, entre a Independência e a República, estende-se um
longo deserto de quase setenta anos, a que posso dar o nome de
deserto do esquecimento58.
Nabuco reagiu, "no momento em que o passado nacional corre risco de ser
mutilado" 59, com três livros. Balmaceda(1895) e A Intervenção estrangeira
durante a revolta(1896), umbilicalmente ligados à conjuntura da guerra civil,
emparelhavam virtudes do Império e vicissitudes da República e ambicionavam
vedar a consagração de Floriano como estadista: "A legenda não é só
positivista, é também jacobina [...]"60. Ali desenha-se um Floriano sanguinário
enquanto o líder monarquista da Revolta da Armada, Saldanha da Gama, aparece
como gentlemanda velha estirpe. Já Um estadista do Império: Nabuco de Aráujo,
sua vida, suas opiniões, sua época,escrito durante a guerra civil, edifica
"legenda" alternativa, pelo elogio dos "verdadeiros" estadistas, os do Império.
D. Pedro aparece agigantado na comparação com os chefes republicanos61. O
Segundo Reinado teria sido o "apogeu" da história brasileira, orientado pelo
"espírito de prudência e sisudez, a circunspeção, a nobreza e o patriotismo
desinteressado de um período de funda cultural moral [...] tão diverso do campo
da guerra civil"62.
A quentura da guerra civil não amornara ainda. Em fins de 1896, Prudente de
Morais, doente, afastou-se da presidência. Com seu vice, o jacobino Manoel
Vitorino, voltou o clima de intransigência. Em novembro, o governo federal
enviou tropas contra a insurreição em Canudos, rotulada de monarquista. Logo,
os jacobinos empastelaram redações de jornais monarquistas e o diretor de um
deles, Gentil de Castro, foi linchado no Rio de Janeiro.
A reação só podia vir do exílio, caso das Cartas da Inglaterra(1896), de Rui
Barbosa, e da denúncia de O assassinato do coronel Gentil de Castro, pelo
Visconde de Ouro Preto. Eduardo Prado, dirigindo O Comércio de São Paulo,
cancelou as Notas Políticasde Nabuco e encaminhou os correligionários para a
luta cultural, mais alusiva, como nas celebrações do terceiro centenário de
Anchieta, em 1897. Além de somar outro ícone ao panteão monarquista, era um
meio de apresentar o catolicismo como valor fundacional da nacionalidade, em
revide à religião civil do positivismo: "Não, nós, os católicos, nada temos que
temer do positivismo [...]. [...] o centenário de Anchieta toma o caráter de um
apelo à nossa consciência religiosa [...]"63.
A guerra escrita perdeu o vigor com o apaziguamento da conjuntura política. A
partir de 1897 se desarticularam conjuntamente jacobinismo e monarquismo. O
primeiro, por seus excessos - incluído atentado malogrado contra Prudente de
Moraes - , o segundo, por inanição. Sem apoio armado, sem entusiasmo da
Princesa herdeira, o monarquismo desfaleceu. A eleição de Campos Sales
sinalizou novos tempos, de uma República civil, consolidada. O radicalismo
perdeu espaço e sentido.
O debate intelectual foi ganhando nova tônica, cada vez mais apartado da
política militante. Exaustos de tinta e sangue derramados, monarquistas de pena
e republicanos desalentados selaram a paz. Em encontros na Livraria Garnier,
reuniam-se para dois dedos de prosa sobre assuntos frios, pois a política ainda
era tema melindroso. A literatura brotou como ponto de convergência, graças ao
protagonismo de Machado de Assis, um monarquista platônico. Confluíram para uma
Revista Brasileira, que José Veríssimo relançou em 1895:
[...]vi que o nosso chefe tratava não menos que de criar também uma
República, mas[...]os partidos podiam comer juntos, falar, pensar e
rir, sem atributos, com iguais sentimentos de justiça. Homens vindos
de todos os lados, - desde o que mantém nos seus escritos a confissão
monárquica, até o que apostolou, em pleno Império, o advento
republicano - estavam ali plácidos e concordes, como se nada os
separasse64.
Por cansaço ou fracasso, muitos se insularam da política institucional. Em
1897, ex-reformistas, ex-monarquistas, ex-republicanos, mesmo ex-jacobinos
criaram sua própria República, a das letras. Na Academia Brasileira de Letras,
fundiram suas identidades políticas contrastivas, de monarquista-aristocrata e
de republicano-ascendente, numa identidade compartilhada, a de "intelectuais":
"Os espíritos estavam fatigados da política. Os homens feitos, desiludidos; os
homens novos, enojados. [...] as letras apresentaram-se como o único refúgio do
talento"65.
Formava-se uma nova aristocracia, a do "talento", assim distinguida da
aristocracia de corte e capaz de encapsular arrivistas e desbancados num mesmo
estilo de vida, dedicado à cultura do espírito e destacados da lida política,
vista agora como ocupação menor.
Essa identidade de letrados sobrepujou então as identidades políticas. Ao longo
da década de 1890, porém, esses mesmos homens se valeram da história nacional e
de análises interessadas da conjuntura para produzir duas estórias antagônicas
do presente republicano e do passado imperial. Uma atribuindo crédito à
tradição, outra amaldiçoando-a.
Na longa duração, o saldo foi monarquista. Se os republicanos ganharam a
batalha política do presente, criando instituições e ícones de um novo regime,
os monarquistas venceram a luta simbólica do futuro. Talvez o fato de os
republicanos mais talhados para essa briga, como Alberto Salles, terem
preferido travar outra, fratricida, ou quiçá o refinamento do estilo e da
argúcia dos gentlemencomo Nabuco respondam pela cristalização ulterior da
estória monarquista em historiografia do Império e do começo da República. Essa
versão abasteceu de heróis, imagens, símbolos, citações e tópicas ao menos as
duas gerações seguintes de "interpretações do Brasil"66. Se é certo, como
argumenta Carvalho67, que a década de 1890 foi tempo de montagem de um
imaginário da República, é preciso também considerar o outro lado dessa moeda:
a estilização da sociedade imperial e a estigmatização da Primeira República. O
tóposmonarquista da República como decadência, produzida por parvenus,
positivistas, americanistas, militaristas, em contraste com a "Grande Era
Brasileira", perdurou. Ao passo que ficou esmaecido o sentido primeiro desses
juízos: seu caráter político e de defesa de um estilo de vida ameaçado pela
mudança.
Nos escritos posteriores desses monarquistas, a política ainda alimentou
narrativas nostálgicas, de um tempo em que seus autores eram também atores da
política com P maiúsculo. Homens de corte, lamentaram o fim de uma época em que
tinham sido fidalgos. Elidiram o fato que haviam antes denunciado (caso de
Nabuco e Afonso Celso), do Império repousar sobre a escravidão, e sublinharam
um reinado de temperança, de civilização, de finesse, em chocante contraste com
um presente comezinho, aburguesado, no qual se viram confinados à antecâmara do
grande salão da política. Um tempo que os elegantes só podiam ler como
decadência.
ANGELA ALONSO é professora de sociologia da USP, pesquisadora do Cebrap e
autora, entre outros, de Joaquim Nabuco: os Salões e as ruas(Companhia das
Letras, 2007). Atualmente é pesquisadora visitante na Universidade de Yale e
Fellow da Fundação Guggenheim.
[1] Agradeço os comentários dos membros do GT "Pensamento Social no Brasil", da
Anpocs, e aos participantes do seminário "Nabuco e a República" (USP/Yale,
2008), pelos comentários a versões preliminares desse texto. Este mesmo artigo
foi aprovado para publicação em Prismas-Revista de Historia Intelectual
(Universidad Nacional de Quilmes, Argentina).
[2] Coelho Neto, H. M. A capital federal. Porto: Livraria Chardon, 1915 [1893],
p. 10.
[3] Carvalho, J. M. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil.
São Paulo: Cia. das Letras, 1990.
[4] Há poucas análises nessa direção, como Oliveira, L. L. "As festas que a
República manda guardar". Estudos Históricos, vol. 2, nº 4, 1989; e, tangencialmente, Viotti, E. Do Império à República: momentos
decisivos. SãoPaulo: Grijalbo, 1977. O único estudo de maior
fôlego documental é o de Janotti, M. L. M. Os subversivos da República. São
Paulo: Brasiliense, 1986.
[5] Alonso, A. Idéias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil-
Império. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
[6] Nabuco, J. O abolicionismo.Petrópolis, Vozes, 1988 [1883] .
[7] Salles. A. Política republicana. Rio de Janeiro: Typographia Leuzinger,
1882.
[8] Lemos, M. (org. ). O positivismo e a escravidão moderna.Rio de Janeiro:
Igreja Positivista do Brasil, 1884.
[9] Cf. Alonso, op.cit.
[10] Cf. Alonso, op.cit.
[11] Lessa, R. A invenção republicana.São Paulo: Vértice, 1987.
[12] McAdam, D. , Tarrow, S. e Tilly, C. Dynamics of contention. Nova York:
Cambridge University Press, 2001, pp. 132ss.
[13] Coelho Neto, op. cit, p. 25.
[14] Azevedo, Artur. A capital federal. São Paulo: Martin Claret, 2003 [1897] .
[15] Nachman, R. G. "Positivism, modernization, and middle class in Brazil".
Hispanic American Historical Review, vol. 57, nº 1, 1977.
[16] MachadodeAssis, J. M. A Semana[17/11/1895]. In:Obra Completa.Rio de
Janeiro:Nova Aguilar, vol. 3, 1994.
[17] Salles. Sciencia política.Edição fac-similar. Brasília: Senado Federal,
1891, p. 297.
[18] Havia outros debates, como por exemplo em torno da conjuntura política
(Notas políticas, de Valentim Magalhães, 1891) e econômica (Finanças e política
da República, de Rui Barbosa, 1891).
[19] Azevedo, 7/12/1889, apud Bernardes, M. C. C. "A República em jornais
femininos da época (1889-1890)". Cadernos de Pesquisa/Ceru, vol. 71 nº 20-8,
nov. , 1989.
[20] Cf. Alonso, op.cit. , pp. 75ss.
[21] Mendes, R. T. Benjamin Constant, esboço de uma apreciação sintética da
vida e da obra do Fundador da República Brasileira.Rio de Janeiro: Apostolado
Positivista do Brasil, 1913 [1891], pp. 508 - 9.
[22] Lemos. Undécima circular do Apostolado Positivista do Brasil (ano de
1891).Rio de Janeiro: Apostolado Positivista do Rio de Janeiro, 1892. pp. 26,
31.
[23] Nachman, op. cit.
[24] Vovelle, M. Jacobinos e jacobinismo. São Paulo: Edusc, 2000, p. 25.
[25] Ibidem, pp. 27, 194.
[26] Cf. Alonso, op.cit. , pp. 17ss.
[27] Pagavam subsídio para a manutenção da Igreja, em 1892, 220 indivíduos (cf.
Lemos, Undécima circular do Apostolado Positivista do Brasil, op. cit. ), mas a
assistência aos cultos era maior. Já no declínio da Igreja, em 1904, João do
Rio registrou público de cerca de 700 pessoas (Rio, J. do. "As religiões do
Rio" <www.biblio.com.br/conteudo/PauloBarreto/asreligioesdorio.htm>, 1904).
[28] Rio, op. cit.
[29] Pompéia, R. "Carta ao autor das 'festas nacionais'" (24/03/1893). In:
Coutinho, A. (org. ). Raul Pompéia: escritos políticos. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1982, p. 289.
[30] Auerbach, E. Ensaios de literatura ocidental. São Paulo:Editora 34, 2007,
p. 247.
[31] Sob os títulos "Destinos políticos do Brasil"; "Os acontecimentos do
Brasil"; "Práticas e teorias da ditadura no Brasil".
[32] Nabuco. Porque continuo a ser monarquista. Londres: Abraham Kingdon &
Newnham, 1890, p. 10 (Carta ao Diário do Commercio).
[33] Ottoni, C. B. O advento da República no Brasil.Rio de Janeiro: Typographia
Perseverança, 1890, p. 84.
[34] Prado, E. A ilusão republicana. São Paulo: Alfa - omega, 2005 [1893] .
[35] Topik, S. C. Trade and Gunboats: The United States and Brazil in the Age
of Empire. Nova York/Cambridge: Cambridge University Press, 1997.
[36] Prado, op. cit. , p. 123.
[37] Nabuco. Agradecimentos aos pernambucanos. Londres: Abrahan Kingdon e
Newnhaim, 1891, pp. 4, 15, grifos do autor.
[38] Nabuco, Porque continuo a ser monarquista, op. cit. , p. 14.
[39] Ibidem, p. 15.
[40] Ottoni, op. cit. , p. 119.
[41] Oliveira (op. cit. , p. 12) atenta para artigos de Taunay de teor similar.
[42] Nabuco. Resposta às mensagens do Recife e de Nazaré. Acervo Digital
Fundaj, 1890, pp. 58 - 9.
[43] Ibidem, p. 66.
[44] Idem, Porque continuo a ser monarquista, op. cit. , p. 6.
[45] Prado, op. cit. , p. 92.
[46] Taunay, A. Encilhamento: cenas contemporâneas da Bolsa do Rio de Janeiro
em 1890, 1891, 1892. Belo Horizonte: Itatiaia, 1971 [1893], pp. 189, 34.
[47] Nabuco. Diários(17/10/1893). Ed. E. C. Mello. Recife:Bem Te Vi Produções
Literárias/Massangana, vol. 2, 2005, grifos do autor.
[48] Ibidem.
[49] Tilly, C. Credit & blame. Princeton/Oxford: Princeton University
Press, 2008, p. 90.
[50] Janotti, M. L. M. Os subversivos da República. São Paulo: Brasiliense,
1986.
[51] Para uma descrição das ações jacobinas, ver Reis, S. R. Os radicais da
República. São Paulo: Brasiliense, 1986.
[52] Pompéia, op. cit.
[53] Apud Magalhães Jr. , R. Arthur Azevedo e sua época. Rio de Janeiro:
Saraiva, 1955, p. 89.
[54] Janotti, op. cit. , p. 79.
[55] Buarque, F. Origens republicanas: estudos de gênese política em refutação
ao livro do Sr. Dr. Afonso Celso, o Imperador no exílio. São Paulo: Edaglit,
1962 [1894], p. 206.
[56] Sodré, L. Crenças e opinioes. Edição fac-similar. Brasília: Senado
Federal, 1997 [1896] .
[57] Pompéia. "Clamor maligno" (O País, 3/10/1895). In: Coutinho, op. cit.
[58] Nabuco. "Discurso de recepção, na sessão de 25 de outubro de 1896"
[Instituto Histórico]. In: Escritos e discursos literários. São Paulo/Rio de
Janeiro: Companhia Editora, pp. 105-7. Nacional/Civilização Brasileira, 1939.
[59] Ibidem, p. 109.
[60] Idem, A intervenção estrangeira durante A Revolta de 1893[1896]. In: Obras
completas. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1949, vol. 2, p. 263.
[61] Alonso. "Joaquim Nabuco: o crítico penitente". In: Schwarcz, L. e Botelho,
A. (orgs. ). Um enigma chamado Brasil: 29 intérpretes e um país. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
[62] Nabuco, "Discurso de recepção, na sessão de 25 de outubro de 1896", op.
cit. , p. 108.
[63] Nabuco. "Significação nacional do Centenário Anchietano" [1897]. In:
Escritos e discursos literários, op. cit. , pp. 130 - 31.
[64] Machado de Assis. A semana[17/05/1896]. In: Obra completa, op. cit.
[65] Graça Aranha. Machado de Assis e Joaquim Nabuco. comentários e notas à
correspondência. São Paulo: Monteiro Lobato & Cia, 1923, p. 26.
[66] Oliveira (op. cit. , pp. 13-14) jáchamou a atenção para esse resultado.
[67] Cf. Alonso, op.cit.