Relações Raciais entre Universitários no Rio de Janeiro
Introdução
E
ste artigo pretende contribuir para a discussão das relações raciais de ensino
superior, tema que tem sido objeto de um crescente número de estudos. Nosso
objetivo é examinar a percepção que os estudantes universitários, segundo sua
cor1 e tipo de instituição que freqüenta ' pública ou particular ' têm das
relações raciais na sociedade brasileira, suas elaborações sobre o pequeno
número de negros na Universidade e a eventual adoção das medidas que alteram
este quadro.
A afirmação de que há um "pequeno número de negros na Universidade"
se apóia na literatura sobre o tema que estabelece, de forma inequívoca, as
desigualdades raciais na realização educacional, ainda que se deva considerar
que a porcentagem da população da coorte etária ideal que freqüenta cursos de
nível superior no Brasil esteja significativamente abaixo dessa taxa em outros
países, mesmo aqueles em desenvolvimento (Barcelos, 1999; Moro, 1993; Teixeira,
1998). Entretanto, nos grandes centros urbanos do país já é possível observar o
crescimento dessa participação, o que reflete a expansão do ensino superior nas
últimas décadas no Brasil.
Assim, os dados da PNAD-1990 para a sociedade brasileira como um todo, revelam
que, com escolarização suficiente para ao menos ingressar na Universidade '
doze anos de escolaridade ou mais ' havia 2,1% de homens pretos e 2,8% de
pardos, enquanto os números para mulheres pretas e pardas eram,
respectivamente, 2,5% e 3,2%. No Rio de Janeiro, esses índices sobem para 3,1%
de homens pretos e 6,3% de pardos e 2,5% de mulheres pretas e 5,6% de pardas, e
justificam o interesse em investigar a trajetória escolar e os padrões de
escolha de carreira de negros (pretos e pardos) e brancos no Rio de Janeiro.
Justificam, igualmente, o interesse nos padrões de sociabilidade entre negros e
brancos cursando nível superior. Neste sentido, torna-se particularmente
interessante abordar a percepção que têm os estudantes de ensino superior a
respeito das relações raciais no Brasil.
A pesquisa na qual a presente análise se baseia foi realizada entre estudantes
de alguns cursos selecionados em duas universidades ' uma pública, outra
privada ' na Área Metropolitana do Rio de Janeiro. A pesquisa constou de duas
fases: na primeira, os estudantes responderam a um questionário; na segunda,
foram realizadas entrevistas em profundidade com alguns deles. No que diz
respeito ao objeto de análise do presente estudo, havia no questionário cinco
perguntas sobre percepção das relações raciais na sociedade brasileira. Os
temas destas perguntas foram aprofundados nas entrevistas.
A partir do material coletado, identificou-se, em geral, uma tendência desse
segmento da população em reconhecer a existência da discriminação na sociedade,
mas não na Universidade. Da mesma forma, há uma baixa adesão à idéia de se
promover políticas de ação afirmativa que beneficiem os negros, embora a
clivagem entre estudantes das universidades pública e particular seja mais
marcante do que a diferença entre os grupos raciais.
É importante salientar que a abordagem desses temas neste segmento da população
se torna ainda mais significativo em função do momento presente. Um observador
da sociedade brasileira certamente notará que a discussão acerca das relações
raciais contemporaneamente tem se tornado mais presente enquanto tema de debate
nacional. Um dos temas mais recorrentes é, sem dúvida, a realidade educacional.
Foco de grande atenção entre os ativistas políticos ligados ao movimento negro
e de pesquisadores das mais diferentes áreas, o sistema educacional encontra-se
relacionado a dois outros aspectos da questão racial ' que igualmente têm
despertado interesse crescente: (1) as estratégias e mecanismos de ascensão
social, bem como os obstáculos a esta ascensão; (2) as possibilidades de
implementação de políticas públicas de cunho reparador das desigualdades
raciais. Certamente, analisar a percepção de um segmento da população que se
encontra com elevado nível de escolarização é um elemento importante nesta
discussão.
Contextualizando o Problema
Não há dúvida de que o enfoque sobre as relações raciais na sociedade
brasileira tem mudado, e muito, nos últimos anos. Agências governamentais e
programas específicos no âmbito dos governos federal, estadual e municipal são
criados. É a sociedade brasileira, e mais especificamente o Estado brasileiro,
enfim, respondendo à desconstrução do "paraíso racial". Obviamente,
fundamental neste processo tem sido a atuação do movimento negro como ator
político. Podemos identificar eventos como os Encontros de Negros do Norte e
Nordeste, realizados ao longo da década de 1980, o Encontro Nacional de
Entidades Negras, realizado em São Paulo, em 1991, a Marcha dos 300 Anos de
Zumbi, realizada em Brasília, em 1995, como momentos que marcam o
fortalecimento da mobilização política em torno da questão racial. Não é este o
momento para fazer uma detida análise da mobilização racial, mas é importante
ressaltar que, como já foi feito em Barcelos (1996), essa mobilização no Brasil
se constitui na manipulação de diversos símbolos na luta pela cidadania, em uma
cultura política que se caracteriza pela pouca receptividade à afirmação de
identidades particulares.
A atenção a este elemento fundamental da cultura política brasileira é
importante em um momento em que refletimos sobre a questão das políticas
públicas de combate às desigualdades raciais. Como salientam alguns estudos
(Bernardino, 1999; Dossiê Ações Afirmativas, 1996; Souza, 1997; Heringer, 1999;
Bento, 2000), tratam-se das possibilidades e limitações de ações que têm como
fim a igualdade de realização, não apenas a igualdade formal de oportunidades,
mas que trata os grupos sociais de forma discriminada. As dificuldades dessas
ações vão desde a ordem jurídica, até a legitimidade social de tais medidas. De
qualquer forma, as propostas de ações afirmativas vêm ao encontro (ou seria de
encontro?) às reivindicações históricas do movimento negro por medidas que
estanquem os mecanismos de reprodução das desigualdades raciais. Guimarães
(1999:166) considera que o debate sobre políticas públicas de caráter reparador
das desigualdades raciais ainda se encontra restrito a organizações do
movimento negro e a alguns espaços acadêmicos, tendo se ampliado mais
recentemente por iniciativa do Governo Federal.2 Ainda assim, várias
iniciativas de cunho reparador das desigualdades raciais, especialmente na
esfera educacional, têm sido implementadas, e conforme observa Moehlecke
(2000), o fato de essas iniciativas estarem circunscritas a organizações da
sociedade civil, sejam elas organizações do movimento negro ou empresas
privadas, é um dado a mais para reflexão. Em seu cuidadoso levantamento, a
autora classifica em três tipos as ações voltadas para a inclusão da população
negra no ensino superior no Brasil. São eles:
a) as aulas de complementação, que envolveriam os cursos pré-
vestibulares de verão e/ou de reforço durante a permanência do
estudante na faculdade; b) o financiamento dos custos para o acesso e
permanência nos cursos, envolvendo o custeio da mensalidade de
instituições privadas, bolsas de estudos, auxílio moradia,
alimentação e outros; c) as mudanças no sistema de ingresso nas
instituições de ensino superior, através do sistema de cotas, taxas,
metas e outros. (ibidem:73)
Além do seu alcance e conteúdo, as iniciativas de combate à exclusão envolvem
questões que dizem respeito à legitimidade de medidas de caráter particular.
Fry (1991), ao analisar a emergência do comportamento chamado politicamente
correto em contextos sociais diferentes, sugere pistas interessantes para a
compreensão da implementação de políticas públicas específicas para um segmento
da população. Comparando ex-colônias portuguesas e britânicas, o autor sublinha
que nos Estados Unidos, por exemplo, a promoção de políticas com vistas a
contemplar representativamente a composição étnico-racial e sexual da
população, visando proteger as "minorias", encontra-se articulada com
a noção de diferença. Por outro lado, no Brasil haveria a dificuldade em
utilizar a filiação étnico-racial ou de gênero como princípios distintivos para
discriminação. Neste caso, a condição socioeconômica mantém-se como instância
paradigmática da diferença. Nesta perspectiva, nas universidades dos Estados
Unidos o florescimento da concepção de multiculturalismo é celebrado; em
contraposição, nas universidades brasileiras, a ênfase recai sobre a
universalidade.
Podemos perceber, nos dados agregados e nas entrevistas, como essas temáticas
perpassam a experiência dos estudantes e sua percepção das relações raciais no
Brasil. Trata-se de um interessante flagrante das elaborações de um importante
segmento da sociedade.
Metodologia e Algumas Questões Suscitadas pelo Trabalho de Campo
Instrumento de pesquisa, o survey e as entrevistas
Elaboramos como instrumento de pesquisa um questionário dividido em cinco
seções, a saber, Identificação, Família e Residência, Renda Familiar, Educação
e Comportamento.
3 Os questionários foram respondidos pelos próprios alunos na presença de um
pesquisador. Utilizamos a abordagem direta na seleção dos entrevistados, tendo
participado alunos dos turnos diurno e noturno. Aplicamos os questionários
entre outubro de 1998 e agosto de 1999, perfazendo um total de 1.306
questionários respondidos. O preenchimento do questionário dependeu de
autorização das direções das universidades e/ou departamentos, e de
entendimentos diretos com um professor que cedia parte do tempo de aula para
que os alunos respondessem. Apenas vinte questionários devolvidos foram
descartados por revelarem preenchimento impróprio. (Desses vinte questionários,
três foram preenchidos por alunos estrangeiros.)
Na segunda fase da pesquisa, durante o segundo semestre de 1999 e os meses de
janeiro e fevereiro de 2000, foram realizadas as entrevistas gravadas com os
estudantes, além das respectivas transcrições das mesmas. Durante o
preenchimento do questionário, 499 estudantes se dispuseram a participar da
segunda etapa. Deste total, com base nas questões sobre a classificação racial,
particularmente a questão aberta, selecionamos cem questionários, sendo que
noventa deles se autoclassificaram em uma das seguintes categorias: negro,
preto, pardo, mulato, mestiço e moreno; os outros dez se autoclassificaram como
brancos. Para a realização das entrevistas, fizemos contato com cerca de
noventa estudantes, dos quais obtivemos retorno de cinqüenta, sendo realizadas
23 entrevistas. As dificuldades para contatarmos os estudantes foram em
decorrência do preenchimento incompleto da seção solicitando dados individuais,
tais como: ausência do número da residência, do nome do logradouro ou bairro, e
ainda telefones onde as pessoas não se encontravam e mudança de endereço.
Grande parte das entrevistas foi realizada nas dependências das universidades.
Outros lugares escolhidos pelos entrevistados foram a residência, o local de
trabalho e, ainda, as dependências do Centro de Estudos Afro-Asiáticos. Buscou-
se, em primeiro lugar, contemplar a grande parte dos entrevistados que se
autoclassificaram como negros/pretos e, em seguida, demos prosseguimento à
pesquisa com aqueles que se autoclassificaram a partir de outras categorias
tais como: pardo, moreno, mulato, mestiço e branco. Quanto à idade e ao sexo,
os entrevistados tinham entre dezoito e quarenta anos, quinze mulheres e sete
homens, todos moradores em diferentes bairros do Rio de Janeiros e de outros
municípios do estado.
Seleção das universidades e cursos
Considerando as circunstâncias de tempo e recursos disponíveis para a pesquisa,
uma etapa indispensável para a realização da mesma seria a seleção das
universidades e cursos que comporiam nosso universo de pesquisa. Procuramos,
então, obter dados que caracterizassem o universo do ensino superior no Rio de
Janeiro. Consultando uma publicação especificamente dedicada aos vestibulandos,
o Guia Abril do Estudante 1998, encontramos referências ao conjunto das
instituições de ensino superior, números de vagas, cursos, e relação candidato/
vaga para as carreiras. (Vale a pena ressaltar que obtivemos do Serviço de
Ensino Superior do Ministério da Educação, em agosto de 1997, uma listagem dos
cursos de ensino superior, com suas respectivas instituições mantenedoras, mas
a mesma revelou-se desatualizada e incompleta.) Os dados obtidos nessa
publicação, complementados, em alguns casos, por consultas por telefone aos
setores das universidades responsáveis pela seleção e inscrição dos estudantes,
orientaram nossa escolha das universidades e cursos que seriam objeto da
pesquisa. Entre as universidades listadas, deveríamos escolher uma pública e
uma particular, consoante com o objetivo da pesquisa de comparar instituições
dos dois tipos. Quanto à universidade pública, escolhemos aquela em que não
tínhamos conhecimento de estudos sobre essa temática na universidade.
Considerando que o perfil do alunado tende a estar relacionado com o padrão de
segmentação urbana em termos socioeconômicos, procuramos identificar uma
universidade particular que não estivesse localizada na mesma área geográfica
da universidade pública escolhida. Assim, escolhemos uma universidade situada
em um município limítrofe ao do Rio de Janeiro, na Área Metropolitana do Grande
Rio.
4
Para escolhermos os cursos a serem pesquisados, elaboramos os quadros dos
cursos mais oferecidos e mais procurados (relação candidato/vaga) no Brasil e
no Rio de Janeiro. Consideramos esse procedimento mais adequado do que
investigar os cursos que são considerados informalmente, já que há poucos
estudos a respeito, e nenhum tomando como objeto as universidades selecionadas,
como tendo maior número de alunos negros. Os cursos correspondem, portanto, a
dois grupos distintos: os cinco cursos mais procurados, nos quais se verificam
as mais altas taxas da relação candidato/vaga, e os cinco cursos mais
oferecidos, ou seja, os cursos que podem ser encontrados em um maior número de
instituições de ensino superior. Os cursos mais procurados no Rio de Janeiro
são: Medicina, Comunicação,5 Odontologia, Engenharia e Direito; os cursos mais
oferecidos no Rio de Janeiro são: Engenharia, Ciências Contábeis, Pedagogia,
Letras e Administração. Elaborando uma lista dos cinco cursos mais oferecidos e
dos cinco mais procurados, chegamos ao total de nove cursos,6 quais sejam,
Administração, Ciências Contábeis, Comunicação, Direito, Educação, Engenharia,
Letras, Medicina e Odontologia. Nesses cursos procuramos entrevistar os alunos
dos primeiro e segundo períodos.
Diário de campo
Gostaríamos de registrar algumas ocorrências relacionadas ao trabalho de
aplicação dos questionários e entrevista dos estudantes. Esses acontecimentos
não chegam a se constituir em questões a serem detidamente problematizadas,
mas, sem dúvida, ilustram relevantes tópicos envolvidos no fazer pesquisa sobre
relações raciais no Brasil.
Obviamente, nossas observações começam pelo momento da aplicação do
questionário, que nos levou a contatar os dirigentes e os professores das duas
universidades. Inicialmente, devemos registrar a receptividade de dirigentes e
professores das duas universidades onde aplicamos os questionários. Devido às
características das duas instituições, na universidade pública tivemos que
contatar um número maior de dirigentes, uma vez que as unidades da instituição
(departamentos, escolas etc.) são bastante autônomas nas suas rotinas
operacionais, e não é vista como necessária a autorização dos dirigentes no
topo da hierarquia institucional para a aplicação de um questionário. Por seu
turno, os contatos iniciais na universidade particular com os diretores de uma
das unidades da instituição nos encaminharam imediatamente ao pró-reitor de
Graduação.
Como seria de se esperar, todos os dirigentes pediram para ver o questionário
que aplicaríamos. Os da universidade pública raramente fizeram alguma objeção
ao conteúdo do questionário, chegando mesmo a enfatizar o compromisso da
universidade com a prestação de contas à sociedade através da acolhida a
pesquisas que buscassem até mesmo avaliar a instituição. O pró-reitor de
Graduação da universidade particular, no entanto, apresentou questionamentos à
pergunta que sugeria que há poucos negros na Universidade. Entretanto, a
argumentação com os achados da literatura sobre desempenho educacional dos
grupos raciais foi o bastante para persuadi-lo.
Com a expectativa de que pudéssemos dispor, no futuro, de dados sobre todo o
corpo discente da universidade, e dos candidatos ao vestibular, dirigimo-nos ao
diretor do Departamento de Seleção, unidade responsável por ministrar o
concurso vestibular. Mais uma vez, esse dirigente também foi extremamente
atencioso e colocou à nossa disposição dados do questionário socioeconômico
aplicado aos inscritos no vestibular. Solicitamos, então, a inclusão do quesito
raça/cor no questionário. Em um encontro subseqüente, entretanto, esse
dirigente nos informou que tinha conversado a respeito com um outro dirigente
da universidade, que ele não especificou quem seria, que teria observado que a
inclusão de tal quesito seria ilegal, uma vez que poderia servir eventualmente
para práticas discriminatórias. Com essas observações gostaríamos apenas de
ilustrar como a mera obtenção do dado racial ainda constitui um evento
extraordinário no Brasil, ao mesmo tempo em que é uma realidade facilmente
identificável. É interessante observar que vários professores da universidade
pública, em conversas informais, nos indicavam os cursos em que deveríamos
aplicar os questionários em função de, segundo a percepção desses colegas, tais
cursos teriam um maior contingente de alunos negros.
Quanto ao preenchimento do questionário, o registro da categoria racial
suscitava comentários jocosos dos estudantes, embora, como podemos atestar ao
analisar as respostas, essa circunstância não tenha afetado negativamente a
qualidade dos dados obtidos. Vale a pena observar que os alunos da universidade
pública questionaram mais freqüentemente o pesquisador que estava aplicando o
questionário quanto ao caráter presumidamente "racista" das questões
que abordavam a presença de negros na universidade. Essa reação não foi
observada na universidade particular.
Por último, gostaríamos de registrar a existência do "Provão" ' exame
de avaliação, instituído em 1996, de concluintes de alguns cursos de nível
superior, supostamente a ser estendido a todos os cursos ' como uma
circunstância externa que afetou a realização da pesquisa. Na universidade
pública, os alunos dos cursos que obtiveram bons resultados no então mais
recentemente ministrado"Provão", em alguns momentos articulavam o
preenchimento do questionário com o resultado obtido nesse exame. Era como se
preencher o questionário se impusesse como uma legitimação adicional ao bom
resultado alcançado. Por outro lado, o dirigente dos cursos da área médica da
universidade particular se mostrou hostil à realização da pesquisa, associando
a coleta de dados à divulgação de resultados adversos à universidade.
A Percepção das Relações Raciais em Dados
Antes de analisarmos as experiências e percepções dos estudantes pesquisados, é
necessário olharmos o perfil dessa população. A Tabela_1 apresenta a
distribuição da população pesquisada segundo os cursos e universidades.
Observa-se que os maiores contingentes participando da nossa amostra são de
alunos dos cursos de Engenharia, Pedagogia, Letras e Direito. A proporção de
alunos do curso de Medicina é uma surpresa, uma vez que esse curso oferece
poucas vagas anualmente. Quanto à faixa etária, os alunos se distribuem por uma
faixa que vai dos 16 aos 54 anos. Entretanto, 80,2% dos participantes têm
idades entre 17 e 24 anos, a idade considerada típica para freqüentar curso de
nível superior. Essa distribuição nos dá um parâmetro para avaliação entre a
população do survey e a população geral, através da comparação com os dados da
PNAD-1998.
Em relação ao sexo, a maioria da população em nosso survey é de mulheres,
enquanto, segundo a PNAD, a proporção de mulheres na faixa etária dos 16 aos 54
anos com doze anos de estudos ou mais cai para 42,4% (Tabelas_2 e 2.1).
De forma similar, em nosso survey o total de brancos é abaixo da proporção
desse segmento no total da população, respectivamente, 69,3% e 84,8% (Tabelas_3
e 3.1).
Esses dados nos indicam que a população em nosso survey é mais feminina e negra
do que a população em geral com escolaridade similar na mesma faixa etária.
Entretanto, devemos lembrar que os dados da PNAD dizem respeito ao conjunto da
população do Estado do Rio de Janeiro, inclusive da área rural, embora o Estado
do Rio seja essencialmente urbano. Por outro lado, nosso survey reflete uma
realidade regional mais circunscrita. Esses dados sugerem que, apesar da
limitação dos nossos dados em função da seleção de universidade e cursos
pesquisados, são relativamente maiores as chances de um negro atingir um curso
de nível superior na região do Grande Rio.
A Tabela_4 revela a distribuição por tipo de estabelecimento, segundo a
filiação racial, dos alunos de nível superior, comparando uma instituição
pública e uma particular. Documenta-se, assim, pela primeira vez na literatura
sobre relações raciais e educação no Brasil, o maior "enegrecimento"
de uma instituição de ensino superior particular, vis-à-vis uma instituição
pública. Enquanto na pública os alunos brancos chegam a compor três quartos do
corpo discente, na particular essa proporção cai para um pouco menos da metade.
Vale a pena observar que permitimos também que os alunos identificassem sua cor
através de uma questão aberta. Apesar de uma relativa dispersão por um total de
dezessete termos, as respostas "branca" (70,7%), "parda"
(10,2%), "morena" (10,1%) e "negra" (4,5%) concentram a
grande maioria da preferência, atingindo em conjunto 95,5% das opções dos
entrevistados.7
Tendo esboçado o perfil da nossa população, podemos nos dedicar ao exame das
questões que se remeteram especificamente à avaliação dos estudantes sobre sua
convivência na universidade e suas percepções das relações raciais e opinião
quanto à eventual adoção de medidas de combate às desigualdades raciais.8
Primeiramente perguntamos como os estudantes avaliam sua relação com os colegas
e com os professores. Analisando os dados das Tabelas_5 e 6, constatamos que é
bastante alta a avaliação positiva pelos alunos de ambos os tipos de interação.
Entretanto, enquanto não se nota grande diferença na avaliação que alunos
negros e brancos das duas universidades fazem da sua relação com os colegas,
nota-se alguma diferenciação, por universidade, da avaliação da relação com os
professores. Brancos e negros da universidade particular apresentam índices
mais altos de avaliação positiva da relação com os professores do que seus
colegas na universidade pública. Por exemplo, 81,8% dos alunos negros da
universidade particular avaliam a sua relação com os professores como
"excelente" ou "boa", enquanto na universidade pública esse
contingente cai para 73,7%. (Os índices para os alunos brancos são 90,7% na
universidade particular, e 80,2% na pública).
Um outro conjunto de questões explorado em nossa pesquisa diz respeito à
percepção dos estudantes quanto às relações raciais no Brasil. Distinguimos
entre a percepção desse tratamento na sociedade em geral e na universidade em
particular. De forma geral podemos afirmar que é grande a percepção de que
ocorre com certa freqüência o tratamento diferenciado para brancos e negros na
sociedade brasileira, conforme revelam os dados da Tabela_7. Não ultrapassa
1,5% a proporção dos que acreditam que "nunca" ocorre tratamento
diferenciado entre negros e brancos na sociedade brasileira. Chama a atenção o
relativamente alto índice de negros da instituição particular que indicaram a
opção "sempre", notando-se que essa percepção é maior entre os negros
de ambas as universidades do que entre seus colegas brancos.
Curiosamente, ocorre uma inversão na distribuição dos índices na Tabela_8 que
indica a resposta sobre a existência de tratamento diferenciado especificamente
na universidade. A tabela fica mais "pesada" na extremidade da escala
de opções apresentada aos estudantes que apontam para a existência de
tratamento diferenciado entre negros e brancos no espaço universitário como
algo excepcional. Ainda assim, os negros tendem a apontar com mais freqüência a
ocorrência de tratamento diferenciado. Entre os brancos da universidade
pública, apenas 7,0% acredita que negros e brancos sejam tratados de forma
diferente "sempre" ou "quase sempre"; entre os negros da
universidade particular esse percentual sobe para 17,9%.
Deve-se acrescentar, como podemos observar com base nos comentários ao
questionário feitos pelos alunos, a formulação "tratamento
diferenciado" foi amplamente entendida como eventos de racismo e
discriminação. Nesse sentido, podemos afirmar que começa a dar sinais de
exaustão a crença generalizada da sociedade brasileira como um "paraíso
racial" (Entretanto, essa nova compreensão não se viabiliza pela total
substituição por uma visão conflituosa das nossas relações raciais, como
veremos a seguir com o material qualitativo).
Indagamos também sobre quais causas os estudantes apontariam como responsáveis
pelo pequeno número de alunos negros nas universidades. A Tabela_9 apresenta as
respostas dos estudantes segundo o tipo de universidade (a pergunta solicitava
que fossem indicadas até três causas, em ordem de importância. A tabulação dos
dados considerou apenas o total de causas apontadas). Causas econômicas e uma
suposta decadência da escola pública são amplamente apontadas como as
principais causas para a exclusão do negro do ensino superior em ambas
universidades. Discriminação também foi apontada como causa para essa exclusão,
embora em menor medida pelos alunos da universidade particular. Como vemos,
causas externas ao indivíduo foram apontadas majoritariamente como os
principais fatores de exclusão dos negros ' 89,3% dos alunos da universidade
pública e 73,0% dos alunos da particular. Entretanto, não deixa de causar certa
surpresa e preocupação que pouco mais de um quarto dos alunos da universidade
pública tenham apontado desinteresse e maior aptidão para atividades culturais
e esportivas dos negros como explicação para o pequeno contingente de negros
que atingem o curso universitário.
Ainda que possamos constatar, como sugerimos anteriormente, a relativa falência
do mito da democracia racial, certamente ainda não podemos anunciar um apoio
majoritário a medidas que procurem corrigir as desigualdades raciais. À
indagação sobre o tipo de medidas que poderiam ser adotadas para aumentar o
número de negros na universidade a grande maioria dos estudantes escolheu a
opção "medidas que beneficiem todas as pessoas carentes" por oposição
à opção "medidas que beneficiem especificamente os negros" (Tabela
10). Há dois aspectos que merecem destaque na análise desses dados. Por um
lado, o maior apoio a medidas específicas para negros é registrado entre os
alunos negros da universidade particular, ao mesmo tempo em que entre os negros
da universidade pública esse apoio é menor do que entre os brancos dessa mesma
universidade. Por outro lado, nota-se que a clivagem mais marcante é entre
alunos da universidade pública e da particular, independentemente do grupo
racial. Em outras palavras, os alunos da universidade particular são mais
inclinados a apoiar a adoção de medidas que beneficiem especificamente os
negros como forma de atacar o problema das desigualdades raciais no ensino
superior no Brasil.
A Percepção das Relações Raciais nas Falas
Na interpretação de sua experiência o(a) entrevistado(a) articula reflexão
(contém uma análise sobre a experiência vivida) e evocação (transmite a
dimensão subjetiva einterpretativa do sujeito). Contudo, não cabe aqui
enfatizar a história individual; dada a fragmentação das narrativas, tomamos,
neste texto, as elaborações discursivas como unidade de análise.9 Optamos por
este procedimento por considerar que as noções de história de vida e memória
não se encaixam como métodos analíticos diante de apenas uma entrevista, sobre
apenas a trajetória escolar. Referimo-nos ao debate sobre depoimento individual
em relação ao grupo, aspectos vividos e reconstrução dos acontecimentos
históricos.10 Consideramos o conteúdo dos depoimentos como elaboração dos (as)
entrevistados (as) acerca dos temas tratados. Não foi nossa intenção
reconstruir as trajetórias individuais.
As Questões Suscitadas
Utilizamos as respostas ao questionário como base para a abordagem
quantitativa. Os temas privilegiados foram: 1) trajetória escolar, articulada
com a filiação racial do indivíduo (questão cor aberta); e 2)
comportamento.11
Como se tratavam de entrevistas abertas, diante das questões formuladas, a
partir das respostas dadas, outros questionamentos foram feitos com intuito de
alcançarmos as recorrências e singularidades que informam os discursos
socialmente produzidos por este segmento específico da população. Com efeito,
foram priorizados para análise neste artigo, aspectos relativos à percepção do
racismo, concepções acerca das relações entre negros e brancos como também
expectativas de negros e brancos com relação ao curso superior. As questões
enunciadas acima parecem ser indicativas da complexidade da temática racial na
sociedade brasileira. Diante disso, as entrevistas podem indicar como
determinados indivíduos articulam diferentes categorias apontando para a
classificação de cor e representações a cerca da concepção de raça em
interseção com o ensino superior no Brasil.
Nessa perspectiva, elaboramos os tópicos citados abaixo e as elaborações
discursivas serão referenciadas a partir desses tópicos. Nesse artigo serão
apenas focalizadas, através de trechos extraídos das falas, as referências
sobre discriminação racial e promoção de políticas de ação afirmativas.
O Elemento Racial na Experiência Escolar Inicial
A primeira referência à discriminação racial, para indivíduos que se
autoclassificam como negros, remete à infância, mais especificamente à entrada
na escola. Essas lembranças são também explicitadas de forma direta.
1) P: E quando você era criança, na primeira escola, você tinha boas
relações com seus amigos e professores?
R: Sempre tive boa relação com meus amigos, com os professores, com
tudo mundo, mas, quando eu era criança, sofri muito preconceito.
Porque eu era criança e eu sempre ouvia: "Preto é ladrão",
sempre ouvia isso. Uma vez eu fiz um teste, uma prova para uma escola
e fui aprovada, e no dia da matrícula não me aceitaram pelo fato de
meu pai ser negro.
P: E quem foi fazer [a matrícula]?
R: É, ele e minha mãe.
P: E em algum momento falaram isso?
R: Mais ou menos, não falaram explicitamente, deixaram assim... e
acabou que eu não fui, nem fui para essa escola [...].
2) P: Como foi o relacionamento com seus amigos de escola, no segundo
grau, e como é agora na faculdade?
R: Quando criança eu fui muito discriminada, sempre tinha aquelas
piadinhas. Quando eu era criança eu acho até que eu criei uma certa
aversão a homens claros por causa disso, de uma certa forma. Eu acho
que são coisas que você leva para a vida.
Percepção do Racismo: Confronto e Negociação
A respeito da percepção de discriminação e racismo na sociedade em geral, e na
Universidade em particular, obtivemos um grande número de respostas em que o
racismo emerge como discurso indireto e sob a forma de anedota, como no trecho
a seguir.
1) P: Você nunca viu discriminação no espaço da universidade?
R: Eu cheguei a presenciar sim, uma vez estávamos em um barzinho aqui
perto, era até de manhã, por volta de uma e meia, duas horas, aí
tinha uns colegas lá contando piadas de negro, de repente passou um
rapaz negro, eles disfarçaram, e depois começaram a rir do cara. Ele
não percebeu, mas tinha que ter percebido e dar uma sova nos caras.
O discurso direto encontra-se associado a casos específicos, como nos momentos
de conflito, nas referências à boa aparência como exigência no mercado de
trabalho, e nas revistas e desconfianças de guardas de segurança de lojas de
departamentos.
1) P: E entre negros e brancos, você sabe se são tratados de formas
diferentes na sociedade brasileira?
R: Eu acho, na faculdade eu não vejo nada não, mas na sociedade
brasileira sem dúvida.
P: Por que?
R: Infelizmente ainda tem muito preconceito e a gente tem que tentar
acabar com isso.
P: E me conta uma situação?
R: Uma situação que aconteceu com minha prima há pouco tempo. Minha
prima estava lá na Americanas, quando ela entrou o segurança veio
atrás dela e chegou para ela e disse ' o segurança era negro ', e
disse: "Sua neguinha, você roubou", e não sei o que.
Falando que ela tinha roubado, ela começou a bater boca e entrou na
justiça contra o segurança.
P: Ela entrou na justiça?
R: Entrou.
P: Contra o racismo?
R: O cara já foi mandado embora das Lojas Americanas.
2) P: A gente perguntou se você acha que negros e brancos são
tratados de forma diferente [na universidade], você respondeu que
era, às vezes, por que?
R: Eu acho assim, não digo entre professor e aluno, que eu nunca vi
esse tratamento, mas eu acho que certas pessoas ainda são
preconceituosas, então, talvez excluam os negros do seu grupinho, de
pessoas que conversam. Existe isso aqui dentro. Eu não vejo tão
grande, mas certas pessoas eu vejo que ainda têm algum preconceito,
acho que ainda têm.
P: Aqui na [universidade pública]?
R: Aqui na [na universidade pública]. Mais alunos e tal, entendeu?
Tipo, vamos dizer, numa discussão, assim, numa briga, você ainda
escuta, "ah, pô, seu crioulo", qualquer coisa assim,
entendeu? Então, isso pra mim já é um tipo de preconceito. Mesmo que
seja, assim, num momento de raiva, num momento de futebol, ainda você
escuta esse tipo de coisa. Então, acho que ainda existe.
P: Aqui, você percebe?
R: É, sei lá, algum esporte, alguns jogos que você tem, num momento
de raiva assim, quando há uma discussão, você ainda escuta alguém
falar, "ah, pô, seu crioulo, seu negão, não sei o que, e
tal...". Acho que isso já é um tipo de preconceito. [...] entre
alunos. Entre professor eu nunca vi. Eu, particularmente nunca vi.
Mas entre alunos já vi. Aí... não é, assim, tratamento diferenciado
no dia-a-dia. Alguma coisa, assim, que leva uma pessoa à raiva,
alguma discussão, alguma briga entre essas duas pessoas, você ainda
escuta, aqui dentro, alguma pessoa falar isso. Então, isso eu já acho
é algum tipo de preconceito, porque quando você, sabe, discute com um
branco, alguma coisa assim, ninguém fala "ah, seu brancão",
né? Então, eu acho que já é um tipo de preconceito. Mas, já vi nesses
casos, entendeu? No caso de briga, durante alguma coisa assim, alguma
briga entre duas pessoas, uma de pele clara, outra de pele escura já
escutei isso. Mas entre professor e aluno nunca vi não.
Deve-se ressaltar que ao se pronunciarem sobre eventos de discriminação e as
causas das desigualdades raciais dois "espaços-territórios" são
evocados: os "Estados Unidos" e a "favela". A visualização
do racismo passa pela suposição de que a cristalização do racismo se encontra
nas relações sociais extraídas da experiência dos negros norte-americanos. Da
mesma forma, a favela, no Brasil, seria o "espaço", por definição, de
negros.
1) P: Voltando à questão racial, você acha que nesse sistema de
empresas públicas boas se fazem concursos, então, não vê cor ali, se
o cara for capaz ele entra?
R: É, eu nunca entrei pra ver como é que é, mas acho que seja assim.
P: Então, uma empresa privada não é assim, tem entrevista.... Como é
que você avalia que fica a questão do negro.
R: É, aí depende da empresa. Porque você também vê, quando você vai
procurar alguns empregos um dos requisitos é ter boa aparência. Aí
depende daquela empresa, o que ela acha, o que é boa aparência: se é
uma pessoa com unha cortada, cabelo cortado, se é uma mulher
maquiada, ou se já é o sistema de cor; se é uma pessoa da cor negra,
se é uma pessoa da cor branca, aí acho que depende da empresa. Como
eu ainda não trabalhei numa empresa particular, eu não sei como é o
esquema. Das poucas que eu conheço, acho que não vejo tanto isso.
Porque o meu tio trabalha, tem uma empresa de telecomunicações
pequena, e tal, mas... eu vejo lá, ele não tem esse problema,
entendeu? Não sei se são todas as empresas. Acho que, talvez, em
empresa de pequeno e médio porte, acho que não haja problema nenhum.
Talvez exista, não sei porque eu nunca trabalhei, não posso afirmar,
mas eu acho que talvez exista; uma empresa multinacional, talvez,
tenha alguma exclusão contra a cor negra, aí eu não sei informar
exatamente, mas acho que talvez exista, né? Ainda tem tantas pessoas
preconceituosas que nem são tão poderosas quanto pensam que são, e
são preconceituosas. Imagina aquele presidente de uma empresa
multinacional, não sei afirmar, mas talvez tenha, né?
2) P: Quais são as principais razões para a pouca presença de negros
nas universidades?
R: Porque é um círculo vicioso, na medida que o negro, por um lado...
o negro não foi inserido de forma justa na sociedade [em comparação
com os Estados Unidos], aqui houve uma abolição disfarçada. Apesar de
oficialmente o negro não ser escravo, os negros, na maioria,
continuaram escravos para poderem sobreviver nas cidades. Então, com
essa abolição mal feita gerou o crescimento das cidades, o
desenvolvimento das cidades, dos centros urbanos... uma condição que
o negro continuava essencialmente segregado nas favelas. E nas
favelas... o sujeito não tem condição de... o sujeito tá na favela
porque não tem um salário justo, um salário digno que dê para ele
custear os seus estudos.
Na fala número um, progressivamente a discriminação e o racismo são afastados
do narrador, em seguida como um movimento pendular a evocação retorna a ponto
de partida. Podemos notar como são redefinidas as noções de proximidade e
distância, de forma a convergir a ênfase do relato com uma maior distância do
narrador. Assim, ao ser questionado sobre racismo e discriminação o narrador
busca referências "fora" de seu repertório da experiência vivida12.
Por outro lado, a utilização, na fala número dois, de determinadas expressões
qualificadoras, tais como "abolição disfarçada" e "salário
justo", como reforço da ambigüidade no Brasil acionada nas elaborações
discursivas demonstra como a condição socioeconômica encontra-se cristalizada
como traço distintivo da discriminação e do racismo.
1) P: E você acha que os poucos negros que têm aqui na faculdade são
tratados da mesma forma que os brancos?
R: A única que eu convivo mesmo é essa menina da minha sala, então eu
nunca vi nada diferente.
P: E no cotidiano?
R: Já, até mesmo da minha mãe, porque a família do meu pai que se
acham brancos mas não são porque são todos com o cabelo ruim, só que
são claros. Minha mãe diz que sofreu muito quando casou com meu pai,
porque a mãe dele não aceitou. Chamavam ela de macaca, de neguinha,
até pouco tempo essa minha avó foi morar lá em casa e chamava meu
irmão do meio de macaco.
O critério de atribuição de categorias como filiação étnica, racial encontra-se
interditada, pois a sustentação da noção de diferença esbarra num ponto focal
no universo pesquisado: o princípio da universalidade encontra-se alicerçado na
noção de mérito, sendo esta tida como condição necessária para o ingresso na
universidade pública. A idéia de que o ingresso na universidade se daria
indiscriminadamente, mediante a aprovação no vestibular negros e brancos,
homens e mulheres uma vez que ao se submetem as provas teriam as mesmas chances
dependendo apenas do conhecimento e capacidade individual.
1) P: Uma coisa que você falou aqui que eu achei muito
interessante... você colocou que [uma das razões] pelas quais os
negros não estariam em grande número na universidade [...] "por
eles terem mais aptidão para os esportes". Me fala mais sobre
isso.
R: É, justamente por esse, por esse caso desse meu amigo. Eu acho
que, assim, você vê em Cuba e nos Estados Unidos, dois países que dão
grande importância tanto à educação, quanto ao esporte. Essa ligação
entre educação e esporte... tanto que você vê numa olimpíada são os
grandes medalhistas. Então, você vê sempre, aquele cara, o maior
corredor do mundo, o maior atleta do mundo de basquete é sempre
pessoa da cor negra. Então, acho que assim, pelo físico, há pesquisa
que diz que o físico do negro é sempre mais forte, tem mais explosão
do que o branco. Então, acho que se Brasil tivesse uma cultura que
nem Cuba, mesmo vivendo a crise em que vive, os Estados Unidos têm,
entre, ligação entre esporte e faculdade, acho que talvez teriam
muito mais negros dentro da universidade. Eu vejo isso pelos amigos
que eu tenho, desse que faz natação, conseguiu uma bolsa, você vê na
[universidade particular X] que é uma das faculdades que...
S: Ele estuda na [universidade particular X]?
E: Não, ele faz [universidade particular Y] que é o mesmo sistema, é
uma faculdade que estuda o [nome] que gosta, que tem um
reconhecimento, assim, em esporte, natação, judô e tal, e que dá
bolsas pra atletas. Então, acho que se tivesse mais disso aqui no
Brasil acho que teriam mais negros na universidade, com certeza, você
vê isso em Cuba, nos Estados Unidos.
P: Você atribui isso a quê? (Poucos negros na universidade)
A fala acima contém uma analogia com duas realidades sociais distintas, que se
tornam constitutivas de políticas idênticas: Estados Unidos e Cuba. O narrador
tem com ponto de referência as políticas específicas para negros praticarem
esportes. Em sua opinião um meio eficaz para a promoção e manutenção da
população negra na universidade seria a prática esportiva como medida de
políticas públicas. A fala acima, como outras, apresenta hesitações,
explicações e ponto de vista diferenciados. A pergunta inicial permanece sem
resposta: há racismo na universidade?
1) R: Ah... esse, eu acho assim, que... é isso aí, entendeu?
P: Por que?
R: Não sei, não sei porque, não sei dizer, assim, um significado.
Acho que até pela cultura. Acho que, um exemplo, você vê é... pessoas
assim, a maioria de favelados e tal, são da cor negra, então, são
pessoas que, sei lá, tão sempre jogando uma bola, tão sempre, jogando
um basquete, então, são pessoas que são criadas, assim, entendeu?,
mais ligadas a esportes do que aquele garotinho, assim, branquinho
que vive em apartamento, que entra na internet todo dia, que só vai
brincar no play. Então, acho que por isso nossos grandes jogadores de
futebol são negros, nossos grandes atletas são negros, acho que é por
isso, entendeu? acho que a pessoa, assim, negra... lógico, por ser da
maioria assim pobre, né, tem mais convívio com rua, tem mais convívio
com esporte, joga sempre, sei lá, um futebol, um basquete, um
handball, acho que o negro gosta, assim, mais de esporte do que o
branco.
P:... gosta?
R: Não, não é que... sabe, que gosta,... ou que... por exemplo, acho
que o negro assim, pessoas, assim, negras, acho que também tem aquela
coisa, assim, acho que vou tentar alguma coisa pelo esporte,
entendeu, acho que por isso.... acho que isso é maior no negro do que
no branco, entendeu, tentar conseguir alguma coisa pelo esporte.
Então, acho que por isso é maior o índice de atletas negros do que de
brancos, então, acho que se uma universidade desse aparato, desse as
condições pra que uma pessoa negra, um desportista entrasse dentro de
uma faculdade, estudasse gratuitamente, praticando esporte por essa
faculdade acho que aumentaria a incidência de negros dentro de uma
universidade.
S: Esse seu amigo faz natação, mas qual o curso que ele faz?
E: Educação Física.
S: E eles só dão crédito pra ele fazer Educação Física?
E: Não, qualquer faculdade, se ele quisesse fazer engenharia sendo
atleta da universidade, ele ganha bolsa. Porque ele compete, qualquer
competição ele representa a universidade [universidade particular Y],
assim como [universidade particular X], o cara pode fazer Direito mas
ele é de judô da [universidade particular X], então, numa competição
ele vai representar a [universidade particular X], então, por isso
eles dão bolsas. Dentro da universidade pública você não vê isso, não
tem porque dar bolsa porque é gratuito, só que eu acho que deveria
ter uma integração maior entre universidade pública e esporte. Você
não aqui nada disso, não tem nada disso. Tem-se um time da
[universidade pública] de futebol, de basquete, não tem nada disso.
Os times são feitos pelos alunos, não parte da universidade como é em
Cuba, como é nos Estados Unidos, não parte do governo, das
autoridades. Parte dos alunos, que fazem seus times, cada curso tem
seu time, qualquer coisa assim, mas não essa... como é em Cuba, como
é nos Estados Unidos que acho que seria bom se tivesse aqui no
Brasil.
Não temos a intenção de avaliar a forma de ingresso, aproveitamento e
rendimento dos estudantes e nem tampouco das universidades. Ocorre que dados e
pesquisas de fontes desconhecidas são citados pelos estudantes como
justificativa para manutenção de uma certa estrutura de pensamento e de
atitudes. Talvez o narrador procure assim se distanciar da sua própria fala.
1) P: Perguntamos também se negros e brancos são tratados de forma
diferente na sociedade brasileira, você colocou que na sociedade
brasileira quase sempre, gostaríamos que você falasse sobre isso.
R: É só prestar atenção nas ruas, infelizmente predomina o discurso
hipócrita de igualdade racial, parece que porque eu trabalho do lado
de um negro não há preconceito. As pessoas dizem: "Eu trabalho
com negro, estudo com negro, tenho amigos negros, preconceito racial
não existe no Brasil", mas infelizmente as pessoas não se
atentam pra alguns detalhes, as coisas mínimas que mostram o
preconceito. Quando uma mulher, bem padrão de beleza no Brasil,
loura, olhos verdes, corpo bem modelado, anda com um negro do lado
você já ouve logo, "O que aquela loura está fazendo com esse
cara? Meu Deus do céu!" Ou, então, quando o negro, ele chega num
lugar chique, um restaurante de alto nível as pessoas já olham logo
estranho, muitas vezes um garçom pergunta se tem reserva, alguma
coisa...quer dizer, não aceitam a idéia de ter um negro freqüentando
um local, entre aspas, de alto nível. (...) essas pequenas atitudes,
as piadinhas de negro que a gente ouve nas ruas, infelizmente, ouve
muito, as brincadeiras, eu no trabalho eu ouço várias, às vezes um
colega nosso negro tá almoçando aí o sujeito ofereceu uma banana pra
ele, "aqui, ó, guardei pra você" como quem diz que o negro
é macaco, um absurdo! Então... apesar daquela aparência de democracia
racial que existe, o fato de eu conviver com o negro, trabalhar com o
negro, aparentemente, é, tem, acho que nas pequenas coisas, nos
pequenos comportamentos é que a gente vê o racismo presente, ele
existe sim. E até nas estatísticas mesmo... nas pesquisas mais
profundas, nas pesquisas sociais, as estatísticas, a gente vê também
o racismo presente. A gente vê nas novelas de televisão são poucos
negros presentes, nos comerciais, nos grandes comerciais mais
rentáveis mesmo, que utiliza mais recursos financeiros, é difícil a
presença do negro. A gente vê que a maioria dos presidiários são
negros, a maioria dos favelados são negros, tem poucos negros nas
universidades públicas, eu acho que essas estatísticas também dizem
muito [que nos] pequenos comportamentos do dia a dia, que existe
racismo no Brasil sim.
2) R: Não ter quase [estudantes negros na universidade]é...
discriminação na faculdade, as pessoas não admitem ter e não admitem
que tenham algum tipo de preconceito, isso que eu quis dizer, eu não
soube me explicar. Até, porque eu peguei e falei... teve um dia que
eu apareci com escova e o pessoal ficou "ai, que coisa horrorosa
e tal não sei o que" aí quando eu peguei e citei o trabalho, aí
falei do trabalho... na pesquisa... [quando] a branca de cabelo liso,
encrespa o cabelo todo mundo fica "ai, que lindo, não sei o
que..." mas quando uma negra vai e alisa, o pessoal fica falando
"ah, olha a neguinha esticou o cabelo." E eu peguei e usei
o meu caso como exemplo, e o pessoal não aceitou muito bem e falou,
assim, "ah, [nome] nada a ver, a gente tava brincando com isso,
a gente brincou com você como a gente brincaria com qualquer
pessoa". E de fato, depois eu tava reparando... eu falei
"tá, tudo bem, passou" porque... depois eu prestei uma
atenção de fato, era assim mesmo o pessoal brinca com qualquer coisa.
Mas é, assim, é difícil acontecer e se acontece é muito sutil.
A chamada "sutileza" do racismo à brasileira encontra-se relacionada
não ao que foi dito e sim, ao que foi ouvido. Em outros termos, a percepção do
racismo aparece como uma perspectiva individual. E, cabe também ao indivíduo
encontrar os meios para superação das desigualdades sociais. A que tudo indica,
o princípio da universalidade de direitos mostra-se limitado. Como se pode
percebe a partir da fala citada a seguir.
1) P: E esses que são negros na sua família já passaram discriminação
fora?
R: Já fora da minha família, gente, assim de família de agregado
reclamar porque "ah, que que fez..." e meu padrinho, que é
advogado, ralou muito para chegar só por causa da cor. Tem um caso de
um senhor que fez Direito e tinha capacidade para passar para juiz,
mas ele só conseguiu no Amapá porque aqui ele não conseguiu, esse é
irmão de um professor meu. Um caso, assim, gritante que você olha
assim o cara é cabeça e não consegue por causa da cor. Aquilo ali foi
gritante, na minha turma foi o maior negócio, abaixo-assinado e não
sei o que porque ele só conseguiu lá no Amapá, só por causa da cor
dele, o cara, um super cabeça...
Entendemos que a seqüência da elaboração indica outro dado significativo, ainda
no que se refere à construção social da diferença, a classificação racial
aparece associada a outros princípios, tais como: gênero e idade e classe
social.
1) P: Você falou que a maioria de suas amigas são negras, elas já
relataram para você algum caso de discriminação?
R: Já presenciei cantadas mais bruscas na rua, eu posso estar com a
mesma saia que ela, mas ela é sempre mais assediada bruscamente.
Nenhuma amiga comentou nada até hoje... só uma que falou assim,
"A gente sofre porque é mulher, porque é pobre e porque é negra.
"Embora não tenhamos aprofundado a análise sobre as relações de gênero,
esse dado aparece nas elaborações significativamente como um complicador nas
relações e convívio no meio universitário, com repercussão na expectativa das
trajetórias profissionais, pois, articulada à caracterização anatômica e
fisiológica encontra-se diretamente relacionadas determinações sociais.13 Outro
aspecto importante diz respeito às escolhas afetivas. Referências a namorados
(as), parceiros (as) e cônjuges são recorrentes e encontram-se relacionadas a
conflitos pessoais, familiares ou ideológicos:14
1) R: Uma vez a gente estava na praia aí eu falei para ele: "tua
prima vai ficar com o garoto tal." Aí ele: " Meus primos
são todos atuantes, minha família é atuante!" Uma vez não sei
onde que eu estava que eu falei dele, e alguém quis fazer uma
pesquisa com ele, um depoimento para uma revista negra, eu não sei se
era Raça... ele é assim eu discuto várias vezes com eles, são coisas
diferentes. Eu realmente não me identifico com pessoas... mas se um
dia eu for me apaixonar por um cara que seja branco eu vou ficar com
o cara, mas isso nunca aconteceu e eu nem quero que aconteça. Até
minha idealização de filhos, é uma idealização de todos
"neguinho", é assim que eu penso, eu acho que eu não posso
colocar isso como aquilo e pronto. Acontecem várias coisas e você não
sabe o dia de amanhã.
Em certa medida, "raça" e gênero são elementos constitutivos do
universo dos estudantes universitários. Entende-se raça e gênero como
construções sociais e, portanto, constituem-se em princípios de classificação
social. Sendo que classe, raça ou gênero, isoladamente, não se constituem como
único princípio que alicerça a produção de desigualdades na sociedade; estes e
outros princípios associados condicionam a participação dos indivíduos na vida
social. Entre brancos(as) e negros(as) há também mulheres e homens entre outras
combinações possíveis.
Ocorre que nas elaborações esses princípios poucas vezes são problematizados
como fatores de inclusão/exclusão. Nesta perspectiva, a fala destacada abaixo
revela tal percepção.
1) P: E quantas mulheres tem no curso de Engenharia?
R: O grande problema da Engenharia tá aí, imagina um curso que só tem
duas ou três mulheres... assim, no curso todo... vou falar em termos
de proporção, que é uma coisa assim bem triste, de dez pessoas tem
uma, ou meia, porque não dá pra botar meia, vamos botar uma. É muito
triste.
P: Por que você acha que as mulheres não procuram Engenharia?
R: Não sei não, sei lá... é uma coisa que... tinha até que botar um
cartaz lá, "é proibido homem fazer Engenharia porque estamos
lotados"... Por que as mulheres não vão fazer? Não sei, talvez
seja da Engenharia ser uma coisa meio masculinizada. O engenheiro tem
que ser aquele cara barbudo, alto, vai falar pra caramba, fala
grosso. E as mulheres agora que tão descobrindo "não, Engenharia
é legal, também posso fazer". E tem essa coisa de Engenharia
Civil, vai assim fazer uma construção, uma mulher, ela diz "não,
não vou ter respeito dos peões". Tem muito disso, a Engenharia é
aquela coisa muito masculinizada.
P: E você tem contato com as meninas que fazem?
R: Tenho, ainda bem. Já pensou passar a Engenharia toda falando com
homem, que tristeza.
P: E o que elas dizem, você já perguntou pra elas, vocês já
conversaram sobre isso?
R: Não, é uma pergunta que nunca fiz "por que você fez
Engenharia?" é uma pergunta que eu nunca fiz não. Mas eu
acredito que seja mais do gosto, tem uma aí que eu conheci que o pai
é engenheiro. Claro que o pai ajudou bastante nessa escolha dela. E
tem outras que, sei lá, não faço a mínima idéia. Mas é uma coisa
engraçada, tão poucas mulheres na Engenharia, aí tu vai lá pra
Nutrição, aquele monte de mulher, tem um homem escondido, "quem
é você rapaz, tá fazendo o que aí?"
P: E por que você acha que as mulheres vão mais pra Nutrição e menos
pra Engenharia?
R: Acho que as profissões... até nas profissões tem aquele lado
machista. Aquela coisa, tem um lado, assim, machista e feminista.
Essa aqui é uma coisa mais machista, aquela mais feminista, acho que
tem muito disso dentro da profissões.
(...)
P: E as mulheres são boas alunas?
R: Na Engenharia? Deixa eu ver..., quando eu entrei eu acreditava
nisso, falei: "nossa, elas são boas alunas". Hoje em dia
não acredito mais nisso não. Não sei, acho que elas viram muitos
homens, assim, devem ter ficado deslumbradas, porque agora não
vejo... têm umas... dá pra contar nos dedos, tem duas garotas que eu
conheço que realmente... aqueles que eu tava falando de dez pessoas
tem uma, são elas.
Podemos notar, a partir da citação acima, quanto ainda a participação feminina
nos certos cursos universitários é percebida como um meio de encontro como o
sexo oposto. Esta percepção demonstra a desvantagem de um segmento, neste caso
quanto de gênero, diante de outro, frente à legitimidade das trajetórias
acadêmicas. A dificuldade do reconhecimento da situação de desvantagem de
segmentos específicos da população, diante de outros, ocorre também em relação
a estudantes classificados como negros(as). Nessa perspectiva, construções
sociais de gênero e cor/raça são acionados como sendo características naturais
(sexo) e de classe (cor/raça). Sugerimos que esta concepção encontra-se de tal
forma estruturada, como também é de difícil questionamento.
A Adoção de Medidas de Combate às Desigualdades Raciais no Ensino Superior
Nas falas dos estudantes aparecem diferentes referências às questões sobre a
presença de poucos negros nas universidades e sobre quais medidas e políticas
públicas específicas levariam ao aumento desse segmento específico nas
universidades. As respostas obtidas são indicativas da complexidade do tema
sobre promoção de políticas públicas para um segmento historicamente
discriminado.
1) P: Por que você acha que tem poucos negros nas universidades?
R: Eu acho que por dificuldades econômicas o negro não chega às
universidades [...] pra negros e pessoas carentes, porque é mais
difícil. Olha só, quando você, eu acho que quando a pessoa começa a
se perceber como negro, isso é mais para o final da adolescência e
tal, quando a pessoa vai tornando adulta, ela... tem uns que se
conformam, tem outros que não, "já que é assim, então, vou ser
melhor em tudo", porque o negro para conseguir se destacar ele
tem que ser melhor do que os melhores. Por isso é que eu estou sempre
[...] sabe, até quando eu comecei as aulas eu achei o máximo, porque
vários livros que eles tinham mandado ler, eu já tinha lido, sabe.
Você tem que ser o melhor, você tem que ser mais do que o melhor se
possível, é o ideal. Porque senão, o mercado engole, é como se fosse
um trator, ele vai passando por cima de todo mundo, e se você
conseguir correr na frente, ele não te pega, então pra um negro
conseguir chegar na universidade, pra conseguir chegar a um lugar
mais elevado, a patamar mais elevado, a condição social mais elevada
tem que investir em conscientização, conscientização pessoal, ele se
perceber como negro, se aceitar como tal e conscientização da
situação do negro na sociedade. A partir do momento que você diz
"sou negra, vamos ver como é a nossa situação", aí não é
mais a situação dos negros é a nossa [ênfase] situação, aí você
"olha bem, o negócio é meio complicado, então vamos fazer o
melhor". Aí dá pra você se destacar, chegar a uma universidade,
é investimento mesmo, porque se você for esperar do governo você vai
ficar esperando a vida inteira.
Entre os estudantes universitários, ao nosso ver, ainda que diferentes, as
respostas contêm um ponto convergente: não há expectativa, por parte dos
estudantes, com relação a iniciativas de políticas públicas que visam a
promoção de direitos para segmentos específicos da população. As referências ao
poder público em todos as instâncias remetem a inoperância no que se refere ao
combate à discriminação. Um exemplo a ser citado se refere ao termo governo,
que é amplamente utilizado para falar da falta de iniciativas públicas com
vistas à superação do racismo.
1) P: Você repara que o número de negros é menor na universidade?
R: Com certeza.
P: A que você atribui esse fato?
R: À desigualdade social. Não é todo mundo que consegue passar para
uma faculdade pública, e particular... por que? Porque a pessoa não
tem dinheiro pra pagar um pré- vestibular, porque as pessoas... o
ensino público está horrível. Lógico que não estou... tem escolas
particulares que são horríveis, mas a escola pública está muito pior,
não só escola como saúde, tudo. Se você não dá uma valorização à
educação do seu país... fica esse monte de campanha: educação,
educação, educação. Você faz um concurso público achando que você vai
chegar na sua escola encontrar um apagador, um quadro negro e na real
você não encontra nada. Como é que o fulaninho... se na biblioteca
falta livro e fulaninho não consegue ler? É o que meu pai fala, na
época dele se lia muitos livros, na quarta série já estavam lendo
livros. Eu acho que eu li meu primeiro livro, educacionalmente
mandado pela professora, na sexta série. Então como é que se pode
colocar um cara desse em uma universidade pública? É muito difícil.
Quando passa, passa para o que eu passei, que é pedagogia ou para
filosofia... Eu não estou falando... por exemplo, eu fiz pedagogia
porque eu quis, fulaninho fez filosofia porque quis, mas muito
fizeram porque não tinham condição de passar para medicina, por
exemplo. Eu tenho um amigo que é negro e passou para medicina, eu
fiquei com um orgulho dele tão grande, como se fosse meu filho. Eu
achei o maior barato. [...] Um monte de gente que estudou comigo no
primário, ginásio no primeiro grau parou na sexta série. Por isso que
muita gente fala: "legal você entrou para a faculdade."
Porque você olha as pessoas você tem que se espelhar nas que subiram,
lógico que às vezes a pessoa tem que trabalhar cedo, tem que ajudar
em casa... Eu tenho amigos inteligentes que moram no morro, na
favela...
Grande parte dos estudantes universitários que se autoclassificam como negros
optam por promoção de medidas para todas as pessoas carentes. O dado étnico
encontra-se esvaziado frente ao que parecem ser questões pertinentes à pobreza.
Dessa forma, a condição étnico-racial é redefinida como sendo um atributo de
classe. Eis mais algumas falas a esse respeito.
1) P: Então o que se faz com o pessoal que não consegue entrar na
universidade por que precisa trabalhar... enfim, porque a vida não
permite. O que fazer?
R: Pergunta muito difícil... olha eu não sei, me sinto tão perdida
para responder isso. Porque não adianta dar conselhos dizer que elas
têm que estudar. Elas já sabem.
P: Sim, elas têm essa consciência. Mas elas não conseguem se inserir
aqui na universidade justamente porque elas trabalham, porque não
podem pagar um curso pré-vestibular ou então porque elas trabalham o
dia todo e quando chegam no curso estão muito cansadas para aprender
alguma coisa, e não conseguem chegar até uma universidade pública e
muita das vezes nem em uma particular. Qual a solução para isso?
R: Gente... não sei, eu sou toda...
P: Quando você respondeu o questionário você relacionou com a falta
de recursos econômicos, com a decadência do ensino público e também
com o racismo e discriminação que os negros sofrem. E depois você
respondeu que deveriam ser tomadas medidas que beneficiassem pessoas
carentes como um todo, não somente os negros. Que medidas seriam
essas?
R: Não sei...
P: Nunca parou para pensar nisso?
R: Nunca parei para pensar nisso. Eu acho que tem que ter uma medida,
tem que ter um jeito.
P: Você falou do sistema de cotas. Você não acha legal?
R: Começando pela inscrição do vestibular, sessenta e cinco reais!
Que Brasil é esse! Eu não posso dar sessenta e cinco reais assim.
P: Mas ai é que entra a questão que a gente está tentando tocar. O
sistema de cotas para você não é a saída, porque?
R: Tem a isenção, só que a isenção é mínima. [...]
Na questão relativa a quais medidas deveriam ser tomadas para aumentar o número
de estudantes negros na universidade, ocorre uma dissonância entre a pergunta e
a resposta. A pergunta é sobre o número de negros, a resposta refere à falta de
recursos econômicos dos estudantes, não necessariamente negros. A referência à
falta de recursos é recorrente entre os entrevistados. Ao que tudo indica, no
discurso dos estudantes universitários haveria a predominância da classe sobre
a cor ou a raça. Tudo se passa como se os limites entre onde termina a
determinação de classe e onde começa a cor e ou raça pudesse ser indicado.
1) P: É um tema muito polêmico e totalmente indefinido a questão de
políticas públicas, do governo ou não, para aumentar a presença de
negros na universidade, por exemplo. Em geral, você acha essas
medidas deveriam ser específicas para os negros ou para pessoas
carentes?
R: Olha, eu acho o seguinte, tem que ser [...] deixa eu explicar
porquê. Os carentes, as pessoas carentes, depende do lugar onde você
vai, por exemplo, [eu não vou a hotel] na cidade do Rio de Janeiro, é
óbvio, mas quando você vai, por exemplo, a camareira que te atende, a
faxineira que limpa o teu quarto no hotel, geralmente ou é negra, ou
é mulata ou é parda, é difícil você ver... Agora, por exemplo, quando
eu vou pra [lugar], o hotel onde eu fico a faxineira que limpava o
meu quarto era loira..., a pobreza, a miséria não se restringe à cor,
é uma condição social tudo bem. Agora, a questão de educação, é mais
uma questão cultural. Eu achava que seria bom fazer, por exemplo,
leis que garantissem uma quantidade de vagas pra negros, tipo, para
correr atrás do prejuízo, porque se você for ver, é difícil chegar um
negro na universidade, é difícil você chegar... é, ver um negro num
cargo de poder, sabe, as pessoas não aceitam muito isso [...] nas
escolas é sempre mais... população de baixa renda, sim, mas mais
brancos do que negros. Mas isso também tem que ter conscientização,
porque a maioria das pessoas, às vezes, "ah, então, é assim?
Então, tá, tudo bem", sabe, só que não é assim, a gente tem que
correr pra mudar, a gente tem que correr atrás do prejuízo, isso
depende de nós [...] Tinha que ter medidas para garantir o número de
vagas para população de baixa renda? Sim, claro, mas também tem que
ter pro negro. Posso estar sendo radical? Sim, eu estou sendo
radicalíssima, mas eu achava que tinha que ter.
Ainda sobre a questão mencionada no parágrafo anterior, gostaríamos de indicar
a diferença do discurso sobre medidas específicas para aumentar o número de
negros na universidade e no mercado de trabalho. A sugestão contida no trecho
acima mencionado articula dois níveis diferenciados, indicando que para o
mercado de trabalho deveria ter medidas eqüitativas específicas para a
população negra, em contrapartida para universidade não caberia tal medida. É
possível inferir que há dois diferentes princípios: a universidade seria o
espaço para universalidade por excelência, enquanto no mercado de trabalho não
haveria tal princípio, necessitando de intervenção. Ainda assim, ocorre a
rejeição quanto ao benefício de tais medidas.
1) P: Você falou que... hipoteticamente, se essas medidas chegassem
ao mercado de trabalho, você acha que iria se beneficiar dessas
medidas, você pessoalmente?
R: Eu acho que me beneficiaria não por causa da medida... não sei,
sabe, sim e não [...] da mesma forma que eu falei que tem uns que se
conformam e acabam... esses que se conformam acabam virando maus
profissionais, entendeu. Então, se você for pegar... se fizerem uma
medida, garantir um certo número, vai ser saudável? Vai. Mas, ao
mesmo tempo, pode não ser, porque podem chegar maus profissionais ao
mercado, em cima de uma lei que garanta que eles estejam lá. Agora,
por isso é que eu acho que a gente tem que investir pra se tornar o
melhor, porque aí você vai estar lá... a lei vai ser boa, se tivesse
seria boa? Seria, porque garantiria você estar lá, mas você não
estaria lá simplesmente por causa de uma lei, entende?
P: O que você está falando é que as medidas deveriam ser mais
voltadas para a educação e não chegar a atingir o mercado de
trabalho?
R: Sim, mas não é exatamente isso. É porque eu acho assim, essas
medidas seriam, para o mercado de trabalho seriam boas? Seriam
ótimas, só que tem sempre um lado negativo, tem um lado que meio
perigoso. É que... a pessoa pode, de repente, se conformar, por ter
essa lei e achar que não precisa investir por que a lei garante que
ela esteja lá, entendeu? E nisso você acaba tendo maus profissionais,
maus serviços, sabe, e isso... se houvesse essa lei, sim, mas deveria
ter uma seleção pra pegar os melhores, pra não ficar só ali... não
estarem simplesmente porque são negros. Até para evitar, de certa
forma, humilhações, sabe. Porque, a sociedade é preconceituosa? É.
Então, para evitar que, de repente, chega e fala assim, "ah,
você só tá aqui por causa da lei", entende? Não, chegar e falar
assim "olha, ele tá aqui porque é um ótimo profissional".
Não é, "ah, ele é negro e trabalha bem". Não, não é ele é
negro e trabalha bem, o fato dele ser negro vai influir? Não vai, se
é um bom profissional, é um bom profissional, ponto. Se não é, não é.
Vai ter que melhorar, se quiser continuar trabalhando.
As elaborações discursivas citadas acima são indicativas de alguns mecanismos
que possibilitam a produção e reprodução de hierarquias, especificamente a
filiação étnico-racial, na sociedade brasileira contemporânea. Ao buscamos
recuperar a percepção da experiência vivida acerca da "raça" (e
também de gênero) podemos perceber que apesar do relativo enfraquecimento de
uma visão idílica de relações raciais no Brasil, a noção de classe se mantém
como anteparo das desigualdades raciais.
Considerações Finais
Neste trabalho abordamos alguns aspectos da experiência e percepção das
relações raciais no Brasil dos estudantes universitários negros e brancos de
duas instituições de ensino superior do Rio de Janeiro, uma particular e uma
pública, em cursos selecionados. A contribuição desse artigo está em trazer
elementos para a reflexão de como negros e brancos vivenciam o cotidiano
universitário e como eles percebem a ocorrência de discriminação e racismo na
sociedade, em geral, e na universidade, em particular. Contribuímos também para
refletir sobre o apoio que medidas voltadas para o combate às desigualdades
raciais na educação e aumento do número de negros na universidade teriam entre
esse segmento da população.
Cabe notar como o mito da democracia racial vem perdendo espaço frente à
percepção do racismo. Contudo, quando questionados sobre racismo na
universidade os entrevistados procuravam afastar a percepção do racismo do
ambiente imediato do qual são integrantes. Por vezes, afirmam que existe
racismo e discriminação na sociedade e os negam na universidade. Nessa
perspectiva a universidade emerge como se fosse uma instância fora da
sociedade. Com isso torna mais difícil a adesão ou reivindicação de políticas
específicas de ação afirmativa. Cabe ainda a observação de que, apesar da
relativa ocorrência da categoria "negra" como autoclassificação,
categoria esta que tem sido evocada pelos ativistas do movimento negro, isso
não significa dizer que haja entre os entrevistados militantes engajados ou
ainda nas elaborações discursivas tenha sido recorrente a ênfase atribuída à
participação em grupos organizados politicamente. Ao contrário, nas elaborações
discursivas as referências mais freqüentes recaíram sobre uma instância
criticada pelos ativistas: a individualização de questões de ordem político-
social relativas ao racismo, discriminação e desigualdades raciais na sociedade
brasileira, e a ênfase na condição socioeconômica como sendo o principal
entrave para superação do racismo na sociedade brasileira. Entretanto, se
lembrarmos da observação de Guimarães de que o debate sobre as políticas de
ação afirmativa ainda está restrito a um pequeno círculo de ativistas e
intelectuais, nota-se a existência de um relativamente grande apoio a medidas
reparadoras das desigualdades raciais. Ainda mais marcante é o fato de que os
alunos da universidade particular são mais favoráveis às medidas dirigidas
especificamente aos negros do que os alunos da universidade pública.
Aparentemente, os alunos formados nesses dois tipos de instituição se
diferenciam no que diz respeito às noções de mérito e universalidade,
princípios esses (além de justiça social, diriam uns, e eficiência, diriam
outros), que são a informação básica no momento de se estabelecer políticas
sociais de combate às desigualdades raciais.
Notas
1.
Os termos "raça" e "cor" são utilizados
indiscriminadamente no presente trabalho, ambos significando uma categoria
social, construída historicamente, que eventualmente é acionada como princípio
classificatório e/ou hierarquizador nas relações sociais.
2.
Como não poderia ser de outra forma, à medida que o debate se amplia, captura
a atenção da mídia. Em matéria no site no.com.br de 13 de outubro de 2000 sobre
as instalação da fábrica de automóveis da Ford na Bahia, Marcos Sá Correia
informa que os "4 mil contratados [da fábrica] serão uma amostra
estatística da sociedade local. Sessenta por cento das vagas foram reservadas
para negros e mulatos, porque é a cor da população. As mulheres terão 40% dos
empregos, porque é a parte que lhes cabe na região".
3.
O pré-teste do questionário foi realizado em duas universidades, distintas das
universidades onde foi realizado o survey, nos meses de outubro e novembro de
1997. Foram aplicados, então, 116 questionários.
4.
Comprometemo-nos com os dirigentes das universidades que os dados coletados
seriam divulgados sem a identificação da universidade, ainda que nossa pesquisa
não tenha como objetivo avaliar condições de ensino.
5.
Cabe citar que a instituição particular não oferece o curso de Comunicação.
6.
O curso de Engenharia aparece tanto entre os cursos mais procurados, quanto
entre os cursos mais oferecidos.
7.
Os outros termos escolhidos pelos entrevistados foram: "morena
clara" (1,0%), "amarela" (0,9%), "preta" (0,9%),
"caucasiana" (0,1%), "clara" (0,1%), "indígena"
(0,1%) "mameluca" (0,1%), "marfim" (0,1%),
"marrom" (0,1%), "mestiço" (0,1%) "morena escura"
(0,1%), "morena médio" (0,1%) e "mulata" (0,1%).
8.
Utilizamos, deste ponto em diante, a classificação racial atribuída pelos
estudantes na pergunta fechada que apresentou as categorias utilizadas pelo
IBGE. Utilizamos, também, a categoria "negra" (agrupamento das
respostas "preta" e "parda") para designar os estudantes.
Excluímos das análises os indivíduos que marcaram "amarela" e
"indígena".
9.
Nesta perspectiva, indicamos apenas as perguntas (P) e respostas (R) nos
extratos das entrevistas.
10.
Neste sentido ver Halbwachs (1994) e Kofes 1994), entre outros.
11.
Estes temas foram abordados a partir das seguintes questões:
1. Qual a sua cor?;
2. Durante o segundo grau, quantas vezes você foi reprovado?;
3. Qual a principal razão por você ter sido reprovado?;
4. Quais as três razões principais, em ordem de importância, por você
ter decidido fazer esse curso?;
5. Como você avalia sua relação com seus colegas de curso?;
6. Como você avalia sua relação com seus professores?;
7. Você acha que negros e brancos são tratados de forma diferente na
sociedade brasileira?;
8. E em relação à universidade mais especificamente, você acha que
negros e brancos são tratados de forma diferente?;
9. Quais as três razões principais, em ordem de importância, que você
apontaria como causas para a presença de poucos negros na
universidade?.
12.
Sobre as noções de proximidade e distância, ver DaMatta (1978) e Velho (1978).
13.
Neste sentido, adotamos, neste artigo, a categoria gênero como perspectiva de
análise. Nas Ciências Sociais, como afirma Maria Luiza Heilborn (1995):
"Gênero é um conceito [...] que se refere à construção social do sexo.
Significa dizer que a palavra sexo designa agora, no jargão da análise
sociológica, somente a caracterização anátomo-fisiológica dos seres humanos e a
atividade sexual propriamente dita. O conceito de gênero existe, portanto, para
distinguir a dimensão biológica da social. O raciocínio que apóia essa
distinção baseia-se na idéia de que há machos e fêmeas na espécie humana, mas a
qualidade de ser homem e mulher é realizada pela cultura. Mas, por que é
possível afirmar-se que homens e mulheres só existem na cultura, ou melhor, que
são realidades sociais e não naturais?".
14.
A este respeito ver, também, Moutinho (1999).