Mapeamento de Ações e Discursos de Combate às Desigualdades Raciais no Brasil
Introdução
Esta pesquisa nasceu da inquietação em relação às informações até então
existentes sobre a atuação das organizações da sociedade civil e do Estado na
luta contra a discriminação e as desigualdades raciais. No final dos anos 90 '
estendendo-se até o ano 2000 ' em um quadro de mudança, sabíamos que este
universo não se limitava mais aos eventos comemorativos do 20 de novembro ou
aos serviços de assessoria jurídica a vítimas de racismo. Já tínhamos
conhecimento, por exemplo, da experiência dos pré-vestibulares para negros e
carentes, que surgem e se disseminam a partir do Rio de Janeiro ao longo dos
anos 90. Permanecia, entretanto, a dúvida: trata-se de uma iniciativa isolada?
Existiriam outras experiências, fora do eixo Rio de Janeiro-São Paulo,
semelhantes no seu caráter inovador, de intervenção concreta em relação às
desigualdades raciais?
Os dados aqui apresentados são o retrato, dentro de um espaço de tempo
determinado, de uma realidade dinâmica, na qual muitos atores estão inventando
novos caminhos, cuja natureza ainda estamos por conhecer. É significativo que
tenhamos tido condições de realizar este mapeamento justamente ao longo dos
dois anos que precederam a realização da Conferência Mundial contra o Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e formas correlatas de Intolerância, convocada
pela ONU e realizada em Durban, na África do Sul, em setembro de 2001.
Como pudemos observar durante o processo preparatório da conferência, houve uma
intensa mobilização por parte das organizações do Movimento Negro no sentido de
debater o tema do racismo no Brasil e cobrar ações concretas do Estado. Esta
mobilização, amplificada pela mídia, permitiu inaugurar no debate público
brasileiro, a partir do ano 2001, um novo patamar em termos de propostas, no
campo da legislação, das políticas sociais e das prioridades orçamentárias.
Apenas em um futuro próximo teremos condições de avaliar o impacto real dos
debates hoje em curso.
É muito oportuno, portanto, que tenhamos tido a chance de observar o
"estado da arte" no que diz respeito às iniciativas de combate às
desigualdades raciais no Brasil tal como se apresentavam às vésperas da
Conferência Mundial contra o Racismo.
O objetivo desta pesquisa foi levantar, conhecer e analisar experiências que
vêm sendo desenvolvidas como estratégias de combate às desigualdades raciais no
Brasil. Este enunciado relativamente simples implica a utilização de alguns
conceitos e a adoção de alguns pressupostos que procuraremos esclarecer aqui.
Em primeiro lugar, o que entendemos por desigualdades raciais no Brasil? Em
segundo lugar, por que a preocupação em conhecer e mapear as experiências
destinadas a enfrentá-las?
O Brasil passou por um grande processo de mudanças ao longo dos últimos anos no
que diz respeito às relações raciais. A percepção do país como uma democracia
racial é cada vez menos consensual e, hoje, diferentes setores da sociedade têm
sua agenda política marcada pelo debate sobre o racismo como elemento
constitutivo de nossa sociedade (Skidmore, 1999). Embora ainda esteja também
presente a auto-imagem do Brasil como um país homogêneo e indiferenciado,
encontra-se progressivamente maior abertura a experiências que procuram
beneficiar grupos específicos, historicamente com menor acesso a oportunidades.
Isto já é uma realidade em relação a grupos minoritários tais como os
portadores de deficiência, idosos, homossexuais, portadores de HIV, e também
com relação às mulheres, que ao longo da última década foram capazes de
garantir maior acesso a espaços de poder e melhores posições no mercado de
trabalho. No que se refere às desigualdades advindas das diferenças étnicas e
raciais, o quadro apresenta-se mais tímido, porém já podem ser detectadas
transformações, com maior freqüência e aceitação de programas que procurem
atuar neste campo.
Iniciativas governamentais e de organizações da sociedade civil indicam que há
um reconhecimento crescente das desigualdades raciais. Já é possível localizar,
em diferentes regiões do país, iniciativas locais que tentam, a seu modo,
encará-las.
O quadro de enfrentamento das desigualdades raciais no Brasil inclui um
espectro de medidas que vão desde a proposta de adoção de cotas para negros em
universidades, até programas que procuram beneficiar grandes contingentes da
população negra por meio de políticas focalizadas em comunidades pobres. Neste
intervalo há um contínuo de propostas intermediárias que serão analisadas mais
adiante.
O impacto de programas como estes ainda é limitado em termos do número de
pessoas beneficiadas, devido ao seu alcance localizado, ao caráter voluntário
de algumas iniciativas e à falta de recursos. Entretanto, o fato de projetos
como esses existirem, em um país que tem historicamente se negado a reconhecer
a situação socioeconômica desigual entre indivíduos segundo sua classificação
racial, já é algo que deve ser levado em consideração.
Apesar destas iniciativas, é difícil afirmar que a sociedade brasileira possui
um compromisso com a diminuição das desigualdades raciais. Entretanto, existe a
percepção de que a maioria dos pretos e pardos são pobres, e de que a maioria
dos pobres são pretos e pardos. Essa percepção pode transformar-se em um ponto
de partida para a adoção de medidas específicas.
Responder à segunda questão colocada (por que mapear estas iniciativas)
corresponde à necessidade de trazer para o debate acadêmico e político um
componente da realidade brasileira que ainda permanece pouco visível: a
relevância da luta contra as desigualdades raciais como um aspecto importante
para se pensar o acesso à oportunidades na sociedade brasileira. Skidmore
apresenta um desdobramento desta questão, de forma explícita, para intelectuais
e formuladores de políticas sociais no Brasil: "If Brazilians, acting
through their government or voluntary institutions, should decide that racial
discrimination exists and is a serious problem, what action can or should be
taken?" (Skidmore, 1999:20).
A despeito de ampla evidência das desigualdades raciais no Brasil, aqueles que
lutam contra a discriminação racial ainda têm grande dificuldade de promover
mudanças efetivas. Durante um longo período, a principal estratégia das
organizações do Movimento Negro foi a denúncia da discriminação sofrida pelos
não-brancos no cotidiano. Esses episódios de discriminação são quase sempre
difíceis de tipificar como crime e, por esta razão, difíceis de serem punidos.
Ao longo dos últimos anos, várias organizações do Movimento Negro ' mas não
apenas elas ' passaram a ter uma atuação voltada para a intervenção em relação
às dificuldades concretas vivenciadas por esta parcela da população.
Se, na análise dos eventos comemorativos do centenário da abolição, em 1988,
Maggie (1989) observou a forte presença de eventos voltados para a valorização
da "cultura negra" e, em meados dos anos 80, outros autores apontaram
o aumento do número de órgãos consultivos voltados para a população negra na
forma de conselhos municipais (Munanga, 1996; Motta & Santos, 1994), nossa
análise aponta um quadro distinto. O que tem sido feito, divulgado e debatido
em relação à temática racial no final dos anos 90 revela que temas sociais,
tais como o acesso à educação e a inserção no mercado de trabalho são os
grandes aspectos destacados. Tal destaque não se dá apenas como uma bandeira de
mobilização ou palavra de ordem, mas como iniciativas que procuram ter um
impacto concreto sobre o público-alvo.
Reunindo diferentes graus de eficácia e aceitação social, é importante
investigar até que ponto estas diferentes iniciativas terão condições de se
institucionalizar e ganhar o mainstream da sociedade, deixando de apresentar-se
como uma solução periférica ou pontual.
Nossa hipótese inicial, portanto, veio a se confirmar após a realização da
pesquisa: existe um conjunto expressivo e articulado de ações que hoje moldam e
dão nova fisionomia à luta contra as desigualdades raciais no Brasil. E aqui
cabe frisar que falamos de desigualdades raciais, diferenciando-as das
estratégias convencionais de luta contra a discriminação, o racismo ou da
mobilização anti-racista em geral. Cabe nos alongarmos um pouco mais nesta
reflexão.
Destacamos justamente o caráter diferenciado entre os possíveis resultados das
políticas de combate às desigualdades raciais e aqueles que podem ser esperados
de políticas antidiscriminatórias.
As políticas antidiscriminatórias não produzem necessariamente igualdade de
oportunidades. São instrumentos, na sua maioria, por um lado, punitivos ou, por
outro, de caráter educativo, que possuem um efeito sobre a discriminação no
cotidiano, no "varejo" e, em médio prazo, podem provocar mudanças de
comportamento e mentalidades.
As políticas de combate às desigualdades raciais, ao nosso ver, aproximam-se
mais da concepção original das políticas de ação afirmativa tal como formuladas
nos EUA a partir dos anos 60. São instrumentos desenhados na perspectiva da
promoção da igualdade, em situações concretas, geralmente tendo como unidade de
implementação uma instituição pública ou privada (empresa, prefeitura,
universidade, ONG, cooperativa etc.). São estabelecidas metas e estratégias que
provoquem o aumento do número de pessoas de um determinado grupo na instituição
(Heringer, 1999a).
O termo ação afirmativa é muito amplo e controverso, com espaços para
diferentes interpretações. Muitos autores apontam que a própria definição do
termo já é uma arena para disputas políticas e teóricas (Steeh & Krysan,
1996). Entre as muitas definições propostas, consideramos a que segue uma das
mais completas:
Affirmative action refers to mandatory and voluntary policies and
procedures designed to combat discrimination in the workplace and to
retify the effects of employers' past discriminatory practices. Like
anti-discrimination laws, the object of affirmative action is to make
equal opportunity a reality by leveling the playing field. Unlike
anti-discrimination laws, which provide remedies to which workers can
appeal after they have suffered discrimination, affirmative action
policies aim to prevent discrimination from occurring. Affirmative
action can prevent discrimination by replacing employment practices
that are discriminatory either by intent or default with
employment practices that safeguard against discrimination. (Reskin,
1997:6)
No debate atual sobre ação afirmativa nos EUA, diferentes autores procuram
apresentar-se como herdeiros do legado do Dr. Martin Luther King ' a luta pela
igualdade, por oportunidades iguais e por uma sociedade colorblind. Esses
autores não se diferenciam muito, quando falam sobre escravidão, sobre a Guerra
Civil ou as leis de segregação que foram aprovadas no final do século XIX e
duraram até os anos cinqüenta do século XX. Interpretações diferentes começam,
contudo, a partir dos anos 60 (Skrentny, 1996).
O principal ponto de desacordo entre estas versões relaciona-se aos resultados
das primeiras conquistas realizadas pelo movimento pelos direitos civis. Leis
antidiscriminatórias são geralmente reconhecidas como muito positivas. Em
meados dos anos 60 ampliou-se a idéia de que esta legislação não era suficiente
para combater os efeitos historicamente acumulados da discriminação. Medidas
adicionais foram necessárias para remediar a discriminação passada e prevenir
situações futuras de discriminação. Foi como resultante desta perspectiva que
as políticas de ação afirmativa foram estabelecidas, através da Ordem Executiva
11246, assinada pelo Presidente Lyndon B. Johnson, em 1965.
A partir de então surgiram diferentes interpretações sobre a implementação das
políticas de ação afirmativa. Opositores apresentaram a ação afirmativa de um
desvio dos ideais de uma sociedade colorblind, rompendo com o consenso em torno
do movimento pelos direitos civis. Defensores da ação afirmativa a consideraram
uma "conseqüência irreversível" da luta pelos direitos civis.
De meados dos anos 60 até meados da década de 80, as políticas de ação
afirmativa foram gradualmente expandidas e implementadas de uma maneira
sistemática. Poderia ser dito que os anos 70 foram os anos dourados da ação
afirmativa, culminando com a decisão da Suprema Corte no caso Bakke x Regentes
da Universidade da Califórnia, que decidiu que raça era um critério aceitável
nas admissões universitárias.
Durante os anos 80, a oposição e a crítica à ação afirmativa cresceram,
principalmente durante períodos de recessão econômica e crescimento do
desemprego e da insegurança. Novamente, decisões importantes da Suprema Corte
foram um parâmetro para medir o "clima" da sociedade em relação ao
assunto.1 Esta crescente reação contrária à ação afirmativa teve seu ápice na
campanha pela Proposição 209 ' a Iniciativa de Direitos Civis da Califórnia,
que foi aprovada por um referendum em novembro de 1996. Esta Proposição
consistiu em uma emenda à Constituição estadual nos seguintes termos:
O Estado, no exercício das atividades referentes ao emprego público,
educação pública ou contratação de prestadores de serviços, não deve
discriminar oudar tratamento preferenciala nenhum grupo ou indivíduo
tendo como base sua raça, sexo, cor, etnia ou origem nacional.
(tradução e ênfases nossas)
No Brasil estamos vivendo um importante momento de reconhecimento das
desigualdades raciais como um aspecto a ser enfrentado. Ainda com grande dose
de desinformação e confusão até, as organizações do Movimento Negro, assim como
algumas de outros setores da sociedade, estão gradativamente percebendo a
importância de se reconhecer as desigualdades raciais como um entrave ao
desenvolvimento e ao aperfeiçoamento democrático do país.
Colocam-se novamente as perguntas iniciais de nossa pesquisa: em que medida o
reconhecimento da necessidade de enfrentar as desigualdades raciais se traduz
em propostas concretas de ação? De que forma diferentes atores sociais,
notadamente o Estado e as organizações da sociedade civil, estão se
posicionando quanto a esta necessidade? Que estratégias de ação estes atores
estão definindo? Como se posicionam em relação ao recente debate sobre a adoção
de políticas de ação afirmativa?
Partindo da constatação empírica de que algumas instituições, espalhadas pelo
Brasil, estavam desenvolvendo novas experiências de luta contra as
desigualdades raciais, tivemos a preocupação de conhecê-las. Quisemos saber se
os agentes aí envolvidos tinham a percepção de que não era mais suficiente a
adoção de políticas antidiscriminatórias apenas (legislação anti-racista,
programas do tipo SOS Racismo, denúncias de casos individuais), tornando-se
necessária a adoção de políticas de promoção da igualdade, beneficiando
específica, prioritária ou até exclusivamente a população negra.
As centenas de entrevistas que realizamos com executores destas
"novas" experiências anti-racistas demonstraram que não há clareza
sobre a natureza do movimento de mudança em curso. Existe a percepção da
mudança ' uma "revolução silenciosa", nas palavras de um entrevistado
', mas não há consenso sobre a pertinência ou adequação das estratégias que vêm
sendo utilizadas ou propostas.
Encontramos uma grande variedade de iniciativas e organizações envolvidas no
combate às desigualdades. Ocorre a predominância de ONGs, principalmente
aquelas ligadas ao Movimento Negro, mas a participação do poder público,
mormente no âmbito local, também foi bastante expressiva.
Uma característica importante marca, porém, a maior parte dessas iniciativas:
apresentam-se como direcionadas à população negra, mas não apenas a ela.
Setores mais pobres da população e outros grupos vulneráveis, como mulheres,
jovens e portadores de deficiência são também alvo destas ações. Entretanto, do
conjunto de atividades que identificamos e analisamos, observamos em cerca de
1/3 delas a orientação explícita no sentido de beneficiar especificamente a
população negra. As principais características destas diferentes experiências
serão analisadas.
Aprendemos, através deste trabalho, que não é mais possível analisar as
relações raciais no Brasil sem levar em conta as experiências em curso, que
revelam um país que, acreditando na igualdade, desenvolve estratégias para que
esta não se restrinja à "letra morta" da lei.
Às vezes um pouco refluído, mas o sonho vai nos acompanhar até o fim
da vida para uma sociedade melhor, uma sociedade em que a dignidade
seja uma coisa presente na vida de todas as pessoas. Uma sociedade,
enfim, em que aquele princípio constitucional escrito no artigo
primeiro da constituição, que diz que todos são iguais perante a lei,
não seja mais do que uma falácia. Porque isso é uma falácia, ali é
uma igualdade perante a lei. Nós não queremos só uma igualdade
formal. Nós queremos uma igualdade substancial que é uma igualdade de
oportunidades, uma igualdade de vida digna para todos. Então, nós não
queremos só uma democracia formal, de liberdade de imprensa, de
funcionamento pleno das instituições sem ameaça de golpe. Nós
queremos atingir um outro patamar. Um patamar novo de uma democracia
econômica que é o patamar da igualdade. Não da igualdade formal, mas
a igualdade substancial. E no dia que nós atingirmos isso, por certo,
negros, brancos viverão em comunhão. Os índios e as mulheres viverão
em melhor comunhão. E apesar das suas diversidades, porque a
diversidade é enriquecedora, não terão uma diversidade que torne
pessoas mais dignas do que as outras. (Aleixo Paraguassu, juiz,
militante do Movimento Negro em Campo Grande, MS).
Informações sobre a Metodologia da Pesquisa e o Trabalho de Campo
A fim de conhecer melhor o conjunto de iniciativas de combate às desigualdades
existentes no país, selecionamos dez capitais, em quase todas as regiões do
país (exceto a Região Norte), nas quais foi feito o levantamento das
iniciativas em curso. A seleção das capitais respeitou o conhecimento prévio
que tínhamos sobre as iniciativas locais de combate às desigualdades raciais
(Belo Horizonte, por exemplo, foi escolhida em função da recente criação da
Secretaria Municipal para Assuntos da Comunidade Negra ' SMACON). Também locais
diferenciados quanto à composição racial foram selecionados (São Luís, já que o
Maranhão conta com 80% da população de pretos e pardos; e Porto Alegre, dado
que o Rio Grande do Sul possui apenas 11% da população que se autoclassificam
como pretos e pardos; ver Tabela_1).
Em cada uma das capitais contou-se com a visita de um pesquisador, que
previamente contatou lideranças, representantes do governo e outros atores
locais, a fim de preparar a viagem. Em média, cada pesquisador passou uma
semana na capital pesquisada.
O trabalho de campo consistiu na visita a instituições que desenvolvem
programas voltados para o combate às desigualdades raciais, fossem elas ONGs,
órgãos do governo, empresas, universidades, igrejas, partidos, sindicatos e
outras. Foram registradas as informações sobre os projetos e atividades em
curso, procurando conhecer o objetivo, o público-alvo e o impacto da atividade
desenvolvida. Além disso, foram realizadas entrevistas com representantes
destas instituições no intuito de conhecer sua opinião sobre o estágio atual
das relações raciais no Brasil, sua avaliação das estratégias adotadas ou em
discussão, incluindo seu conhecimento e posicionamento sobre a adoção de
políticas de ação afirmativa no Brasil.
Na medida do possível, a orientação para o trabalho de campo foi no sentido de
privilegiar as ações voltadas prioritária ou exclusivamente para a população
negra, objetivando uma intervenção direta na melhoria das condições de vida
desta população. Estas ações se diferenciam daquelas que chamamos de
"tradicionais", orientadas para o combate a casos individuais de
racismo, à realização de campanhas e eventos culturais.
Entretanto, esta diferença, embora perceptível em vários casos, mostrou-se
tênue em muitos outros, pois, como veremos adiante, muitas organizações que
tinham uma atuação mais "tradicional" passaram também a desenvolver
programas de intervenção prioritariamente para a população negra.
O levantamento realizado não esgotou as iniciativas de combate às desigualdades
raciais existentes nas capitais pesquisadas. O pouco tempo de estadia dos
pesquisadores em cada capital, mais os problemas de comunicação que
dificultaram o agendamento prévio de algumas entrevistas, contribuíram para
esta limitação. Ao longo do ano de 2000 obtivemos informações adicionais sobre
algumas das iniciativas pesquisadas, mas sabemos que outras atividades tiveram
início neste período e não puderam ser registradas.
O leque de iniciativas em algumas cidades, em função das próprias
especificidades locais, ampliou-se bem mais do que em outras, tornando-se
também um componente de diferenciação. Por tudo isto, o resultado é parcial.
Entretanto, a recorrência de determinados tipos de experiência e áreas de
atuação aponta para a existência de padrões que sinalizam para um quadro
verossímil e atual das experiências de combate às desigualdades raciais em
curso no país.
Finalmente, é preciso chamar a atenção para o ritmo acelerado de implementação
e discussão de novas iniciativas. Isto faz com que várias iniciativas recentes,
surgidas a partir do final de 1999, não tenham sido registradas neste
levantamento.
Iniciativas de Combate às Desigualdades Raciais
Apresentaremos a seguir as principais informações referentes às iniciativas de
combate às desigualdades raciais encontradas nas dez capitais pesquisadas. É
preciso destacar que, como unidade de análise, foram definidas as ações ou
iniciativas. Esta categoria inclui uma grande variedade de atividades: cursos,
oficinas, atividades com crianças e jovens, projetos de lei, SOS Racismo,
campanhas, eventos, publicações, leis, entre outras. Cada caso corresponde a
uma destas atividades que, por sua vez, podem ser desenvolvidas por uma ou mais
organizações. As organizações podem desenvolver mais de uma atividade neste
campo, por isto optamos por listar as atividades (ver Anexo_1), o que em alguns
casos ocasiona a repetição da organização responsável.
Um outro comentário prévio diz respeito à leitura adequada destes dados. Embora
estejamos trabalhando com a totalização dos mesmos para as dez capitais, é
preciso ter em mente, todo o tempo, que se tratam de dez contextos específicos
e diferenciados, nos quais foram realizados estudos de caso individuais. Em
função disto, é preciso relativizar a importância dos dados agregados, o que
nos leva, portanto, a evitar análises comparativas sobre a natureza das
atividades levantadas em cada capital. A apresentação dos dados de forma
agregada tem caráter ilustrativo. Da mesma forma, os cruzamentos de dados
apresentados nos indicam simplesmente a incidência maior ou menor dos casos,
levando-se em conta algumas variáveis selecionadas. Dado o caráter não
aleatório e o reduzido número de casos, não foi feito nenhum tipo de análise de
correlação entre as variáveis analisadas.
Feitas estas ressalvas iniciais, passemos aos dados. A Tabela_3 apresenta a
distribuição das atividades identificadas no levantamento em cada capital.
As cidades de Salvador, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e São Paulo aparecem
como as capitais onde foi identificado um maior número de atividades. Um total
de catorze atividades, embora tenham sido identificadas em Brasília, relaciona-
se a iniciativas no âmbito do governo federal e por isso foram classificadas na
última coluna do gráfico como de alcance nacional.
As 124 atividades identificadas foram classificadas segundo o vínculo
institucional, isto é, a natureza da principal organização responsável pela sua
execução. Os casos em que estas atividades são realizadas em parceria entre
governo e ONGs foram destacados. No caso de outras parcerias, foi identificado
o principal executor.
A Tabela_4 e o Gráfico_A apresentam os dados para o conjunto das capitais
pesquisadas.
Observamos a quantidade mais expressiva de iniciativas vinculadas a
Organizações Não-Governamentais ' ONGs. Entretanto, se somamos o número de
atividades promovidas por órgãos do governo nos três níveis (federal, estadual
e municipal), podemos observar que este totaliza 33 casos, se aproximando do
número de atividades desenvolvidas por ONGs (42). Observe-se também o número de
17 parcerias entre governo e ONGs identificadas.
Quais são as principais áreas em que se enquadram estas iniciativas? Atividades
ligadas ao campo da educação para despertar o maior interesse entre os agentes
que buscam enfrentar as desigualdades raciais no Brasil. Isto é o que podemos
identificar a partir das dez capitais pesquisadas. Em segundo lugar vêm as
atividades voltadas para a área de trabalho e geração de renda. Boa parte
destas atividades são programas de qualificação profissional. Na área de
educação, destacam-se atividades como os pré-vestibulares, em diferentes
modalidades, a capacitação de professores, além de atividades recreativas e
oficinas culturais com crianças e adolescentes. Algumas atividades educativas e
de qualificação profissional confundem-se quanto aos seus objetivos,
principalmente quando se destinam a adolescentes e jovens pobres. Procuramos
classificá-las segundo a ênfase maior, muitas vezes de caráter subjetivo, dada
à profissionalização ou à escolarização formal (Tabela_5 e Gráfico_B).
Outra área que concentra grande número de atividades é a que chamamos de
"direitos humanos e advocacy". Esta área reúne principalmente
atividades de denúncia e acompanhamento (principalmente jurídico) de casos de
discriminação racial. Também envolve atividades de divulgação de legislação
anti-racista, campanhas e eventos sobre o tema. Trata-se da área que concentra
maior número de atividades "tradicionais" desenvolvidas
principalmente pelas organizações do Movimento Negro.
A maioria das atividades identificadas teve seu início nos últimos cinco anos
(55,7%), demonstrando que a implantação dos programas é relativamente recente.
Na maioria dos casos, a data registrada diz respeito à atividade em questão e
não ao funcionamento ou à existência da organização executora.
No que diz respeito aos recursos, estes advêm, principalmente, de fundos
públicos ou de agências de cooperação internacional. Este número expressivo de
atividades que contam com recursos públicos deve-se principalmente à
transferência de recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador ' FAT, do
Comunidade Solidária e outros fundos que fomentam programas de qualificação
profissional. Muitos deles contam com recursos públicos, porém são executados
por ONGs, sindicatos ou outras organizações privadas.
No que diz respeito ao público-alvo de cada atividade, procuramos distinguir
entre aquelas ações que objetivam ter um impacto sobre uma comunidade
específica, as que atuam voltadas para a opinião pública em geral, as que se
dedicam ao acompanhamento de casos individuais (principalmente o acompanhamento
jurídico) e aquelas que atuam em relação a públicos específicos (estudantes,
alunos de cursos oficinas, funcionários de uma empresa, funcionários públicos,
professores etc.). Neste sentido, quase metade das atividades investigadas
procura atender, principalmente, alunos e participantes de cursos e oficinas,
reforçando a prioridade dada às ações na área de educação e capacitação
profissional (Tabela_7).
Para o total de atividades que pudemos conhecer no levantamento realizado,
procuramos identificar se se tratavam de iniciativas voltadas especificamente
para a população negra. Esta é uma das principais formas de identificar a
orientação da atividade, se voltada para as ações mais "tradicionais"
do Movimento Negro, ou se direcionada para atividades inovadoras, que procuram
incidir diretamente sobre as condições de vida e o acesso a oportunidades por
parte da população negra.
A Tabela_8 e o Gráfico_D mostram que cerca de 1/3 das atividades identificadas
têm como público-alvo principal (ou, às vezes, exclusivo), a população negra. A
categoria "não se aplica" refere-se a atividades que, por sua
natureza, não possibilitam a definição de um público alvo específico. Por
exemplo: inclusão do quesito cor em levantamentos de dados e cadastros.
Foram identificadas atividades específicas para a população negra em todas as
capitais, com exceção de Vitória. As capitais que apresentaram maior número de
iniciativas específicas foram Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, além das
atividades de alcance nacional, promovidas pelo governo federal. Neste último
caso incluem-se, principalmente, as atividades voltadas para as comunidades
remanescentes de quilombos e atividades no âmbito do Ministério do Trabalho,
como cursos com apoio do FAT e o programa "Brasil, Gênero e Raça", em
parceria com a Organização Internacional do Trabalho ' OIT. As atividades
específicas são de responsabilidade tanto de ONGs, quando de órgãos do governo
ou de ações de parceria (Tabela_9).
As iniciativas específicas incluem um espectro de ações variadas. Muitas delas
encontram-se ainda no plano do debate e não foram implementadas. É o caso da
discussão sobre a adoção de cotas para estudantes negros em algumas
universidades. Em alguns casos existe o Projeto de Lei ou a proposta
apresentada para debate dentro da universidade. Estas iniciativas foram
incluídas aqui como forma de registrar a existência da proposta e o debate em
questão, embora não tenham sido implementadas. Este é o caso também de projetos
de lei apresentados por parlamentares, independente do andamento que tenham
tido no Congresso Nacional.
Principais Elementos do Debate: Discursos e Estratégias
Após esta descrição de maneira agregada das principais características das
experiências de combate às desigualdades raciais levantadas, abordaremos, nesta
seção, alguns aspectos mais relevantes sobre estas experiências, enfatizando
questões do debate sobre as mesmas abordadas pelos entrevistados. Não se trata
de uma análise exaustiva das entrevistas realizadas, mas apenas a identificação
dos temas e visões mais recorrentes e marcantes no debate sobre as estratégias
de combate às desigualdades raciais em curso no país.
Em primeiro lugar, vale a pena recuperarmos com um pouco mais de detalhe as
principais atividades que localizamos na pesquisa.
1) Estímulo e ampliação do acesso de afro-brasileiros ao ensino superior: esta
atividade se dá principalmente por meio da organização de cursos preparatórios
para o exame de admissão às universidades brasileiras (pré-vestibular). Esta
experiência está disseminada por todo o país, porém há diferenciações no que se
refere ao público-alvo para o qual se destinam. No Rio de Janeiro, por exemplo,
predominam os chamados pré-vestibulares para negros e carentes; em São Paulo,
há experiências destinadas a ampliar o acesso de jovens de comunidades pobres à
universidade, sem utilizar a cor/etnia como critério de admissão; em Minas
Gerais, há grande variedade de experiências neste sentido, incluindo tanto
programas que têm como público específico os "negros e carentes"
(Agentes de Pastoral Negros), quanto outros que procuram atuar em áreas mais
pobres do estado (UEMG); em Salvador existe um programa de pré-vestibular que
aceita apenas alunos negros (Cooperativa Steven Biko). Em Campo Grande, a UFMS
mantém uma turma de pré-vestibular na qual pelo menos cinco vagas são
destinadas a alunos negros. Já o Grupo TEZ, também em Campo Grande, organizou
um pré-vestibular em 1997 que destinou 70% das vagas para negros.
2) Atividades comunitárias, geralmente em favelas ou bairros de periferia,
destinadas à promoção social de crianças e jovens, através de reforço escolar,
em atividades profissionalizantes e de educação voltadas para o exercício da
cidadania. Estes grupos não restringem seu público-alvo à população negra,
embora haja uma grande predominância da mesma entre os atendidos. Estas
atividades são desenvolvidas por associações comunitárias, grupos religiosos,
organizações do Movimento Negro, grupos de promoção da cultura afro-brasileira,
entre outros.
3) Atividades de apoio e estímulo a microempresários afro-brasileiros: esta
atividade envolve treinamento em conhecimentos ligados à administração
empresarial e qualificação profissional. Também tem como objetivo a ampliação
das áreas de atuação e do número de contratos de prestação de serviços
(principalmente em concorrências públicas) para empresários afro-brasileiros.
Estas atividades são desenvolvidas por organizações formadas por micro e
pequenos empresários afro-brasileiros, tais como o Coletivo de Empresários e
Empreendedores Afro-Brasileiros ' CEABRA, o Centro de Estudos e Assessoramento
de Empreendedores do Instituto Palmares de Direitos Humanos ' CEM/IPDH, e o
COLYMAR, estes dois últimos atuando no Rio de Janeiro. O CEABRA possui núcleos
em dezoito estados do país.
4) Cursos de qualificação patrocinados pelo FAT, fundo público gerido por
representantes do governo, das empresas e dos trabalhadores. Entre uma das
principais atividades que contam com o apoio do FAT encontram-se os programas
de qualificação profissional, executados por instituições ligadas ao sistema
"S", por sindicatos, ONGs, entre outras (Heringer, 1999b). Entre as
orientações formuladas pelo Ministério do Trabalho para a definição do público-
alvo destes cursos encontra-se a prioridade que deve ser dada a grupos mais
vulneráveis: mulheres, jovens, negros e portadores de deficiência.
5) Criação da Secretaria Municipal para Assuntos da Comunidade Negra ' SMACON:
em dezembro de 1998, após vários meses de discussão na Câmara dos Vereadores e
intenso debate na mídia local foi instituída a SMACON em Belo Horizonte, com os
seguintes objetivos:
' promover o desenvolvimento e a melhoria da qualidade de vida da
população negra por meio da implementação de políticas públicas que
reduzam as desigualdades raciais nas várias áreas;
' combater o racismo e os abusos contra os direitos humanos da
população negra;
' fazer campanhas que valorizem a população negra e que possam
construir atitudes e estimular comportamentos de respeito à
diversidade racial;
' trabalhar na construção de uma cultura da paz via apoio e
fortalecimento das famílias e das estruturas comunitárias no meio
social negro. (SMACON, 1998a)
A SMACON destaca-se pelo fato de ser um órgão do Poder Executivo, criado por
lei municipal, com dotação orçamentária própria e, portanto, com maior
autonomia de trabalho, diferenciando-se de outras experiências destinadas à
população negra no âmbito do poder público, como conselhos, assessorias
especiais e secretarias extraordinárias.
A ênfase da atuação da Secretaria é a adoção de políticas sociais,
principalmente em comunidades pobres. Uma de suas prioridades é o
desenvolvimento urbano e a melhoria habitacional de comunidades pobres. Para
estas ações, conta com o apoio de setores da iniciativa privada, organizações
internacionais, universidades e outros setores da sociedade.
Um dos primeiros projetos implantados pela secretaria foi a instalação de uma
escola profissionalizante em uma favela de Belo Horizonte. A escola, uma
demanda antiga da comunidade, é administrada pela nova Secretaria com o
objetivo de, através de ações voltadas para a comunidade pobre, principalmente
os jovens, abordar também a questão da luta contra a discriminação racial. Ser
negro não é um pré-requisito para freqüentar os cursos. Também não é necessário
estar regularmente matriculado em uma escola.
A Secretaria conta, também, com o programa SOS Racismo, com programas de
qualificação profissional, programas de valorização da mulher negra e programas
de valorização da cultura negra.
6) Programa "Oportunidades Iguais para Todos": foi desenvolvido pela
Prefeitura de Belo Horizonte na segunda metade da gestão do prefeito Patrus
Ananias, entre 1995 e 1997. Concebido originalmente como um programa destinado
a fazer cumprir, no âmbito municipal, os princípios da não discriminação e da
promoção da igualdade presentes na Convenção 111 da OIT, concernente à
discriminação em matéria de emprego e profissão, o projeto foi concebido pelo
Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades ' CEERT, em conjunto
com a Secretaria de Governo de Belo Horizonte. Pretendia atuar em três áreas
prioritárias:
' estratégias anti-racistas na educação;
' introdução obrigatória do quesito cor nos formulários dos postos de
saúde municipais, com o objetivo de auxiliar na detecção de doenças
com maior incidência na população negra.2
' recursos humanos: identificação de práticas discriminatórias contra
negros e mulheres no funcionalismo público municipal e reformulação
de procedimentos administrativos visando coibi-las.
A implementação do projeto alcançou resultados parciais, mais perceptíveis no
âmbito do diagnóstico. O fim do mandato do então prefeito ocasionou a
descontinuidade do projeto. Os avanços mais significativos foram na área de
educação (capacitação de professores).
7) Programa de Combate à Anemia Falciforme: em função da mobilização de
organizações do Movimento Negro, o Ministério da Saúde instituiu, em 1997, uma
comissão destinada a elaborar um Plano Nacional de Combate à Anemia Falciforme,
que começou a ser implantado em 1999.
8) Reconhecimento e titulação de terras de comunidades remanescentes de
quilombos: esta atividade vem sendo desenvolvida pela Fundação Palmares
(Ministério da Cultura), em conjunto com o Ministério da Justiça, e com a
colaboração de técnicos e consultores de diversas universidades e ONGs em
vários estados do país. Encontra-se em diferentes estágios de execução,
dependendo da comunidade atendida. Cumpre determinação contida nas disposições
transitórias da Constituição de 1988 e também no Plano Nacional de Direitos
Humanos (1996).
9) Núcleo de Combate à Discriminação e Promoção da Igualdade de Oportunidades:
estes núcleos estão sendo criados no âmbito das Delegacias Regionais do
Ministério do Trabalho e Emprego, como parte do Programa "Brasil, Gênero e
Raça", resultante da Cooperação Técnica para Implementação da Convenção
111, fruto de um convênio entre o Ministério do Trabalho e Emprego e a
Organização Internacional do Trabalho ' OIT. Este programa é o resultado direto
de uma reclamação formal encaminhada à OIT pela CUT, em 1992, denunciando o
descumprimento da Convenção 111. Após a realização de vários seminários
conjuntos, o Ministério do Trabalho deu início, em 1998, a este programa (Silva
Jr., 1996:224).
10) Plano Nacional de Direitos Humanos ' PNDH: possui uma seção específica
destinada aos direitos da população negra, que estabelece metas de curto, médio
e longo prazos. Em cerca de metade das 22 propostas são descritas ações com os
seguintes termos: "apoiar", "estimular",
"incentivar" e "facilitar", indicando apoio indireto a
atividades de outros órgãos do governo ou de organizações da sociedade civil.
Das onze propostas restantes, três destinam-se a incluir ou aperfeiçoar o
registro da cor nos sistemas públicos de informação, o que vem gradativamente
sendo feito. Duas propostas referem-se à preservação e fomento à produção
cultural da comunidade negra. Existem duas metas não implementadas, de caráter
geral, uma delas visando revogar normas discriminatórias ainda existentes na
legislação infra-constitucional. Incluem-se também no plano medidas visando a
divulgação de documentos e legislação antidiscriminatória.
Finalmente, duas propostas referem-se explicitamente à adoção de políticas de
promoção da igualdade:
' desenvolver ações afirmativas para o acesso dos negros aos cursos
profissionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia de
ponta;
' formular políticas compensatórias que promovam social e
economicamente a população negra.
Em relação à primeira meta, o acompanhamento do PNDH disponível na Internet
informa que "a matéria está sendo estudada no Departamento de Direitos
Humanos. Além disso, muitas iniciativas da comunidade têm servido para
implementar esta meta".
No que diz respeito à segunda meta, o mesmo acompanhamento informa que "a
meta está em curso. Foram feitas reuniões com entidades que promovem cursos
pré-vestibulares para negros e carentes".
Durante o processo de avaliação em curso dos primeiros quatro anos do PNDH,
coordenado pelo NEV-USP (Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São
Paulo), várias organizações do Movimento Negro fizeram críticas à timidez do
governo na implantação destas metas, além da escassa alocação de recursos
materiais e humanos necessários à implementação das mesmas.
11) Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da População Negra '
GTI: criado por decreto presidencial em 20 de novembro de 1995, após a
mobilização das organizações do Movimento Negro por ocasião da celebração dos
300 anos de Zumbi dos Palmares. Teve como objetivo sugerir ações e políticas de
valorização da população negra. O relatório com análises e propostas em
diversas áreas foi divulgado no final de 1997. A maioria dos entrevistados
conhecia a iniciativa do GTI, mas não tinha informações sobre as recomendações
propostas no mesmo ou sobre a continuidade da iniciativa. Várias recomendações
propostas pelo GTI encontram-se contempladas no PNDH (ver item 10 acima).
12) Legislação que prevê a presença obrigatória de negros em campanhas
publicitárias veiculadas pela administração pública: leis deste tipo foram
propostas e, na sua maioria, aprovadas em vários estados e municípios (Silva
Jr., 1998). Em alguns casos, um artigo com este teor foi incluído na
Constituição estadual ou na Lei Orgânica municipal. Entretanto, a fiscalização
do cumprimento desta norma é frágil. Ainda assim, a maioria dos entrevistados
reconhece que houve, nos últimos anos, um crescimento da presença de negros na
mídia em geral, e não apenas na propaganda oficial.
13) Projeto Geração XXI: Geledes Instituto da Mulher Negra e Fundação Bank
Boston: este programa, criado em São Paulo, destina-se a apoiar e financiar
adolescentes negros, vindos de escolas públicas e famílias pobres, que se
destacam na escola, a fim de que tenham condições de completar seus estudos até
a universidade sem a necessidade de começar a trabalhar para ajudar no
orçamento doméstico. Este programa tem o apoio da Fundação Palmares (Ministério
da Cultura), possivelmente servindo como uma experiência-piloto que poderá
futuramente ser ampliada para o resto do país.
14) Acordo entre a rede de supermercados Zaffari e a Prefeitura de Porto Alegre
para que a rede garanta a contratação de no mínimo 5% de empregados negros como
condição para uma nova loja na cidade. Esta cláusula de "reserva
racial" é parte de um acordo social firmado entre a prefeitura e redes de
hipermercados, visando compensar o impacto social gerado pela instalação de
grandes lojas na economia local de determinados bairros.
Em outubro de 1999 a Prefeitura havia firmado um acordo semelhante com a rede
Carrefour, incluindo a contratação de pelo menos 10% dos empregados com mais de
30 anos, apoio financeiro para projetos de capacitação profissional, construção
de creche comunitária para filhos de funcionários e a destinação de lixo seco
para cooperativas de reciclagem. Em novembro de 1999 o mesmo acordo foi firmado
com a rede Zaffari, incluindo a cláusula de 5% das vagas para pretos e pardos.
As vagas não poderão ser apenas em postos de menor remuneração.
15) Uma outra estratégia importante adotada pelas organizações negras foi a
implementação de advocacy action, ações voltadas para o recebimento de
denúncias e o apoio, inclusive jurídico, às vítimas de discriminação racial.
Embora apenas umas poucas instituições tenham este serviço, basicamente nas
principais cidades do país, poderíamos dizer que este é um meio concreto
através do qual os indivíduos podem recorrer quando são vítimas de preconceito
racial. A eficácia deste trabalho, porém, é limitada em função da dificuldade
que a polícia e a justiça no Brasil possuem em lidar com estes casos, agravada
pelos problemas associados à tipificação do crime de racismo na legislação
específica. As organizações do Movimento Negro reconhecem hoje que sua maior
reivindicação à época da elaboração da Constituição de 1988 ' o reconhecimento
do racismo como crime ' não produziu os efeitos positivos que então se
imaginava na luta contra o racismo.
Percebemos que, em vários destes programas, há a clareza da especificidade da
questão racial no Brasil, acompanhada, porém, de uma reflexão consciente e
fundamentada sobre as "resistências" existentes no Brasil a programas
específicos (ou exclusivos) para a população. Esta é a equação que se coloca
para a definição dos rumos futuros destas iniciativas.
O conjunto dos entrevistados reconhece a discriminação e as desigualdades
raciais como um problema a ser enfrentado pela sociedade brasileira.
Entretanto, ocorrem divergências quanto às estratégias que vêm sendo propostas
e desenvolvidas pelos diferentes atores sociais envolvidos na formulação destas
políticas.
Dentre os avanços ocorridos nos últimos anos, vários entrevistados apontaram o
aumento da presença de negros na mídia e, em particular, a importância da
revista Raça Brasil como mecanismo que contribuiu para o aumento da auto-estima
dos negros. Uma entrevistada afirmou que "a revista Raça fez em um ano o
que o Movimento Negro estava há anos tentando fazer". A revista é
"motivo de orgulho" para muitos e um "incentivo ao crescimento e
à auto-valorização para outros". Houve também quem apontasse que o
surgimento da revista foi acompanhado de críticas de pessoas brancas que viram
na mesma uma manifestação de racismo, críticas que foram rechaçadas pelos
entrevistados.
Mesmo com estes avanços, muitos entrevistados apontam as dificuldades presentes
nas situações em que as pessoas são solicitadas a se autoclassificarem segundo
a cor. Dois exemplos ilustram esta situação, dentre os programas analisados: a)
entre os jovens que participam dos cursos oferecidos pela escola
profissionalizante mantidos pela SMACON em uma favela de Belo Horizonte, muitos
resistem a declarar sua cor, ou se negam a se classificar como negros; b) na
época do projeto "Oportunidades Iguais para Todos", também na
Prefeitura de Belo Horizonte, muitos funcionários da Prefeitura resistiram à
classificação racial e alegaram que se tratava de discriminação reversa.
Na fala de uma entrevistada, militante do MNU, vivemos em um "regime de
segregação disfarçada" e a crueldade do racismo brasileiro está no fato de
que "a vítima vai sempre duvidar se ela realmente sofreu um crime".
Um outro militante disse que o que diferencia o racismo norte-americano do
brasileiro é que "o americano bate a porta na cara do negro e o brasileiro
pede licença para fechar".
Diante deste quadro, existe a percepção de que o Movimento Negro deve lutar
pela ampliação da cidadania da população negra e não pelo direito ao consumo.
Neste sentido, a posição do MNU é particular. Há uma forte crítica à
"cooptação de lideranças negras" para se tornarem quadros do Estado e
à cópia de políticas dos EUA, "concebidas dentro de uma lógica
capitalista". Voltaremos a este ponto mais adiante.
Ao longo dos últimos anos o Movimento Negro vem crescentemente se envolvendo em
ações concretas voltadas para diminuir as desigualdades raciais. Mesmo
militantes de grupos tradicionais, como o MNU, que possuíam uma atuação mais
voltada inicialmente para a ação política e a denúncia da discriminação
(Francisco, 1987) passam a engajar-se nas chamadas "ações de
intervenção". Existe a percepção de que "há problemas que podem ser
resolvidos aqui e agora, mesmo entendendo que as diferenças raciais não serão
superadas da noite para o dia em nosso país" (Seminário Nacional de
Relações Raciais e Políticas Públicas, 1997).
Muitos militantes percebem que ações deste tipo ' como o pré-vestibular para
negros e carentes, por exemplo ' não resolvem a questão da desigualdade de
forma ampla, representando apenas um caminho, uma ajuda possível.
Os programas do tipo pré-vestibular para negros e carentes foram amplamente
apontados como uma estratégia bem-sucedida e viável de inclusão da população
negra. O pré-vestibular seria uma opção viável, "politicamente correta, já
que não tem caráter exclusivo para negros", que poderia contar com o apoio
do Ministério da Educação e ser amplamente disseminada.
Nós não entramos muito nisso não, se você for buscar o que acontece,
nós somos mais ou menos meio a meio de negros, 50% da população de
negros e 50% de brancos, o que acontece é que a maioria dos negros
são pobres, então ela por si já atinge, você pega uma região, por
exemplo, de Ituiutaba, que tem 80% de negros na sala de aula. Em
Ituiutaba, uma cidade rica, uma cidade voltada para agricultura,
então assim, a maioria dos brancos são realmente fazendeiros, e os
negros são filhos dos empregados das fazendas, então o que acontece,
ele já vai por si, esse que pode pagar o cursinho paga, então esse
outro vai para o nosso curso.
A educação, por sua vez, está intimamente associada, no imaginário dos
entrevistados, ao principal meio de ascensão social ao alcance dos negros.
Alguns entrevistados, ao serem perguntados sobre as áreas prioritárias nas
quais o Estado deveria atuar para beneficiar a população negra foram enfáticos
em afirmar: "educação, educação e educação". Foi apontado por alguns
que o negro não pode apenas denunciar a discriminação, mas tem que "galgar
posições políticas, econômicas e sociais de relevo para consolidar sua luta.
Precisa participar ativamente da política partidária". E para atingir
estas metas, a educação seria o caminho principal.
Este debate remete-nos a um outro ponto importante identificado nas
entrevistas, que é a ênfase na adoção de políticas universais de combate à
pobreza como forma de beneficiar a população negra. Muitas organizações e
militantes do Movimento Negro possuem a percepção de que as políticas
econômicas, sociais e o sistema de administração da justiça contribuem para
reproduzir a discriminação racial e a situação de desvantagem da população
negra. Esta visão traduz-se em propostas. A SMACON, por exemplo, inclui entre
suas prioridades de ação "investimentos em políticas públicas, bem como
trabalho preventivo e educativo para reduzir os índices de violência nas vilas
e favelas. Prevenção do uso de drogas e do álcool" (SMACON, 2000:12). A
percepção é de que uma política universal vai justamente promover a inclusão da
população negra, que historicamente está excluída das políticas públicas.
Segundo Diva Moreira, titular da SMACON,
[...] o combate ao racismo no que diz respeito à população negra
pobre é combate à pobreza, porque a pobreza da população negra foi
programada pelas elites racistas no final do século passado. Então,
não adianta eu ficar aqui, só combatendo o racismo explícito,
grosseiro, sem combater o racismo cotidiano implícito, que é a
miserabilidade da população negra.
Da mesma forma, o boletim intitulado Democracia Racial, informativo do Fórum
CONEN (Conselho Nacional de Entidades Negras) do Espírito Santo, na coluna
"Perguntar Não Ofende", questiona:
A má qualidade da escola pública, a precariedade do atendimento
público de saúde, o baixo salário e o pagamento da dívida externa,
não são fatores fundamentais para o racismo se perpetuar? [...] A
corrupção generalizada, o judiciário corrompido, os governantes e os
legislativos dependentes do capital globalizado não perpetuam o
racismo? (CONEN/ES, 2000:3).
Nestes dois exemplos observamos a íntima relação que é feita entre a
prevalência das desigualdades e injustiças sociais e a reprodução do racismo,
na medida em que estas mantêm a população negra em situação de precariedade
social.
Esta, talvez, seja uma das principais características da estratégia das
organizações do Movimento Negro hoje: a percepção de que o combate às
desigualdades raciais se dá, tanto através de políticas específicas, quanto de
medidas que incidem sobre a situação de pobreza em que a maioria da população
negra vive.
Perguntado sobre quais seriam as políticas prioritárias a serem adotadas pelo
Estado para beneficiar a população negra, um entrevistado, com mais de uma
década de militância no Movimento Negro, afirmou que seria a realização da
reforma agrária, o acesso à educação e uma política de melhor distribuição de
renda. Além destas, foram citadas outras políticas universais que viriam a
beneficiar os negros: saneamento básico em favelas; melhoria da qualidade da
escola pública e microcrédito (projetos do tipo "Banco do Povo").
O aperfeiçoamento das políticas de segurança pública, coibindo a violência, a
impunidade e a violência policial em particular também seria uma forma de
beneficiar a população negra.
O papel do Estado na diminuição das desigualdades raciais
Iremos nos deter aqui um pouco mais nas opiniões sobre a ação do Estado no
combate às desigualdades raciais. A avaliação geral é de que o Estado
"ainda faz pouco" e precisa assumir suas responsabilidades sem se
deixar levar pelo paternalismo. É preciso que o Estado esteja comprometido de
fato com as mudanças, fazendo parcerias com organizações da sociedade civil. O
caso da criação da SMACON em Belo Horizonte é um episódio interessante para se
refletir sobre estas questões, em que o Estado deveria contribuir para a
desconstrução do imaginário racista da sociedade. O governo não pode ignorar e
fazer de conta que este não é um tema que lhe diz respeito.
O processo que precedeu a criação da SMACON através de lei municipal, em maio
de 1998, foi descrito por alguns entrevistados como "difícil",
"doloroso", "colocando a cidade em polvorosa" e
"carregado de simbologia para o Movimento Negro". Alguns se viram
"assustados" com as reações que a proposta desencadeou, o que é
possível observar através do noticiário na imprensa naquele período (SMACON,
1998b). Houve para alguns a percepção de que, caso não se concretizasse a
Secretaria, "isto significaria uma derrota para o Movimento Negro de Belo
Horizonte".
A principal articuladora da criação da SMACON, a atual secretária Diva Moreira,
afirmou que a Secretaria tinha uma tarefa civilizatória e humanizante da
população negra: "Qualquer questão que você trate neste país sem colocar a
questão racial como pano de fundo, você acaba penalizando a população
negra".
Outros entrevistados demonstraram-se mais críticos em relação à criação desta
nova pasta. Apontam que a SMACON corre o risco de se deixar levar pelo
paternalismo, transformando-se numa espécie de secretaria de Ação Social para
os negros. Em função disso, um entrevistado sugeriu que talvez a Secretaria
devesse ter caráter provisório. Outros afirmaram que a SMACON é uma iniciativa
conservadora, já que não tem como bandeira a transformação profunda da
sociedade.
A primeira coisa que me preocupa é que a gente não é minoria étnica.
Uma Secretaria de Assuntos dos Ianomâmis, eles são minorias étnicas,
portanto precisam de uma política especial. A gente é maioria dessa
sociedade belorizontina, é maioria de Minas Gerais. Então, política
para os negros é a política dos trabalhadores, que discuta a questão
do racismo, que elimine uma série de definidores, e de parâmetros que
hoje fazem o racismo se reproduzir silenciosamente e que acaba com a
garantia de sobrevivência da comunidade negra. Se [a Secretaria] não
faz isso, eu pergunto a quem serve, porque a grande comunidade não
está servida. A não ser que se crie para servir a um grupo de negros.
Aí ela faz sentido. Mas para servir à grande maioria negra...
O que se está tentando com essa Secretaria é diluir o confronto do
conflito racial. Os negros não estão mais seguros com as Secretarias,
como os ecologistas também não estão mais seguros porque têm uma
Secretaria do Meio Ambiente. Os trabalhadores não estão mais seguros
porque têm uma Secretaria do Trabalho.
Uma outra crítica bastante contundente foi feita por vários entrevistados aos
governos municipais e estaduais de esquerda, no que diz respeito à timidez de
suas políticas voltadas para a população negra. O Partido dos Trabalhadores '
PT e sua gestão participativa é um dos principais alvos de crítica, a começar
pela própria Secretaria Nacional de Combate ao Racismo do PT:
O Orçamento Participativo é implementado, com êxitos, nas prefeituras
petistas a partir de uma lógica universal, na qual participam as
organizações consideradas legítimas por essa lógica. Indagamos: como
tem sido a participação de organizações sociais preocupadas com a
diversidade étnica e de gênero das populações dessas cidades? Estas
organizações têm suas demandas específicas não necessariamente
compreendidas e incorporadas por outros setores. E como nossos
prefeitos e prefeitas têm tratado esse problema? (Seminário Nacional
de Relações Raciais e Políticas Públicas, 1997).
Também na experiência de mais de uma década de administração petista em Porto
Alegre identificamos a emergência de conflitos semelhantes. O debate que se
segue em torno do destino da Vila Mirim ilustra esta questão.
No coração de um bairro de classe média da região central de Porto
Alegre, estava localizada, havia mais de meio século, uma comunidade
de muito poucos recursos, constituída em sua maioria por famílias
negras, conhecida como Vila Mirim. Com a criação do Orçamento
Participativo, o bairro onde a comunidade está localizada apresenta
uma demanda pela construção de um viaduto que, na alegação dos
requerentes, modernizaria o acesso ao Centro e ajudaria a solucionar
alguns problemas de trânsito da cidade. Para construí-lo, a cidade
anunciou a remoção das 150 famílias que viviam na área correspondente
à Vila Mirim [...]
As negociações levaram cerca de dez anos e passarampor diversas
fases. Cada uma destas fases pode ser determinada pelos movimentos de
ação dos moradores da Vila e de seus aliados e reação por parte da
prefeitura, representada por seu corpo técnico e os representantes
escolhidos como interlocutores para o caso [...].
Num primeiro momento, a Vila, ainda sob o impacto da surpresa pelo
anúncio da remoção, reage tentando se organizar e escolher sua
liderança para dialogar com a prefeitura. Contudo, a aproximação de
setores do PT, que também integram o Movimento Negro, irá trazer para
essa organização a percepção de que parte da motivação do problema
tem origem racial. Com isso, a mobilização deixa de ter um caráter
que a aproxima dos movimentos sociais tradicionais (associação de
moradores, de trabalhadores e de classe), para adquirir um elemento
tido como estranho à experiência brasileira: o conflito racial [...].
Se, para a classe média, a origem racial dos moradores da Vila Mirim
era apenas uma infeliz coincidência, resultante de sua situação
econômica, mas capaz de sintetizar várias representações sobre
atraso, pobreza, desvio social e marginalidade, para o Poder Público
a origem racial era completamente anulada em nome da igualdade entre
os indivíduos e do tratamento universal da população. A percepção
sobre justiça e igualdade que informa a maioria dos militantes
petistas, agora parte do governo, trabalha com uma oposição entre
classes sociais, onde elementos outros como gênero e origem étnico-
racial não tem um valor político. (Oliveira, 1999)
O governo do PT em Mato Grosso do Sul, recém-iniciado à época da pesquisa de
campo, também foi alvo de críticas pelos entrevistados locais: "Era de se
esperar mais".
Sinto em algumas correntes do PT e algumas correntes até de partidos
mais progressistas, uma visão de que nega a especificidade da luta do
negro e acha que a questão do negro vai resolver porque é uma questão
mais social do que racial e que, portanto, resolvendo o social
resolverá a questão racial. Eu sou contra isso. Eu acho que tem que
resolver sim a questão social porque este é um país com os piores
indicadores sociais do mundo. Mas, a questão do negro é uma questão
específica.
Ainda no campo do papel do Estado, vários entrevistados apontaram a necessidade
de o Estado "assumir sua dívida" para com a população negra. Para
muitos, isto implica a adoção de políticas prioritárias dirigidas aos negros, o
que nos leva ao debate sobre as políticas de ação afirmativa.
O debate sobre ação afirmativa
O problema é que a gente fica à mercê da política do gato. É lenda.
Você joga um gato para cima que ele vai cair de quatro. Agora, se ele
tiver com o pé machucado e cair de barriga, foi uma fatalidade. Somos
um povo governado por um governo que pensa assim.
O debate sobre ação afirmativa no Brasil é bastante recente, datando dos
últimos cinco anos. De uma maneira geral, o Movimento Negro brasileiro tem sido
o responsável pela introdução deste tema no debate público do país.
Freqüentemente o assunto é alvo de muitas críticas e resistências à sua
incorporação. As críticas mais comuns destacam que políticas específicas
trariam conflito e divisionismo. As críticas relacionam-se também à inadequação
de políticas deste tipo, uma vez que a situação desvantajosa da população negra
estaria associada ao seu baixo grau de escolaridade. Portanto, uma melhoria
geral das políticas educacionais traria os benefícios esperados à população
afro-brasileira.
Um dos fatores que motivam estas críticas a iniciativas de promoção da
igualdade relaciona-se à forma pela qual o Movimento Negro freqüentemente
apresenta suas propostas neste campo. Não raro os projetos são propostos no
sentido do estabelecimento de cotas numéricas para determinados espaços
institucionais, tais como universidades ou serviço público. Propostas deste
tipo, quando insuficientemente discutidas e analisadas coletivamente,
contribuem mais para produzir um clima de animosidade em relação ao seu
conteúdo do que para avançar no sentido do enfrentamento das desigualdades.
Procuramos investigar junto aos entrevistados na pesquisa se tinham
conhecimento do que são políticas de ação afirmativa e tinham opinião a
respeito da aplicabilidade das mesmas no contexto brasileiro. A maior parte dos
entrevistados não sabia exatamente o que são políticas de ação afirmativa ou
não tinham opinião formada a respeito. Muitos as definiam como cotas e outros
nem mesmo fizeram esta associação. Entre os que fizeram referência às cotas,
vários se posicionaram a favor, principalmente quando se tratava de ampliar o
número de estudantes negros no ensino superior. Acreditamos que isto ocorreu
porque este debate ganhou uma certa visibilidade pública ao longo dos últimos
anos. Entretanto, mesmo concordando, os entrevistados afirmaram não saber como
esta medida seria implementada na prática. Outros que fizeram referência a
cotas apontaram os problemas associados com a possível adoção de políticas
deste tipo no Brasil: "É difícil discutir algo específico para a população
negra"; "há grande resistência a essas políticas, inclusive pelo
conservadorismo da sociedade brasileira".
Eu não tenho nenhuma opinião formada, sabe. Eu tenho conversado com
algumas pessoas, eu não me sinto assim convencida para falar que sim,
nem que não. Eu queria discutir mais, porque, para se fazer, acho que
tem que estar percebendo alguns pontos. Hoje na minha sala de aula,
eu sou uma aluna como qualquer outra, eu passei no vestibular, então,
mesmo que queiram, eles não vão poder questionar a minha capacidade
de estar ali, porque eu entrei pela mesma via que elas.
Ah, eu não sei até que ponto isso é bom. A gente teve até uma
discussão sobre isso. Eu fico pensando assim: aí os negros que
entrarem na Universidade eles vão sofrer outra discriminação dentro
da Universidade, aí eles vão dizer assim: ah, mas você só está aqui
porque sobrou espaço pra você, por que teve cotas, não por méritos.
Neste tipo de posicionamento em muitos casos ficava evidente que o entrevistado
não se opunha à adoção de cotas por princípio,mas sim por não reconhecer
condições de viabilizar a proposta no contexto brasileiro. Uma entrevistada,
que participa da coordenação de um pré-vestibular, chegou a sugerir que
adotassem uma cota de fato para os estudantes negros (na turma do pré-
vestibular), mas que isto ficasse implícito, não fosse alardeado para não
causar polêmica. E cita um exemplo que ajudaria a justificar esta postura:
Os japoneses que vêm de fora, eles procuram empregar nos seus
estabelecimentos, suas empresas, os nissei, sansei..., desde que
tenham a mesma origem racial deles, entendeu? Brasileiro mesmo,
branco ou negro então, nem se fala, né? Então, às vezes eles colocam
um, para disfarçar, mas se você for olhar nas empresas que são
dominadas por japoneses, eles dão preferência ao povo deles,
entendeu? E no entanto, a gente quando tem que fazer alguma coisa, já
vêem com outros olhos. Por que os japoneses podem fazer e a gente
não? E olha que nós estamos no nosso país, é nosso!
Houve quem sugerisse que, a fim de obter maior apoio de outros setores, as
cotas deveriam ser propostas para negros e para brancos pobres, voltando à
fórmula que vem sendo utilizada pelo Pré-Vestibular para Negros e Carentes:
Movida pela preocupação com a eficácia política, tenho falado que, em
vez de defendermos cotas com base em raça, passemos a defender cotas
com base em raça e classe. As vantagens táticas de tal perspectiva
são facilmente previsíveis: a inclusão dos brancos pobres na luta
pelas cotas e contra o racismo, o que ampliará o leque de alianças e
nos tornará mais eficazes. (Diva Moreira, in SMACON, 1998a)
Uma entrevistada foi bastante explícita na sua oposição à adoção de qualquer
tipo de política de ação afirmativa, porém fazendo uso de argumentos distintos
dos apresentados até aqui.
Por exemplo, a política de ação afirmativa nos Estados Unidos, ela
foi no bojo de uma política de direitos civis e aí ela estava
incluída numa população que tem 15% de negros. Numa população que tem
70% de negros, que política é essa que a gente vai construir, se não
de privilégios para uns e de exclusão para o resto? Essa já está
construída. Não precisa ser nada inventado. Os negros não chegam à
universidade porque a seleção acontece. Se você estudou na escola
particular você necessariamente chega à universidade. Caminha muito
mais fácil. Se você estudou na escola pública dificilmente você chega
lá em cima. E é uma escola pública que é uma escola do racismo [...].
Não é só que não tem escola pública. Não tem uma escola de
valorização dos negros. Então, estabelecer um número de cotas aí,
pode ser uma forma de dar visibilidade que a gente está sendo
eliminado de um sistema social que está aí.
Os poucos entrevistados que sabiam de antemão o que eram políticas de ação
afirmativa e as diferenciaram em relação às cotas fizeram críticas a estas
últimas, mas mostraram-se favoráveis à adoção de políticas específicas ou
prioritárias para a população negra.
Não vejo maiores dificuldades para implantar políticas de ação
afirmativa, desde que elas não se estabeleçam em forma de cotas
[...]. Inclusive o próprio presidente Fernando Henrique fez menção
explícita à ação afirmativa naquele seminário em 1996.
Considerações Finais
Os dados apresentados permitiram conhecer melhor de que forma a sociedade
brasileira vem desenhando estratégias destinadas a enfrentar as desigualdades
raciais. Sabemos que este é um retrato parcial, dentro de um quadro mais amplo
de iniciativas. Entretanto, acreditamos que este retrato pode nos indicar
alguns caminhos sobre os rumos futuros da discussão.
Sintetizando alguns pontos principais:
a) As iniciativas concentram-se nas áreas de educação (capacitação de
professores em pedagogia anti-racista e pré-vestibulares
alternativos) e trabalho (geração de renda e qualificação
profissional);
b) Iniciativas não-governamentais predominam, mas há um número
significativo de ações governamentais, nos diversos níveis;
c) Propostas em discussão sobre a adoção de cotas para estudantes
negros no ensino superior não são consensuais;
d) Os governos de partidos de esquerda são alvos de críticas no que
diz respeito às políticas voltadas para a população negra.
A título de conclusão provisória, sabendo que este é um debate que está apenas
começando no Brasil, gostaríamos de deixar aqui dois pontos para reflexão.
O primeiro refere-se ao debate recorrente ao longo da pesquisa sobre a
necessidade de ampliação do acesso de estudantes negros ao ensino superior.
Destacamos que este debate ganha visibilidade justamente no momento em que um
número crescente de jovens de famílias pobres e, em grande parte, negros, está
concluindo o Ensino Médio, levando a uma nova "pressão" sobre o
número de vagas das universidades públicas. Também é de se notar o debate
estabelecido sobre outras formas de acesso ao ensino superior, além do
vestibular, notadamente o ENEM.
O levantamento revelou que as estratégias coletivas que vêm sendo adotadas
pelas organizações da sociedade civil e do Estado em torno desta demanda social
consistem em basicamente três alternativas: adoção de cotas, embora não haja
clareza sobre como esta medida se viabilizaria na prática; pré-vestibulares
alternativos; isenção de taxas para inscrição no vestibular, matrícula e uma
política de bolsas restrita a algumas poucas universidades privadas.
Surpreendentemente, ao nosso ver, às universidades públicas de uma maneira
geral ' a não ser pela isenção de taxas para o vestibular em algumas delas ', a
SESU (Secretaria de Ensino Superior) ou outros órgãos do Ministério da Educação
não apresentaram ainda propostas que venham a contribuir para este debate.
Questões como a ampliação da oferta de cursos noturnos, a necessidade de um
sistema de bolsas-trabalho mais eficaz, a ampliação do crédito educativo ou a
discussão sobre a gratuidade irrestrita da educação superior pública
simplesmente ainda não entraram na pauta de discussão. Paralelamente, uma das
contribuições recentes ao debate foi o projeto em tramitação no Senado que
prevê a reserva de 50% das vagas nas IES públicas para alunos oriundos de
escolas públicas no Ensino Médio.
Dada a recorrência com que o debate sobre o acesso da população negra à
educação (e ao ensino superior em particular) esteve presente ao longo da
pesquisa, é de se questionar por que este tema não ganhou definitivamente
espaço na agenda dos formuladores e executores da política de ensino superior
no país.
O segundo ponto para reflexão diz respeito a uma parte praticamente ausente do
levantamento realizado, cujos envolvimento e visibilidade no debate vêm
crescendo muito ao longo do último ano. Trata-se do setor empresarial, que
aparece aqui entre os responsáveis por iniciativas levantadas principalmente
através de suas fundações filantrópicas.
Assistimos recentemente a um movimento de crescente interesse de empresários
(vinculados a empresas multinacionais) sobre desigualdades raciais, ação
afirmativa e políticas de promoção da diversidade. A imprensa especializada em
economia e negócios vem dando progressivamente maior atenção ao tema. Em
recente reportagem de capa a revista Exame (nº 722, setembro, 2000), por
exemplo, relata programas de promoção da diversidade em curso no Brasil em
empresas como a Monsanto, IBM, Gessy Lever e Lucent. São experiências que
procuram atuar em relação à diversidade em um sentido amplo: gênero, idade,
raça e etnia, portadores de deficiência, origem social e regional.
Da mesma forma, o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social
elaborou e vem divulgando o manual Como as Empresas podem (e devem) valorizar a
diversidade, por meio do qual pretende "contribuir para a discussão do
tema e estimular a implementação de iniciativas corporativas de valorização da
diversidade que tenham como meta enfrentar os preconceitos no ambiente de
trabalho e no âmbito das relações empresariais" (Instituto Ethos, 2000).
Além disso, recentemente a Câmara Americana de Comércio no Rio de Janeiro
promoveu, em 2000, um seminário sobre o tema.
Não vamos aqui detalhar estas iniciativas. O importante é destacar que,
concordemos ou não, experiências deste tipo, por razões de mercado, estão em
curso no Brasil, acrescentando mais este ingrediente ao panorama geral das
estratégias de enfrentamento das desigualdades raciais.
A partir do que foi pesquisado, coloca-se, a nosso ver, um desafio para os
formuladores de políticas e pesquisadores. Em que medida estas dezenas de
experiências identificadas se constituem no esboço de políticas articuladas, de
caráter permanente, deixando de se restringir a soluções locais ou
experimentais? Com o expressivo volume de iniciativas em curso, já é possível
avaliar os programas mais eficazes no sentido de promover melhores
oportunidades para a população negra. A continuidade dos debates e pesquisas
sobre o tema permitirá a construção de consensos que poderão resultar na
consolidação de várias das iniciativas aqui apresentadas, tanto de caráter
universal quanto de recorte específico, tendo como prioridade a redução das
desigualdades.
Notas
1.Em 1995, no caso Adarand Constructors, Inc. x Peña, a Suprema Corte decidiu
que todos os programas de ação afirmativa do governo baseados na raça deveriam
passar por uma teste de "estrito escrutínio", significando que a
promoção da diversidade não era considerada uma razão com força suficiente para
a manutenção das políticas baseadas na raça.
2."No Brasil, algumas doenças têm se registrado com maior freqüência entre
descendentes de africanos: hipertensão arterial, anemia falciforme, diabetes
melito, albinismo, deficiência de lactase e alguns tipos de malformação
congênita" (Grupo de Políticas Públicas-USP apud Munanga, 1996).