De armadilhas, convicções e dissensões: as relações raciais como efeito Orloff
Uma propaganda veiculada na mídia televisiva tornou-se bastante conhecida no
Brasil. Em plena época da redemocratização, nos anos 1980, o comercial da vodka
Orloff serviu de parâmetro para desvelar leituras de cunho
"futurista" do Brasil e do que o país poderia apontar aos países do
além-mar.
A frase-chave do comercial ' "Eu sou você amanhã" ' tornou-se
popular, e indicava situações comparativas, das mais diversas, no cotidiano do
país. Curiosamente, adotou-se, até os anos 90, a referência dessa frase para
indicar, inclusive, os planos econômicos que envolveram países como Brasil e
Argentina. Nos meses que antecederam o lançamento do Plano Real, quando o
ministro Domingo Cavallo apontava a adoção da paridade cambial entre o peso
argentino e o dólar, imaginava-se que as experiências a serem realizadas no
país vizinho serviriam como uma espécie de laboratório para nosotros. A frase,
de certo, era uma paródia, pois o efeito Orloff indicava que o Brasil faria o
que a Argentina havia feito anteriormente. Para os economistas de plantão, uma
espécie de risco zero.
Sintomaticamente, algo aconteceu. Em julho de 1994, o governo brasileiro lançou
a nova moeda brasileira, o real, equivalente a um dólar, o que significou,
durante doze meses ao anúncio do novo padrão monetário, uma certa euforia dos
conterrâneos ' afinal, uma valorização média de 30% das divisas em relação ao
dólar havia ocorrido. Como conseqüência dessa conjuntura, em que parecíamos ter
retomado a auto-estima, um empresário da Associação dos Dirigentes de Vendas e
Marketing do Brasil ' ADVB, relembrando o dramaturgo Nelson Rodrigues, dizia
que o brasileiro havia jogado no lixo o "complexo de vira-lata" (cf.
Inatios, 2001).1
Nesse período, a mídia anunciava o que ocorria no país vizinho, indicando uma
espécie de didatismo das medidas que viriam a ser tomadas pelo governo
brasileiro. O efeito Orloffse estendia e, para muitos, concretizava-se. Ledo
engano, pois em janeiro de 1999, a desvalorização da moeda tornou-se tão real
que levou o governo, em busca de apoio financeiro, a recorrer ao FMI: algo em
torno de U$49 bilhões de dólares. A ironia da história é que a crise na
Argentina, ao longo dos anos 80/90, provocou uma espécie de efeito Orloff ao
contrário, pois medidas tomadas pelo governo brasileiro, e adotadas
recentemente pela Argentina, indicariam que a Argentina será amanhã o que o
Brasil é hoje (ibidem).
A comparação dessas conjunturas econômicas pode também ser estendida ao âmbito
das relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos. Se observado nas
expectativas e desejos de intelectuais e militantes, nem sempre manifestos
publicamente, o efeito Orloff tem sido uma espécie de nosso calcanhar de
Aquiles. Nas últimas décadas, as constantes denúncias de discriminação racial
em delegacias de polícia, na imprensa, no SOS Racismo ou no Ministério Público
têm fomentado a idéia de que haveria uma crescente racialização no cotidiano
brasileiro que nos levaria a similitudes com a sociedade americana.
Entretanto, essas apressadas "constatações" parecem ter virado pelo
avesso quando, em março de 2001, os dados do censo americano de 2000 revelaram
que quase sete milhões de pessoas se classificaram como multirraciais. Efeito
Orloff ao contrário? É o que se deduz de matérias publicadas na mídia impressa,
em que se observam comparações entre o sistema de classificação racial
múltipla, adotado recentemente nos Estados Unidos, no qual os indivíduos
puderam declarar sua raça ou etnia em categorias além das convencionais branco,
negro, hispânico, indígena ou asiática, assinalando uma combinação entre estas
categorias e revelando uma "identidade multirracial", e a forma de os
brasileiros se classificarem, através do censo oficial e também usada pelo
Instituto Brasileiro de Geografia Estatística ' IBGE: preto, pardo, branco,
amarelo ou indígena, ou mesmo a utilizada no cotidiano em que além dos termos
utilizados pelo IBGE podemos encontrar claro, moreno, moreno claro, moreno
escuro, castanho, escuro, mestiço, mulato claro, mulato escuro,
marrom
.2 A combinação de várias categorias, uma identidade multirracial, levaria a
uma brasilianização de categorias "raciais" para os Estados Unidos?
O que na mídia se manifesta pode ser visto como mais uma versão de leituras
comparativas sobre as duas sociedades, posto que a comparação entre os dois
países não é de todo ausente no cotidiano brasileiro. O que exemplifica a
existência de mais um espaço de apreensão das relações raciais brasileira e
estadunidense.
As idéias e representações sobre as relações raciais que se manifestam nos dois
lados do Atlântico já é secular. Basta olhar os trabalhos de Azevedo (1996),
Hellwig (1992) para fazermos um recorte até os anos 60, ou se quisermos notar a
produção dos anos 70 até o momento, haveríamos de listar tanto os trabalhos que
são direcionados para uma comparação explícita entre as duas sociedades, quanto
aqueles que, mesmo não elegendo as relações raciais comparativas, de algum modo
dela falaram. E, nessa direção, deveremos acrescentar o artigo de Bourdieu
& Wacquant (1999), posto que eles objetivam verificar o imperialismo
cultural, representado aqui pelos Estados Unidos, e a sua universalização de
particularismos. A saudável preocupação dos autores ampara-se na afirmação de
que a história política e ideológica do Brasil e dos Estados Unidos indica
divisões raciais distintas, e que a ordem etno-racial brasileira deve ser
considerada em sua lógica própria.
O polêmico trabalho teria passado ao largo, e eu poderia inclui-lo na história
de idéias comparativas Brasil e Estados Unidos, se não fosse por afirmações que
remetem a um desconhecimento da dinâmica da sociedade brasileira, lida através
de poucos trabalhos produzidos, exclusivamente, na academia norte-americana.
Como entender as afirmações de que a "sociodicéia racial (ou
racista)" que se mundializou nos últimos anos é uma confirmação exemplar
do "império e da influência simbólicos que os Estados Unidos exercem sobre
toda espécie de produção erudita e, sobretudo, semi-erudita, em particular,
através do poder de consagração que esse país detém e dos benefícios materiais
e simbólicos que a adesão mais ou menos assumida ou vergonhosa ao modelo norte-
americano proporciona aos pesquisadores dos países dominados", e que uma
violência simbólica não seria exercida a não ser pela cumplicidade
("extorquida") e a colaboração daqueles que a sofrem (p. 24)? Como
compreender essa acusação se os autores demonstram desconhecer a produção local
sobre relações raciais?
Se, provavelmente, Bourdieu & Wacquant demonstram dificuldadesou tenham
resistências em ler e entender a língua que resultou do processo de colonização
portuguesa, deveriam consultar periódicos franceses, e por lá encontrariam
artigos, os quais, por certo, fariam os autores repensarem afirmações tão
acusatórias, amparadas não se sabe em que.3 Afinal, somente Gilberto Freyre é
citado no contexto da afirmação de que o mito da democracia racial tende a ser
substituído nas pesquisas dos norte-americanos pelo mito de que todas as
sociedades são racistas. Mas, que leitura sobre o mito?
Se observado nas interpretações da segunda metade do século XX, o mito da
democracia racial não é tão auto-evidente ' em determinadas conjunturas
políticas falava-se em doutrina da democracia racial ou conjunto de princípios
(governo Jânio Quadros), ou mesmo em democracia racial (leitura de militantes
negros e de esquerda, nos anos 50, sobre a nossa convivialidade racial). Se
observado nas últimas décadas, o que se apresenta é uma re-significação de
disputa simbólica, pois se as dimensões da sociedade brasileira (cultura/
desigualdades raciais; socialidade/discriminação; mestiçagem/apartheid social;
tolerância/segregação) só se tornam perceptíveis e excludentes no âmbito da
política, também são verificadas na interpretação acadêmica, seja pelo
acalorado debate envolvendo brasilianistase brasileiros (ver Harris et alii,
1993; Telles, 1995; Fry, 1989; Hanchard, 1989; Bairros, 1996; Hanchard, 1996),
na ênfase de um racismo idiossincrático (Pereira, 1996), no retorno à
problemática da mestiçagem na análise do fenômeno da música no Brasil (cf.
Vianna, 1995, Guerreiro, 2000), na mestiçagem e no seu contraponto, a
identidade negra (ver Munanga, 1999), no otimismo exagitado de visualizar a
sociedade brasileira como uma civilização mestiça e tropical, "orgulhosa
de si mesma" (Ribeiro,1995), e no revisitar o conceito de "raça"
comparativamente ' Brasil, Estados Unidos e África do Sul (cf. Guimarães, 1999;
Marx, 1997), Venezuela (Wright, 1990) e Colômbia (Wade, 1997).
Tenho argumentado (Santos, 2000), que a análise do mito da democracia racial
tem se constituído como um ponto nodal para se entender as representações da, e
sobre, a sociedade brasileira. E, nessa direção, o mito há que ser percebido
menos como identificação imediata de uma ideologia e falsa consciência, algo
que se manifesta desde os anos 70 em militantes negros, intelectuais
brasileiros e norte-americanos, jornalistas de ambos os países, e sim como
objeto de conhecimento, posto que o mito fala de história e conta estória.
Afinal de contas, tanto a tentativa de "desmistificação" quanto o
"desmitificar", presentes nas leituras e práticas sobre as
desigualdades raciais, não produziram o efeito esperado: a sua completa
negação.
Se até os anos 50 a democracia racial é pensada menos como ideologia do que
fazendo parte da nossa socialidade, fosse em estudos acadêmicos, discursos
oficiais, e até por intelectuais negros nacionais e norte-americanos, no
período seguinte, mais precisamente na década de 60 e, com mais ênfase, nos
anos 70, a referência toma outras cores e nomes: a democracia racial será
referida como mito e identificada como mera ideologia. Nesse processo de
negação do mito da democracia racial, não ocorreu uma ruptura epistemológica ou
analítica, mas uma inserção política nas reflexões sobre as desigualdades
raciais na sociedade brasileira ou o que eu poderia chamar de projeção da
dimensão política no universo simbólico.
Essa politização na reflexão sobre as relações raciais, que tem significativa
influência da racialização dos movimentos civis nos Estados Unidos, é um
fenômeno de extrema relevância nas últimas décadas, seja pela adoção
intelectual de reivindicações dos movimentos negros, na maior publicização da
discriminação racial, ou através das denúncias, cada vez mais constantes, de
indivíduos no cotidiano e nas relações sociais.
Desde os anos 80 vem crescendo o número de jornalistas, historiadores e
cientistas sociais norte-americanos que denunciam, através de textos, as
discriminações de que foram vítimas no Brasil. E isso é muito curioso, pois os
autores, sabendo de antemão da existência das discriminações contra os negros
no país, mostram-se surpresos com a sua existência no cotidiano. Por que a
surpresa de um racismo que navega entre o explícito e o sutil? A sua
verificação já aparecia nos discursos e práticas de organizações negras e nos
estudos afro-brasileiros há mais de três décadas. Ou será que o mito da
democracia racial ultrapassou fronteiras e atingiu lugares onde menos se
esperava, como as universidades norte-americanas?
Pensar a democracia racial na sociedade brasileira como mito é apontar os seus
vários significantes que estão ancorados no sistema de poder, os seus
rearranjos e a sua operacionalização. Por outro lado, há que observar os seus
significados mudando de lugar, possuindo variações e revelando as leituras
alternativas que correspondem a determinados interesses específicos, pois a
realidade está sendo interpretada constantemente pelos interesses de poder.
Isso fica demonstrado, seja na redução desse mito à falsa ideologia, na
exaltação ao encontro das três raças, nas comemorações dos 500 anos de
descobrimento, ou mesmo nas representações sobre Zumbi dos Palmares,
reivindicadas há décadas pelos movimentos negros e incorporadas pelos órgãos
estatais no período posterior à redemocratização.
O mito da democracia racial pode, então, ser usado com base na justificação de
que a igualdade ou desigualdade de direitos independem da cor, na inexistência
de discriminação racial no país, nas relações de tratamento entre brancos e
negros e convivência em espaços diversos, na identificação de que as elites
brasileiras são mestiças, na mestiçagem como uma causa da democracia racial, ou
como o que indica a identidade nacional, ou mesmo por uma outra variação: o
nosso racismo é diferente de outros racismos.
Pensar o mito, portanto, significa desconstruir e mostrar a sua eficácia como
forma de entender a ambigüidade e os paradoxos presentes na sociedade
brasileira; se, por um lado, revela um apartheid social, com a exclusão da
população negra e indígena, do outro, demonstra que é inclusivo via a
convivialidade racial, ou, se preferirem, a cultura afro-brasileira, ao longo
da nossa formação social.
Se Bourdieu e Wacquant tivessem se debruçado sobre a literatura produzida nas
últimas décadas, certamente veriam que a leitura das relações raciais no Brasil
produziu dois modelos excludentes em que, por um lado, enfatizam-se as
desigualdades sociais e, no limite, reconhece-se a cultura como espaço de
convivialidade; de outro, assevera-se a cultura, e no limite, reconhecem-se as
desigualdades sociais. Em outras palavras, o drama se apresenta entre preservar
a mestiçagem sem destacar a discriminação racial ou preservar a
"cultura" e dizer não à mestiçagem. E é de se salientar que esses
modelos são amparados em leituras vindas tanto da influência norte-americana
quanto de outros países centrais, inclusive, a França. Afinal, a influência de
Pierre Bourdieu nas Ciências Sociais no Brasil pode ser observada desde os anos
80. O que é deveras uma ironia para as acusações postas.
Claro que a influência do "império" norte-americano é muito mais
observada, e seria estranho se assim não o fosse, já que a produção de idéias
nos Estados Unidos, principalmente as de caráter crítico, tem um alcance em
países diversos, sejam eles centrais ou periféricos. O que demonstra que a
difusão desses trabalhos tem um alcance imediato do que os produzidos por estas
plagas.
Novas Políticas Identitárias são Exclusivamente Americanas?
Bourdieu e Wacqüant também apontam o "papel motor" que desempenham as
grandes fundações norte-americanas de filantropia e pesquisa "na difusão
da doxa racial norte-americana no seio do campo universitário brasileiro, tanto
no plano das representações, quanto das práticas" (p. 25). Sugiro que para
avaliar a penetração de fundações norte-americanas teríamos que pensá-las no
contexto de ações dos países centrais em países periféricos, pois várias são as
fundações e organizações européias, católicas inclusas, que têm dirigido suas
ações para entidades feministas, homossexuais, ou indígenas.
Segundo, as fundações norte-americanas não introduziram uma política
identitária no Brasil. Mesmo que seja mais evidente a utilização de categorias
raciais à la americana nos discursos e práticas dos movimentos negros, e em
intelectuais, o que demonstra que a politização sobre as relações raciais, nos
anos 60, teve uma significativa influência da racialização dos movimentos civis
nos Estados Unidos, a "questão racial" já pode ser notada nas décadas
anteriores, posto que as elites nas primeiras décadas do século XX buscavam a
"viabilização da nação" (cf. Schwarcz, 1993; Skidmore, 1989).
Desde o final dos anos 50 o Estado brasileiro tem utilizado a convivialidade
racial como matéria-prima na implementação de políticas, tanto em termos
político-econômicos quanto culturais stricto sensu.
Mesmo que faltasse ao governo Juscelino Kubitschek (1956-1960) uma política em
direção à África, havia uma preocupação manifesta com aquele Continente, que
pode ser compreendida em duas direções.
Primeiro, o apoio à independência dos povos coloniais já era algo manifesto na
sociedade brasileira, desde os anos anteriores à sua posse, por intelectuais
negros e não-negros de diversas tendências. Observe-se, por exemplo, a
declaração de princípios do Teatro Experimental do Negro ' TEN, quando da
realização de uma Semana de Estudos, na Associação Brasileira de Imprensa, no
Rio de Janeiro, em maio de 1955.
Com a participação de intelectuais como Nelson Werneck Sodré, Abdias do
Nascimento (o fundador do TEN) e Guerreiro Ramos, o encontro teve como objetivo
a revisão dos estudos sociológicos e antropológicos sobre o negro no Brasil;
além das críticas pesadas às sociologia e antropologia desenvolvidas no Brasil,
ditas "oficiais" e "alienantes", pois focalizavam "a
gente de cor, à luz do pitoresco ou do histórico puramente, como se se tratasse
de elemento estático ou mumificado" (Guerreiro Ramos apud Nascimento,
1968:36),4 o documento expressava posições políticas por meio de palavras-chave
como "autodeterminação" e "auto-afirmação", fundamentais
para o entendimento do léxico político dos anos 50 e 60, e reconhecia a
existência de uma democracia racial brasileira, porém com resquícios de
discriminação:
Declaração de Princípios
[...]
b) considerando as mudanças recentes do quadro das relações
internacionais impostas pelo desenvolvimento econômico, social e
cultural dos povos de cor, o qual se constitui no suporte da
autodeterminação e da auto-afirmação desses povos;
[...]
h) considerando que o Brasil é uma comunidade internacional onde têm
vigência os mais avançados padrões de democracia racial, apesar da
sobrevivência, entre nós, de alguns restos de discriminação;
Declara
[...]
2) É legítimo reconhecer que o recente incremento da importância dos
povos de cor, politicamente independentes, como fatores ponderáveis
na configuração das relações internacionais, tem contribuído, de modo
benéfico, para restaurar a segurança psicológica das minorias e
desses povos; todavia, este fato auspicioso não deve transmutar-se em
estímulo a considerar como luta e ódio entre raças o que é,
fundamentalmente, tensão e conflito entre sistemas econômicos.
[...]
5) É desejável que o Governo Brasileiro apóie os grupos e as
instituições nacionais que, pelos requisitos de idoneidade
científica, intelectual e moral, possam contribuir para a preservação
das sadias tradições de democracia racial no Brasil, bem como para
levar o nosso país a poder participar da liderança das forças
internacionais interessadas na liquidação do colonialismo
(Nascimento, 1958:55 e ss; Ramos, 1995:250 e ss).5
Em segundo lugar, é preciso enfatizar que a postura do governo Juscelino
Kubitschek refletia a conjuntura internacional, como pode ser observado na sua
mensagem enviada ao congresso nacional, em 15 de março de 1959: "[...] a
crescente importância que vêm assumindo no campo internacional os países da
África e Ásia, em luta pela independência e pela melhoria do nível de vida, é
fato dos mais significativos deste século",6 ou na sua posição refratária
ao apartheid da África do Sul, visualizada a partir do assassinato de negros
sul-africanos em abril de 1960.
Através de um despacho assinado no Palácio do Catete, e louvado pela imprensa
como um gesto anti-racista de grande repercussão nacional e internacional,
Juscelino Kubitschek retirava o representante diplomático na África do Sul e
aconselhava a equipe do Ferroviária de Araraquara a não se apresentar nos
campos de futebol sul-africanos. Atitude semelhante foi tomada por um outro
clube paulista, o Portuguesa Santista, que anteriormente se encontrava em
excursão naquele país.
O despacho de Juscelino Kubitschek é revelador da compreensão do seu governo no
que se refere à política externa e aos princípios "sagrados" da nossa
formação social. Caracterizando o princípio de não intervenção como um dos
"pontos cardeais" de sua política externa, e ressaltando a
"contrariedade" pela existência de uma mentalidade escravista, dizia
que a perseguição racial na África do Sul consistia em "um atentado menos
contra os negros do que contra todo o nosso sistema de valores", que
repousa sobre o orgulho de uma democracia racial, "em que todos os homens
convivem em harmonia em torno da grandeza nacional".
E assim justificava a contribuição africana para a constituição de um espírito
nacional:
[...] orgulhamo-nos de agora proclamar isto, do muito que devemos aos
que vieram um dia da África para participar do engrandecimento deste
país. Reconhecemos a contribuição do sangue negro para a formação do
povo brasileiro, como dele nos orgulhamos. Temos de agradecer aos
africanos não somente o imenso trabalho e energia empregados na
agricultura, indústria e em todo um esforço criador da economia
brasileira mas, também, a incalculável contribuição que trouxeram à
arte, pintura e na formação de nosso espírito. Nossa dívida com os
oriundos da região africana e cujos descendentes são nossos irmãos
patrícios iguais aos de qualquer outra cor ou de origem, durará
enquanto durar o povo brasileiro.7
A postura de Juscelino Kubitschek encontrava ressonância em outros âmbitos
oficiais. No Senado, Afonso Arinos discursava condenando a segregação racial no
território africano, chamando a atenção para a integração racial brasileira e
existência de uma política racial antidiscriminatória no país; ministros do
Superior Tribunal Militar enviavam mensagens de apoio ao presidente da
República e pediam alguma intervenção, com a justificativa de que várias ações
brasileiras, como a invasão da Argentina para expulsar Rosas do poder, o
protesto contra o bombardeio de Valparaiso, no Chile, pelos espanhóis, foram
necessárias por não haver neutralidade entre o direito e o crime e,
principalmente, por estarem em sintonia "absoluta com o sentimento da
Nação Brasileira".8
A atitude do governo JK demonstrava um princípio anti-racista inscrito no
âmbito estatal e se constituía em uma resposta perante uma situação considerada
vergonhosa para os valores nacionais. A diferença em relação ao governo Jânio
Quadros é que se ambos tinham como substrato analítico a cultura para elevar o
"espírito nacional", expressão de Juscelino Kubitschek, e, ao mesmo
tempo, exorcizar qualquer manifestação de caráter discriminatório, seja por
estas plagas ou no além-mar, eles se distanciavam na medida em que no governo
Jânio Quadros a cultura brasileira, mais especificamente a de origem africana,
tornou-se um elemento prioritário na implementação da política externa voltada
para a África ou outros continentes. A cultura afro-brasileira passaria a se
constituir em um bem simbólico tratado como assunto de Estado. Como observava
Afonso Arinos de M. Franco, Ministro das Relações Exteriores do governo Jânio
Quadros, em um artigo publicado na década seguinte e que teve o objetivo de se
defender das críticas sobre sua ambigüidade e submissão ao governo português, a
estratégia era "conquistar influência cultural sobre a África negra,
impedindo que sua inevitável emergência para a autonomia tomasse caráter
radical"; a intenção manifesta, portanto, era colocar o Brasil como
mediador entre as políticas do colonizador e dos países africanos (Franco,
1974).9
Saliento que um sistema coerente de defesa das nossas relações raciais esteve
sempre em pauta na constituição da política externa brasileira, o que não quer
dizer que dela fosse exclusivo. Pelo contrário, o que sua implementação faz é
incorporá-lo como projeto no campo das relações internacionais sem dar margens
a qualquer sintoma da existência de ambigüidade. E seria estranho se assim não
o fosse; afinal, se lido naquela direção, significaria mais que um perigo.
Estaríamos frente à própria subversão, ou mesmo, à provável destruição da nossa
maior representação simbólica.
Todo esse contexto indica que o sistema brasileiro de relações raciais adquiria
um formato padrão de consolidação ideológica quando pensado para o além-mar e
direcionado ao âmbito da sociedade brasileira. E aqui reside um problema
interessante. Essa consolidação implicava cristalizar as manifestações
culturais afro-brasileiras através do discurso de que elas estavam imersas na
cultura nacional. Obviamente, isso não constituía nenhuma novidade, pois desde
o final do século XIX, e até a metade do século XX, algumas manifestações de
origem afro-brasileira ou a destacada participação de afro-brasileiros foram
alçadas à condição de símbolos nacionais. O samba e o futebol constituem-se em
exemplos expressivos.
No entanto, a novidade é que, a partir dos anos 60, as políticas oficiais
passavam, paulatinamente, a incorporar algumas manifestações negras e dar-lhes
sentidos de autenticidade da nossa brasilidade. A princípio, pode parecer que
essa adoção, por ter acontecido em um contexto de valorização africana, tenha
se efetivado de modo aquiescente na sociedade brasileira. Pelo contrário. Se
por um lado havia uma completa ressonância e absorção política do "ir à
África", que pode ser visualizada nos mais variados setores, da imprensa
aos intelectuais, afinal como destacava o historiador Pedro Calmon, em artigo
publicado no jornal A Tarde, em 17/7/1967, devíamos estar no Continente
africano, pois tínhamos o "argumento tríplice ' do idioma [a língua
portuguesa, tão mulata aquém e além-mar como a gente que descende das etnias
conciliadas!'], do parentesco e da história ' aqueles fartos pedaços de África
se nos afiguram tão perto do Brasil, como se em vez de os separar a água, os
separasse o tempo", a leitura da religiosidade afro-brasileira adquiria
contornos paradoxais, principalmente quando pensada a sua relevância nas
imagens internas e externas do país.
Qual a razão do destaque à religiosidade afro-brasileira? Argumento que,
paralelo à implementação da nova política externa em direção à África, havia um
contexto de leituras ambíguas sobre a religiosidade afro-brasileira, mais
precisamente sobre o candomblé baiano, que perpassavam a sociedade brasileira.
Ou seja, os significados sobre o seu papel inscrevem-se em uma sociedade em
acelerada industrialização ' vale lembrar que nos anos 50 a Petrobras
instalara-se na Bahia ' e que, nesse mesmo período, há uma redefinição do
planejamento do estado. O rompimento com a estagnação econômica baiana e a
superação do desequilíbrio regional do país passam a ser prioridade na política
oficial do estado. Através da Comissão de Planejamento Econômico ' CPE,
implantada pelo governador Antônio Balbino (1955-1959), visualizava-se um
planejamento integrando áreas diversas como a saúde, educação, habitação, o
turismo e a cultura. A leitura baiana de uma interseção dos níveis de ação
governamental constituiu-se numa tradução do que acontecia pelo país afora. O
depoimento de Rômulo Almeida, um dos membros da CPE, é bastante elucidativo:
Para o desenvolvimento industrial era indispensável a organização da
economia agrícola [...] e um sistema de estímulos que incluía a
implantação de uma área industrial [...]. Mas era preciso também
preservar o grande patrimônio histórico, paisagístico e cultural da
Bahia dos efeitos de um crescimento urbano e industrial desordenado.
(apud Carvalho, 1999:82)
Nesse contexto, a modernização também foi vista da perspectiva de uma
"renovação cultural", posto que movimentos culturais como a Bossa
Nova, o concretismo na poesia, a implantação da televisão e o surgimento do
Teatro Oficina e do Teatro de Arena estavam a transformar a sociedade
brasileira e, no âmbito local, havia uma efervescência cultural e artística,
cujo maior expoente nacional passou a ser o jovem cineasta Glauber Rocha.
Argumento que o poder da cultura de origem negra remete à cultura no poder no
período que vai do início dos anos 60 ' governo Jânio Quadros ' ao advento do
que se convencionou chamar de Nova República (1985), ou redemocratização, pois
se a articulação poder/cultura tem nos discursos oficiais a reiteração da
importância da população afro-brasileira, também se observa uma profícua
relação com aqueles que falam em nome da cultura; refiro-me a intelectuais e
lideranças afro-religiosas, sobremaneira a partir dos anos 60, e militantes
negros no período pós-redemocratização, quando da elaboração da nova
Constituição, com a criação dos conselhos de defesa da comunidade negra
A cultura afro-brasileira torna-se, portanto, um elemento substantivo no
incremento à política desenvolvimentista no período militar (1964-1985), na
criação de uma nova política do turismo e pela elevação do candomblé à condição
de "imagem-força" do Estado da Bahia (final dos anos 60), ou nas
ações atualizadoras desse mesmo período no governo de Fernando Henrique
Cardoso. Ou seja, a cultura de origem negra atravessa a política em diferentes
governos, com projetos específicos, já que não foram criados pelas mesmas
elites.
E é na percepção de uma dinâmica na sociedade brasileira que se tece não
somente a legitimidade de propostas políticas, mas a própria legitimidade da
cultura negra. Perseguindo a forma como essa cultura atravessa a elaboração
dessas políticas oficiais, penso que o Estado da Bahia, marginal em fluxos
financeiros, mas central na visualização de políticas raciais comparativas,
como as pensadas por diversos scholars, desde a primeira metade do século
XX,10 tornou-se o ponto focal para o entendimento do processo político da
construção de imagens negras.
Afinal, a "Bahia negra" define "naturalmente" a identidade
do estado. O processo de construção e consolidação dessas imagens vem se
firmando, paulatinamente, entre o final da década de 50 e o início da Nova
República, em um contexto marcado por fortes tensões e ambigüidades nas
relações entre as elites políticas e os próprios grupos e entidades negras,
como os terreiros de candomblé e suas lideranças, e outras entidades culturais
e políticas.
Neste sentido, a "negritude" dessa "baianidade" corresponde
ao processo de construção de uma "nação corretamente política", em
razão de serem os seus símbolos diferentemente apropriados. A Bahia deixa de
ser pensada como melting pot,e é onde se fixa e cristaliza a idéia de que ali
se encontra o estado verdadeiramente negro. Diferente do início do século, há
na Bahia uma reelaboração de políticas direcionadas para manifestações de
tradição negra, em um período, a partir do final dos anos 60, em que o discurso
da modernidade enfatizando desenvolvimento é prioritário.
A questão que se apresenta é: de que forma os conteúdos da democracia racial,
seus significados e significantes, passaram a consolidar essa identidade? Que
discursos polissêmicos marcam a dimensão do poder na cultura e a dimensão do
poder da cultura (característica de reforço, por exemplo, do povo-de-santo).
Afinal, a Bahia e a elevação dos seus símbolos, a partir dos anos 60, parece se
constituir em um equivalente do que foi o Rio de Janeiro no período 20-30.11
Proféticos Desejos?
Por certo, todas essas considerações revelam que uma política identitária é
anterior a uma "influência" vinda exclusivamente de fundações e
intelectuais norte-americanos. Claro está que o advento dos direitos civis
provocou a entrada em cena de novos paradigmas vindos dos Estados Unidos, e que
as medidas de "americanização" no debate ou nas ações do período
governamental atual de Fernando Henrique Cardoso (sistema de cotas começam a
ser implementados), sejam mais visíveis; entretanto, o que se observa é que com
o advento dos movimentos sociais "locais" houve a ampliação de
negociações, pois se antes o alvo era local, ou federal, com a entrada em cena
das fundações americanas e européias o plano de negociação dessas re-
significações de raça, gênero ou orientação sexual foi alargado.
Haveria uma necessidade de Bourdieu e Wacquant saberem que no contexto local as
representações sobre política, identidade e cultura, no que tange a uma
"racialização", não se manifestam como meras tábuas rasas de
artimanhas imperialistas e do seu modelo racial hegemônico. Penso que uma
leitura séria e acurada de uma bibliografia já existente, algo que sempre
esperamos de intelectuais, mostrar-lhes-ia que nas re-significações se
apresenta uma disputa pelo "campo" do poder, configurada por
projetos, a partir de lugares de interpretação de uma determinada problemática,
em determinado contexto, de que nem as lideranças negras e, nem mesmo, os
intelectuais conseguiram escapar, como pode ser observado nos acalorados
debates, nos últimos dez anos, envolvendo brasilianistas e brasileiros.
Se um olhar superficial indica, só à primeira vista, que somos todos meros
reprodutores de "artimanhas imperialistas", um olhar mais acurado
indicaria que somos mais dissonantes do que gostaríamos de crer. O efeito
Orloff que tanto volta à cena ' afinal, de crises e soluções políticas e
econômicas não saímos ', apresenta-se, portanto, como um depositário de
projeções. As análises rápidas e rasteiras, vindas de onde vieram, estão mais
próximas de discursos proféticos que projetam não somente as angústias, mas,
principalmente, o desejo. Desejos sobre o que do outro?
Notas
1.Miguel Ignatios, "Orloff do contrário". A Tarde, abril de 2001.
2.Ver Folha de S. Paulo, "Milhões se dizem multirraciais nos EUA",
14/3/2001. Observo que além dos já notados sistemas de classificação, um outro
aparece na mídia impressa e televisiva. Ao contrário dos movimentos negros e de
intelectuais que, por razões distintas, utilizamos a categoria negra como
somatório de pretos e pardos, a imprensa tende a visualizar essa categoria para
identificar o preto do IBGE. Inúmeras vezes, os jornalistas de órgãos nacionais
como Folha de S. Paulo, Rede Globo, assim como jornais e emissoras de
televisão, têm ressaltado as desigualdades raciais, indicando, por exemplo, que
"no estado da Bahia, cuja maioria é negra, há somente 8% de negros [trata-
se dos pretosda classificação do IBGE que aparecem nas estatísticas] que
ingressaram na única universidade federal (UFBA)". Ironias à parte, pois a
atenção e o alarde provocados pela imprensa alcançam maior viés político que as
categorias usadas pelos movimentos negros e pelos intelectuais, a mídia tende a
sobrevalorizar os pretos em detrimento dos pardos, demonstrando uma proximidade
da sua classificação fenotípica dos mais escuros (os pretos) com as do senso
comum.
3.Remeteria, por exemplo, ao número temático "Politique de l'Identité.
Les Noirs au Brésil", do Cahiers d'Etudes Africaines, vol. XXXII, nº 1,
1992.
4.Esse encontro pode ser visto como uma espécie de continuum de atividades do
TEN e que se tornavam uma espécie de contraponto aos congressos afro-
brasileiros realizados em Recife (1934) e Salvador (1937). Na década de 40,
haviam sido realizadas duas Convenções Nacionais do Negro, a de São Paulo
(1945) e a do Rio de Janeiro (1946); a Conferência Nacional do Negro (Rio de
Janeiro, 1949) e o I Congresso do Negro Brasileiro (Rio de Janeiro, 1950).
Sobre o debate sociológico envolvendo o TEN, também influenciado por Guerreiro
Ramos, nos anos 50, ver Maio (1996). Sobre o TEN, a sua dramaturgia e as
relações raciais, ver Birman (1991).
5.As propostas direcionadas ao governo brasileiro constituíam-se em uma ação
contínua do TEN. Na realização do I Congresso do Negro Brasileiro, em setembro
de 1950, foi aprovada uma tese de Guerreiro Ramos solicitando que o governo
brasileiro encaminhasse aos seus representantes na UNESCO as seguintes
propostas: i) estímulo "à instalação de mecanismos sociológicos que
transformem o conflito interétnico num processo de cooperação"; ii)
reconhecimento da experiência sociológica do TEM; iii) organização pela UNESCO
de um Congresso Internacional de Relações de Raça (cf. Nascimento, 1958:
155ss.). A sugestão do TEN deve ser compreendida no contexto do projeto da
UNESCO sobre relações raciais na América Latina; sobre os significados do
projeto UNESCO, ver Maio (1998) e Hasenbalg (1996).
6.
Apud Fischlowitz. Este autor, além de professor da PUC-RJ, era assessor técnico
do Ministério do Trabalho e ex-perito da Organização Internacional do Trabalho.
7."JK protesta contra matança de negros. Praticamente rompe relações com
a África-Sul", Diário de Notícias, 9/4/1960, p. 1.
8.
Idem e "STM apóia JK: Racismo na África do Sul. Não podia ser outra
conduta do nosso governo", Diário de Notícias, 10 e 11/4/1960.
9.Sua intenção era chamar a atenção para as diferenças temperamentais entre
ele e Jânio Quadros ' "o erro fundamental de Jânio, na política externa,
não estava no fundo, que bem planejava e concebia, mas na execução mais que
dramática, teatral, com que a levava a efeito, por motivos de política interna
e pelo seu feitio individual de personagem-autor conjugados" (p. 69) ' a
se defender de ataques intelectuais. Uma crítica contundente à política
desenvolvida por Afonso Arinos pode ser observada em José H. Rodrigues (1966:
173), o qual afirmava ir Afonso Arinos "à Corte" para consultar
Salazar.
10.Além de Ruth Landes (1947), Donald Pierson (1942), Carl Degler (1971), os
quais desenvolveram estudos sobre a Bahia, outros mais recentes podem ser
observados na coletânea Afro-Brazilian Culture and Politics, Bahia, 1790s to
1990s (Kraay, 1998).
11.E é interessante notar que a imagem baiana da cultura brasileira é
predominante em países como a Argentina (cf. Hasenbalg e Frigerio, 1999).